Nas décadas de 60 e 70 a MPB produziu uma significativa quantidade de novos compositores, das mais variadas tendências musicais, carregando as mais diversas influências e propostas. A grande maioria desses novos autores surgiram através dos vários festivais de música que na época proliferavam pelo país. Dentre esses vários músicos e compositores, alguns deles se notabilizaram por apresentarem um trabalho mais carregado de experimentalismo e uma ousadia estética, e por isso mesmo, anticomercial.
Os grandes festivais, apesar de terem servido como um impulso para o surgimento de inúmeros talentos musicais, no fundo nada mais eram do que programas de tv, em busca de uma grande audiência que aqueles tipos de evento proporcionavam. E como todo espetáculo, o inusitado também chama a atenção, e atrai atenções. A reação do compositor Sérgio Ricardo, por exemplo, no Festival de TV Record de 1967, ao quebrar seu violão e jogá-lo contra a plateia que o vaiava, apesar de ter criado à princípio um grande problema para a organização do festival, na verdade serviu para aumentar a mobilização das atenções para aquele festival, além das ótimas músicas que concorriam.
Talvez muito pelo caráter do inusitado e para sair dos padrões normais, as apresentações mais ousadas e experimentalistas, sempre tiveram espaço nesses festivais. E eram aqueles compositores que fugiam da linha mais tradicional de se fazer música e de se apresentarem, que garantiam essa espécie de espetáculo, que passou a ser outra característica dos antigos festivais. Mais tarde, muitos daqueles músicos ganharam o rótulo de "malditos". Mesmo andando pela contramão eles iam conseguindo abrir seu espaço e conquistar uma fatia do público mais antenada com as novidades, e abriam olhos e ouvidos para o novo e o anticonvencional. Essa tribo maldita, viria ainda servir de inspiração para toda uma geração de novos músicos, e renovar seu público, mesmo tendo passado, a grande maioria, longe do sucesso comercial.
Um exemplo é Jards Macalé. Em 1969 ele escandalizaria o público do Festival Internacional da Canção (FIC), da Globo, com a inusitada Gothan City, de parceria com o poeta e letrista Capinan. Apresentando-se vestindo uma túnica colorida, Macalé recebia vaias enquanto gritava a letra que trazia o refrão: "Cuidado, há um morcego na porta principal/ Cuidado, há um abismo na porta principal". Gotham City serviu para chamar a atenção para seu nome, e colocar Macalé entre os músicos mais renovadores e surpreendentes do país. Macalé é um músico e compositor que sempre primou pelo efeito surpresa. Quando se espera dele um trabalho de vanguarda, ele aparece apresentando clássicos da MPB, para depois gravar um rock. Artista multimídia, já fez incursões pelo cinema, teatro e intervenções em artes plásticas. Mas é na música que ele melhor expressa seu fino humor e ironia, merecendo o título de artista marginal.
Talvez o compositor que melhor tenha encarnado a fama de maldito seja Walter Franco. Walter é um dos músicos que mais ousaram fazer experimentações sonoras inovadoras e polêmicas. Foi também no FIC da Globo, em 72, que ele ganharia destaque nacional, por apresentar a composição mais inusitada e experimental de todo o festival: Cabeça, na verdade uma colagem de frases, com ausência total de melodia, uma superposição de vozes através de sons pré-gravados - algo bem adiante de seu tempo, e que trazia influência de compositores vanguardistas, como John Cage. A música deixou o público e os jurados atônitos e meio perdidos. No mesmo ano Walter lançaria seu primeiro disco, Ou Não?, mais conhecido como "o disco da mosca", já que a capa trazia uma foto do inseto.
