Palavras Domesticadas

Palavras Domesticadas

sábado, 31 de março de 2018

The Beatles (Álbum Branco) - Um Disco Controvertido

O disco que ficou conhecido como Álbum Branco, de 1968, é um álbum que apesar do bom resultado final, foi gravado num  clima de grande discórdia pelos Beatles. Apesar de ser um álbum duplo, o que leva a entender que havia uma grande produção musical, e portanto, que os quatro integrantes estivessem numa fase de grande criação coletiva, a verdade é que a banda estava bastante dividida, e o clima de união não existiu no estúdio. O núcleo mais criativo do quarteto, a dupla Lennon/McCartney praticamente não trabalhava mais em dupla. Lennon estava cada vez mais envolvido com a heroína, e seu envolvimento cada vez mais próximo com Yoko, o levou a praticamente não se envolver com a gravação do álbum. A ausência do empresário Brian Epstein, morto no ano anterior, também ajudou a causar uma ruptura entre John e Paul, já que os dois não entraram em acordo com relação à gestão dos negócios da banda. Enfim, o clima estava péssimo.
Nos anos 80, a revista SomTrês lançou uma série de revistas-poster dos Beatles, cada uma contando a história de um álbum da banda. No edição sobre o Álbum Branco, esse foi o texto que acompanha o poster, que media 1,10 x 0,90:
"- Ali não há nada de música dos Beatles (...) É sempre John e a Banda, Paul e a Banda, George e a Banda... E eu gostei muito de trabalhar assim.
A declaração, referente ao chamado Álbum Branco, é de John Lennon. Foi durante uma entrevista, anos depois do lançamento do LP, primeiro álbum duplo dos Beatles. Era também o LP de estreia do selo Apple que, até então, só havia editado o compacto 'Hey Jude'/Revolution', cerca de três meses antes.
Tão controvertido quanto os trabalhos anteriores (Sargent Peppers, Magical Mistery Tour), o Álbum Branco, como ficou conhecido) foi gravado de maio a outubro de 1968. As gravações não foram muito tranquilas e já prenunciavam o fim: começavam as crises que levariam à ruptura de um dos maiores fenômenos da música contemporânea.
Poster que acompanha o disco
Chegou a acontecer mesmo uma separação dos Beatles, pois Ringo deixou o grupo, aborrecido com as críticas de Paul a seu estilo de tocar. Alguns dias depois, porém, ele voltou, pois os três pediram, repetindo incessantemente que ele era o melhor baterista do mundo. Mas os problemas não acabavam aí. Desde a morte do empresário Brian Epstein, ocorrida no ano anterior, que o grupo estava meio órfão. Paul estava atuando como líder, mas isso não era suficiente e estavam todos baratinados. Sem Brian, também a parte financeira da Apple estava mal administrada. E o pior é que quatro parceiros musicais se viram na obrigação de atuarem também como sócios de uma empresa. E nisso, eles não eram bons. Mas mesmo sobre a contratação de um novo empresário para a firma houve divergências: Paul queria seu futuro sogro, Lee Eastman, e John, Allen Klein.
O fato é que na hora de gravar e editar o LP ninguém estava muito entusiasmado, mas havia um contrato a cumprir com a EMI. O resultado é bem diversificado, mas em termos de qualidade, é homogêneo. E apenas reforça o que já sabemos: só gênios podem conseguir que um trabalho desleixado resulte num produto do nível do Álbum Branco.
A diversidade das faixas também atesta a genialidade dos Beatles: conseguem passar do rock pesado ('Helter Skelter') às baladas ('Blackbird' e 'Mother Nature's Son'), via Hollywood ('Good Night') em contraste com a loucura de 'Revolution 9'.
John e Yoko
Foram gravadas cerca de 40 faixas, a maioria das quais, composta durante a viagem à Índia, quando estiveram com Maharishi Mahesh Yogi ('homenageado' por Joh Lennon em 'Sex Sadie'). Algumas foram, então, eliminadas, entre as quais, 'What's the New Mary Jane', que seria lançada em compacto, mas continua inédita até hoje. Restaram 31: 4 de George, 1 de Ringo e 26 assinadas por John e Paul. Apenas assinadas, pois não compuseram juntos (com excessão de 'Birthday'). Em geral, o autor é aquele que faz os vocais principais. Na verdade, cada um fez o que quis nesse disco. E, como sempre, acertou.
A capa branca é uma compensação à parafernália dos últimos trabalhos e traz apenas o título do LP em relevo. Dentro, os títulos das faixas e uma foto preto e branco de cada um. Como encartes, as mesmas fotos em cores e um poster com uma colagem que já foi chamada de 'versão visual de Revolution 9'. Do outro lado do poster, as letras. É ver, ouvir e conferir mais uma vez. Beatles 4 ever. "

