Palavras Domesticadas

Palavras Domesticadas

terça-feira, 30 de outubro de 2012

Jards Macalé - Show Contrastes (1977)

Em 1977 Jards Macalé lançava o LP Contrastes, um disco com muitas novidades e experimentações. Após três anos sem gravar - o seu disco anterior, Aprender a Nadar, havia sido lançado em 1974 - Macalé voltava aos palcos com o repertório do novo disco. Lembro de em março do ano seguinte ter assistido a um show de Macalé, trazendo uma boa parte do repertório de Contrastes. Em agosto de 77, a revista Música trazia uma resenha do mais recente show de Macalé:
"No palco do Teatro Tereza Rasquel no Rio, apenas com seu violão e dois microfones, totalmente despojado de artifícios, o carioca Jards Macalé, durante a temporada do seu show 'Contrastes', conseguiu se impor, graças ao seu talento e à sua nunca esgotada criatividade, como um dos melhores representantes do que atualmente está acontecendo de bom na música brasileira.
Acontece que ele não queria montar apenas mais um show, quer dizer, fazer um grupo, ensaiá-lo musicalmente direitinho e subir a um palco para fazer formalmente um espetáculo, com roteiro definido e coisa e tal. Ele preferiu ficar livre e deixar que fluíssem dentro de sua cabeça as experiências acumuladas nesses últimos anos, não só no campo da música, mas através do trabalho e do contato com pessoas do teatro, artes plásticas, cinema, uma porção de coisas. Então, foi tudo isso que procurou levar para o palco, encontrando na pobreza cênica uma das soluções para poder continuar autoproduzindo seu próprio trabalho.
'É, a pobreza é a solução, o cinema já optou por ela há séculos e o teatro também a ela tem recorrido muitas vezes', diz Macalé. 'A gente fica tentando imitar sempre as coisas externas, fica sempre querendo fazer grandes espetáculos, fica concorrendo até com essas coisas externas. Aí pensei: como é que eu vou concorer com o Genesis? Só se eu me suicidasse em cena, mas isso, é lógico, jamais faria. Então a única maneira de eu concorrer com o Genesis é sendo sincero e absolutamente honesto comigo, com o meu trabalho, com as pessoas e, principalmente com o público'." 

domingo, 28 de outubro de 2012

Bethânia por Caetano - Revista Careta (1981)

