Palavras Domesticadas

Palavras Domesticadas

quarta-feira, 20 de julho de 2016

João Gilberto Grava Disco ao Vivo no Japão - O Globo (2004)

O mercado japonês sempre foi receptivo à Bossa Nova, e à música brasileira em geral. Vários artistas ligados ao movimento já fizeram apresentações e gravações no Japão, e João Gilberto, a voz e o violão da Bossa Nova não poderia ficar de fora. Assim, em 2004, João deixou registrado em CD um show que ele fez em Tóquio no ano anterior. O perfeccionismo do cantor e músico brasileiro se adequa ao cuidado e a atenção aos mínimos detalhes que os japoneses costumam ter em todos os seus projetos. Assim, creio que não foi difícil a realização do show e CD João Gilberto Live in Tokio. Na ocasião do lançamento o jornal O Globo de 09/05/04 publicou uma crítica do disco, assinada por Hugo Sukman:
"Na aparência, todos os filmes do cineasta japonês Yasujiro Ozu (1903-1963) são iguais. A mesma câmera fixa, na altura do olhar de uma pessoa sentada num tatame; as mesmas pequenas comédias ou dramas do cotidiano mais banal de uma família média de Tóquio; quase sempre os mesmos atores e  o mesmo tempo, um irremediável presente que caminha lento, como a vida.
Mas, no fundo da placidez contemplativa de seus filmes, Ozu revela, como ninguém em nenhuma outra cinematografia do mundo, o turbilhão de transformações pelo qual passou seu país nos poucos mais de 30 anos (de 1927 a 1962) em que filmou sem parar. Enquanto a mesma família discute em torno do mesmo chá, no mesmo tatame, depois do trabalho na mesma fábrica, as rugas nos rostos dos atores, o neon vermelho que lá pelas tantas passa a piscar pela janela, o quimono que cede mais lugar ao terno, os trens que se tornam mais velozes, o relógio na parede que fica mais moderno denunciam a passagem do tempo, contam a história de um país. São pequenas transformações numa forma de arte de aparência rígida.
O mesmo se dá com João Gilberto, cantor de impossível classificação quando se busca referências no terreno da música popular - onde ele é, com perdão do clichê, único - mas conserva semelhanças formais com outros artistas do século XX. A observação do Brasil e do mundo através de um repertório quase que imutável, mas que nunca é cantado e tocado da mesma forma, parece o jeito de Ozu de contar a História do Japão através de uma história só (uma nota só?). As sutis transformações que cada show ou disco, João imprime nas canções são como a passagem do tempo no cinema transcendental de Ozu.
A comparação do cantor brasileiro com Ozu não é casual. Afinal, surge a respeito do disco 'João Gilberto in Tokio' (Universal), o registro do primeiro concerto de João na terra de Ozu, no dia 12 de setembro de 2003, cinco mil pessoas no Tokio International Forum Hall A, 25 minutos de aplausos de um público que, como nenhum outro, é apaixonado por música popular - quem também e, em qualquer outra parte do mundo, sabe da importância dos CDs japoneses de todos os gêneros para o prazer e a memória musical do planeta.
Em Tóquio, João parece especialmente ozuniano. Ou seja, as novidades são aparentemente mínimas, mas significativas. Em 'Bolinha de Papel' (Geraldo Pereira), por exemplo, resgatada de seu terceiro LP, de 1961, no lugar do verso 'Vou ao banco e tiro tudo pra você gastar', ele canta 'Vou ao banco e tiro tudo pra gente gastar'. Pequena atualização sociológica, do machismo dos anos 50 à relação mais solidária entre homem e mulher nos dias de hoje. Como um relógio novo, mais moderno do que o do filme anterior, na parede de filme de Ozu.
Há novidades mais fortes, como duas músicas inéditas em disco na sua voz, 'Acontece Que Eu Sou Baiano' e 'Louco'. Mas, mesmo assim, são de compositores de sua predileção, Dorival Caymmi e Wilson Batista respectivamente, e há muito habitam seu repertório de shows.
Mais rigoroso impossível na admissão de uma canção no seu repertório, todas as outras 13 músicas de 'In Tokio' já haviam sido gravadas por ele até 1986, metade das quais até 1961, nos três primeiros LPs que balizaram o que ficaria conhecido (à revelia dele) como bossa nova.
Mas, bem ao modo de Ozu, se as canções são as mesmas, a maneira de João cantá-las e, principalmente, tocá-las ao violão é sutilmente diferente. 'Rosa Morena' (Caymmi), do primeiro disco, 'Chega de Saudade' (1959), vem com andamento mais lento, o que evidencia mais as invenções harmônicas do seu violão, diferentes quase que em cada repetição. Ralentar o ritmo, como quem está tocando em casa curtindo muito cada acorde, cada sutileza da canção. Isso se dá também em 'Este seu Olhar' (Tom Jobim), 'Meditação' (Jobim/Newton Mendonça).'Aos Pés da Cruz' (Marino Pinto/Zé da Zilda), 'Wave' (Jobim), em sua primeira gravação voz & violão, bem distante do famoso arranjo grandioso de Claus Ogerman no disco 'Amoroso' (1977), e em outras. Tudo muito diferente, apesar da aparente semelhança.
Outra sutil transformação: 'Isto Aqui O Que É?' (Ary Barroso) perde o 'ô, ô' depois do primeiro verso, 'Isso aqui.../É um pouquinho de Brasil iá iá', e ganha muitas invenções harmônicas e rítmicas. 'Lígia' (Jobim) vem com aquela letra de Tom que só João sabe e canta (como fez em 'The Best of Two Worlds', disco de 1976 dividido com Miúcha e Stan Getz), muito diferente da letra consagrada nas interpretações do autor (em 'Urubu') e de Chico Buarque (em 'Sinal Fechado'), mais para um samba-canção pessimista ('Eu nunca te telefonei para quê se eu sabia) do que para uma bossa solar.
Como quem agradece a acolhida do público japonês, e a perfeição técnica colocada à sua disposição, João Gilberto canta e toca como sempre. Ou seja, como nunca. Como Ozu.

Repetições Originais

Rosa Morena: É a quarta gravação deste samba de Caymmi. A primeira foi em 1959.
Corcovado: Quarta vez da canção de Jobim. A primeira foi em 1960.
Meditação: Quarta gravação desta parceria de Tom e Newton Mendonça, registrada pela primeira vez em 60.
Aos Pés da Cruz: Terceira gravação do samba de Marino Pinto e Zé da Zilda. Primeira em 1959.
Doralice: De Caymmi e Antonio Almeida, chega à terceira gravação. A primeira é de 1960.
Pra que Discutir com Madame: Terceira gravação do samba de Janet de Almeida e Haroldo Barbosa. Primeira em 1986.
Isto Aqui O Que É: Terceira vez do samba de Ary Barroso. A primeira é de 1986 sob o título 'Sandália de Prata'."


terça-feira, 19 de julho de 2016

Candeia, Eterna Chama do Samba - Jornal do Brasil (1998)

