Palavras Domesticadas

Palavras Domesticadas

quinta-feira, 31 de janeiro de 2019

Erasmo Carlos - Matéria Revista Karaokê 1987 1ª Parte

Em 1987, quando ainda vivíamos uma fase de efervescência do rock brasileiro, muitas revistas circulavam pelas bancas destacando esse ritmo. Algumas marcaram época, como a Bizz, outras também tiveram uma vida longa, e hoje servem como material de pesquisa de uma época, como a Roll, e muitas tiveram uma vida curta e efêmera, mas traziam boas matérias e entrevistas. Uma dessas foi a revista Karaokê, publicada pela editora Três. Em seu nº 3 (maio de 87) a revista traz uma boa matéria com Erasmo Carlos, que aqui transcrevo em duas partes. A matéria é assinada por Marcelo Uchiyama:
"Erasmo nasceu em 1941 no Rio de Janeiro. Sempre viveu na Tijuca, um dos primeiros redutos do rock no Brasil. Muitos talentos estouraram ali: Tim Maia, Jorge Ben e até o rei Roberto Carlos, que não era de lá, mas frequentava a roda.
A música sempre esteve na vida de Erasmo. Costumava escutar as big bands nas grandes emissoras de rádio, como a orquestra de Glenn Miller. Curtia também Cauby Peixoto, Angela Maria, Jackson do Pandeiro, Dalva de Oliveira, Luis Vieira e outros grandes astros da música daquela época. Erasmo colecionava fotos dos artistas, chegou até mesmo a montar álbuns, comprava discos. Era um verdadeiro fã da música.
Um dia, Erasmo andando por uma rua qualquer, ouviu um som diferente que vinha de uma festa. Era uma música pulsante, um ritmo forte que lhe tocou o coração. '... quando ouvi aquele som me arrepiei todo, nunca tinha escutado o contrabaixo marcando o buggy, aquela batida seca. Aí então eu vibrei.  Me apaixonei por aquilo...', declara o velho roqueiro. A tal música era simplesmente 'Rock Around The Clock', na voz de Bill Halley e seus Cometas. Uma energia nova e contundente que logo viria inundar o coração da juventude e provocar uma revolução no comportamento do mundo todo. Começava-se a ouvir aquela música nas rádios e uma das primeiras publicações que marcou o início dessa onda foi uma matéria que a revista 'O Cruzeiro' fez com Elvis Presley, já consagrado o 'Rei do Rock'n Roll'. Elvis mostrou uma imagem diferente e fascinante: blusão de couro, um penteado esquisito, um requebrado nunca antes visto, uma revolução que contagiou a garotada e os adolescentes. Erasmo não escapou dessa.
Erasmo Carlos explica: 'De repente entrei nessa, sem ter consciência. Eu tinha ouvido meu som  e visto a minha imagem. O que eu gostaria de ser e de fazer'. Ele queria de qualquer forma participar daquele tipo de música. Fosse como programador de rádio, vendedor de discos, jornalista especializado, cantor, compositor ou músico. '... de alguma maneira precisava viver aquilo', diz o Tremendão. A imagem de Elvis despertou-lhe uma paixão que em seguida James Dean veio reafirmar no cinema. Também Marlon Brando, no filme 'O Selvagem', colaborou para a descoberta dos caminhos de Erasmo. Assim ele bebeu da fonte inspiradora, formulou e criou sua personalidade.