Em agosto de 1981, a revista Careta publicou um ensaio fotográfico de Maria Bathânia, feito pela fotógrafa Mariza Alvares de Lima, que faria parte de um livro de fotos que levaria o nome da cantora. Na ocasião Caetano Veloso foi convidado a escrever um perfil de sua irmã, que resultou no belo texto abaixo:
"Quando a turma da Careta pediu pra escrever um perfil de Bethânia, eu desviei o olhar com vontade de dizer não, mas considerava a ideia redundante. Eu já havia dito tudo sobre ela. Contudo, uma dessas minhocas que escrevem na revista Veja deu (à guisa de crítica, como sempre) um show de ressentimento contra tudo o que em Bethânia é exuberância e desprendimento, e isso me deu tesão de escrever de novo sobre sua grndeza.
O perfil de Bethânia é um dos mais belos perfis de mulher que já houve. Sua testa avança numa convexidade incomum e o homem superior logo nota que ali se guarda um cérebro incomum. Sob a testa, cujo arrojo estanca na linha descendente da sobrancelha, que é como que uma versão suave da máscara da tragédia, desenha-se o nariz espantoso; é o nariz do chefe indígena norte-americano, é o nariz da bruxa, o nariz de Cleópatra e, no entanto, é o único nariz assim - os outros são apenas uma referência a ele. Se esse nariz, na vanguarda de uma batalha que o homem superior adivinhou tramar-se no cérebro por trás daquela testa, aponta orgulhosamente para o futuro da beleza, a boca parece desmentir a armada: emergindo a um tempo brusca e suavemente à flor do visível, ela anuncia o mel que destilará e consumirá em palavras, em beijos, em mel. Sim, porque se os olhos traem o corpo por serem uma revelação do espírito inscrita na carne, a boca trai o corpo por ser uma revelação do próprio corpo. Insondáveis são os mistérios do espírito e olhos que veem, inquietam-se diante dos olhos que veem. Mas, os mistérios do corpo não são menos insondáveis e a boca, esse transbordamento do lado de dentro de um corpo vivo para seu exterior, é um pequeno escândalo permanente. Assim, a boca de Maria Bethânia, vista aqui de perfil, primeiro parece negar e depois explica e aprofunda a informação plástica estampada na parte superior da sua cabeça: traduz doçura e amargor o que fora enunciado em dureza e alegria. O que seu queixo arremata numa curva fresca de felicidade infantil. Uma esfinge, um pierrô, uma astronave. Apenas o rosto de uma mulher, desta mulher, pequena e franzina, que deixa o espírito sair pela boca e queima a carne com a luz dos olhos. Que nos dá as costas para falar com alguém do outro lado e depois se volta pra nós, indecifrável.
Eu sempre achei que Bethânia é a filha favorita de minha mãe. Dizem que Freud escreveu que um mother's baby  terá sempre sucesso. Tenho tido muita inveja de Bethânia porque na minha fantasia os acontecimentos da vida dela possuem uma espécie de inteireza diante da qual a minha própria vida parece consistir numa série de imprecisões e transparências. Roberto, nosso irmão, imediatamente mais velho que eu, me disse que inveja em Bethânia o modo intenso como ela vive suas emoções. Não me lembro de ter tido ciúmes quando, aos 4 anos, 'vi' Bethânia nascer. Como se sabe, escolhi o nome para ela, contra toda a família, e considero isso uma profecia: é mais óbvio que ela só se podia chamar assim. Ela foi a única adolescente rebelde da família e, nessa altura, eu interferi a seu favor, o que me pôs na posição de meio-tutor e meio-cúmplice. Aprendo então, com ela, a vivência da rebeldia. Eu tinha a inteligência: conferia legibilidade e legitimidade a seus atos e acessos aparentemente desarrazoados. Data dessa época o companheirismo que há entre nós e que só morreu uma vez para renascer em outro nível, mais forte. Hoje somos macabos, gêmeos, dois leões, a mesma pessoa (como disse Cortazar e gente muito mais importante do que ele). E representamos bastante bem, para um número enorme de pesoas, o amargor e a doçura de Santo Amaro, a beleza de meu pai e minha mãe, o talento de Nicinha, Rodrigo e Mabel, a integridade de Clara Maria, o brilho de Roberto, a franqueza de Irene, o mal e o mel da Purificação."

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Milton Nascimento - 70 Anos


Falar de alguém por quem temos grande admiração é falar um pouco de nós mesmos, pois sempre acabamos relembrando de algum fato ou momento que nos remete a essa pessoa. Com Milton Nascimento, que hoje completa 70 anos, é um pouco assim.
Lembro da primeira vez que ouvi a voz de Milton, num disco do Segundo Festival Internacional da Canção, de 1967. Não se trata daquele outro festival, ocorrido no mesmo ano, retratado no documentário Uma Noite em 67, da Tv Record, mas a segunda edição do FIC, da Globo. Desde os meus 8 anos passei a conviver com a voz de Milton cantando Travessia e Morro Grande, que logo aprendi a cantar, embora, logicamente, não assimilasse a mensagem das letras.
Porém, somente na adolescência eu passaria a ter uma audição mais atenta do trabalho de Milton. Dois discos que me marcaram naquele período foram Clube da Esquina e Minas, que conheci quase na mesma época. o Clube da Esquina, apesar de ser mais antigo, eu só fui conhecer o álbum na íntegra alguns anos depois, quando peguei emprestado. Já o disco Minas, eu também não conheci de imediato, mas ouvi-lo foi uma experiência impactante. Para relembrar essa obra, transcrevo uma crítica que o jornalista Tárik de Souza fez do disco, ainda em fita-master, antes do disco ser lançado, e que talvez seja a primeira crítica a ser publicada sobre esse álbum histórico, numa audição privilegiada:

