Palavras Domesticadas

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sábado, 31 de dezembro de 2011

Revistas Legais - História do Rock (4 Volumes)




Nos anos 80 a antiga Editora Três era responsável por algumas publicações musicais, como a revista Somtrês, especializada em equipamentos e matérias musicais, uma série de revistas-poster, falando de várias bandas e artistas, e de vez em quando publicava alguma edição especial, sempre na área musical. Uma dessas edições foi uma série com quatro revistas contando a história do rock, de seu início nos anos 50, até a época em que as revistas foram publicadas.
O responsável pelo texto foi o jornalista e pesquisador musical Roberto Muggiati, de quem aliás, já falei aqui neste espaço, quando comentei sobre dois livros de sua autoria. Os quatro volumes foram assim divididos: 1º Volume - Os Anos Heroicos (1954-1959); 2º Volume - Os Anos de Ouro (1962-1966); 3º Volume - Os Anos da Utopia (1967-1970) e 4º Volume - Os Anos da Incerteza (1970-1980). Fartamente ilustrado, e com um ótimo texto, onde o rock é contextualizado dentro dos períodos em que foram divididos na obra, onde as transformações sociais, políticas e culturais são destacadas, os quatro volumes da História do Rock oferecem um amplo panorama do que o rock representou no período destacado.
No primeiro volume, dedicado aos primórdios do rock'n roll (anos 50), Muggiati inicia seu texto dizendo: "No começo da década de 50, uma estranha e imprevista combinação iria desencadear a grande revolução. Um caipira do Mississipi, um americano típico de Detroit, um branco meio maluco da Luisiana, o filho de um lavrador do Tennessee, um ex-trombadinha de St. Louis, um crioulo de Nova Orleans filho de violonista, um mulato da Georgia gênero bicha louca, dois irmãos do Kentucky, filhos de cantores de rádio, um colegial do Texas. Nenhum deles parecia destinado a pouco mais do que uma existência anônima, sem a maior importância. Um time de perdedores. Mas, com a força da sua música, eles abriram caminho para o explosivo fenômeno do rock'n roll e se tornaram os heróis culturais de toda uma geração. Seus nomes: Elvis Presley, Bill Haley, Jerry Lee Lewis, Carl Perkins, Chuck Berry, Fats Domino, Little Richard, os Everly Brothers e Buddy Holly".
Cada um deses personagens tem suas vidas contadas, juntamente com a história do gênero, além de outros personagens não ligados à música, e sim ao cinema, mas que se interligam com a história do rock, como James Dean e Marlon Brando, e a figura emblemática do "rebelde sem causa", muito ligada aos anos 50.

O Volume 2 destaca os anos 60, de 62 a 66, e traz na capa, como não poderia deixar de ser, os Beatles. Na introdução do segundo volume, Muggiati destaca:
"Com o final da década de 50, o rock já tinha se transformado numa assinatura reconhecida em todo o mundo. E quando a maioria imaginava que o gênero poderia ser vítima de uma decadência precoce - como dezenas de outras modas que vieram e passaram, o rock sacudiu a década de 60 com uma força que ninguém poderia prever."
Nesse segundo volume é destacada primeiramente a música de protesto e engajada em movimentos políticos, destacando-se Joan Baez e Bob Dylan. A folk music é apresentada como uma música que fala dos direitos civis, na luta ao lado das classes desfavorecidas. Mostra ilustrações com fotos de Joan Baez em concertos de fundo político e uma foto em que ela aparece numa marcha ao lado de Martin Luther King.
Bob Dylan (que por sua importância também poderia ser destacado na capa da edição) é amplamente citado numa matéria de várias páginas, onde é destacado não só seu lado de músico, que revolucionou e influenciou toda uma geração (inclusive os próprios Beatles, e mais tarde Hendrix, dentre outros) como também seu engajamento político, destacado em suas músicas de protesto.