quarta-feira, 28 de março de 2018

Djavan: "Minha Música É Minha Cabeça" - Revista Pop (1979)

Djavan se lançou na música nos anos 70, primeiramente participando de trilhas de novelas, e também se destacando no Festival Abertura, da Globo, em 1975, ao se classificar em segundo lugar com "Fato Consumado". Em 1976 lançou seu primeiro LP pela Som Livre, já mostrando uma musicalidade diferente, com muito balanço e suingue, além de escrever letras bem criativas. Mesmo assim, só viria a gravar seu segundo disco, "Cara de Índio", em 1978. Na edição de março do ano seguinte, a revista Pop trazia uma matéria com o músico, que começava a chamar a atenção e fazer sucesso. A matéria é assinada por Leo Correa, e traz o título "Djavan: 'Minha Música É Minha Cabeça' ":
Cara de Índio está fazendo sucesso. A música, tema da novela Aritana, da TV Tupi de São Paulo, é também o carro-chefe do disco que marca a estreia de Djavan Caetano Viana na gravadora EMI-Odeon.
Para Djavan, o sucesso de Cara de Índio é consequência de um pensamento que ele sempre defendeu: Não há distinção entre índios e nós, o povo em geral. 'Do meu ponto de vista', diz ele, 'estamos todos diante da mesma situação, isto é, cercados.' Na letra da música, ele procura deixar claro esta identidade comum: 'Nessa terra tudo dá, terra de índio/ Nessa terra tudo dá, não para o índio/ Apesar da minha roupa, também sou índio'. Mas, quando a gente pergunta se ele se inspirou nas discussões sobre a emancipação do índio, tão em moda ultimamente, Djavan nega: 'Fiz essa música há mais de dois anos, porque é um lance que sinto desde garoto. Para mim, isso que está acontecendo é apenas uma gota d'água diante do problema real, muito mais amplo'.
Alagoano de Maceió, Djavan foi considerado um sambista na época em que gravava na Som Livre. Este seu segundo trabalho revela o lado nordestino de sua música, em faixas como Alagoas e Estória de Cantador, esta última baseada na tradição e na linguagem do cordel. Ele demonstra ser também um bom cantor e compositor romântico da música na bela e sensual Álibi, que Maria Bethânia gravou com honras de faixa-título. Na área do samba, suas harmonias e divisões situam-no no samba numa linha progressiva, ao lado de Gilberto Gil, Jorge Ben, Paulinho da Viola e outros renovadores do gênero.
Participando do Festival Abertura, em 1975
Aos 29 anos de idade (e dez de batalha artística), Djavan acha que existem muitos outros caminhos a explorar. 'Tenho um som essencialmente nordestino, com todas as influências que recebi na região. Coisas que vão de Luiz Gonzaga a Lupiscínio Rodrigues, Angela Maria, e por aí afora. Mas também tive meu grupo de rock, lá pelos 18 anos. Chamava-se LSD (explica, rindo, que o nome se referia a luz, som e dimensão). Quem não cantava música dos Beatles naquela época? O jazz veio depois, junto com a Bossa Nova. E comecei a compor em cima de tudo isso, meio de brincadeira, até que resolvi ganhar o mundo.'
No tempo da Som Livre, Djavan gravou trilhas de novelas, sempre cantando músicas de outros compositores. Em seguida veio o festival Abertura, onde ele se classificou em segundo lugar, com Fato Consumado, e gravou um compacto duplo, bastante executado. Seu primeiro LP mostrava sua preocupação com o lado instrumental. 'Explorei muito o violão, e o pessoal achou interessante. Mas aí fiquei sentindo, sem querer admitir, que isso não era o que eu queria, não era só aquilo que eu tinha pra mostrar. Sou uma pessoa mais inconstante, mais circunstancial.'
Grandes mudanças de lá para cá, consequência de seu amadurecimento pessoal e artístico, mostram hoje um compositor preocupado com músicas que mostrem também o cantor, não apenas o instrumentista. Hoje, Djavan mora em Vila Isabel, tranquilo bairro carioca da Zona Norte. Lá ele encontra o clima das peladas de rua e das conversas de botequim às quais se habituou durante sua infância, em Maceió. 'Hoje em dia as pessoas conversam muito pouco.', ele se queixa. 'Acabou aquele negócio de chegar na esquina, trocar ideias, saber o que as pessoas estão pensando. E eu preciso saber disso, minha música é isso. As coisas estão aí, pelo ar. Quem chegar primeiro pega.'