"'Olha/ a volta do rio/ virou a vida/ a água da fonte/ nossa tristeza/ o sol no horizonte/ uma ferida'. Ou ainda: 'Agora não pergunto mais pra onde vai a estrada/ agora não espero mais aquela madrugada/ vai ser, vai ter de ser, vai ser faca amolada'. Em suma, Milton Nascimento deixa o segundo plano (ainda que denso e alimentício) de sua carreira discreta de influenciador, por sua ofensiva postura de superstar, sem lantejoulas. É o mesmo Milton, com sua metálica voz flexível, tão cortante quanto emotiva, sob as luzes de um repertório intro e retrospectivo nas asas da memória. (Ou, 'da Panair', como quer a faixa 'Saudade dois Aviões da Panair'.
Não é um disco saudoso, o 'Minas', nem nostálgico, Deus o livre. 'Minas' tanto é passado, quanto representa as iniciais do nome principal, escrito a fogo, só hoje lido em voz alta. Poucos foram tão fiéis na descoberta de um clima universo regional. Milton, Minas e Espanha, rock e folk. Com uma voz lancinante, um lamento sem queixa, uma toada progressiva filha dos corais da igreja, como lembra a todo momento o (des) conjunto de crianças cantantes de 'Paula e Bebeto', convocado entre filhos e filhas de Três Pontas, que invadiram o estúdio da gravação do LP, em algazarra. O mesmo aconteceu com Nana Caymmi, Joyce, MPB4, os Golden Boys e tantos outros que juntaram-se ao disco, na linha 'littles help dos friends', que tem caracterizado tantos recentes discos dos super-astros internacionais/rockeiros. Acabaram-se as barreiras da concorrência, a defendida fome das linhas ou estilos, o não-me-toque dos gênios de marfim. Super Caetano parceiro com super Milton, em 'Paula e Bebeto', e outros vieram. Beto Guedes é a voz de flauta, em contracanto com o dono do disco, na faixa título. Nelson Angelo fez o arranjo da própria 'Simples', dividindo com Wagner Tiso a programação de cordas e metais, que se alterna com sabedoria em todo o 'Minas'. O Som Imaginário (Wagner, Toninho Horta, Novelli, Nivaldo Ornelas, Paulinho Braga) sustenta o clima candente da peça, o cenário azulado sujeito a relâmpagos dos ares de 'Minas'. 'Sinherê', de Edu Lobo, é sem cerimônia  e afetuosamente lembrado em 'Leila' (Venha Ser Feliz) homenagem à fulgurante atriz morta. 'Trastevere' tem pontas e beiras de música aleatória, com sua percussão e piano (de Milton: 'estou deixando o violão pelo piano') propositalmente saltados no espaço.
Ouço 'Minas' em fita, nos estúdios da Odeon, as duas caixas do stereo à frente, um osciloscópio pelo meio. A maquininha, com uma tela, poderia-se dizer, radiografa o som do disco. Forma um 'o' na maioria dos solos da voz prodigiosa do principal cantor. Tinge a pequena tela de verde, nos estrondos da bateria. Uma análise científica - por que não, uma radiografia - deixaria claro aos céticos o quanto é inventivo o coração desses músicos que pulsam nos traços verdes do 'Minas'. Uma paixão de batidas novas de cada momento das faixas; uma expansão de entes que não se repetem, mesmo no dia a dia nas limitadas voltas de um LP. Anunciam fanfarras: 'Vem chegando a lona suja/ o grande circo humano/ como a fome do palhaço e a bailarina louca'. Eu diria que 'Minas' é a definitiva aterrissagem de Milton, 'velho maquinista, com seu boné', ao porto do êxito, que tantas vezes mudaram de lugar no momento que o navio se atracar. Pousou, enfim a nave. Tomem assento."

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Rogério Duprat - Gênio Tropicalista

O maestro e arranjador Rogério Duprat (1932-2006) é o grande responsável por uma boa parte do que o Tropicalismo representou em termos de revolução e evolução para o panorama da música brasileira. Sem seus arranjos o movimento talvez até tivesse a projeção que teve, porém com certeza seria bem menos impactante. Músico de formação erudita, porém com olhos e ouvidos abertos para todas as tendências, Duprat foi o homem certo na hora e lugar certos, quando se juntou ao grupo tropicalista para vestir com seus arranjos as ideias musicais e estéticas de Caetano, Gil, Mutantes e Tom Zé. Abaixo, trechos de uma matéria com o maestro,  escrita por José Márcio Penido e publicada em 1975 no Jornal de Música, que vinha encartado na revista Rock, A História e a Glória:
"Rogério Antônio Silvestre e Silva Duprat, carioca de berço e paulista em tudo mais, ficou famoso como o maestro do tropicalismo. Ele entendia a letra, a música, a postura, a proposta e o guarda-roupa de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Os Mutantes. E orquestrava tudo isso.
Orquestrar é uma palavra que lembra violinos e casacas. Mas na capa do disco Tropicália, lançado em 1968, o maestro aparecia segurando um penico com a dignidade de uma chávena.
Sete anos depois, na soturna primavera paulista de 1975, o maestro Rogério Duprat fornece, a quem deseja encontrá-lo, o endereço e o telefone do Estúdio Vice-Versa, no bairro de Pinheiros. Lá ele fica dia e noite, gravando, gravando. Gravando o que? Jingles diversos. Compre isso, tenha aquilo, seja outro. Seus cargos: coordenador musical geral e diretor de estúdio. 'Isso dá feijão', ele resume, com um sorriso. Quem, como ele, aprecia humor negro, entende o resumo e o sorriso.
Dia e noite às voltas com uma tecnologia caríssima, Duprat sabe quanto é difícil ser músico hoje. Entende o drama dos grupos de rock. Mas anuncia, olhinhos brilhando, um trabalho que vem aí: um disco do Terço com a Orquestra Sinfônica de São Paulo, não sei se a Estadual ou a Municipal. O que, aliás, pensando bem, não faz muita diferença.