Uma longa matéria com os Beatles vem em seguida, destacando seu início em Liverpool, até sua afirmação e ascenção - os anos da beatlemania e toda a influência que a banda representou. Como o segundo volume fala até o ano de 1966, a história dos Beatles continua a ser contada na terceira edição. Esse volume também destaca o fenômeno conhecido como Britsh Invasion, a invasão das bandas inglesas no mercado do rock: Rolling Stones, The Animals, The Yardbyrds, The Who, Cream e The Kinks.
Também é destacado o surgimento de novas bandas americanas. Num tópico intitulado "Reação Americana", o texto diz: "O boom britânico acabaria por despertar o rock americano, que entrara em hibernação em fins de 50/início de 60." É destacado principalmente o novo som vindo do estado da Califórnia, que iria dar no rock psicodélico dos anos 60: The Byrds, Country Joe The Fish, Jefferson Airplaine, The Mammas and The Papas, The Mothers of Invention, Canned Heat, The Grateful Dead, etc.
O volume 3 destaca o período 1967-1970. Fala dos grandes festivais, como Monterey e Woodstock, e o surgimento de figuras marcantes como Jimi Hendrix, Janis Joplin, Jim Morrison dentre outros. É destacado também o movimento hippie, o "Verão do Amor", e vários pensadores que influenciaram aquela geração, como os autores beats e Herbert Marcuse. Como curiosidade a revista traz uma matéria de várias páginas contando detalhes sobre a gravação do álbum Sgt Peppers, dos Beatles.
O quarto e último volume, intitulado Os Anos da Incerteza, destaca o período de dez anos, entre 1970 e 1980. A introdução do volume diz: "A década de 70 parecia bem distante da petulância dos anos heroicos do rock. Muitos dos grandes nomes do passado já não revelavam sequer uma parte da força original, se acomodando e produzindo música sem interesse. Ao mesmo tempo, grupos novos não conseguiam ocupar um vácuo tão grande."
o último volume da série destaca o rock progressivo (Yes, Emerson, Lake and Palmer, King Crimson, Pink Floyd), fala dos supergrupos, como Led Zeppelin, o surgimento do movimento punk (em várias páginas), a ascenção do reggae, a disco music, o estilo fusion, soul, etc. Esses quatro volumes da História do Rock é um excelente material de pesquisa sobre as três primeiras décadas do rock, escritas por quem entende do do assunto.

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Cartola - Filosofias de um Herói Proletário


Em Cartola convivem harmoniosamente, o elegante músico e o poeta acurado. De um lado, o cultor de sambas de preferência lentos, de harmonia trabalhada e ritmo sutil. E com ele, o escritor de imagens filosóficas, banhadas em acentuado misticismo, boa dose de resignação e outro tanto de alegria de viver, indispensáveis a uma sobrevivência árdua como deste herói proletário. Afinal, com essas armas, na prática, ele conseguiu furar todos os bloqueios e dissimuladas hostilidades, projetando sua arte num meio intelectual acentuadadamente elitista.
É certo que não se trata de um iconoclasta, demolidor de mitos, formas ou conteúdos. Ao contrário, Cartola é um clássico que raramente deixa escapar uma imagem mais crua como as rudes cenas de "O Que É Feito De Você", onde deplora a perda da mocidade. "E hoje quando passo/ A gurizada pasma/ Horrorizada/Como quem vê um fantasma/ E um esqueleto/Humano assim vai cambaleando/ Quase cai não cai". Outra excessão é "Desfigurado", onde ele compara a infelicidade de seu coração "pobre e magoado" com a do "menor abandonado". Com maior frequência, no entanto, as músicas de Cartola (que tanto pedem flautas e cavaquinhos, quanto violinos e oboés) desenrolam seus atos num cenário quase matafísico, onde se discute Deus, a vida, a morte, amores e ódios. Ou, em resumo, as desventuras e os prazeres da arte de viver, para a qual Cartola ostenta o diploma duplo de filósofo e aprendiz.
"Semente de Amor" - Este experimentado pensador descobre uma imponderável relação entre as coisas que previsivelmente "acontecem" ou não: "Vai chorar, vai sofrer e você não merece/ Mas isso acontece (...)". E fatalmente conclui que "o mundo é um moinho e vai reduzir as ilusões a pó". Nada como um dia após o outro afirma "O Sol Nascerá" (Finda a tempestade o sol nascerá). E qua as aparências enganam: "Quem me vê sorrindo pensa que estou alegre/ O meu sorriso é por consolação/ Porque sei conter pra ninguém ver/ O pranto do meu coração".
Candidamente, o sincero poeta admite a fragilidade da tese do amor único e eterno: "Tive sim, outro amor antes do teu/ Tive sim". Mas prefere calar, porque não pretende magoar sua nova paixão. "Semente de amor desde nascença", como confessa num verso de concisão extrema, Cartola termina por entregar sua solidão às rosas: "Que bobagem, as rosas não falam/ Simplesmente as rosas exalam o perfume que roubam de ti". Tantas decepções e frequentes voltas à realidade poderiam alistar o cético Cartola entre os trovadores da amargura e do pessimismo. No entanto ele tem fé (Grande Deus) e professa a modesta alegria do sambista de morro: "Habitada por gente simples e tão pobre/ Que só tem o sol que a todos cobre, como podes Mangueira cantar?/ Mas então saibas que não desejamos mais nada/ À noite a lua prateada".
Parecem estreitos estes limites poéticos que desfilam pelos três elepês do compositor. No entanto, eles bastariam ao Mestre Cartola para que passasse de pedreiro, gráfico, quitandeiro e vendedor ambulante ao artista reconhecido e convidado aos melhores salões. Uma trajetória de todo modo semelhante à que ocorreu ao próprio samba e que não escaparia às escuras - mas visionárias - lentes de Cartola, em parceria com Carlos Cachaça em "Tempos Idos": "Já não pertence mais à praça/ Já não é samba de terreiro (...) conseguiu penetrar no Municipal/ Depois de percorrer todo o universo". Enfim, missão cumprida.