Candeia é considerado um dos principais nomes do samba. Autor de sambas memoráveis, excelente partideiro, e um nome sempre lembrado e respeitado entre os bambas da Portela, Antônio Candeia Filho sempre fez questão de manter e preservar a essência do samba e suas raízes. Não é à toa que nos anos 70, insatisfeito com os rumos que os desfiles das escolas tomavam, resolveu, junto a outros sambistas insatisfeitos, fundar a escola de samba Tradição, uma dissidência da Portela, que como o próprio nome diz, procurava manter as raízes do samba tradicional.
Em sua edição de 11/10/98 o Jornal do Brasil trazia uma matéria com Candeia, por conta do lançamento de um CD em homenagem ao compositor, num tributo aos 20 anos de seu falecimento. A matéria é assinada por Lena Frias:
" 'Não, o surdo não disse fim com a marcação/ Samba são pés que passam/ Fecundando o chão'.
Os versos de Marquinhos de Oswaldo Cruz - que letrou uma melodia de Antônio Candeia  Filho recuperada duas décadas após a morte desse artista fundamental da  música brasileira - dá o tom de Eterna Chama/Candeia, o disco-homenagem que marca os 20 anos da partida de Candeia para o Orum, o céu nagô. Marquinhos - que assina três iniciativas muito importantes para a cidadania e a cultura carioca:  o Movimento Acorda Oswaldo Cruz, o Movimento Samba de Raiz e o Pagode do Trem, criados por ele há mais de 10 anos - resgatou a música numa fita gravada há 25 anos na casa de Candeia por Cristina Buarque. 'Quando ouvi a melodia pela primeira vez, fiquei  atônito, eu não podia acreditar que ninguém a tivesse letrado. E me perguntava: meu Deus, será que é mesmo pra mim?'
Era para ele sim, afinal Marquinhos tinha em Candeia um modelo de personalidade e de artista. Conhece a obra, abre a voz nas rodas de samba divulgando as músicas do compositor, aproximação espiritual que se completou na parceria inesperada. Luz de Verão, peça inédita que Marquinhos interpreta no CD-tributo, é um dos sambas mais bonitos produzidos pela nova safra de compositores do gênero. A outra inédita, é Vem pra Portela, gravado por Cristina Buarque.
Eterna Chama/Candeia é realização do selo Perfil Musical, a partir de ideia de João Baptista Vargens, amigo de Candeia e autor do primeiro livro sobre o compositor, lançado em 1987. Outra obra sobre Candeia está nos planos para o ano 2000 da Editora 34, de São Paulo, dentro da coleção Ouvido Musical, coordenada pelo crítico Tárik de Souza. O CD Eterna Chama, cujo lançamento será em 16 de novembro, no Canecão, em show dirigido por Paulo César Figueiredo, é produção bem cuidada. Inclui um álbum com traços do cartunista Lan e textos de Paulinho da Viola, Sérgio Cabral, João Máximo, Luiz Fernando Vieira, Mauro Ferreira e Arthur José Poerner, entre outros. Produção, direção artística e arranjos são do músico João de Aquino, que com o disco fecha um ciclo de estranhas coincidências. João foi produtor e diretor artístico do último trabalho de Candeia, Axé, um marco discográfico realizado em 1978, mesmo ano da morte do compositor.
uma das ilustrações de Lan
João de Aquino comenta a emoção do reencontro no presente trabalho e a personalidade de Candeia, que parecia presidir tudo, juntando pessoas que não se viam, interferindo em escolhas. 'Eu sonhava com o cara, pode? Ele estava presente todo o tempo. Tenho a certeza de que não fui eu que fiz esse disco. Foi ele, foi o cara lá'. Tudo é possível, em se tratando de quem se tratava.
Eterna Chama/Candeia tem, contudo, um tratamento bem diverso do fundamental Axé. Primou a parte instrumental e violonística. 'O conceito do disco partiu de uma frase de Candeia no samba Último Bloco: 'Quando eu ouvi passar o bloco eu não resisti/ peguei meu violão/ segui a multidão...'. Candeia citava e valorizava muito o violão nas músicas. Numa delas reafirmava: 'enquanto houver samba na veia, empunharei meu violão'. Na capa original de Axé, ele quis um violão. Eu senti que era por aí.'
O CD destaca violões competentes. Além de João de Aquino, tem Guaraci, da Velha Guarda da Portela, Carlinhos e o pinho de Paulão do Sete Cordas, 'uma pessoa incrível que ajudou em tudo, desde a concepção do disco à harmonização e a arregimentação dos artistas. Além de tudo, é um músico espetacular' reverencia João de Aquino.
Predominou nas gravações um clima de cordialidade e entendimento, os artistas tocando e cantando soltos, participantes, sem empostação de estúdio, entregues ao prazer de estar ali. Como acontecia nas reuniões na casa de Candeia, em Jacarepaguá. O resultado é que não há uma faixa de trabalho apenas. Cada uma delas pode funcionar de carro-chefe, dependendo das circunstâncias. Beth Carvalho, por exemplo, dá um show de voz e interpretação em Pintura sem Arte e O Mar Serenou. Alcione, amiga antiga de Candeia - 'No dia em que conheci mestre Candeia eu conheci uma luz e essa luz me guiou' -, recriou belamente o samba Vivo Isolado do Mundo (Candeia, Alcides Histórico, Manaceia). Zeca Pagodinho está demais em Expressão do Teu Olhar. O repertório do disco, oferece, aliás, de bandeja, a Pagodinho - herdeiro do que há de melhor no estilo interpretativo carioca - um samba no tamanho de seu talento e do metal de sua voz: Luz de Verão. Martinho da Vila canta Eterna Paz, sua parceria com Candeia. Coube a Dona Ivone Lara o calangado Peixeiro Grã-fino, parceria com Bretas. Nelson Sargento brilhou em Peso dos Anos (Candeia/Walter Rosa) e Monarco e Velha Guarda animam o terreiro em Portela, uma Família Reunida, 'minha com meu  compadre'.
Paulinho da Viola frequentava o afeto de Antônio Candeia, a quem retribuía com a delicadeza de atitudes tão marcantemente suas. 'Meu primeiro samba realmente conhecido foi Minhas Madrugadas, parceria com meu amigo Candeia'. E pontua o samba com seu violão tão único. Um violão singular como foi o de Nelson Cavaquinho, como é o de Gilberto Gil, o de Baden Powell, o de João de Aquino. O violão que Paulinho toca é carioca-suburbano, de um jeito que só Paulinho faz. João de Aquino lembra que na carreira de Elizeth Cardoso há três violões marcantes. O de João Gilberto em Chega de Saudade, no disco Canção do Amor Demais; o de Baden Powell em Carta de Poeta, no disco Falou e Disse; e o de Paulinho da Viola em Elizeth Sobe o Morro.
Esse disco-tributo é um CD de unidades em si, 13 vezes Candeia. Em cada uma é preciso sintonizar o  ouvido e a sensibilidade. Zé Luiz Mazziotti enfrentou Preciso me Encontrar e saiu-se bem. Essa música é um desafio, porque tem uma grande história. Candeia a compôs a pedido do falecido jornalista e escritor Juarez Barroso, que produzia o segundo disco de Cartola - de1976, para o selo Marcus Pereira -, talvez o mais belo do mestre mangueirense (nele Cartola apresentava As Rosas Não Falam e O Mundo É um Moinho). Juarez queria, além da canção, a voz de Candeia contracantando com Cartola. Essa voz foi o fagote de Airton Barbosa, numa ousadia criativa nunca superada. Dois instrumentos da mesma região, o sete cordas de Honorindo Silva - o Dino do Sete Cordas, que assinou os arranjos -  e a solene gravidade do fagote.
A ênfase instrumental de Eterna Chama tem seu ponto alto na primeira faixa. Dia de Graça tornou-se conhecida pelo manifesto da letra - 'Negro, acorda, é hora de acordar/ não negue a raça/ Faz de toda manhã Dia de Graça...' -, que desvia a atenção da fortuna que é a música. João de Aquino inverteu a mão: trabalha unicamente sobre a melodia rica e acidentada de Candeia. É o violão de João contracantando com piano (João Carlos Coutinho), baixo (Adriano Giffoni), flautas (Dirceu Leite), trombone (Zé da Velha), trompete (Silvério). Ao fundo a bateria de Adriano de Oliveira e os atabaques encantados de Carlinhos Ogã, afilhado espiritual de Candeia.
Nascido em 17 de agosto de 1935, Candeia morreu aos 43 anos, em 16 de novembro de 1978. Algum tempo depois de sua morte circularam notícias de mensagens psicografadas a ele atribuídas. Era como se a sua gente o quisesse de volta - ainda que magicamente, através dessas cerimônias -, o que em certa medida se faz agora com o CD Eterna Chama. "


sábado, 16 de julho de 2016

Tim Maia - O Pioneiro do Soul - Revista Música (1977)