Pergunto às sensibilíssimas antenas de Rogério Duprat se elas estão detectando algum sinal de movimento musical. 'Estou ansiando por isso há cinco anos e o que vejo é uma coisa amorfa, tímida, imprecisa'. O maestro parece de acordo com o consenso geral pelo menos num ítem: está tudo em compasso de espera Alguma coisa tem que explodir. Como e quando isso não se sabe. Ele aguarda o momento com fé,. 'Eu  queria que fosse uma retomada do jovem como elemento atuante na sociedade. Houve tentativas de ridicularizar a atuação dos jovens da década passada. 'Os tolos anos 60', dizem alguns detratores. Mas isso é uma investida furada e frustrada. Eu gostaria que essa moçada nova que vem aí, agora,, dissesse o que a outra geração representou para eles. E assumisse o lugar da rapaziada que foi podada'."

sábado, 20 de outubro de 2012

Show de Moraes Moreira no MAM - 1978

Após deixar os Novos Baianos, Moraes Moreira seguiu em carreira-solo, gravando excelentes discos e fazendo muitos shows pelo país. O frevo Pombo-Correio, seu primeiro grande sucesso, ajudou a alavancar sua carreira, e torná-lo mais conhecido pelo grande público. Em 75 gravou seu primeiro disco solo, um excelente trabalho pela gravadora Som Livre, e em 77 seu segundo disco Cara e Coração confirmava a boa impressão deixada por seu trabalho de estreia.

Em sua edição de janeiro de 78 o Jornal de Música trazia uma matéria sobre um show de Moraes no MAM, no Rio de Janeiro, escrita por José Emílio Rondeau. Intitulada “O Verão Interminável de Moraes Moreira”, o jornalista dá um panorama do que era um show de Moraes Moreira naquele período dos anos 70, dando um grande destaque a seu grupo de apoio, o recém-criado A Cor do Som:

“Dos muitos shows que abriram oficialmente a temporada de verão carioca, o esbaldante Cara e Coração, de Moraes Moreira, talvez seja o que mais se adéque ao clima reinante de euforia e descontração que o ambiente de carná próximo se evoca. Fruto da maturação de um percalço não lá muito árduo, desde que deixou os semi-senis Novos Baianos, Moreira está, e, ao que parece, eternamente será, Brasil – verão autêntico e permanente; divertido, malicioso, malandro e relaxado (no bom sentido, é claro).

Sem cair nos ismos e falsas liberalidades que andaram assombrando performances de muitos luminares do show-biz brasileiro, Moreira consegue, ao mesmo tempo, impor climas variados durante todo o show, desde a abertura acústica, um tanto longa e sonolenta demais (ele e o violão), até o efervescente grand finale de avalanches de frevos, culminando (só podia ser) por uma versão esticada de ‘Pombo-Correio’, enésimas vezes melhor do que no disco, cortesia do Trio Elétrico de Dodô e Osmar. O frevo supracitado, junto a até não tão batida assim ‘Preta Pretinha’, compõe a locomotiva propulsora do gorducho portfólio de Moraes Moreira no segundo fim de semana de dezembro, propiciaram o ponto alto do show.

O que não é, de maneira alguma, a minha opinião. Pela proficiência, pelo profissionalismo e pelo fôlego inesgotável, as toneladas de louros deveriam ser despejadas sobre os garotos geniais da Cor do Som, que contribuíram salutarmente com um brilhantíssimo espetáculo de pique, criatividade e maestria, cada um na sua jurisdição, que lhes vale o merecido título de Grande Revelação do Ano. Transformados rapidamente na coqueluche do público e nos enfant-terribles da crítica, na base do ‘até Tinhorão gostou’, Armandinho (cavaquinho e bandolim), Gustavo (bateria), Dadi (baixo), Ary (percussão) e Mu (teclados) formam o comboio mais forte do expresso Cara e Coração. Beneficiados por um P.A. potentíssimo e uma mixagem perfeita, os meninos não pararam de fumegar durante os poucos minutos que lhes foram concedidos para uma esticadela merecida, enquanto Moraes se refestelava a brincar com as crianças (não sei de onde saiu tamanha pivetada) que abundavam (epa!) o palco.