Tárik de Souza (Veja - 18/10/78)

sábado, 17 de dezembro de 2011

Ringo Starr - O Arlequim das Baquetas


Muita gente considera Ringo Starr um cara mais sortudo do que talentoso. Por ter feito parte da mais brilhante banda de todos os tempos, os Beatles, e ter tido três companheiros de inegável talento, sendo um baterista de estilo discreto, e não um virtuose de seu instrumento, Ringo talvez nunca tenha sido considerado por nenhum fã da banda como seu Beatle favorito. Mas a verdade é que Ringo na banda era um baterista seguro, que definiu o ritmo e a batida de várias das canções clássicas da banda. Assim com Charles Watts dos Stones, por exemplo, Ringo tinha seu estilo discreto, sem usar mão de solos mirabolantes, mas de estilo fundamental para a música que a banda executava. Abaixo, transcrevo um texto sobre ele, escrito por Pedro Amaral na revista de arte e cultura O Carioca, em 1997, intitulado O Arlequim das Baquetas.
"Nascido Richard Starkey, nome que abria-lhe um amplo campo profissional, ou pelo menos não o limitava, jovem ainda, fez-se Ringo Starr. Além de lavrar (por sugestão, quem sabe, de algum diretor de propaganda) seu ingresso na constelação das celebridades, este nome, aparentemente uma opção, deliberada pela brincadeira, pela pantomima, traz, no eco da palavra 'anel' (ring), a ideia - por desenvolver - de que ele não pretendia senão tornar-se uma espécie de adorno, um enfeite, jamais o centro das atenções. As más línguas - que no chamado show business parecem ser as únicas existentes - consagraram a lenda de que Ringo, provavelmente o baterista mais famoso do mundo, jamais aprendeu a rufar os tambores. Com efeito, percebe-se que, não bastasse a posição que ocupava, junto ao pano de fundo, escondido atrás de seu instrumento como um atirador em uma trincheira, seu estilo caracterizava-se por uma economia de meios, uma atenção ao 'essencial', limitando-se a ele, às vezes, à função de metrônomo - talvez por isso mesmo as fugas a essa regra se tenha gravado na memória de milhões de ouvintes, inclusive ouvintes desatentos.