Em sua edição nº 23, de 1977, a revista Música trazia uma matéria com Tim Maia, assinada por Júlio Barroso. Na matéria, Júlio, que mais tarde ingressaria diretamente no mundo da música como membro fundador da Gang 90 & as Absurdetes, um dos grupos mais criativos do rock brazuca dos anos 80, fala da trajetória de Tim Maia, como o grande pioneiro da black music feita no Brasil, e sua carreira. Segue abaixo a transcrição da matéria:
"Sebastião Rodrigues Maia, Tim Maia, o primeiro 'Don' de nosso cenário do swing afro-americano.
Mas quem é Tim Maia? Em 1957, na época em que os russos lançaram o Sputnik, ele lançava a sua réplica à conquista espacial, a banda 'iê-iê-iê' The Sputniks, grupo profissional da rapaziada da Praça da  Bandeira. Tim cantava e Roberto Carlos era um dos integrantes da banda.  Aos dezesseis anos foi para Nova Iorque, tinha estudado até o terceiro ano ginasial, moleque criado no Rio, malandro, esperto, pois sentia não haver mais lugar pra ele aqui.
Chegou lá na cara de  pau. Fez um curso de americanização em seis meses, cursou dois anos de High School, depois frequentou um período sem crédito universitário na New York University. Durante essa época educacional Tim já havia formado um grupo vocal. Ele é um dos nossos mais intensos vocalizadores, íntimo dos arranjos de voz. Com este grupo, Tim gravou dois discos simples. Fora isso, fez muito back vocals em sessões de estúdio.
Mas Tim Maia não trabalhou apenas como músico nos Estados Unidos. Limpou neve e trabalhou em um asilo para velhos. Foram cinco anos de Estados Unidos, o tempo que Don Maia transou diretamente com o cenário soul, sentindo de perto o calor do ritmo, o feeling do blues, a fusão com o gospell, o sentimento da voz negra. Período em que reuniu informação, tecnologia e transmissão, o que lhe deu a base internacional de sua obra. Foi aí também que o cantor assentou por completo os seus conhecimentos fundamentais do mundo de voz, o falsete, a improvisação, o howl (urro) e o diafragma.
A volta ao Brasil foi um recomeço para o som de Tim. Ele foi o eixo central de todo um universo sonoro. Criticado duramente pela ala revisionista da MPB, contemporâneo de um período onde o vácuo deixado pela ausência dos fluidos revolucionários de Gil e Caetano era sentido duramente, o chamado vazio do pós-tropicalismo. Foi numa época assim, confusa e difícil, que Tim foi criando a sua turma em Copacabana, a rapaziada que se reunia na boate 'Quincy', o templo do swing. Lá estavam Genival Cassiano e seu grupo 'Os Diagonais' (Camarão, Amaro e Max); Don Charles, o fabuloso arranjador e tecladista; Mita e tantos outros que formavam o time pioneiro do balanço zona sul-soul.
Os  primeiros discos de Tim são pontilhados por um cordão de hits fulminantes: 'Primavera' (de Cassiano); 'Coroné Antônio Bento' (de Vanderlei e João do Valle); 'Festa dos Santos Reis' (de Branco); 'Padre Cícero';' Azul da Cor do Mar' e 'Cristina' (todos dele mesmo). O estilo de Tim foi se solidificando disco após disco, e seus colaboradores foram seguindo seus próprios rumos. A MPB daquela época já apresentava sinais de mudança e renovações, a persistência de Rita Lee após o fim dos Mutantes, a fase áurea dos Novos Baianos, a profética modernização do choro por Paulinho da Viola e a permanência mágica do poeta Jorge Ben são dados contemporâneos ao surgimento da escola negra de Tim Maia, o grande band-leader, respeitado por todos seus camaradas. Ele possui um toque!
Por suas bandas passaram e continuam passando excelentes arranjadores, instrumentistas, cantores e compositores. Através dessas duas décadas e criação musical, ele teve ao seu lado Robson Jorge, Hyldon, Carlos Dafé, Rubão Sabino, Jamil Joanes, Paulinho Guitarra, Pedrinho Dinamite, Mita e tantos outros, que hoje seguem suas carreiras individuais.
Atualmente, a grande expectativa é o novo álbum de Tim. Lendário pela perfeição que imprime na confecção de seus elepês ele encontrou agora as condições ideais de trabalho: liberdade total de movimento e exigências técnicas cumpridas. Enfim, dados que compõem o apoio tecnológico necessário.
No disco Tim passou horas a fio preparando bases fulminantes, assessorado por Jamil, no baixo; Paulinho Braga, na bateria; Robson Jorge, nos teclados; Hyldon, Ary e Piau, nas guitarras; Cidinho, nas percussões, e o apoio vocal dos Diagonais e do coral São Paulo. Ele próprio realizou várias partes de percussão, guitarra e efeitos e, finalmente encaixou a sua voz enorme, de feeling profundo. Quando ouvi os primeiros teipes fiquei surpreso com o nível de produção, o resultado final e a qualidade industrial do trabalho. Exatamente o que faltava para glorificar o sentimento e a criatividade que pontificam em toda a obra gravada de Tim.
Segundo o cantor, o acabamento industrial é um dos componentes fundamentais para que uma obra possa ser transposta para a negra massa de vinil e toda a carga de sensibilidade e criação possa ser captada pela gravação. Ele detesta o que chama de mentira musical: o resultado pobre e ridicularizador da música de um artista, provocada por um acabamento técnico medíocre.
Eu acredito que o elepê de Tim Maia (assim como 'Babilônia' de Rita Lee) seja um grande passo na direção de uma sonoridade internacional a nível de música popular, e neste sentido Tim é um grande pioneiro.
Em seu novo disco existem momentos de rara beleza, a canção 'Murmúrios', de Cassiano; 'Pais e Filhos', de Piau e Arnaud; e 'Sossego', um balanço ultrafunk de sua própria autoria. O cantor/compositor preparou também uma superbanda pra atacar ao vivo, logo que seu novo álbum esteja nas lojas. É preciso ver para crer, ouvir para sentir a música do mulato Tim, que com seu som segue a tradição de inquietação criativa de grandes nomes como Ismael Silva, Geraldo Pereira, Jorge Ben, Gilberto Gil e Luiz Melodia, todos os blacks que entornaram o caldo da cultura europeia, colonizadora e castrativa, driblada pela força dos filhos da África, de maneira genial, mesmo com nossas pernas tortas (recursos subdesenvolvidos), de geniais garrinchas. "

quinta-feira, 14 de julho de 2016

Carlos Santana - O Eterno Gênio Latino - Revista MIX (1987)

Em 1987, a revista MIX trazia uma matéria com o guitarrista mexicano Carlos Santana. Dono de um estilo pessoal e um toque e um swing latino que só ele sabe fazer, Santana é um guitarrista que sempre é lembrado entre os melhores do mundo. Com uma longa carreira, iniciada ainda nos anos 60, e uma grande coleção de álbuns lançados, o genial guitarrista continua na ativa, sem nunca ter entrado em declínio ou fazer concessões. A matéria, que traz como destaque o álbum que Santana estava lançando à época, Freedom, tem por título "Em busca do tempo perdido", e é assinada por Sérgio Matorelli:
"Desde 62, quando se mudou com a família para a louca San Francisco, que na época era o reduto do nascente movimento hippie, Carlos Santana nunca deixou a música. No final dos anos 60 (69, para ser mais explícito), lançou seu primeiro álbum-solo, Santana, pela CBS. O disco já trazia uma interessante mistura de rock com ritmos latinos, como salsa, rumba, merengue, soca, calipso e o escambau, e acabou despertando a atenção do público e da crítica, se convertendo num razoável sucesso. Os álbuns que vieram em seguida - Abraxas (70), Santana 3 (71), Caravanserai (72), Welcome (74), Borboletta (75), Amigos (76), Festival (76), Devadip Oneness Silver Dreams Golden Reality(77), Inner Secrets (78), Marathon (78), Moonflower (79), The Swing of Delight (80), Zebop (81), Shango (82) e Havana Moon (83) - seguiram pela mesma praia, assim como os discos que gravou com John McLaughlin (Love, Devotion, Surrender, de 73), Alice Coltrane (Iluminations, de 74) e Buddy Miles (Carlos Santana & Buddy Miles, 71).
Talvez tenha sido por isso que Santana esperou quatro anos para lançar seu mais recente LP, Freedom: medo da saturação. O nome de Carlos Santana estava ligado diretamente ao 'rock latino' (ou 'cucaracha rock', segundo alguns críticos da revista japonesa Music Life), e era difícil vê-lo fazendo outra coisa. Por isso, é curioso notar que Freedom, mesmo tendo a intenção de ser algo diferente, é tão igual aos outros. Trazendo um pop bem feito, o LP conta ainda com a participação de Chester Thompson nos teclados, Alphonso Johnson no baixo, Armando Perazza na percussão e Buddy Miles - recém-saído da cadeia - na voz, entre outros. 
Freedom, como o nome indica, versa sobre a liberdade, e o encarte é recheado de figuras históricas que lutaram por ela - Cristo, Ghandi, Lincoln, Luther King, Zapata, Mandela, Roosevelt, etc. As letras abordam invariavelmente o mesmo tema, a não ser aquelas que falam sobre 'amor sob os coqueiros, debaixo da lua prateada de Havana'.
Nesse novo disco, Santana mostra que continua fidelíssimo às suas raízes roqueiras e latinas. Com praticamente a mesma banda dos discos anteriores, Santana continua arrepiando os pelinhos com seus solos refinadíssimos e transcedentais, fundindo rock, latinidad e toques de música indiana - influências do guru Sri Chinmoy, que o apelidou de Devadip. Isso pode ser constatado praticamente nas duas faixas instrumentais, 'Mandela' e 'Love is You', que são de fazer a gente ter que pegar o maxilar no andar térreo.
Mas falar na guitarra de Santana é bancar o pedal de eco, pois tudo já foi dito sobre ela. O negócio é falar da banda. E que banda! Armando Perazza, um percussionista estupidamente competente, cria ritmos e batidas que nos deixam incapazes de ficar parados. Alphonso Johnson é um senhor baixista que não se limita apenas a marcar as canções, e adora adicionar novas texturas ao ritmo. Chester Thompson é um bom tecladista, e divide a maioria das músicas com Santana. E Buddy Miles... bem, esse daí é fora de registro. Sua voz é tão gostosa que entra por um ouvido, acaricia o cérebro e fica por lá uns dois dias até sair pela outra orelha. E isso se você ouvir o disco apenas uma vez. O que, pode crer, não vai conseguir. "




quarta-feira, 13 de julho de 2016

Celso Blues Boy Encontra B.B. King - Revista Roll (1986)