Honra seja feita à faiscante performance de Armandinho e seu bandolim elétrico que, por pouco não perfurou meus já massacrados tímpanos e escaldou minha massa cinzenta. Seus fraseados speedíssimos ultrapassaram o limite do crível e humanamente possível; um recado para ti, Armando: tu tocas com o desembaraço e a firmeza de Waldir Azevedo e ainda consegue meter Hendrix e Paco de Lucia na jogada, sem pisar na bola! Busto de bronze na Praça Castro Alves pra ele, donas autoridades. Ah, desculpe, leitores. Como ia dizendo antes de rude interrupção, Cara e Coração está um show forte, escorreito, límpido, alegre e profissional. Quando a troupe de Moraes Moreira retornar ao Rio, todos lá, sem pensar duas vezes.”



quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Falando de Poesia Concreta

" O ano de 1949 foi fundamental para a literatura brasileira: os irmãos Haroldo e Augusto de Campos  conheceram Décio Pignatari. A empatia foi imediata. A eles também foi apresentado um dos principais articuladores da Semana de 22: 'Foi em 1949 que nos encontramos com com Oswald de Andrade - Décio e eu - levados a seu apartamento por Mário da Silva Britto. Depois disso estivemos várias vezes com ele. Numa delas nos deu de presente, a cada um, um volume do seu Poesias Reunidas O. de Andrade (tiragem limitada de 200 exemplares das Edições Gaveta). Noutra, a já então rara edição de Serafim Ponte Grande, com a dedicatória 'aos irmãos Campos, firma de poesia' , lembra Augusto.
Ainda naquele ano, o trio começou a colaborar com a Revista Brasileira de Poesia , fundada em 1947 pelos escritores Péricles Eugênio da Silva Ramos, Domingos Carvalho da Silva e João Acioli - ligados à geração de 45. A partir daquela publicação criaram o Clube de Poesia. Décio Pignatari e os Irmãos Campos tinham, respectivamente 22, 20 e 18 anos e uma cultura prodigiosa. Haroldo estreou em livro com O Auto do Possesso (1949), Décio, no ano seguinte, com O Carrossel e Augusto em 1951, com O Rei Menos o Reino.
Em função do conservadorismo do Clube, Pignatari e os irmãos Campos logo romperam com ele e lançaram, em 1952, e revista Noigandres. A palavra-título da publicação foi tirada da 20ª parte dos Cantos, de Ezra Pound,e durante algum tempo o sentido do termo foi obscuro, tanto para o poeta estadunidense, que a tomou de um texto do escritor provençal do século XII, Arnaut Daniel, quanto para os concretos. Mais tarde, Augusto de Campos conta em nota do livro Verso Reverso Controverso que o crítico alemão Hugh Kenner (1923-2003) decifrou afinal o sentido da palavra como 'antídoto do tédio'. Não poderia ser mais apropriado.
'Verbivocovisual': os concretistas tomaram este termo cunhado pelo irlandês James Joyce para incorporá-lo à sua cadência poética. Foi assim que a poesia concreta não apenas transformou a cena literária brasileira, mas também conseguiu aquilo que Oswald de Andrade ambicionara: tornou-se um 'produto de exportação', encontrando adeptos até na Alemanha do pós-guerra.
Antidiscursiva, a poesia concreta aboliu o verso e a estrofe. A disposição das letras e/ou palavras passou a explodir em liberdade no espaço em branco do papel, que se torna parte integrante de sua composição. Ela rompe com a tradição de se visualizar e ler o texto da esquerda para a direita, de cima para baixo. Assim, o poema ganha uma pluralidade de possibilidades interpretativas, não apenas no significado dos vocábulos ('verbi') mas também em seus aspectos materiais: sonoridade('voco') e arranjos gráficos ('visual'), que incluem cores, tamanho e tipo de fontes, construções visuais, de modo a fazer comungar Literatura, Música e Artes Plásticas. Trata-se de uma poesia sinestésica, ou seja, que funde várias impressões sensoriais.
A partir de 1950 - bem antes da 1ª Exposição Nacional de Arte Concreta em São Paulo e da publicação do Plano Piloto para a Poesia Concreta, em 1958 - Décio, Haroldo e Augusto já publicavam, em vários periódicos, não somente seus poemas, mas também textos teóricos sobre poesia.
Em depoimento à seção 'Autores e Livros', de abril de 1950, para a série de entrevistas feitas sob o título 'Tendências da Nova Poesia Brasileira', Pignatari já afirmava que 'todo poema autêntico é uma aventura - uma aventura planificada. Um poema não quer dizer isto nem aquilo, mas diz-se a si próprio, é idêntico em si mesmo e à disemelhança (sic) do autor, no sentido do mito conhecido dos mortais que foram amados por deusas mortais e por isso sacrificados. Em cada poema ingressa-se e é-se expulso do paraíso. Um poema é feito de palavras e silêncios. Um poema é difícil.'"
Texto extraído da revista "Discutindo Literatura nº 10