Contudo, o feito notável (embora ainda não notado) desse arlequim narigudo, de riso infantil e costeletas improváveis foi certamente o de estabelecer em torno de si uma tríade de personalidades distintas, que se misturavam e se equilibravam formando uma espécie de escudo, um campo magnético que lhe garantia a impermeabilidade de seu mundo: de um lado, um homem inquieto, impulsivo, de um violento poder criador (que reivindicava para si um fim trágico), e que exercia sobre as pessoas um fascínio tal que fazia muitas terem nele um guia, uma liderança irresistível; de outro, um tipo vaidoso, bem-comportado, dotado de um grande talento e que, mesmo sem compreender (por não tentar ou por não compreender) a natureza da força que tinha ao lado, esmerava-se em acompanhá-la, ampará-la (o que às vezes significava apará-la), saciando, com aparente abnegação, sua sede de glória; ao centro de ambos, como o fiel da balança, o mais lúcido, maduro, que, sem contar com aqueles maiúsculos atributos de seus pares (mas munido de uma espécie de fé), contemplava-os e seguia-os, como um irmão mais velho, um tutor benevolente, amigo de seus protegidos - suas intervenções, sempre simples e pungentes, agiam como uma linha a cerzir aquele variegado tecido. Por detrás de todos, no lado escuro da Lua, Ringo seguia intocado, gozando de uma alegre irresponsabilidade, e podemos imaginar a que deleites se entregava quando não estava sob a guarda dos três: 'entornava' garrafas de scoth, fumava brincando com a fumaça, tinha lá seus amores, delírios, escrevia composições e aforismos (em lampejos de clarividência), tascava epítetos nos circundantes e, principalmente, varava madrugadas sozinho, no estúdio de seu castelo, rindo e... fazendo rufar os tambores."

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Arnaldo Antunes - 1990


Em fevereiro de 1990 o jornal cultural Nicolau, editado pela Secretaria de Cultura do Paraná, publicava um texto de Arnaldo Antunes. Na época Arnaldo só tinha um livro publicado, e ainda não seguia carreira-solo. Ao final do texto, na apresentação do autor, Arnaldo era apresentado como "poeta, autor de Psia (Ed. Expressão, 1987) e integrante do grupo de rock Titãs". É um texto muito louco e interessante, datilografado, e com algumas correções feitas a caneta, como crases, vírgulas acentos e riscos, corrigindo imperfeições. Na época eu era um fã dos Titãs, e já via em Arnaldo o artista talentoso que ele já demonstrava ser. Segue abaixo o texto:

Eu pedi um café e perguntei à moça que servia no balcão se ela acreditava em discos voadores. A moça disse que não. Eu desdobrei o jornal que dizia que um objeto não-identificado tinha seguido um avião durante duas horas, sendo visto por todos os passageiros, menos por um cardeal e pelo padre que acompanhava o cardeal pois eles se recusaram a olhar. Eu perguntei à moça o que ela pensava daquilo. O jornal mostrava um desenho do objeto feito pelo comandante do avião. A moça disse que devia ser um cometa. Eu perguntei se ela nunca havia visto um marciano na vida dela. Disse que não, e eu disse que ela estava olhando pra um naquele momento. Eu saí do bar como o meu jornal e um policial me perguntou aonde eu ia. Que eu ia pra casa, ele viu nos meus olhos e na minha roupa que eu mentia, mas me deixou ir. Enquanto eu falava com o policial um tipo alto e magro ria, junto com seu companheiro um pouco mais baixo de cabellos encaracolados. Eles riam de mim, me olhando sentados no balcão e cochichando um com o outro porque eu tremia ao falar com o policial. Quando eu estava liberado eu voltei ao bar e pedi outro café, encarando os dois caras que continuavam a rir. Eu disse para o mais alto: vocês estão sempre juntos, hem? E ele respondeu que sim, tipo umas trinta vezes por noite.