Celso Blues Boy nunca escondeu sua grande admiração pelo bluesman B.B. King. O seu próprio nome artístico é uma homenagem a B.B. King (Blues Boy King). Em 1986 o grande mestre do blues faria uma de suas muitas excursões pelo Brasil, onde sempre teve muitos fãs. Na ocasião, a revista Roll promoveu o encontro entre fã e ídolo. Um texto que introduz a matéria, assinada por Manolo Gutierrez diz: 
"B.B. King no Brasil. É claro que todo mundo foi ver e ouvir o homem. Mas a Roll resolveu fazer um pouquinho mais: levamos nosso maior blueseiro, Celso Blues Boy, para encontrar seu ídolo. Veja a seguir como foi esse encontro e saiba as impressões e opiniões dessa lenda viva da guitarra: Mr. B.B. King."
Segue a abaixo a transcrição da matéria:
"Clara tarde de inverno no Rio de Janeiro e o tom do céu não poderia ser mais blues: rigorosamente sem uma nuvem. Subindo de carro pelo litoral, Celso Blues Boy, nosso principal bluesman e emérito roqueiro, já mal conseguia se conter, afinal agora só uns poucos quilômetros o separavam de realizar algo mais do que um mero sonho. Blues vai encontrar cara a cara seu maior ídolo e influência máxima: o rei do blues, B.B. King. O encontro teria lugar na piscina do hotel em que B.B. iria mais tarde se apresentar, e a própria imprensa especializada presente à entrevista, ao ver Celso no local, sentiu que aquela seria uma coletiva um pouco diferente das outras. Não demorou o tempo de um café: com a imponência de um verdadeiro rei, desembarcou do elevador sua majestade, acompanhada de um pequeno séquito. Uma verdadeira tropa de fotógrafos desaba em cima de King, logo apresentado a Blues Boy, que a essa altura, diante da fera, não conseguia emitir um som. Depois de um demorado e inesquecível aperto de mão, Celso entregou ao rei seus discos, os quais, humildemente, B.B. devolveu pedindo que os autografasse. Aí já foi demais pro nosso pobre bluesman, cujas mãos sempre tão firmes nas puxadas cortantes no fim da escala, tremiam qual vítima de esclerose múltipla. Realmente era emoção demais pra qualquer guitarrista e um raríssimo privilégio.
 Realizado o encontro, o mestre pega sua inseparável e endiabrada 'Lucille' (uma sempre negra e linda Gibson, que já sai da fábrica com o nome de B.B. estampado nela) e pede que Celso toque alguma coisa. Era emoção demais pra um dia só e ainda tremendo muito o mago da Fender, empunha a menina dos olhos do mestre. Celso, já então num tal estado de em que as lágrimas se confundem com risos elétricos, devaneia pela escala. À  sua volta, todos sentem a emoção que aquilo representou para o nosso príncipe do blues. Acostumado a muitas entrevistas e dezenas de coletivas, esta desde o início foi incomum e seu desenrolar só confirmou minha suspeita. O velho B.B. tem um alto astral de impressionar; realmente coisa de parapsicologia. Sua fala sempre mansa e sua simpatia contagiante, aliadas a uma fluente musicalidade, fazem deste encontro muito mais que um prazer, afinal Riley King, 61 anos, 37 de estrada, 50 discos e mentor da melhor safra de guitarristas que o mundo já viu, de Hendrix a Jordan, é uma lenda viva da música do nosso tempo. Aliás, vivo ele está e muito, pois com a idade que tem, King ainda toca 300 noites em cada ano, e apesar de ter se divorciado recentemente e ter passado por um período de certa desilusão com a instituição do casamento, parece já recuperado e está procurando uma nova rainha pras noites frias de Memphis. 'Acho que aqui é um bom lugar pra arranjar uma esposa, as mulheres são lindas por aqui.', confessa King com aquele olhar maroto que lhe é peculiar.
Celso dedilhando a guitarra do mestre
Egresso de uma infância muito pobre em Ita Benna, pequena cidade às margens do velho e cinematográfico Mississipi, King conta coisas, que chegam a impressionar, como a história de um de seus primeiros violões, que, quando as cordas se rompiam, eram substituídas amarrando um arame até a altura em que a corda tinha se rompido; amarravam então as cordas nesse arame e utilizavam apenas a parte restante da escala. Segundo ele, coisas como essa foram definitivas para os tons agudos de certos solos bluesísticos. Quanto a influências e referências, King se diz muito eclético: 'Gosto de tudo que é bom independente de estilo ou nacionalidade;  se você toca, e toca bem, então eu gosto'. Para .B.B. há vários bons músicos em atividade; cita Steve Ray Vaughan, define Stanley Jordan como duas mãos e 40 dedos ('É muito jovem, será grande'), adora o jeito de Andre Segovia... Nesta altura, Blues Boy interrompe e pergunta sobre Eric Clapton, ao qual, com fala e jeito de rei, B.B. responde: 'ele me ouviu muito quando começou, agora eu escuto ele'. Uma rápida observação nos rostos as mais ou menos 20 pessoas entre repórteres, fotógrafos, seguranças e inevitáveis curiosos, presentes à piscina naquela agradável tarde, revelava  um único resultado: todos, sem exceção, têm um sorriso estampado, parecem embriagados, e um clima de tranquilidade, misturado a uma euforia bem blues, toma por completo o ambiente, emanado pelas palavras de um homem como poucos, que, em cima do palco e a tiracolo com sua 'Lucille', é capaz de levar à demência plateias inteiras com seu blues definitivo, e exalar, com seu papo manso, uma serenidade e sabedoria de um rei de direito. Quase ao final, as invariáveis perguntas sobre seus conhecimentos de 'brazilian music', às quais ele responde que não conhece nada até o momento, mas que amanhã ele já conhecerá alguma coisa. Que responsabilidade, hein Blues Boy? É isso aí, viva o rei e viva o blues."

segunda-feira, 11 de julho de 2016

Jorge Ben Jor - Revista do CD (1991)

