A Revista do CD nº 1, de abril de 1991, falava sobre o lançamento de mais um disco de João Gilberto, e trazia o seguinte depoimento do maestro Júlio Medaglia:
"Ouvi João Gilberto pela primeira vez em 1959, durante férias na cidade de Franca, no interior paulista. Percebi que naquele som havia uma mensagem cultural nova, sobretudo compreendendo a fase que a música brasileira atravessava: o baião, a sanfona, o samba-canção abolerado, os vozeirões de Cauby Peixoto e Dalva de Oliveira.
Nesse contexto, João Gilberto representava a antivoz, a antiorquestração, o antiarranjo. Sua música era concentrada, de uma economia astronômica: dois ou três acordezinhos aqui, uma frasesinha de violino ali. O Samba de Uma Nota Só resume essa economia de elementos. Ele buscava a música pura, sem enfeites ou artifícios além da expressão enxuta, colocada à flor da pele. A ordem era diminuir as notas e aumentar a tensão. Não havia desperdícios. Essa foi a mais fina música da câmara que se fez no Brasil. E acho também que que a Bossa Nova foi mais cool do que o cool jazz. Embora fosse influenciado pela música americana, os músicos de lá quase não conseguiram reproduzir aquele nosso som. É que os músicos americanos já não tinham o estado de espírito necessário para chegar àquele despojamento absoluto. Mesmo que a Bossa Nova tenha assimilado componentes do jazz americano, João Gilberto usou tudo de uma forma brasileira.
Na verdade, a ideia da erudição, entendida como aperfeiçoamento da técnica, está presente na obra de João Gilberto. Tendo convivido com ele, sei que consome seu tempo exercitando formas de executar sua voz, o seu equipamento sonoro e vocal, aperfeiçoando cada vez mais o jeito de colocar palavras, letras, sílabas, até atingir uma expressão muito sutil. Passa dias e noites trabalhando a mesma música, extraindo novas sonoridades do violão. Lembro que uma vez ele estava tocando para mim Foi na Lapa que Eu Nasci... De repente parou e disse: 'Você notou que aqui a segunda corda não se ouviu bem?' Eu não tinha percebido nada. Devia ser uma diferença de um milésimo de decibel.
João Gilberto é um pesquisador em permanente aperfeiçoamento da sensibilidade. Se ele quisesse, por exemplo, empostar a voz, poderia cantar à maneira Silvio Caldas. Canta concentrado por opção. E como ocorreu com Mozart, quanto mais João simplifica sua música, mais fica difícil de tocá-la.
Quando comecei a tocar violão, aprendi os chamados acordes perfeitos: dó maior, fá maior, sol maior, correspondentes à primeira, à segunda e à terceira posições. Com tais acordes básicos de uma harmonia, teoricamente seria possível tocar tudo. Só que, com a Bossa Nova, eles não eram mais usados. Todos os acordes tornaram-se verdadeiros 'cachos' sonoros, enriquecendo as harmonias, permitindo novas modulações, influenciando todos os músicos brasileiros. A música de João Gilberto possui essa refinadíssima qualidade, um elevadíssimo nível de concentração de elementos e sofisticado tratamento sonoro."
Nenhum comentário:
Postar um comentário