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Revista Bizz Especial - New Wave (1987)


A revista Bizz, que circulou entre os anos de 1985 e 2001, foi durante esse período o principal veículo de informação sobre música, (especialmente rock), cultura pop e informações culturais direcionadas ao ´principalmente ao público jovem. Vez ou outra a revista trazia um suplemento especial destacando determinado assunto, ligado ao mundo do rock. Também costumavam lançar edições especiais, vendidas separadamente. Em sua edição nº 24, de julho de 1987, a revista trouxe um suplemento especial encartado, destacando a New Wave, um movimento que dominou a cena musical entre o fim dos anos 70 e os primeiros anos da década seguinte. Trazendo textos de jornalistas especializados, colaboradores da revista, como Fernando Naporano, Jean-Yves de Neufville e Thomas Pappon, o suplemento traz um resumo da cena musical que deu origem ao movimento New Wave, e seus vários desdobramentos, origem e derivados, desde o Punk Rock (Sex Pistols, Clash, Buzzcocks), o Pós-Punk (PIL, Magazine, Gang Of Four, Durutti Column), o Tecnopop (Human League, Heaven 17), New Romantic (Japan) Two Tone (Specials, Beat), New Pop (SABC, Orange Juice), Gótico (Bauhaus) e Industrial (Cabaret Voltaire, Psychic Tv).

Trazendo na capa uma figura icônica da New Wave, a cantora Debbie Harry, uma ex- coelhinha da Playboy (que aparece também na foto acima), o suplemento em seu texto introdutório diz:
"Esse  suplemento especial foi concebido para jogar alguma luz sobre o assunto, suas origens, paralelos com o punk, e ramificações pós-punk. Uma das revelações que podem parecer surpreendentes é a New Wave não representar nenhuma ruptura - foi muito mais uma sobrevivente de um veio aberto pelos Stooges e pelo Velvet Undergroung, levada por bandas de Nova York como o Television (cujo líder Tom Verlaine, aparece na foto abaixo) e os New York Dolls pouco após a dissolução dos grupos citados."
Dentre as bandas que começavam sua carreira ainda nos anos 70, e que viriam a formar o cenário de um novo panorama do rock , um nome importante foi os Talking Heads, que começaram em 75, e gravariam seu primeiro disco dois anos depois, e se tornaram uma das bandas de maior destaque da New Wave, que surgia. Liderada por David Byrne, um multiartista com uma visão ampla e aberta a experimentações, a banda fazia um som que trazia influências das mais amplas, desde o funk até o pop.
Outra banda marcante da New Wave, e que em sua época conseguiu alcançar  sucesso comercial, foi o The Cars, uma banda de Boston, que lançou seu primeiro disco em 78, e que tinha como líder Ric Ocasek. O crítico Thomas Pappon em seu texto destaca que "este quinteto fazia um som despretencioso, cool, com melodias delicadas em beats bem dançantes (aliás, esta é a maior característica da New Wave)."
Outra banda marcante do estilo, e que trouxe um trabalho bem original é o Devo (foto acima), formado na cidade de Akron, Ohio por estudantes de arte da universidade local. "Com seus uniformes futuristas, gestos robotizados e letras cínicas, o Devo virou um protótipo da new wave americana", diz o texto de Pappon.