domingo, 25 de março de 2018

Gilberto Gil Fala de Refavela

Lançado em 1977, o disco Refavela, de Gilberto Gil, é um dos melhores trabalhos de sua carreira.  Trata-se de um álbum em que Gil revela toda uma influência não só da música africana, a raiz da música negra mundial, como também da black music e do movimento Black Rio, que vivia seu auge naquele período. Em 2012, ano em que completou 70 anos, Gil foi homenageado com uma série de fascículos, denominada Coleção Gilberto Gil 70 Anos. Sob pesquisa editorial e textos do pesquisador Marcelo Fróes, a série traz depoimentos do músico sobre seus principais álbuns, e o volume 8 da série destacava o disco Refavela. Abaixo segue o texto do citado fascículo:
" 'Quando eu fiz 'Refazenda' com essa densidade da revisita e da retomada, eu quis levar o 're' adiante e aí o segundo estágio foi o 'Refavela' - com a coisa da revisita ao mundo negro', lembra Gilberto Gil, 35 anos depois. 'Eu queria aprofundar a questão da revisita... e aí a oportunidade foi com a África e o festival na Nigéria, que foi uma coisa enorme! Na volta concluí que, depois da fazenda haveria a favela - ambos territórios importantes, periféricos ao centro da civilização brasileira. A fazenda era um canto, a favela era outro. O conceito já estava praticamente estabelecido, mas a coisa na África foi fundamental - porque a vila olímpica que se construiu para abrigar os 50 mil representantes que vieram do mundo todo era como os blocos do BNH aqui. Havia essa ligação direta. Havia em mim um gosto por esse trabalho conceitual, unindo elementos da sociologia, da política e da antropologia, tudo isso num nível popular... num nível pop', define.
Gil foi convidado a participar do 2º FESTAC - Festival Mundial de Arte e Cultura Negra - que aconteceria por cerca de um mês a partir do final de janeiro de 1977 em Lagos, na Nigéria.
Ainda no final de 1976, quando foi convidado, Gil não só aceitou como também montou uma banda especialmente para apresentar-se ao vivo no evento ´com Perinho Santana (guitarra), Cidinho (teclados), Rubão Sabino (baixo), Djalma Correa (percussão) e Robertinho Silva (bateria). 'Quando Robertinho Silva soube que eu ia pra África, ele bateu lá em casa: 'Quem vai sou eu! Não quero nem saber!' Aí eu respondi: 'Mas rapaz, você tem seu trabalho com Milton (Nascimento)...' Ele já havia falado e disse 'eu vou pra África com você!', lembra Gil. 'A ideia de fazer um novo disco surgiu na Nigéria', lembra Gil.
'Quando voltamos, Robertinho reintegrou-se à banda de Milton e chamamos Paulinho Braga para gravar conosco, mas mesmo assim Robertinho ainda voltou pra que gravássemos um compacto daquela banda que fora à Nigéria', historia o autor, que participou como co-autor e músico das duas faixas registradas pela Brazil Very Happy Band para a Polydor em maio de 1977. Antes, porém, Gil e sua banda - com Robertinho substituído por Paulinho na maioria das faixas - entraria no novo estúdio de 16 canais da Phonogram para registrar o álbum 'Refavela'.