Em 1991 Jorge Ben Jor lançava o CD duplo Ao Vivo no Rio, com antigos sucessos e algumas inéditas. Naquele período a carreira de Jorge experimentou uma revitalização, com a descoberta de sua música pela nova geração, acompanhada de muitos shows, execuções em rádio e aparições na TV.  Em setembro daquela ano, a Revista do CD trazia uma matéria de capa com Ben Jor, destacando o lançamento e trazendo dados auto-biográficos. Entre as matérias, há um box especial escrito pelo crítico Tárik de Souza, intitulado "Artes de um alquimista", que fala do lançamento, de sua carreira, e traz algumas informações interessantes sobre algumas de suas músicas:
"Jorge Benjor tem discípulos confessos como Luiz Melodia e Skowa, da extinta banda Máfia; já recebeu homenagens musicadas de outros bambas (Jorge Maravilha, de Chico Buarque, uma citação em Podres Poderes, de Caetano Veloso) e durante algum tempo colecionou clones tipo Bebeto e Serginho Meriti. Mas ninguém consegue apontar antecedentes para sua obra fundadora. Ele puxa pela memória antes de citar os discos de cabeceira da infância (Nelson Gonçalves, Angela Maria, Luiz Gonzaga) até deparar-se com alguma possível influência emulada do swing de Jackson do Pandeiro, somada à descoberta de temas afros num antigo disco do baiano Camafeu de Oxóssi, com cânticos em iorubá.
Esse acrobata sem rede, esse Magritte tropical cria praticamente do nada seus sambas mântricos, como no caso de títulos de uma biblioteca encadeados em As Rosas Eram Todas Amarelas ou o 'release' que virou trilha sonora de sucesso em 'Xica da Silva'. Tudo inspira Jorge: de uma simples noite de chuva (Chove Chuva reaparece com nova roupagem reggae introduzida pela nova Selassié; Que Maravilha está cada vez mais mais blues) a uma ficção intergalática - a do Homem do Espaço, que de tão apaixonado que ficou por uma neguinha escultural, esqueceu até de desligar a aeronave.
Num showmício pela candidatura do vereador Gilberto Gil, na Bahia, surgiu Menina Sarará, que no CD Ao Vivo no Rio se transformou numa espécie de aperitivo energético da ancestral Mas, Que Nada. 'Esse tipo de mulher sarará só tem lá em cima e a menina dançava tão diferente que eu fiz logo o samba pra ela', dispara.
capa da revista
Frequentador de primitivas sessões de jongo, levado pelo pai, Jorge conheceu no morro o estilo sincopado que ele decupa em Miudinho. É a parte do show (e do CD) em que ele mais incita à dança, recuperando uma prática de velhos bambas, celebrada também por Paulinho da Viola. Em Ela Mora na Pavuna, outro flagrante comportamental, impulsionado como sempre por uma musa condutora ('Ela era uma graça, mas muito besta também', ri). Jorge descreve as inocentes domingueiras dançantes de um clube de subúrbio do Rio, onde ele costumava apresentar-se. No mesmo local que inspirou a primeira gravação de samba batucado (o clássico Na Pavuna, com Almirante), ele reunia cinco a seis mil pessoas em shows que se iniciavam pacatamente às sete da noite, mas acabaram suspensos por causa dos tiroteios dos bailes 'funks' das noites anteriores.
Outra inédita, W/Brasil, é descrita por Jorge como 'inteiro nonsense'. A figura rotunda de Tim Maia é convocada no refrão, como se fosse o síndico de uma bagunça poética que mistura aviões do Jacarezinho com a sigla da empresa publicitária de Washington Olivetto. Umbabarauma, a eleita de David Byrne para o primeiro picadinho tropicalista que editou nos EUA - e recém regravada pela dupla Ambitious Lovers, de Arto Lindsay - , foi escrita a propósito do primeiro jogador africano que apareceu no futebol inglês, 'lá por 73, 74'. Mais uma vez profeta, Benjor exaltou o futebol africano bem antes da explosão da equipe dos Camarões na Copa de 90.
Mas outro homenageado, o rubro-negro e hilário atacante Fio, foi destronado na revisão do clássico agora transformado em Filho Maravilha. Fio caiu na esparrela de processar Jorge pela homenagem. Assessorado pelo advogado João Carlos Muller Chaves, hoje presidente da ABPD - Associação Brasileira dos Produtores de Discos -, o compositor ganhou a causa e rompeu com o jogador, que fez seu Flamengo vencer o Benfica num torneio de verão no início de 70, com um gol marcado 'aos 33 minutos/do segundo tempo', como canta o samba.
Não foi a única vez que Benjor foi parar na Justiça por causa de uma música. Taj Mahal também foi recauchutada no medley que encerra o CD, fez o compositor chamar às falas o roqueiro Rod Stewart, que o plagiou em Do Ya Think I'm Sexy. Recentemente a canção valeu uma retro-homenagem do músico americano Taj Mahal, que se considerou lisonjeado pelo refrão com seu nome artístico. Ele regravou a música e só trocou o estribilho pelo nome do autor, entrando com isso de parceria. É mole ou quer mais? Ao menos, que as musas não lhe causem tantos percalços Uma das várias cultuadas no CD, Ive Brussel, tem uma história curiosa. Trata-se de uma fã de Bruxelas (daí o Brussel), que foi procurá-lo numa cidade belga com um disco para ele autografar. Mais que a assinatura, do ídolo, a fã ganhou um hit de presente. Artes de alquimista. "

sexta-feira, 8 de julho de 2016

Paulo César Pinheiro - Revista Música Brasileira (1997)

Paulo César Pinheiro é um dos letristas mais representativos do que de melhor se produziu e ainda se produz na música brasileira a partir do final dos anos 60. Autor de centenas de letras gravadas, com os mais variados parceiros, P.C. Pinheiro já deixou gravado seu nome na música brasileira, por tantos clássicos cujas letras saíram de sua inspirada lavra poética. Sua extensa obra e seus inúmeros parceiros falam por si só.
Em seu nº 8, de novembro de 1997, a revista Música Brasileira trazia uma matéria de capa com PC - uma entrevista dada a Luis Pimentel, em que ele fala um pouco de sua trajetória no mundo das letras. A matéria tem por título "O samba bate outra vez, com força e fé":
"Da primeira música até hoje - Lapinha - feita em parceria com Baden Powell e vencedora da I Bienal do Samba da TV Record, em 1968, são 30 anos de carreira consistente, superelogiada e em constante aprimoramento.
Poeta premiado, autor dos livros Viola Morena e Canto Brasileiro, Paulo César Pinheiro é considerado por quem entende como um dos mais importantes letristas da Música Popular Brasileira. A obra impressionante se aproxima das 800 composições gravadas, e a quantidade de parceiros nem ele consegue enumerar de primeira. Depois de uma gargalhada, tenta lembrar:
- É muita gente. Nem sei ao certo. Mas segundo minha biógrafa Conceição, mulher do Pedrinho Amorim, tenho perto de 100 parceiros.
É muita gente. Os mais conhecidos são mesmo João Nogueira, Mauro Duarte, Baden Powell, Eduardo
Gudin, Francis Hime, Rafael Rabelo, Edu Lobo, Tom Jobim, Dori Caymmi, Maurício Tapajós (com quem Paulinho fez O Samba Bate Outra Vez, prato de resistência no cardápio de qualquer roda de samba que se preze), Wilson das Neves e Sueli Costa, Tem também parcerias esporádicas, porém marcantes, como Saudade da Guanabara, ao lado da dupla Moacyr Luz e Aldir Blanc, e uma grande quantidade de compositores jovens a quem Paulinho tem oferecido parcerias.
- Fizeram o mesmo comigo, quando comecei. Os grandes reconheciam o talento e puxavam para um trabalho ou outro ao lado deles.
- E os intérpretes, consegue lembrar quantos já gravaram suas músicas?
- Agora é que são elas!
São elas, sobretudo elas, como Elza Soares, Cristina Buarque, Clara Nunes, Elis Regina ('Essa foi quem me lançou', diz o poeta, orgulhosíssimo), Beth Carvalho, Alcione, Quarteto em Cy, Nana Caymmi...
- Não esqueça de Elizeth Cardoso. Tive sorte de ter sido gravado pelas maiores. É mais fácil dizer quem não me gravou.
Talvez tenha sido Elizeth a que mais gravou Paulo César Pinheiro. Tem os 'eles' também: MPB-4, Paulinho da Viola, Marcos Sacramento. O parceiro João Nogueira, então, gravou quase tudo. E onde quer que se apresente, tem sempre alguém pedindo uma palhinha da maravilhosa Espelho
- Em meio a tantas parcerias, qual aquela que chega mais perto, que propicia um entendimento mais perfeito?
- Difícil dizer, porque cada parceiro é um parceiro, cada caminho é um caminho. São diversos caminhos, como João Nogueira no samba carioca, de calçada, Sivuca nas músicas nordestinas, Dori na mistura de música mineira com música baiana, Mauro Duarte na linha do samba de enredo. São caminhos diversos, diferentes, cada um com seu rumo, sua importância.
capa da revista
- Com essa quantidade invejável de músicas gravadas, dá para viver confortavelmente de direitos autorais?
- Eu fui um dos primeiros autores brasileiros a viver somente de direito autoral. Antes de mim teve o Vinícius, que ganhou dinheiro com música, mas que também foi diplomata, cronista de jornal, crítico de cinema. Eu jamais fiz outra coisa na vida senão escrever poesia, para ser musicada ou não. E continuo vivendo de minha arte.
- Graças ao tamanho da obra ou à sua batalha de cobrar, acompanhar, correr atrás?
- As duas coisas. Não só graças ao volume da obra como também à minha tenacidade em conhecer as questões ligadas ao direito autoral. Não dá para ficar reclamando de direitos autorais, sem conhecer os seus direitos, para reclamar com convicção. Nós, compositores, precisamos conhecer pelo menos o mínimo, a base do direito autoral brasileiro. Fui um dos fundadores, juntamente com o Maurício Tapajós, Aldir, Hermínio, Sérgio Ricardo e outros companheiros, de uma sociedade arrecadadora que nasceu para ser diferente, a Sombrás, que acaba de fazer 15 anos de existência. De alguma maneira, fizemos parte da mudança do direito autoral no Brasil, que não mudou o suficiente, mas avançou bastante.
Acompanho a minha obra, atentamente, onde quer que ela esteja. Recebo dinheiro de Israel, às vezes sem nem saber ao certo a que música se refere. Fui um dos primeiros autores brasileiros a receber direito autoral vindo da União Soviética, na época em que ainda era comunista.
- Você cuida disso sozinho ou já montou uma estrutura de acompanhamento pra lhe ajudar?
- Tenho uma editora própria, que faz um controle da minha obra, das edições musicais. Alguns parceiros também editam comigo. Mas a minha editora nasceu para editar a minha parte na parceria. Nessa área, também fui um um dos primeiros compositores a fundar uma editora musical.
P.C. Pinheiro ao lado de Clara Nunes
Pioneiro, batalhador e com um fôlego de fazer inveja, Paulo César Pinheiro é um explorador de caminhos e de possibilidades artísticas. Para quem não sabe, tem bagagem também no ramo das trilhas sonoras, já tendo trabalhado para o cinema, o teatro e a televisão. Começou com a novela O Semideus, em 1973, para a qual compôs dez músicas em parceria com Baden Powell. No ano seguinte fez a trilha da peça que inaugurou o Teatro Manchete, Pippin, com Marília Pêra e Marco Nanini, direção do saudoso Flávio Rangel. Ainda na televisão fez músicas-temas também para Escrava Isaura, para as minisséries Teresa Batista e Tenda dos Milagres, e também para as produções infantis, como Ratimbum e Sítio do Picapau Amarelo. No cinema, as produções mais marcantes com trilhas suas foram Tati, a Garota (de Bruno Barreto), A Batalha dos Guararapes e O Triste Fim de Policarpo Quaresma (ambos de Paulo Tiago).
Poeta elogiadíssimo pelo público e pela crítica (existem pelo menos três trabalhos acadêmicos destrinchando sua obra), Paulo César Pinheiro tem dois livros de poemas publicados, Viola Morena e Canto Brasileiro, e três inéditos (em sua maior parte feitos de sonetos), que estão sendo revisados e finalizados para lançamentos entre 98 e 99, quando o poeta estará completando 50 anos de idade, e espera-se uma série de homenagens a acontecer por todo o país.
- Muita gente nova fazendo um bom trabalho, Paulinho? Que letrista novo ganharia o Prêmio Paulo César Pinheiro?
- Infelizmente, os mesmos. Acho que não houve muita renovação e os letristas que estão mostrando trabalho hoje são os mesmos que começaram mais ou menos na minha época, como Aldir, Abel Silva, Chico Buarque, Victor Martins, Nei Lopes. Não vejo renovação e até sinto falta.
- Já na parte musical, há uma novidade a cada dia.
- Exatamente. É um número enorme de novos compositores, produzindo e mostrando trabalho.
- E os novos intérpretes que estão chegando ao mercado? São muitos e alguns muito bons.
- São, apesar das dificuldades que eles enfrentam para marcar presença. Se o artista novo não tem o apadrinhamento de uma multinacional, não consegue gravar. Se grava um disco independente, enfrenta dificuldades para distribuir e divulgar.
- Mas, apesar das dificuldades, felizmente eles insistem, não é?
- Felizmente."
 