Bandas como B'52, outro ícone do estilo, também são citadas, assim como algumas outras que se desdobraram em outras correntes, como o Psychobilly, que nasceu a partir do trabalho do The Cramps (foto acima), também destacado no suplemento. Outras bandas, algumas hoje esquecidas, também são citadas, como A Certain Ratio, Associates, Au Pairs, Birthday Party, Dexis Midnight Runners, Fall, Killing Joke, League Of Gentlemen, Psychedfelic Furs, Teardrop Explodes, XTC, etc. Trata-se de um bom trabalho de pesquisa sobre um período interessante do rock.

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Maus- A História de Um Sobrevivente

Em 1988 a Editora Brasiliense lançava uma importante livro em quadrinhos, intitulado Maus – A História de Um Sobrevivente, que retratava os horrores da Segunda Guerra Mundial, roteirizada e desenhada por Art Spiegelman, filho de um sobrevivente do campo de concentração de Auschwitz. O autor, considerado um vanguardista entre os artistas norte-americanos, em Maus ele conta uma história de gato e rato, onde os gatos representam a Gestapo nazista e os ratos a população judia. É um relato emocional de quem traz em sua história pessoal as conseqüências diretas da perseguição nazista, e através de sua arte e sensibilidade procura, talvez como uma forma de exorcizar os horrores que carrega em si, transformar em arte um triste capítulo história da humanidade tantas vezes contado e relembrado. Recentemente o livro foi relançado, novamente causando impacto pela forma em que a narrativa é conduzida. Na ocasião de seu primeiro lançamento em 88, a Editora Brasiliense, em um material de divulgação escrito por Pedro de Luna, na ocasião editor de quadrinhos da editora, faz o seguinte resumo da obra: “Coloque de lado todos os seus preconceitos: os gatos e ratos desta história não são Tom & Jerry, nem este livro é uma simples história em quadrinhos. O cenário é a Polônia durante a 2ª Guerra Mundial, uma grande ratoeira onde o que vale é a lei dos gatos, os nazistas que perseguem os ratos-judeus enquanto os poloneses preferem nada ver.
Maus – A História de um Sobrevivente, de Art Spiegelman, é uma história em quadrinhos que resgata a tragédia do povo judeu no holocausto através das lembranças de Vladek Spiegelman, um sobrevivente do campo de concentração de Aushwitz. É a tragédia de um povo que, por não ousar reconhecer o perigo anti-semita, por não rebelar-se contra a perseguição nazista e enfrentar o inimigo, viveu como vivem os ratos e morreu na ratoeira. Mas não é só isso. Maus (ratos, em alemão) é a história de seu filho Artie, um jovem desenhista americano que, na tentativa de compreender o temperamento do pai e de se reconciliar com a memória da mãe morta alguns anos antes, decide colocar no papel toda a aventura dos dois na Polônia de Hitler.
Uma aventura que começa na década de 30 com o casamento de Vladek e Anja, que prossegue durante a guerra numa sequência assustadora de perseguições, fugas, esconderijos e enforcamentos, onde ambos perdem todos os familiares (incluindo seu primeiro filho, Richiev) e culmina nos portões de Auschwitz. Um livro forte, perturbador e ao mesmo tempo sensível que revelou Art Spiegelman como um dos principais desenhistas de vanguarda norte-americanos. Um sucesso nos Estados Unidos em 1986 que agora a Brasiliense oferece ao público brasileiro.”