Era época do movimento Black Rio, com o funk começando por aqui e Gil quis aproveitar a maré - começando por uma controvertida versão do Samba do Avião de Jobim. 'O disco era pra isso, para registrar os 'aforismos' que havia na época - como era juju music de 'Balafon' e os blocos afro-baianos de 'Ilê Ayê', lembra.
'Era Nova' já existia no repertório de Gil, quando fora feita para Roberto Carlos - que não a gravou -, enquanto que 'Sandra' tivera origem na prisão de Gil por porte de maconha durante a passagem dos Doces Bárbaros por Florianópolis em julho de 1976. Embora Sandra fosse o nome de sua mulher à época, e que a mesma tenha sido um discreto personagem na letra da música, como foram as enfermeiras do sanatório em que Gil foi internado por ordem da Justiça, Sandra e Andréa eram duas amigas tietes de Caetano e Gil. 'Refavela', 'Aqui e Agora' e várias outras foram compostas durante a viagem  à Nigéria. 'Eu trouxe um balafon típico da região do Golfo da Guiné e fiz 'Balafon' ', lembra-se Gil, que ficou feliz de ter o amigo Roberto Santana - dos velhos tempos de Salvador - na produção do novo álbum. 'Refavela' foi gravado entre o final de março e o final de abril de 1977, quando também foram registradas as novas músicas 'Sala do Som' e 'É', além de 'Músico Simples' (de 1974). Todas as três acabaram ficando de fora do LP, mas foram finalmente lançadas pela Universal Music no CD 'Satisfação' de 1999.
'Quando eu fiz 'Refavela', já sabia que era a segunda parte de uma trilogia que eu iniciara', comenta Gil. 'Mas eu tinha consciência de que a terceira parte não seria 'Refestança', complementa. Gil refere-se à turnê relâmpago que realizou com Rita Lee e seu grupo Tutti Frutti em outubro de 1977, e que rendeu o disco ao vivo 'Refestança' naquele Natal. É que a turnê 'Refavela', iniciada pouco após o lançamento do LP de Gil em maio de 1977, acabou sendo interrompida por falta de apoio logístico. Para alcançar o interior do país com um pouco menos de desconforto, Gil desejava adquirir um ônibus monobloco usado e solicitou que este custo fizesse parte do tour support pago pela gravadora, mas não foi atendido. Gil resolveu bancar o ônibus do próprio bolso e pediu rescisão contratual à Phonogram.
Gil não sabe se teria ido para a Warner caso a Phonogram lhe tivesse apoiado na aquisição do ônibus, então é óbvio que a saída do amigo André Midani da presidência da gravadora na mesma época acabou pesando. Midani deixara a Phonogram para ser o primeiro presidente da Warner no Brasil, quando a mesma aqui se instalou em 1977. O convite para integrar o cast da nova gravadora incluía nas luvas o reembolso do valor dispendido particularmente por Gil no ônibus da turnê de 'Refavela'. Lendas da MPB. "