Erasmo começa então a guardar letras de Elvis e Bill Halley, como também Chuck Berry, Little Richard, Gene Vincent, The Diamonds, enfim, de todos os nomes que surgiam dentro da constelação do rock'n roll. Na época, a rádio Metropolitana do Rio apresentava um programa, 'Hora da Broadway', comandado por Valdir Finotti, que era especializado em jazz. Nosso futuro ídolo ouvia ali as big bands e ficava sabendo das novidades musicais. Nessa emissora, aconteceram as primeiras execuções de rock. A programação reservava um dia por semana ao rock. Depois, a cota passou a ser dois dias e a audiência foi aumentando. Ao lado de Erasmo, curtindo a onda, estava a turma da Tijuca e praticamente toda uma geração. Eram os fãs do rock'n roll, que iam às festas e dançavam no embalo efervescente daquele ritmo louco. 'Dançávamos homem com homem, porque não tinha menina que soubesse dançar aqueles golpes todos. Eu acho uns golpes. Cai por cima daqui, joga por cima de lá, contorce dali...', conta Erasmo.
Com Tim Maia, o Tremendão aprendeu os primeiros acordes de violão e começou a interpretar alguns rocks que eram praticamente iguais, ou seja, tinham como base três acordes. 'Ao aprender os acordes Mi, Lá e Ré, descobri que poderia tocar uns trinta rocks, era tudo a mesma coisa'.
Aprendendo mais e mais com a música, ele forma um conjunto vocal chamado 'The Snakes' (Os Cobras), composto por Arleni, Trindade, China e ele. Começaram a se apresentar com Tim Maia, 'Mas Tim era o 'Little Richard brasileiro' e a gente fazia backing vocal, cantando músicas do próprio Richard. Conhecemos então Roberto Carlos, que era o 'Elvis Presley Brasileiro', declara nosso roqueiro. Faziam vocal para Roberto também. Elaboraram um show com os dois cantores. 'A gente entrava e fazia uns três ou quatro números. Entrava o Tim e o acompanhávamos em mais quatro músicas. Depois, saía Tim e vinha o Roberto. Continuávamos com ele até o fim do show', relembra o cantor. Por intermédio de Roberto Carlos, Erasmo conheceu Carlos Imperial, que apresentava um programa na extinta TV Tupi, 'O Clube do Rock', o qual começou a frequentar. Era  o único programa especializado. Isso foi em 1958, aproximadamente. A entrada do 'The Snakes' só veio acrescentar mais cor ao show, apresentado neste programa de TV. Tinha dançarinos, uma banda, Roberto, Tim e os backing vocais, executados por eles. Com esse show, eles todos saíram pelo Brasil mostrando essa nova forma de dançar e cantar. "