domingo, 14 de outubro de 2012

Mudanças no Deep Purple - 1975

Em junho de 1975 a revista Pop trazia uma matéria sobre mudanças que aconteceram na formação do Deep Purple. A banda havia atravessado uma crise, aliás, uma de tantas outras ao longo dae sua carreira. No ano anterior, a saída do vocalista Ian Gillan e do baixista Roger Glover quase determinaram o fim da banda. Porém a entrada de Dave Coverdale, que substituiu muito bem Gillan nos vocais, assim como a volta do ex-baixista Glen Hughes determinou o fim da crise no grupo. Tempos depois, os dois elementos dissidentes retornariam, embora certas turbulências internas continuassem a ocorrer, principalmente provocadas pelo difícil gênio do guitarrista Ritchie Blackmore, reconhecidamente uma figura difícil de se lidar. Mas a verdade é que após as mudanças anunciadas na matéria da revista, a banda continuaria lançando discos que se tornaram antológicos, e marcariam a carreira do Purple como uma das maiores bandas da história do rock. Segue abaixo a transcrição da matéria, intitulada Deep Purple, Pauleira a Todo Vapor:
“As coisas não andavam muito bem para os lados do Deep Purple, no ano passado. Depois de muita piração, dois caras da banda decidiram saltar fora. E eram dois caras importantes: o vocalista Ian Gillan, autor da maioria das músicas do grupo, e o baixista Roger Glover, um mestre nas transações comerciais do conjunto. Mas não seria por isso que o Purple iria deixar de espalhar sua incrível pauleira pelo mundo afora. Depois de algumas transações secretas, os três elementos básicos do conjunto – Jon Lord, teclados; Ritchie Blackmore, guitarra, e Ian Paice, bateria – desenterraram o baixista Glen Hughes dos subterrâneos de Londres, e transformaram o dono de butique Dave Coverdale em cantor do Deep Purple.
Com isso, o grupo recebeu nova injeção de energia e voltou à estrada, fiel à zoeira infernal que o caracteriza como um dos mais adorados grupos de rock-pauleira do mundo. Os concertos que deu na Europa, no início deste ano, reviveram o clima de loucura e histeria de 1970, quando ao trio original, preocupado com jazz e música clássica (Lord/Blackmore & Paice), juntaram-se os rockeiros Glover e Gillan. Esse encontro foi o início de uma verdadeira loucura coletiva: a música do grupo sofreu uma virada de 90 graus, ganhou incrível vitalidade e o Deep Purple, rapidamente, tornou-se o maior representante do hard-rock britânico. A cada novo disco e a cada nova excursão, o conjunto trocava novas vibrações com o público e ampliava sua legião de admiradores. Até que veio a crise do ano passado, que chegou a ameaçar a existência do conjunto. Mas os três fundadores do Purple deram a volta por cima e o grupo está aí de novo, a todo vapor. E nos seus planos se inclui uma excursão à América do Sul, ainda este ano.”
Porém, apesar da banda na ocasião estar no auge de sua forma e popularidade, as turbulências continuavam a atormentar a careira do Deep Purple. 5 meses depois de publicar a matéria acima, a mesma revista dessa vez trazia a nota ao lado, em que falava da saída de Ritchie Blackmore, e sua substituição pelo excelente guitarrista Tommy Bolin, que participaria do disco Come Taste The Band. Bolin, apesar da enorme responsabilidade que era substiuir Blackmore na guitarra,fez um excelente trabalho junto ao Purple. Blackmore, por sua vez, formaria o Rainbow, que revelaria o vocalista Ronnie James Dio. Tommy Bolin infelizmente morreria pouco tempo depois, e o rock perderia um excelente guitarrista, com um futuro brilhante pela frente. Porém deixou sua marca num excelente álbum de uma das melhores bandas de rock de todos os tempos.

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Rita Lee & Tutti-Frutti - 1974

Após sua saída dos Mutantes e a formação de uma dupla com Lúcia Turnbull, chamada As Cilibrinas do Éden, Rita Lee seguiria em carreira-solo. Formou a banda Tutti-Frutti, e gravaria o disco Atrás do Porto Tem Uma Cidade, em 1974. Era o início de uma carreira vitoriosa que faria de Rita um dos nomes mais importantes na história do rock brasileiro. Na época, a revista POP, especializada em rock, fez uma matéria sobre o show que Rita fez para divulgar seu novo disco. Estava nascendo ali um dos capítulos mais marcantes do rock brasileiro - o início de uma parceria que renderia muitos álbuns marcantes do rock brasileiro: Rita Lee & Tutti-Frutti. Eis a matéria:
"Rita Lee está com tudo mesmo! Seu novo show, "Atrás do Porto Tem Uma Cidade" foi tão bem montado que deixou os empresários Alberto Kossky e George Ellis impressionados. Tanto que, logo depois da estreia em São Paulo, no Teatro Bandeirantes, eles começaram a transar a apresentação do show no Carnnegie Hall de Nova York. Enquanto isso, Rita e o Tutti-Frutti (Lee Marcucci, baixo; Emilson, bateria; Luis Sérgio, guitarra solo; e Lúcia Turnbull, guitarra e vocal) apresentam o show pelas cidades do sul, viajando com um ônibus alugado e um caminhão, que transporta o belíssimo cenário (de André Peticov Jr e Cláudio Mozko) e todos os equipamentos de som e luz. O show, que tem sua estreia marcada para janeiro, no Rio, no Teatro Tereza Raquel, está com a melhor produção que já pintou no rock brasileiro: as músicas explodem cheias de cores, enquanto o cenário fica totalmente cheio de fumaça e bolhas de sabão..."