sexta-feira, 23 de março de 2018

Aldir Blanc e os Deveres de Poeta e Cidadão - O Pasquim (1979)

Em sua edição de 30/03 a 05/04/79 o jornal O Pasquim em sua coluna "Todo Ouvidos", assinada pelo crítico Roberto Moura, falava do grande letrista e cronista Aldir Blanc, também colaborador do jornal, onde assinava ótimas crônicas. É uma bela análise sobre o grande mestre das palavras e seus parceiros na época, João Bosco e Paulo Emílio:
"Não, não foi uma grande entrevista e valeu exclusivamente pelo talento dos entrevistados. Pela própria posição vanguardista do suplemento Folhetim, da Folha de São Paulo, no contexto da imprensa brasileira, seria previsível que extraísse mais - pelo menos polemizando temas óbvios - da linha de passe formada hoje na MPB por João Bosco, Aldir Blanc e Paulo Emílio. Este último, aliás, mais tímido e menos conhecido, teve o seu grande talento e imenso potencial praticamente desprezados e, em consequência, Aldir comandou a linha de passe e deixou mofando os goleiros-entrevistadores como um centeralfe do passado. Foi o dono da bola e algumas de suas observações parecem iluminar todo este período dito das trevas na música brasileira, o que o letrista e contista veementemente repele e no que apoio.
Não, não, Folhetim. Esses meninos não vão 'ainda dar o que falar'. Vêm dando há anos (e, no caso de Aldir, seria conveniente lembrar sua participação no MAU, seus intermináveis festivais e seu definitivo Amigo É Pra Essas Coisas) e nem tão meninos são. Eu diria até que, do alto de seus trinta e poucos (somando os três deve dar um século de inspiração), estamos diante de três artistas absolutamente maduros, dos quais se sabe o que esperar e com os quais tudo é lícito discutir, sem recair no ramerrão da ingenuidade de artistas em formação.
É possível que eu e Aldir desafinemos em muitas coisas mas será sempre muito maior o números de coisas em que estamos permanentemente acordes - e sem trocadilho. Por exemplo, quando ele cita o semi-anonimato das coisas de Caymmi e a despreocupação absoluta do compositor em relação a isso como um ideal a ser perseguido. Recordo que, há uns dois anos, em entrevista às páginas amarelas da revista Veja, Caymmi declarava pretender compor 'uma música que se perdesse no ouvido do povo, que se tornasse uma coisa tão dele que ninguém mais se lembrasse de quem a fez'.
Aldir Blanc e João Bosco
De lá pra cá, citei esta frase algumas vezes (na verdade, me parece mesmo um padrão, assim como Carlitos está acima de Charlie Chaplin ou a Gioconda ultrapassou Leonardo da Vinci) e fico feliz de ver Aldir chegar à mesma conclusão por força de um raciocínio indiscutivelmente pessoal, pessoalíssimo: 'Bonito é ele, Caymmi, que fica lá, com aquela camiseta, aquele mar, aquele cabelo todo, enquanto numa gafieira qualquer você dança atraído pela música dele, mesmo sem saber que a música é dele. Esse é popular.'
A sutileza do pensamento de Aldir é que, ao mesmo tempo, ele não prega para o compositor, enquanto indivíduo, um comportamento passivo diante da sociedade e estabelece uma distinção que é simples (aliás, estas foram as declarações principais da entrevista e deveriam ter saltado para o título ou, no mínimo, para a abertura, que resultou um desastre). Quer dizer: 'a gente tem que compor paca, porque enquanto esta força estiver na rua, nós somos os compositores populares. Eu morro e o repertório continua, não tem jeito. Então, eu não tenho que reivindicar nada. A não ser como pessoa, mas aí já não é dever do compositor, e sim de qualquer sujeito que saiba que é uma pessoa política, né? Como tal, quero Anistia ampla e irrestrita, quero o meu dinheiro que é roubado paca, ainda hoje, pelas arrecadadoras, que não me pagam, por exemplo, teatro há dois anos. Agora, o que sou como compositor vai passar por cima disso tudo. E é claro que morrer de fome não é a glória, não. Chega desse tempo.'
Uma posição inatacável, tanto do ponto de vista estético (que não se escuda em ideologias para desculpar uma possível escorregadela) como do ponto de vista político (que não se furta a ter uma visão-de-mundo e externá-la sem receio, grupismo, oportunismo ou interesses menos nobres). No letrista e no cidadão, a mesma coerência que se verifica no contista, depois do lançamento, pela Editora Codecri, do original Rua dos Artistas e Arredores e seus personagens quase míticos a se moverem como doces fantasmas num habitat que - outro ponto de encontro entre o poeta e o crítico - nos é comum.
Outro reparo fundamental a uma espécie de consenso da inteligentzia nacional que Aldir Blanc faz dentro da maior lógica: 'na época do JK eu não faia música, eu era um garoto'. Esta frase conclui um argumento irrespondível sobre a discussão teórica imposta pela existência da Censura e por atividade artística desenvolvida apenas em eras mais amenas e favoráveis. Aldir explica que 'o outro lado que é tão falado, que poderia revelar talentos, eu desconheço. A situação tem uma hora que serve de capa para ocultar os falsos talentos. Então, discute-se como se nós conhecêssemos os dois lados da equação e eu não conheço.'
Baseado nisso, o que Aldir prega é o óbvio: que não se pode escolher a realidade em cima da qual se gostaria de trabalhar. O que é preciso é realizar alguma coisa, o possível, independente disso ser até, em determinadas circunstâncias, praticamente impossível. Este óbvio, porém, tem sido dificílimo de ser enxergado."

quinta-feira, 22 de março de 2018

Novos Baianos - Jornal Rolling Stone (1972)