continua

sábado, 26 de janeiro de 2019

50 Anos da Bossa Nova - O Globo (2008)

1958 é considerado o ano zero da criação da Bossa Nova. Aquelas constantes reuniões de músicos, cantores e compositores que deram uma nova cara ao samba, primeiramente de forma despretensiosa e espontânea acabaram ganhando uma importância e penetração que nem se imaginava a princípio, e o resto é história. Em 2008 o movimento completava 50 anos, e muito se falou e comemorou a data, da mesma forma como no ano passado os seus 60 anos foram lembrados, como acontece com todas as datas redondas. Na edição de 06/04/08 o jornal O Globo trazia uma matéria sobre aquele festejado cinquentenário, em matéria assinada por Leonardo Lichote:
" Abril de 1958. João Gilberto apresenta, discretamente, na voz bossa velha de Elizeth Cardoso, a bossa nova. 'Chega de Saudade', de Tom e Vinícius, primeira faixa do Lado A de 'Canção do Amor Demais'.
'No dia em que a bossa nova inventou o Brasil/ No dia em que a Bossa Nova pariu o Brasil/ Teve que fazer direito' (Tom Zé).
Teve que fazer direito. E fez. 'Nos salvou na dimensão da eternidade', escreveu outro tropicalista, Caetano Veloso (tropicalistas, tradutores tortos da bossa nova). Salvação que veio pela genialidade que sintetiza séculos de ensinamentos da música tonal (a história da Humanidade) e a sofisticação rítmica de nossos batuques (a história da Nação); pela revolução formal que desaguou na moderna MPB dos anos 60; pelo fato de abrir os ouvidos do mundo para a música brasileira. Tudo isso é sublime e é, merecidamente, celebrado hoje em cada acorde de CD ou DVD ou show em tributo aos 50 anos.
Já em 1968 (parabéns pra você, 10 anos), Caetano olhava com acidez e carinho para a bossa nova em 'Saudosismo' e avisava que 'acordes dissonantes se integraram aos sons dos imbecis', denunciando um casamento que continua vivo. E que tem filhos espalhados por aí. Normal. O futuro inevitável de símbolos revolucionários é virar souvenir, bibelô de sala com decoração eclética. Mas talvez a bossa nova seja o fenômeno artístico que carrega de forma mais gritante essa contradição incômoda: ao mesmo tempo em que é arte divina, perfeição helênica, tudo aquilo escrito em linhas acima, é trilha sonora impessoal de hall de hotel, bom-gosto-baixos-teores, tão bela quanto inócua, certas vezes beirando o cafona, mas sem força até mesmo pra ser kitsch.
João Gilberto
A música que refundou a nação há cinco décadas é, hoje, fundo de pensão - em entrevista ao Globo (publicada em 10/07/2007), Roberto Menescal dizia que a bossa nova atualmente é sua (justa, vale lembrar) aposentadoria. 'Estou colhendo frutos que plantei', explicou. Musicalmente, continua coisa-mais-linda-mais-cheia-de-graça. Mas a questão não é só musical. Em 1958 (Belini levanta a Jules Rimet, Juscelino 50 anos em 5, Cinema Novo em gestação, etc) a bossa nova era o Brasil - ou uma possibilidade de. Hoje (desde há muito) ela não mais nos explica. Não é a bossa nova que vemos do outro lado do espelho.
Morreu? Não, mas sua porção musicalmente mais pulsante é a que se move no subterrâneo, contaminando o pop de Pato Fu (Fernanda Takai disse ao Globo ter sido influenciada por bossa nova indiretamente via Suzanne Vega) e a escola Lulu Santos (que recentemente falou que sua música é marcada pela riqueza harmônica do que chamou de 'tradição musical brasileira) a pós-MPB de Adriana Calcanhoto, o novo samba velho da Lapa, o samba pós-mangue de Recife, a gafieira-século XXI da Orquestra Imperial, as cases de DJs como Marcelinho da Lua, as surpresas do +2, as mãos esquerdas de Camelo e Amarante, o rap de Marcelo D2 e Instituto.
Tom Jobim, João Gilberto e Stan Getz
Já na mão dos guardiões da bossa nova, novos ou antigos, quase sempre ela repousa plácida e sem viço. por culpa deles ou não, ela traz embutida em si um conceito superficial de sofisticação (o tripé uísque-charuto-bossa), quando originalmente refletia um conceito sofisticado da superfície - 'João Gilberto não subestima a sensibilidade do povo', escreveu Tom Jobim na contracapa do LP 'Chega de Saudade', lançado em 1959.
João Gilberto 'sujou' a mão da Rádio Nacional, de Zé da Zilda, de Orlando Silva para entregar 'Bim Bom' à brisa de Ipanema. Ali, a bossa nova cresceu olhando para fora (ouvidos atentos ao jazz) e para a frente (o futuro promissor que se anunciava). Curiosamente, hoje olha para dentro (desconsidera a música internacional contemporânea, amparada em paradoxal discurso nacionalista) e para trás (o futuro daquele passado, que não veio). Sustenta-se não mais sobre o vigor do novo que carrega no sobrenome, e sim sobre sua história e sobre os ienes do mercado nipônico. Enfim, o que se propõe aqui é outra forma de celebrar o cinquentenário. Lembrar que a bossa não foi o fim (perfeição atingida e sacramentada), mas o começo. "