quarta-feira, 6 de julho de 2016

Zé Ramalho Faz a Síntese do Nordeste - O Globo (1978) - 2ª Parte

" E, como em todo canto - talvez mais aguda lá, em João Pessoa, 'lá em cima', como Zé Ramalho diz, 'cidade pequena, restrita, onde o que influencia é o que vem do Sul, é como um grande alto-falante repetindo as coisas daqui debaixo' - a febre inicial dos conjuntinhos acabou tomando proporções maiores, uma tentativa meio louca, meio ingênua de viver, aqui, o sonho roqueiro que já estava terminando em seus países de origem.
- Ah, teve isso demais, lá. Eu toquei muito em festival ao ar livre, essas coisas. Sabe, Woodstock, tudo isso, todo esse sonho, a gente acreditava pra valer. Só que as dificuldades lá eram imensas, era quase impossível fazer qualquer coisa, simplesmente não existiam recursos.
Zé Ramalho chegou a vir várias vezes ao Rio, no início dos anos 70, 'pra ver como é que era, o que estava sendo feito, quem tocava, como é que se fazia shows e tudo mais. Foi uma coisa louca de dormir em banco de praça, virar rato de porta de show, essas coisas'. Na época, estudava medicina - mas não por muito tempo. Já no segundo ano descobriu que não tinha nascido para ser doutor e resolveu buscar, na música, um caminho próprio. Pouco a pouco afastando-se de seus tempos de roqueiro, mas ainda sem saber em que direção ir, embora um antigo instinto, ou a memória que nunca morre, às vezes lhe soprasse, sem sentir, os rumos que segue, hoje. Foi desse modo, por exemplo, que, ao lado de outros jovens músicos nordestinos como Lula Cortes, Paulo Rafael, Geraldo Azevedo e o próprio Alceu, Zé Ramalho criou e executou o álbum duplo Paêbiru/Caminho da Montanha do Sol, para a etiqueta Rozemblit, selo original do Recife. Gravado 'do modo mais artesanal, louco e carinhoso possível', em dois canais, durante quase todo o ano de 74, o álbum era uma espécie de suíte em torno da legendária Pedra do Ingá, na Paraíba, rochedo coberto de misteriosas e indecifráveis inscrições.
- Tinha muitos sons elétricos, mas eu já usava muito coisas como martelo agalopado, só que vestidas numa linguagem elétrica. Foi um trabalho lindo, que ficou assim como um registro histórico de uma época, de uma geração de músicos nordestinos.
O álbum nunca foi lançado comercialmente, e a maior parte de suas cópias foi perdida no alagamento dos depósitos da Rozemblit, durante as cheias do Capibaribe, no final de 74.
O passo seguinte foi com Alceu, impulsionado no início de 75 pela boa repercussão de seu 'Vou Danado pra Catende', no festival Abertura. O fim da jornada, briga, amargura e desilusão. Quase.
Na verdade, um renascimento. Um nascimento, na acepção da palavra: no final do ano Zé Ramalho foi procurado, em João Pessoa,  por sua amiga, a cineasta Tânia Quaresma, que começava a rodar seu documentário Nordeste: cordel, repente, canção. Tânia queria que Zé Ramalho fizesse a direção musical do projeto contactando cantadores e violeiros, ajudando-a na escolha do material. Não deixava de ser um desafio insólito para um ex-roqueiro, interessado por cantoria, mas sem maiores conhecimentos do assunto, na época. E Zé Ramalho se atirou ao trabalho de corpo e alma, com resultados surpreendentes:
- De repente, foi como se acordasse alguma coisa em mim que já existia há muito tempo, mas que estava assim meio esquecida, adormecida. Comecei a perceber como era fácil se envolver com aquele pessoal todo, era como se eu já conhecesse aquilo tudo há tempos, o que num certo sentido era verdade, só que eu não me dava conta. Aí eu mergulhei mesmo, fiquei louco com a força daquilo tudo, principalmente o repente. O repente é uma coisa incrível, os repentistas são verdadeiros criadores na acepção da palavra, criando coisas complexas na hora, sem hesitar, no minuto, mesmo. Nem todo cantador é repentista, só alguns poucos, uma espécie de elite, porque é uma arte muito requintada. E são pessoas assim que têm uma cultura enorme, têm muitas enciclopédias e livros sempre informados de mitologia, geografia, história, tudo, porque num desafio têm que ser rápidos na resposta, têm de saber todos os assuntos.
- Aí eu fiquei de tal forma apaixonado, que quando acabou o trabalho da Tânia, continuei por conta própria, saí pelo serão ouvindo, gravando, ganhando a amizade dos cantadores a ponto de, daí a um pouco, já estarem vindo na minha casa, fazer cantoria. E isso, pra mim, não teve nenhum conflito com o que eu gostava antes, com o que eu fazia. Porque eu acho que, se alguma coisa é sincera e bonita, em música, então não importa de onde veio. É claro que o rock e os Beatles expressavam uma realidade deles, lá, mas aquilo me tocou a sensibilidade, então não havia porque jogar isso fora, já estava dentro de mim. Mas a força do repente foi tamanha que, se algum lado meu saiu perdendo nesse confronto, foi meu lado antigo, de roqueiro.
Quem conhece o mundo do repente e da cantoria, logo liga o trabalho de Zé Ramalho ao de outro Zé, o Limeira, o Buñel do sertão, poeta alucinado, surrealista. Foi certamente de Zé Limeira que Zé Ramalho tirou a inspiração para seus 'a cor desse olho é denso negror/é como o bafejo da Hidra de Sal/dragões do meu sono que rasgam anúncios da televisão' e 'meu treponema não é pálido nem viscoso/os meus gametas se agrupam no meu som'. E ele não nega:
- De todos, pra mim, Zé Limeira é o maior, o mais impressionante. Tem gente que acha ele absurdo, engraçado, mas eu não vejo graça nenhuma na poesia dele: para mim é tudo muito exato, muito real, é o sertão mesmo. Tenho depoimentos de violeiros muito antigos, que tocaram com ele, descrevendo sua figura: era impressionante, muito louco, uma coisa muito bonita. Imagine, lá nos anos 40, um preto enorme, quase dois metros de altura, com os dedos cheios de anéis, cheio de colares, lenço vermelho, um chapelão, andando a pé, porque ele só caminhava, não usava transporte nenhum. devia ser uma coisa muito linda.
Alimentado pela síntese final, o encontro do Zé Ramalho urbano com o menino de Brejo do Cruz, o trabalho estava pronto. E, acreditando nele como nunca, Zé Ramalho desceu novamente para o Rio, disposto a 'romper com o mundinho de João pessoa, a família, os medos todos' e lutar por sua música. Depois de um ano difícil, afinal encontrou uma brecha, com substancial ajuda de Carlos Alberto Sion, produtor de seu disco. E, mais do que fé, tem força para continuar adiante.
- Acho que não vai haver nunca mais um movimento na música brasileira, mas não precisa. Não tem nem cabimento. Movimento é a cabeça de cada pessoa, e o fato dessas pessoas estarem aí trabalhando, mostrando sua música e sendo ouvidas apesar de todas as dificuldades.
E o fato de, hoje, existirem tantos nordestinos agitando na música brasileira mais atual, seria coincidência?
- Ah, não sei... O que a gente lá de cima tem é um sangue muito forte, muito rebelde mesmo, essa coisa de Lampião, de não se conformar, de querer romper com as coisas e suplantar os obstáculos. E depois a cultura, o som de lá é muito forte, mesmo, uma coisa muito inteira que só quem é de lá conhece realmente, porque foi muito deformada aqui pelo Sul. Talvez seja a soma disso que marque o trabalho de tanta gente de lá na música, hoje."