Em sua edição de 15 de fevereiro de 1972, o jornal Rolling Stone, um marco na cultura alternativa brasileira, trazia uma matéria sobre um show dos Novos Baianos, acontecido no verão daquela ano no Rio . Na época, o histórico disco "Acabou Chorare" ainda não havia sido lançado, mas já estava sendo elaborado, e os músicos ainda moravam no apartamento em Botafogo, antes de se transferirem para o famoso sítio em Jacarepaguá. A matéria, intitulada "Novos Baianos: outra transação" é assinada por Joel Macedo:
"O que aconteceu na madrugada do último dia 16 no Teatro da Siqueira Campos foi de arrepiar. Os Novos Baianos e a Cor do Som transportaram a sua comunidade de Botafogo para o palco do teatro e fizeram o maior show que eu já vi no Brasil desde que eu me entendo por gente.
Apesar de D. Tereza Raquel com o apoio do empresário Paulo Lima cobrar 20 contos a entrada (10 para estudante, o que não é nada legal), à meia-noite, hora de início do show, as galerias do teatro já estavam lotadas. Grande parte do público de Gal resolve emendar e nem saiu do teatro em protesto contra o preço absurdo dos ingressos. Transações. Expectativa. Pepeu e Dadi entram no palco em penumbra e começam a acertar os ponteiros de suas guitarras. Moraes chega de manso e toma posição num banquinho. Baby e Paulinho Boca vão pra perto do microfone de voz. Quando Baixinho entra com seu bumbo verde-amarelo amarrado pelo pescoço, as luzes se acendem, e as guitarras, junto com o cavaquinho cheio de molho de Jorginho, começam a introduzir Brasil Pandeiro, a obra-prima exaltação de Assis Valente. Paulinho e Baby arrastam o vocal e a plateia desbunda.
Pepeu tinha seu amplificador a todo som e sambava com  a guitarra. Eu me lembro que a primeira vez que vi ele tocar, não entendi nada. Fiz crítica ao seu fraseado, achando grosso demais para o meu gosto, condicionado a anos por Clapton e Jeff Beck. O fraseado. Mas que touca é essa de fraseado. Com Pepeu é a malandragem em cima de uma guitarra. O Pepeu usa uma boina igual às toucas de meia dos moleques do morro. O Pepeu ri quando toca, se esbalda, solta tudo. O Pepeu balança, é o único cara no mundo que eu já vi sambar com uma guitarra na mão. E eu preocupado com o fraseado do Pepeu.
Quando um bando de desbundados entra num palco e toca Brasil Pandeiro, de Assis Valente, é sinal que uma coisa muito séria tá pra acontecer nos famosos 'rumos' da música popular brasileira. E que os Novos Baianos e a Cor do Som acabam de mostrar pra todo mundo, o caminho de casa.
O samba corria e Paulinho machucava seu pandeiro ao lado de Baby que bamboleava dengosa, merecedora dos maiores fiu-fius. Queiram ou não queiram, Baby Consuelo é a Rainha da Juventude Brasileira e não tem conversa. Baby arrebentando com a imagem da superestrela e curtindo tudo no maior relax. A plateia reagia como se estivesse em casa e aquilo parecia mais uma festinha íntima, que um concerto de entrada paga. Paulinho cantou 'eu estou apaixonado por você...' e arrancou suspiros da plateia feminina presente. E daí em diante tudo foi ficando cada vez mais bonito, e eu via bandeirolas por todo o palco, foguetes espocando e muitos cuscus e cocadinhas pretas. Teve uma hora que Moraes entrou de acordeom, Paulinho de maraca, e o encontro deles com as guitarras foi incrivelmente lindo como já estava sendo o encontro das guitarras com o alegre cavaquinho. Era um suingue alucinante e o som do rock nacional estava finalmente achado. E eu só não direi que se tratava de um samba-rock, porque os Novos Baianos também fazem dele um maxixe-rock ou um bolero-rock, música, enfim. O que aconteceu na histórica madrugada de 16 de janeiro  foi o encontro de várias culturas, a unificação de várias estreias e linguagens musicais, naquilo que daquele dia em diante passou a ser o som brasileiro do desbunde universal. Uma mistura de ponto de macumba com hard-rock, xaxado, baladas de Roberto Carlos, samba-enredo e muita queimação, da parte das tumbas, baterias, maracas, agogôs e pandeiros.
Paulinho Boca de Cantor
Paulinho Boca é a cara do novo ritmo, saltando com seu pandeiro como um jaburu elétrico. Paulinho é a mágica, a energia e o perfume do novo som brasileiro que pra dizer a verdade, não é novo, é sim, muito vivo e portador de grande antiguidade. E Herivelto Martins trazido à cena e o Bando da Lua com participação especial de Moraes e Galvão. A abelhinha zzummm... acabou chorare... eu sou amor... da cabeça aos pés... e depois foi Preta Pretinha enquanto corria a barca, um frevo rasgado que embarcou todo mundo nas águas do carnaval. Aí todo mundo brincou e pulou pelo palco e pelas arquibancadas do teatro. Era sugesta geral, Live, em pessoa. Gal Costa comandava um trenzinho na galeria e Waly Salomão não quis nem saber de se sentir recompensado por aquilo tudo - caiu firme na folia. Até o carnaval foi diferente. Dadi no seu baixo, contido e imóvel dava um leve toque de psicodelismo californiano na transação. Pepeu já não sabia mais se tocava ou entrava na dança e cada vez mais fazia os dois. O som todo foi uma brincadeira mas foi sério pra burro. E Brasil com suas loucuras e sua beleza não era mais uma crítica. Nem um simples folclore. Era uma verdade assumida com coragem e com muito orgulho. A voz da geral. A umbanda revolution que como linguagem não exige mais que CAIR NA PÂNDEGA!