Outro maldito notório é Jorge Mautner. Filho de um casal austríaco judeu, que fugiu para o Brasil na época do nazismo, Mautner desenvolve um trabalho muito pessoal, com letras bem criativas que trazem às vezes referências a filósofos e pensadores como Nietzshe e Goethe, dentre outros. Músico, poeta, escritor e cineasta, Mautner teve uma formação intelectual intensa. Isso tudo veio a refletir em seu trabalho - uma mistura do pensamento clássico europeu com o samba, o candomblé, o rock e ritmos latinos, num caldeirão de sonoridades emolduradas por letras repletas de imagens poéticas que extrapolam qualquer padrão estabelecido. Nos anos 70 Mautner morou em Nova York e depois Londres, onde conheceu Caetano e Gil. Começaria então uma parceria musical com os dois baianos, e lá seria rodado o filme O Demiurgo, dirigido por ele, que também atua ao lado de Gil e Caetano e outros brasileiros que se encontravam na capital inglesa. O filme, que foi elogiado por Glauber Rocha, entre outros, é considerado um dos melhores documentos sobre a contracultura e o movimento hippie já produzidos no Brasil. Sua composição Maracatu Atômico, em parceria com seu parceiro mais constante, Nelson Jacobina (falecido neste ano) é um verdadeiro clássico, e fez sucesso com Gilbero Gil, e ganhou inúmeras outras gravações, como a de Chico Science em seu disco Afrociberdelia.
Tom Zé também faz parte da tribo dos malditos. Sua música ainda causa estranheza por suas peculiaridades e altas doses de experimentalismo. Do grupo dos tropicalistas é aquele que foi mais ousado na busca por novos caminhos e sonoridades. Sua carreira sempre seguiu na contracorrente. Nos anos 70 lançou discos que hoje são cultuados pelas novas gerações que o redescobriram. Seu disco de 72, por exemplo, é uma obra-prima, que traz poesia concreta, na voz de poeta Augusto de Campos, samba e sons experimentais. Seu disco seguinte, Todos Os Olhos, de 74 é outra pérola, a começar pela capa polêmica. É outro disco que pode ser considerado uma grande obra, trazendo pérolas musicais repletas de ousadia e pesquisas sonoras inusitadas, por isso mesmo pouco compreendidas. Estudando o Samba, de 76, seu disco seguinte, além de ser um disco carregado de criatividade e inventividade, foi o grande responsável por seu retorno à cena musical, após o músico inglês David Byrne ouvi-lo nos anos 90 e ficar encantado, a ponto de lançar o nome de Tom Zé no mercado internacional, e dar o impulso que faltava para que ele voltasse a lançar discos e fazer shows. Mesmo com todo o reconhecimento, Tom Zé é mais um maldito da MPB.
Para terminar, e não tornar ainda mais longa essa postagem - outros nomes ainda poderiam ser lembrados - não poderia esquecer de Sérgio Sampaio. Nascido em Cachoeiro do Itapemirim/ES, Sérgio mudou-se para o Rio nos anos 60, e lá conheceu aquele que viria a ser seu grande amigo e incentivador: Raul Seixas. Com Raul, e ao lado do baiano Edyr Star e da sambista paulista Miriam Batucada, Sérgio participa em 71 do disco Sociedade da Grã-Ordem Kavernista Apresenta Sessão das 10, hoje um disco cult. Grava ainda alguns compactos, mas é no ano seguinte que Sérgio ganha um impulso em sua carreira ao participar do VII FIC, da Globo com sua composição Eu Quero Botar Meu Bloco na Rua. A música faz um sucesso retumbante, e seu nome pasa a ser conhecido em todo o país. Porém, o trabalho de Sampaio não se estabeleceu no sucesso que conheceu, ao contrário do que as gravadoras esperavam dele. Suas composições eram altamente inspiradas, trazendo letras poéticas e profundas, porém Sérgio jamais repetiria o sucesso que havia conhecido, e que ele na verdade, nunca procurou. Sempre viveu à margem do mercado musical, por isso mesmo gravou poucos discos, apenas três Lps e alguns compactos. Sérgio foi um "maldito" por natureza, mas com uma obra riquíssima, e que merecia ser mais conhecida.
Belo artigo. Parabéns!!!
ResponderExcluirObrigado, Jefferson
ResponderExcluirMuito bom! Nossa banda está para estrear um show onde fazemos releituras dos malditos, em versões rock n roll. O show se chama Maldito Rock: https://www.facebook.com/seujuvenalmg/
ResponderExcluirOlá, Bruno. Obrigado por nos visitar. Vou visitar a página da banda no Face. Um abraço
ResponderExcluirObrigado pelas informações, mais coisa boa para mim ouvir.
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