domingo, 11 de dezembro de 2011

Preciosidades em Vinil: Orós - Fagner


Um grande disco que possuo, não só em vinil, como também em cd é Orós, de Fagner. Lançado em 77, esse disco representou uma ruptura no trabalho de Fagner, e até hoje é um trabalho diferenciado em sua carreira, pelo experimentalismo e ousadia. Tendo Hermeto Pascoal como arranjador e diretor musical (ao lado do próprio Fagner), Orós traz músicos de expressão, como Robertinho de Recife (guitarra), Paulinho Braga (bateria), Chico Batera (percussão), Nivaldo Ornelas (sax), Márcio Montarroyos (trumpete e flugelhorn), Dominguinhos (acordeon), Mauro Senise (flauta), além de Hermeto Pascoal e seu grupo. Na época de seu lançamento, a jornalista Ana Maria Bahiana fez a seguinte resenha do álbum para o Jornal de Música:

"O difícil do progresso é a transição. Insatisfeito em ser apenas mais um compositor cearense ligado ao formato 'canção popular', Fagner foi buscar em Hermeto as luzes e forças necessárias para progredir. Passo interessante na atitude, na inquietação , mas perigoso nos resultados. Hermeto, como se sabe, é um superfuracão albino, estraçalhador de moldes convencionais, catapulta tão possante quanto destruidora, depende da resistência do que é projetado. E a música de Fagner, ainda ligada ao feitio canção, quase se espatifa toda e, como o açude que dá nome ao disco, transborda. No mau sentido. O que Orós poderia ter sido, integralmente - e o que a música inteira de Fagner, inteira poderá ser se ele souber segurar firmemente o barco - está em algumas faixas brilhantes: Romanza, uma das derradeiras parcerias Fagner/Belchior (com Fausto Nilo também) parte de uma base nordestina de galope e, por artes de Hermeto, explode em todas as direções, com a voz cortante de Fagner duelando com o sitar diabólico de Robertinho de Recife; e Cebola Cortada, de Petrúcio Maia e Clodo, onde Hermeto consegue conciliar seus impulsos amazônicos com os limites da canção de amor, coisa que Fagner certamente sabe cantar. Há também esboços interessantes, como a faixa título, bem mais hermética que fagneriana, e Fofoca, composta pela dupla no estúdio, com um uso inteligente de timbres de voz e dublagens sucessivas - coisa que está colocada, com perfeição em Romanza."
Como se vê em sua crítica, a jornalista faz restrições ao álbum, justamente pelo aspecto ousadia, que citei no início do texto. Creio que algumas obras só são compreendidas integralmente, com o distanciamente que o tempo sabiamente traz.

Algumas faixas não são citadas na crítica, e que ouvidas hoje, se constituem em algumas das melhores gravações da carreira de Fagner, como Cinza, Flor da Paisagem e Epigrama nº 9 (poema de Cecília Meireles musicado por Fagner). Não há uma música sequer que pode ser considerada fraca, e o transbordamento a que se refere a jornalista, da música de Fagner, que ela ressalta ser no mau sentido do termo, eu colocaria justamente na condição contrária: é um transbordamento de criatividade, de ousadia e musicalidade, coisas que andam tão em falta hoje em dia.
Posso dizer que Orós é um grande disco, e que hoje, 34 anos depois de seu lançamento, pode ser mais compreendido do que na época.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Eu Comi a Merenda de Zé Carlos e Neguei - João Ubaldo Ribeiro