terça-feira, 13 de março de 2018

Alceu Valença e Zé Ramalho - O Globo (1975)

Em sua coluna no jornal O Globo, de 28/08/75, o crítico Nelson Motta falava de Alceu Valença, um talento em ascensão na época. Projetado no Festival Abertura, da Globo, acontecido naquele mesmo ano, Alceu já era uma promessa de nossa música, fato que se concretizou ao longo de sua carreira. A matéria fala também de Zé Ramalho, que na época ainda era conhecido como Zé Ramalho da Paraíba. A matéria é intitulada "Alceu Valença: a descoberta (tardia) do danado de Catende", referindo-se a música "Vou Danado pra Catende", que Alceu defendeu no citado festival. Segue a matéria:
"Há muitos anos que Alceu Valença vem amadurecendo seu talento nos gostos amargos dos desinteresses, acomodações, fraudes e incompreensões. Agora o seu fruto começa a amadurecer, a ser notado pelo que Tárik de Souza chama com propriedade 'valor alimentício'. Também começa a tornar-se dourado, o que de certa forma também está atraindo os, digamos, 'fruticultores'. E até os vendedores de frutas. E está começando a chegar com seus sabores doces e amargos ao paladar das pessoas. No Teatro Tereza Raquel, ao lado de uma banda notável.
O primeiro impacto que me provocou Alceu Valença foi seu disco, lançado praticamente em segredo em novembro de 74. Depois, mesmo algumas opiniões respeitáveis que não viram importância em 'Abertura', reconheceram em Alceu uma personalidade original e poderosa. Seu 'Vou Danado pra Catende' representou o maior e mais instigante impacto numa mostra que contou com trabalhos expressivos de criadores da qualidade de Jards Macalé, Walter Franco, Ednardo e Jorge Mautner.
Por misteriosas caridades, Alceu foi (como ele diz) 'agraciado' com um 'Prêmio Especial do Júri', graças ao entusiasmo que despertou em um homem de agudo senso popular como J.B. de Oliveira Sobrinho.
Algumas vezes, depois de 'Abertura', alguns artistas me falaram com muito entusiasmo em relação ao trabalho de Alceu: Caetano Veloso, Gilberto Gil, Rita Lee, o próprio supracitado e ex-concorrente Jards Macalé.
Alceu conseguiu a loucura de unir os mais vivos e sanguinios sons dos cantadores de feira, dos cantos mouros e dos ritmos nordestinos às explosivas estruturas tecnológicas do rock. Em sua forma de se apresentar estão as posturas dos stars do rock, da mesma forma que as sonoridades e comportamentos musicais de sua banda.
A banda de Alceu Valença é um capítulo à parte. Mas dentro desse capítulo à parte, existe um dado muito especial: o violeiro Zé Ramalho da Paraíba - uma figura impressionante, um músico extraordinário.
Os que veem em Alceu as forças vitais que impulsionam loucuras em gente como Mick Jagger, certamente ouvirão o trabalho de Zé Ramalho com a devoção que Dylan inspira.
Calma. Não estou comparando Alceu e Zé Ramalho a Dylan e Jagger - o que horrorizaria os memorialistas da colônia. Alceu e Zé ainda estão no levantar do voo e a aproximação com os stars é para mostrar uma personalidade artística sanguínea e instintiva ao lado de reflexiva e emocionada. Então usa-se modelos conhecidos, reconhecidos e autenticados...
N.R.: Mas comparar a poesia de Caetano Veloso com a de Bob Dylan faria  Dylan igualmente feliz. Dylan escreveu numa contracapa sua que seu sonho era um dia cantar como João Gilberto. Daí... as pessoas aqui ainda se escandalizam... Mick Jagger acha Gilberto Gil um barato. E diz. E adoraria cantar com ele...