quinta-feira, 24 de janeiro de 2019

10 Anos Sem Raul Seixas - Jornal do Brasil (1999) - 2ª Parte

" O cantor Sérgio Vid (do Vid & Sangue Azul) é um dos que defende a seriedade do lado espiritualista de Raul. 'Como Vovó Já Dizia' tem uma sequência de frases que, superficialmente, parecem porra-louquice. Mas está tudo ali', diz. Junto com o Barão, ele canta as pérolas espirituais do compositor: How Could I Know, Metamorfose Ambulante e Como Vovó ('Quem não tem colírio usa óculos escuros...'), música que em 1974 deixou o baixista Arnaldo Brandão apavorado. 'Pensei que a gente fosse acabar em cana. Naquela época, comunista e maconheiro eram tudo a mesma coisa.' Um que, sim, passou maus bocados por causa de Raul (indiretamente, porém) foi Luís Carlos Carlini. Mito do rock paulistano (que só havia tocado com Raul uma vez, numa festa na casa de Nelson Motta, em 1975), ele foi convidado para tocar num show do Panela do Diabo, no Olympia, em Sampa. O local estava lotado, com fãs querendo invadir o show. Nome anunciado, ele se dirigia ao palco quando foi abordado por um segurança. 'Eu vou tocar', disse. 'Você vai tocar é para as suas negas', retrucou o corpulento, que o pôs pra fora da casa. 'Quando vi, estava na calçada com o pipoqueiro', lembra, entre gargalhadas. Depois, estaria em vários Baús.
Kika Seixas, viúva e administradora do espólio de Raul, comemora a quantidade de amigos que conseguiu reunir neste Baú. 'Raul nunca teve medo de morrer, só de ser esquecido', conta. Por sugestão da filha que teve com o roqueiro, Vivian, ela incluiu na escalação os rappers Marcelo D2 e BNegão, que cantam Metrô Linha 743 e Mosca na Sopa acompanhados pela banda de Gustavo, Arnaldo, Carlini, Serra e Johnny Boy (ou melhor, João Chaves antes do batismo de Raul). Completam a noite a banda carioca Baia & Rock Boys ('Os jovens que assimilaram a linguagem de Raul', na opinião de Kika) e Bull & Bill e Zé Ramalho. Ao fim, todos voltam ao palco para cantar Gita. "
o texto de Silvio Essinger termina aqui, mas a matéria ainda traz outro texto, escrito por Jomari França, e intitulado 'Curtos e circuitos":
" Uma vez no estúdio da Som Livre em Botafogo, Raul recebeu jornalistas para um bate papo de lançamento do LP Metrô Linha 743. Foi bastante informal, ele encostado no balcão de um barzinho que tinha no estúdio com o copo de bebida (não me lembro qual) perto falando das músicas do disco quando de repente o copo quebrou em vários pedaços espontaneamente, sem cair ou ser tocado por quem quer que seja. Raul riu, soltou um 'ah, isso sempre acontece' e chamou o garçom para remover os escombros.
Era mais um efeito da aura de bruxo do mago da Sociedade Alternativa, estudioso das ciências ocultas e uma das figuras mais carismáticas que já passaram pela Música Popular Brasileira. Certa vez, eu, ele e seu partner Paulo Coelho passamos uma noite no apartamento em que Raul morava em Copacabana falando sobre os estudos de ocultismo que faziam, especialmente os ensinamentos do bruxo escocês Aleister Crowley, de onde tiraram os fundamentos do manifesto da sociedade alternativa, aquele que começava com o 'faz o que tu queres, há de ser tudo da lei...'
Na ocasião, Raul me mostrou e manipulou várias vezes uma coleção de livros com a obra completa de Crowley e, na despedida, ele fez questão de me emprestar um volume para que eu tivesse tempo de me enfronhar um pouco na obra do mestre, decifrando os textos num inglês arcaico, mas me faltou a crença fervorosa de Raul e nunca mergulhei a fundo no livro. E nunca me faltou curiosidade, principalmente porque ele tinha outro discípulo ilustre, Jimmy Page, o guitarrista do Led Zeppelin, que chegou a morar na casa que foi de Crowley na Escócia. O livro ficou anos comigo e eu sempre naquele conflito interno do devolvo ou não devolvo, porque se tornou precioso para mim ter algo dele, mas um dia, num dos nossos encontros, levei o volume de volta. Ele deu pulos de alegria porque pensou que tinha perdido o livro. Claro que na hora bateu um arrependimento...
Assisti a shows memoráveis de Raul no Circo Voador, no Parque Laje, em produções sob a batuta da agitadora cultural Maria Juçá, e no Noites Cariocas. Juçá era (é) outra apaixonada por Raul. Ficávamos os dois horas em sua companhia curtindo a figura, sempre rica em tiradas inesperadas e inteligentes. Raul era um cara que tinha sua própria leitura do mundo, interpretando tudo que via e lia dentro de sua cosmologia.
Teve momentos muito alegres e muito tristes também. Como da vez em que ele não conseguiu fazer um show no Parque Laje por conta de um curto-circuito mental combinado com muitas doses de álcool. Ou da vez em que o encontrei numa vernissage exalando um odor terrível de éter, que estava cheirando direto. Ele me recebeu com um carinho enorme, como sempre fazia, e fiquei o resto da noite acompanhando-o até aterrissá-lo, são e salvo, em casa. "