A revista Careta, que circulou nos anos 80, trazia uma sessão chamada "Minha Escrotidão Inesquecível", onde uma personalidade confessava um deslize, uma babaquice ou um ato pouco louvável de sua vida. Em sua edição de julho de 1981 a revista trazia um depoimento do escritor João Ubaldo Ribeiro, relembrando um episódio de sua infância. Segue abaixo sua narrativa:
"No jardim de infância dirigido por Dona Bebé, em Aracaju, por volta de 1946, o costume era a gente levar de casa nossas lancheiras, com um sanduíche ou dois, um refrigerante ou então um chocolate quente na garrafa térmica (que lá se chama 'quente-frio'). Algumas classes eram organizadas, na hora da merenda. A professora mandava buscar as lancheiras e distribuía as merendas nominalmente, uma por uma. Outras clases, contudo, eram mais esculhambadas: empilhavam as lancheiras na mesa da professora e o pessoal avançava.
Não foi assim que, por engano - porque sempre fui meio abestalhado - entrei na classe de meu amigo Zé Carlos, que era do tipo 'avançar'. Não reparei nada. Pensei que o sistema tinha mudado e avancei também. Peguei o primeiro pacotinho e bagunhei. Era pão com goiabada. Mendei ver. Futuquei mais na lancheira, achei um quente-frio meio diferente do meu, mas tomei de qualquer jeito. Era laranjada.
Eu já tinha quase acabado a laranjada e o pão com goiabada, quando, no meio da confusão, vejo o Zé Carlos diante de mim, e apontando a merenda dele, que eu praticamente já devorara. Zé Carlos - terrível agravante - era um menino ótimo, que morava perto de mim e me fazia favores, emprestava coisas e quebrava galhos.
- Você comeu minha merenda! - berrou ele.
- Mentira sua! - disse eu, com todo o cinismo.
E, engolindo calmamente o último pedaço de pão com goiabada, marchei em compasso lento para a porta como um desses pistoleiros que se evadem sem precipitação, andei para a minha sala, ainda peguei minha própria merenda (sanduíche misto e chocolate) e não tive remorsos. Quando Zé Carlos se queixou, neguei tudo com veemência, fiquei ofendido. A história era inverossímil, a professora dele não queria admitir que não estava fiscalizando a classe. Todo mundo me deu razão, até hoje eu passo de bonzinho lá. A verdade é esta.
Não tenho a mínima justificativa para minha atitude. Foi uma coisa que deu em mim."

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Caetano e o Pasquim (1969)


Em 1969 Caetano e Gil viviam exilados em Londres. Nesse ano surgiu um novo veículo de comunicação que seria o principal órgão de imprensa a expresar críticas à ditadura militar que se instalara no Brasil há cinco anos - o jornal O Pasquim. Naquele período, Caetano passou a escrever regularmente para o jornal, enviando notícias de seu exílio. Muitas crônicas foram escritas naquele período. Ao homenageá-lo com a música Quero Voltar Pra Bahia, o compositor Paulo Diniz dizia : "Via Intelsat eu mando notícias minhas para O Pasquim...". O Intelsat citado na música era um satélite que permitia que notícias e imagens de países distantes chegassem até nós em tempó real, uma novidade na época. A ilustração dessa postagem mostra uma interessante foto de Caetano tirada em Londres, que rendeu ao jornal uma bela capa. Abaixo reproduzo uma crônica de Caetano publicada em novembro de 1969:
"Hoje quando eu acordei eu dei de cara com a coisa mais feia que já vi na minha vida. Essa coisa era a minha própria cara. Eu sou um sujeito famoso no Brasil, muita gente me conhece. Eu acredito que a maneira pela qual esse conhecimento se dá pode dizer muito a mim mesmo sobre mim. Acho que uma capa de revista pode ser como um espelho para um homem famoso.
Quando um homem vê sua cara no espelho ele vê objetivamente em que estado a vida o deixou.
O vídeo-tape, a fotografia colorida e as manchetes que incluem o nome de um homem famoso são também assim como o espelho. Durante todo o tempo em que estive trabalhando em música popular no Brasil eu sempre levei em conta esse fato. E eu pensava que estivese fazendo alguma coisa, pois a imagem que me era devolvida era a de alguém vivo, em movimento, passando realmente por essas coisas.
Hoje eu fui à aula de inglês e Mr. Lee me ensinou como usar direct speech em lugar de reported speech. Depois da aula King's Road estava sem beleza, sob uma chuva fria e crônica. Eu atravesso as ruas sem medo, pois eu sei que eles são educados e deixam o caminho livre para eu passar. Mas eu não estou aqui e não tenho nada com isso.
Estou andando como homens, com meus dois pés. Não penso em fazer nada. Alguém entende o que seja isso?