terça-feira, 5 de julho de 2016

Zé Ramalho Faz a Síntese do Nordeste - O Globo (1978) - 1ª Parte

Foi em 1978, no ano seguinte ao lançamento de seu primeiro álbum solo, que Zé Ramalho passou a ser conhecido em todo o Brasil. Havia algo diferente naquela voz personal, naquelas letras filosóficas, místicas e um tanto herméticas. Algo que chamava a atenção para um artista novo, dentre tantos nordestinos que invadiam o cenário da MPB.
Na edição de O Globo de 12/04/78, a jornalista Ana Maria Bahiana trazia uma matéria com Zé Ramalho, intitulada "Zé Ramalho faz a síntese do Nordeste":
"Olhos de fogo, rosto anguloso e maníaco, uma cabeleira enorme, dedos ossudos vibrando a viola, voz metálica: quem assistiu à estreia de Alceu Valença em teatro, aqui no Rio, há três anos, recordará muito bem a aparição/intervenção de Zé Ramalho da Paraíba às horas tantas do show desafiando o titular do concerto numa cantoria doida que partia de 'Edipiana nº 1' e acabava em 'Beija-Flor', 'Treme-Terra', 'Otacílio Batista", 'Zé Limeira', o que desse e viesse. Ameaçador. Intenso. Impressionante. Estranhamente, contudo, Zé Ramalho desapareceu logo depois, após uma rixa com Alceu em pleno palco, em São Paulo. Parecia mais uma careira promissora terminada antes de começar, vitimada pelas já históricas dificuldades do mercado brasileiro.
- Era uma tensão insuportável - Zé Ramalho recorda, hoje. - A gente estava em São Paulo numa casa bem atrás do aeroporto, era só hélice e turbina o dia inteiro, a gente não conhecia a cidade, só ficava o dia todo, sem perspectiva nenhuma, sem saber o que fazer. Porque aquela excursão tinha lá um monte de nome de gente organizando, promovendo, não é, mas era só nome, mesmo, só pela firma, porque quem fazia tudo era a gente mesmo, era divulgação, montar aparelhagem, tudo. Uma coisa desgastante, aflitiva. E eu estava cada vez mais chocado com a agressividade da coisa toda, o clima de competição, uma coisa desesperada. Aí uma noite, no palco mesmo, em vez de fazer meu número, que era 'Jacarepaguá', me deu vontade de cantar 'Vila do Sossego'. Ficou um clima estranho, o Alceu se zangou, houve violas quebradas, mas nenhum escândalo. As pessoas acharam que era do show. E eu voltei pra Paraíba, pra pôr minha cabeça no lugar, juntar os pedaços.
Hoje, Alceu canta a violenta 'Vila do Sossego' em seus shows, como homenagem ao companheiro. 'Em seus papiros Papillon já me dizia/ que nas torturas toda carne se trai/ e normalmente, comumente, fatalmente, felizmente, displicentemente o nervo se contrai/ com precisão'. E Zé Ramalho da Paraíba estreia hoje enfim em disco - pelo novo selo Epic, o 'progressivo' da gravadora CBS - e, em concerto até domingo, no Teatro Tereza Raquel. Curiosamente, cercado já, por muito falatório tipo expectativa, e a escolha, pelos leitores do Jornal de Música, como revelação de compositor de 1977.
- Não lamento nada do que fiz. Acho que faria tudo de novo, inclusive os erros. A palavra mais importante, pra mim, é síntese. Fiz uma síntese dos erros, e isso foi muito bom. Eu não acho ruim que as coisas sejam difíceis, batalhadas. Se fosse fácil, menina, já viu que ia ter de qualquer um aí se achando o máximo, mandando ver. Tem de ser duro, mesmo, porque isso é que faz teu trabalho crescer, faz você ver se tem valor mesmo, se acredita no que faz.
A história de Zé Ramalho da Paraíba é tão estranha e intensa como sua música - e, como sempre, a explica. Na sua música, os sons vêm expresso do sertão, secos e incisivos, mesmo quando interpretados por guitarras ou sintetizadores. E as letras causam espanto para quem não conhece a maravilha do repente, fonte onde Zé Ramalho bebe com frequência e humildade. São martelos, mourões, sextilhas, quadras - rigorosamente alucinadas como é a melhor poesia do sertão, e urgentemente contemporânea. Dizendo, por exemplo: 'Se eu calei foi por tristeza/você cala por calar/calado vai ficando/só fala quando eu mandar/rebuscando a consciência/como meio de viajar/até a cabeça do cometa/girando na carrapeta/no jogo de improvisar ('Avohai').
No entanto, não foi cantoria e repente que Zé Ramalho se lembra de ter ouvido com atenção, pela primeira vez, mas Beatles e Roberto Carlos. Morava então em João Pessoa, meados dos anos 60, estudando no Colégio Marista. O sertão de Brejo do Cruz, onde nascera, a 3 de outubro de 1949, parecia uma lembrança opaca, distante, uma fotografia.
 - Meu pai, eu nem conheci. Morreu afogado num daqueles açudes do sertão quando eu tinha uns dois anos. Dizem que não fazia nada, era um seresteiro, um boêmio... A figura forte, pra mim, ficou sendo meu avô, que foi até lá em Brejo do Cruz e tirou a família toda daquela situação de pobreza. Tirou mesmo, saiu puxando, retirante mesmo, em pau-de-arara. Levou a gente primeiro pra Campina Grande, onde ele era fiscal, sabe fiscal de porteira como eles chamavam, ficava na fronteira controlando quem entrava e quem saía. Teve uma morte linda, meu avô. Parecia um rei. Morreu assim na cama, na casa que ele construiu, com todos os filhos e netos e bisnetos em volta, eu fiquei assim comovido de tanta beleza, de ver uma pessoa indo adiante tão bonito, tão sereno, olhando em volta e vendo que tudo aquilo tinha saído dele, toda aquela gente. (É a figura já mítica do velho fiscal de porteira que abre o álbum de Zé Ramalho, evocado na canção 'Avohai': 'Um velho cruza a soleira/de botas longas, de barbas longas, de ouro o brilho do eu colar/na laje fria onde quarava sua camisa e seu alforje de caçador/oh meu velho e invisível Avohai').
De Campina Grande para João Pessoa e, lá, o Colégio Marista, o rádio, os Beatles, os Rolling Stones e Roberto Carlos, as primeiras posições no braço do violão.
- Eu comecei a querer fazer música por causa do rádio, do que eu ouvia no rádio. E o que eu ouvia era isso, era principalmente Beatles e a coisa toda da Jovem Guarda. Beatles, então, foi demais. A primeira vez que eu ouvi Beatles, fiquei impressionado, nunca tinha ouvido coisa tão forte, tão bonita.
E aí, os inevitáveis conjuntos para festa, baile, clube, boate: os Jets, os Demônios. 'Era uma cópia mesmo, sabe, o que a gente queria era tirar a música igualzinho ao disco. Mas foi muito bom como treinamento, como aprendizado profissional.' "