Numa época em que se discute frequentemente a mistura de rock feita no Brasil por um lado e opondo a isto o compromisso incondicional com o brasileiro, o que vem de fontes autenticamente populares, Alceu Valença começou a ser notado: o que vinha tentando em desespero desde 1968.
Passada a maldição dos sete anos (provavelmente um espelho quebrado...) Alceu volta ao Rio para uma temporada regular no Teatro Tereza Raquel. Por desinteresse e falta de informação (o que não é culpa só das pessoas), a primeira semana de Alceu foi desastrosa. Por duas vezes teve que suspender o espetáculo por falta de público.
Mas os poucos que assistiram se encarregaram de espalhar o poderoso e novo som que veio de Recife. E por sorte de Alceu, alguns dos poucos eram algumas das pessoas que mais influem na formação de uma opinião musical na cidade.
Contra a expectativa inquietante de pouco mais de mil cópias vendidas de seu LP, o diretor artístico da Sigla, Guto Graça Mello, investiu ainda mais na incerteza do talvez demorado mas inevitável sucesso de Alceu Valença.
Já na segunda semana o teatro recebeu bom público: tão bom que o empresário Benil Santos decidiu esticar a temporada por mais duas semanas. Ao mesmo tempo, a melhor imprensa musical - os de elogios mais econômicos - revelou ao público que finalmente, depois de uma espera relativamente longa,  um som poderosamente novo se oferecia aos ouvidos e cabeças gerais. E há sempre um grande entusiasmo na plateia de Alceu Valença e seu grupo. Já tem até groupies o cabra...
Zé Ramalho
O trabalho de Zé Ramalho da Paraíba  é um inacreditável blending dos blues arrastados de Dylan com as linguagens de  cordel dos cantadores de feira, dos contadores de estórias sem nome e sem lugar, dos observadores da vida e das pessoas. Tudo envolvido por uma contida inquietação.
(Walter Franco diz que há certos artistas que são como o cisne: quem vê nadando parece a paz flutuante, mas se a gente olha por baixo da água vê os pezinhos a mil...)
Zé Ramalho é meio isto. Intimista, intenso, um músico que está entre a fala e o canto, que no entanto corre em volta, entre as pausas e espantos.
O flautista de Alceu, por exemplo, chama-se Zé da Flauta. E tira do seu instrumento uma sonoridade agressiva e raramente ouvida em palcos cariocas. A não ser quando Yom Muniz está na banda, é claro. São os sons maravilhosamente mal acabados dos flautistas de ruas, mesclados aos sons novos e 'sujos' de Ian Anderson, por exemplo. Zé da Flauta não toca aquela flauta comportada de fundinho. Toca uma flauta ativa, nervosa, mal comportada, vigorosamente popular. Apesar de ser uma banda realmente de exceção (que leva ainda mais longe a proposta dos instrumentistas  dos Novos Baianos) há dois buracos importantes a serem referidos: a ausência de Lula Côrtes e seu tricórdio, instrumento de loucura que nas mãos de Lula grita os fraseados poderosamente originais. E outra é o volume do som, que dentro das possibilidades técnicas do equipamento, deve ser levado à confundência dos sons do rock, tornando assim, ainda mais forte a proposta de Alceu and Band.
Como dizia Emersom Fittipaldo na televisão...'eu recomendo.'... "