O cara que me vende cigarro no Picasso fala espanhol. Na janela da casa onde estou morando tem uns gerânios que já estão secando por causa do outono. Meu coração está cheio de um ódio opaco. As crianças inglesas são belas e agressivas. A Rainha Elizabeth está pedindo aumento de salário. Eu não dependo disso tudo. Nada disso depende de mim. O aspirador não serve para limpar as cortinas porque é muito pesado. Aqui em casa. O Rei esteve ontem aqui em casa e eu chorei muito. Se você quiser saber quem eu sou posso lhe dizer: entre no meu carro, na estrada de Santos você vai me conhecer.
Talvez alguns caras no Brasil tenham querido me aniquilar; talvez tudo tenha acontecido por acaso. Mas eu agora quero dizer aquele abraço a quem quer que tenha querido me aniquilar porque o conseguiu. Gilberto Gil e eu enviamos de Londres aquele abraço para esses caras. Não muito merecido porque agora sabemos que não era tão difícil assim nos aniquilar. Mas virão outros. Nós estamos mortos.
Ele está mais vivo do que nós."

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Black Oak Arkansas - 1976


O rock sulista americano produziu várias bandas que ajudaram a marcar um estilo, baseado em influências do country rock, com pitadas de blues. Bandas como os Allman Brothers, Lynyrd Skynyrd, Poco, e outras, fariam a fama do rock produzido no sul dos EUA. Dentre essas bandas, uma das mais interessantes é a Black Oak Arkansas. Em novembro de 1976, a revista Pop trazia uma matéria sobre eles, que começavam a se destacar no cenário musical americano. Segue abaixo a matéria:
"Na pequena vila de Black Oak, em Arkansas, uma das regiões menos desenvolvidas dos Estados Unidos, a vida de seus 500 habitantes nunca sofre grandes transformações: plantar, colher, esperar algum benefício das cidades vizinhas. Nos últimos anos, porém, a fulminante trajetória de um grupo de rock mudou quase radicalmente as feições do lugar. Entre outras proezas, depois que deixaram Black Oak para alcançar sucesso internacional, os rapazes do Black Oak Arkansas ajudaram a construir a agência de correios da cidade, doaram 35 mil dólares para a construção de uma escola (transformando a velha em um museu), importaram um um pulmão de aço para o posto de saúde, foram acusados pelo padre local de 'grupo de origens satânicas' e convidados especialmente para a posse do novo governador do Estado. Certamente, uma ficha heroica e contraditória, como o próprio rock.
Amigos íntimos desde muito jovens, os seis rapazes do Black Oak Arkansas sempre tiveram certeza de que suas vidas não seriam iguais às das pessoas do lugar. E para conseguir esse objetivo, a música era o melhor caminho, segundo relembra o vocalista Jim Dandy:


- Há dez anos, nós vivíamos em Black Oak e éramos rebeldes, como todos os adolescentes. Não sabíamos o que queríamos fazer, e tudo o que ouvíamos, dos vizinhos e professores era: 'Comportem-se, sejam como nós'. No entanto, sentíamos que a vida era bem maior que a compreensão das pessoas de Black Oak. Queríamos ter nossa própria consciência, algo que a maioria das pessoas não tem e não gosta que outros tenham. Nós fomos os primeiros a usar cabelo comprido em Arkansas. Quando íamos tocar nas cidades vizinhas, tínhamos que voltar correndo pra casa depois do show, para evitar brigas e agressões do público, por causa de nosso cabelo e comportamento. Quando as pessoas nos diziam para sermos bonzinhos e não incitar o público, nós achávamos engraçado. Afinal, incitar o público significa fazer mudanças, e as mudanças precisam acontecer.
Hoje em dia, os músicos do Black Oak Arkansas continuam morando na mesma região, numa imensa fazenda que chamam de 'Paraíso Terrestre'. Com nove LPs editados, vários deles tendo recebido o 'disco de platina' (um milhão de cópias vendidas), eles são um dos grupos americanos que mais se apresentam, com uma média de 200 shows por ano. Ao contrário dos Allman Brothers, com quem são constantemente comparados por causa das origens sulistas, a música do Black Oak é barulhenta, suja e improvisada. Mas, segundo Jim Dandy, não podria ser de outro modo, 'já que nossa música é reflexo do mundo atual...'"