(continua)

 

segunda-feira, 4 de julho de 2016

Belchior - Jornal de Música (1975)

Em 1975 o Jornal de Música, que vinha encartado na revista Rock, A História e a Glória trazia uma matéria com um promissor compositor cearense, que já desenvolvia um trabalho de peso, e estava prestes a estourar em todo o Brasil com um disco que virou referência para toda uma geração, e que até hoje, 40 anos após lançado, ainda é cultuado e item em várias discotecas básicas: Alucinação.
A matéria, que tem por título, "Desobedecer sempre, não reverenciar nada", é assinada por José Márcio Penido:
"Tem hora que ele parece Omar Sharif. Talvez por causa do bigode. Impossível, porém, imaginá-lo numa mesa de bridge. Ou, bem canastrão, suspirando pela funny Barbra Sreinsend. No Ceará não tem disso não. E foi lá que nasceu Antônio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes.
O nome quilométrico sugere berço rico, de latifundiário. Falso. Filho de lavrador, 13º  de 23 irmãos, Belchior (pronuncia-se Belquiôr, rimando com por favor) procede, como gosta de frisar, de uma 'família pobre mas honrada'. Resultado: começou a trabalhar cedo. Como era um dos meninos mais afinadinhos do coral da matriz de Sobral, logo foi requisitado por um tio para entoar melodias mais profanas nas feiras da cidade.. Ele solava, o tio recolhia a grana.
Quem não nasce rico tem que estudar. O pai de Belchior também pensava assim. E matriculou o filho no colégio dos padres. E pronto: está pintando o cenário artístico-musical, ou, se preferirem, as origens do moço. De um lado a igreja - o canto gregoriano, simplíssimo e lindíssimo, ponte sonora entre os homens e Deus. De outro, a barulheira formada pelos violeiros e cantadores do sertão, presentes em cada esquina da infância e da adolescência de Belchior, mais tudo o que despejavam os auto-falantes das quermesses que desde cedo o fascinaram, um bolo sonoro onde Billie Holliday cantava logo depois de Caubi Peixoto.
Música pode ser muito bonito mas não enche barriga. O pai de Belchior e sua sabedoria. E o filho na escola, aprendendo coisas de encher barriga. Ainda bem que gostava. Principalmente dos poetas. E como na música não se importava em saber se a tal de Billie Holiday tinha nascido no Massachusetts ou no Chelsea, deliciava-se sem preconceitos com Alfred de Musset e Casimiro de Abreu, Alfred de Vigny e Castro Alves. O cérebro atento às palavras, seu encadeamento, suas possibilidades e sua beleza. As palavras ganhando Belchior, irremediavelmente, pro resto da vida.
O que aconteceu na vida dele entre os 15 anos e os 29 que tem hoje, eu não acho muito importante contar. Aquela coisa de: saiu de Sobral, foi pra Fortaleza, trambicou, estudou, conheceu gente, sacou coisas, amou, foi mal-amado, os sopapos que a gente dá e leva na vida, desceu para o sul, Ipanema e Bexiga, Rio e São Paulo, madrugadas, aquela mulher, tudo mas tudo mesmo, a vida ameaçando virar letra e música em sua já meio cosmopolita, mas ainda e sempre cearense cabeça. E virando.
Belchior é um compositor novo, bom e importante. Eu dou os tópicos e ele fulmina. Vamos lá. A partir daqui, tudo aspas.
Ser artista -  É fundamental para o artista desobedecer sempre, não reverenciar nada nem ninguém. Nordestino é igual qualquer outro cara. As pessoas é que acham que pelo fato de você nascer no Nordeste fica obrigado ao chapéu de couro e ao pirão de leite. Isso é uma nobreza às avessas, um padrão de nordestinidade muito furado, visão turística e folclore. Eu sou um homem do meu tempo. Eu já achava, e acho agora, que não há condições de fazer um trabalho artístico com eficiência sem rebeldia, sem violência, sem desafiar a porra dessas convenções. Ser uma pedra de contradição a todo instante.
Marginalidade - Até hoje as pessoas dizem: ele é músico mas também é professor. Ele, compõe, mas estuda também. Quer dizer: o cara podia fazer a música dele, a loucura dele, mas tinha que dar uma satisfaçãozinha pro sistema, né? Eu achava, e acho, que o artista tem de ser marginal, estar por fora, contra, na margem. Pra ser eficiente, o artista tem que ser uma pessoa rebelada, renegada, revoltada.
Qual a marca da tua música? - As palavras. Fundamentalmente minhas músicas mostram minhas palavras, cantadas. Novas? Velhas? As palavras novas são as mais velhas dentro da gente.  As que falam mais radicalmente do que é humano. Não esconder o que se passa dentro da gente é sempre uma grande novidade. Eu não sei o que minhas músicas querem dizer. Sei o que dizem.
O comércio - Rapaz, eu me sinto decepcionado. A indústria do disco é essa tristeza que todo mundo conhece. É um absurdo um disco custar 50 cruzeiros. É constrangedor que um grande número de pessoas não possa ouvir o que precisa ser ouvido. Televisão. Quem não aparece tá ferrado? Não. Não sejamos tão radicais. Não existe uma coisa que sem ela você fique morto - a não ser viver mesmo, né? Eu levo meu violão e meu canto pra todo lado. É só chamar que eu vou. Você pode não estar no no jornal e estar na cabeça das pessoas. Não pode é tirar o corpo fora, malandro.
Ser jovem hoje - Existe uma dificuldade enorme de poder dizer e cantar com clareza tudo que é preciso ser cantado e dito. A juventude está ofendida, humilhada, dilapidada. Foi-lhe negada o dom  da palavra. Vivemos um tempo negro. Agora, por outro lado, é também uma geração com uma força de resistência incrível, capaz de transformar tudo isso em explosão, em mudança, em força. Não dá pra segurar sempre. Não dá pra sangrar sempre. Porque falta sangue.
O risco - Não há condição de criar sem risco. Sem pôr a vida a perigo.
Profissional - Mais tenho morrido de música do que vivido.
Fagner, Cirino, Rodger & Teti, Ednardo, Petrúcio Maia,, Amelinha, Fausto Nilo - São os cearenses que vêm? - Pode até ser. Mas fique você sabendo de uma coisa. Temperamento de cearense é muito sarcástico, irônico, anárquico. Cearense não é muito de partido, clubes, igrejas, curriolas. Nunca gostei desse lance de dar nome em função da geografia. Quando o Walter Silva produziu o disco do 'Pessoal do Ceará' (LP Continental) eu discordei de várias ideias. Caí fora. Entre outros motivos, eu achava o nome folclórico, diminuía a coisa. O que eu entendo por raízes é uma coisa amplíssima, é tudo que tá dentro de mim, não interessa de onde veio.
Os anos setenta (Belchior insistiu demais em falar sobre os anos setenta. E toma aspas) - Em 68 eu entrei para a universidade, começou outra barra. E o que havia no ar? Uma maravilhosa rebeldia universal contra todos os poderes paternos, maternos, políticos, partidários, universais, culturais, escolares. Era um levante encabeçado com grande força e beleza pelos jovens. E eu me comovia - era um deles. Os hippies pregavam: faça o amor, não faça a guerra. Porra, isso é um trabalho, uma coisa a construir com as mãos. Mas não deixaram. O sistema transformou isso em grana. Pegou nossa liberdade e deu-lhe uma bolacha. O rei da grana, e dono do mundo, pegou tudo isso e viu a possibilidade e transformar tudo em merda. Não deixaram a gente pagar a ideia e botar em prática. Ninguém deixou chegar na prática.
Que te parece a ideia de um desses malucos chegar um dia à Casa Branca? - Eu acredito que ele não vai chegar até lá. Todo mundo sabe que, se chegasse, as coisas mudariam. Mas ninguém quer mudar porra nenhuma. Como disse o Mick Jagger um dia desses, existem três forças muito poderosas nesse mundo: a igreja, o exército e o dinheiro. Todos misturados. Interpenetrados. E poderosíssimos.
O novo. O que é o novo? - É o que interessa sempre.
Gente fina - Marcus Vinícius e Rogério Duprat
Para quando é a explosão? - Não são as coisas que explodem. É agente que as faz explodir.