quarta-feira, 23 de janeiro de 2019

10 Anos Sem Raul Seixas - Jornal do Brasil (1999) - 1ª Parte

Nesse ano irão se completar 30 anos de morte de um dos artistas mais influentes de nossa música: Raul Seixas. Nesses trinta anos que irão se completar em agosto, Raul nunca saiu completamente da mídia. Volta e meia seu nome é lembrado, citado, e suas músicas cantadas em rodas de violão, em shows e seu nome sempre aparece no já famoso bordão "Toca Raul!". Em 1999, quando sua morte  completava dez anos, a mística em torno de seu nome já era forte. Em sua edição de 19/08/99, dois dias antes da data de sua morte ser lembrada, o Jornal do Brasil trazia uma matéria com o agitador baiano, e anunciava um show-homenagem, com a presença de vários grupos e artistas. A chamada da matéria anunciava: "Homenagem pelos 10 anos da morte do menestrel da Sociedade Alternativa reúne admiradores como Barão Vermelho, Sérgio Vid, Falcão, Zé Ramalho e colegas de palco como Marcelo Nova, Luís Carlini, Arnaldo Brandão e Gustavo Schroeter". Esse ano, quando se completarão 40 anos de sua morte, com certeza muitas homenagens acontecerão em várias partes do país. Segue abaixo a transcrição da matéria, assinada por Silvio Essinger:
"Nos dez anos de sua morte, que se completam depois de amanhã, uma grande interrogação persiste. Não, não é a clássica 'Quem foi Raul Seixas?'. Mas sim 'Quantas pessoas Raul Seixas foi?'. Muitos e muitos, como se pode perceber conversando com os amigos e admiradores que estarão reunidos hoje para a especialíssima edição do Baú do Raul, a partir das 22h30 no Metropolitan. O roqueiro, o contestador, o místico, o cafona, o alcoólatra, o guru, o debochado, todos eles conviveram no mesmo corpo durante 44 anos, deixando para as gerações seguintes o legado de uma obra única e inimitável. 'Quando ouvi Ouro de Tolo, perguntei: Que cara é esse?! Ele fez a minha cabeça', conta o baterista Gustavo Schroeter, que tocou com Raul em 1974, numa das melhores fases do artista, junto com o baixista Arnaldo Brandão, seu companheiro na banda A Bolha. Os dois, mais o tecladista Johnny Boy (que acompanhou Raul Seixas nos últimos meses de vida, com o ex-Camisa de Vênus Marcelo Nova) e os guitarristas Luís Carlini (do Tutti-Frutti de Rita Lee) e Sérgio Serra (ex-Ultraje a Rigor) formam uma das várias bandas da noite, tocando, entre outras, Rock do Diabo, Al Capone e Rock das Aranhas.
Raul Seixas e Marcelo Nova
O Raul de antes do sucesso nacional, de quando era o Raulzito, vai estar presente com os Panteras, a sua banda de fé, que se desfez na virada dos anos 60 para os 70. Reformada, ela vem pela primeira vez ao Rio. 'Foram os Panteras que me motivaram a participar dessa edição do Baú', diz Marcelo Nova, que dividiu com o cantor o seu último disco, A Panela do Diabo. Ele se explica: 'O que eu fiz com Raul, eu fiz com ele do meu lado.' Marcelo tinha 14 anos em 1965, quando viu Raulzito e seus Panteras em Salvador. Era a maior banda de rock de toda a Bahia, a que acompanhava Roberto Carlos e todos os astros da jovem guarda que passavam por Salvador. 'Enquanto eles comiam todas na cidade, eu voltava pra casa chupando o dedo', lembra. Em 93 foi a vez de o fã tocar com a banda numa das edições do Baú na cidade. 'Foi um dos shows mais emocionantes e gratificantes da minha vida', diz. Hoje, cinquentões, Eládio (guitarra), Mariano (baixo) e Carleba (bateria) passaram mais de duas décadas sem tocar juntos. Começaram a ensaiar seriamente só no ano passado. 'A gente está tendo que reaprender a tocar a gente', diz Eládio.
O fim dos Panteras se deu algum tempo após o lançamento de seu disco Raulzito e os Panteras (68). A banda já estava na onda de Sargent Pepper's e os produtores, na de Jerry Adriani. 'Queríamos gravar com orquestra e vocais distintos, ninguém entendeu nada', conta Mariano. Morando no Rio, eles passaram a acompanhar Jerry para ganhar uns trocados, mas logo resolveram voltar a Salvador para retomar seus respectivos cursos universitários. Assustaram-se, é claro, com o Raul em que depois se transformaria Raulzito: profético, de músicas como Eu Nasci Há Dez Mil Anos Atrás, Gita e Sociedade Alternativa. 'Já esperávamos algo, afinal Raul tinha lido Kafka aos 14 anos de idade. Mas não sabíamos que ia ser tanta loucura', diz Mariano. Algo do velho Raulzito ficou, porém. 'Todo mundo fala que Raul era inteligente, mas ninguém fala de sua incrível alegria, reclama Eládio. Com o reforço de Tadeu Cardoso e Toni Oliveira (guitarra), os Panteras homenageiam Raul Seixas com Você Ainda Pode Sonhar (versão de Raulzito para Lucy in the Sky With Diamonds), Cowboy Fora da Lei e um medley de Little Richard e Chuck Berry. Por fim, acompanham Marcelo em canções como Aluga-se, Carpinteiro do Universo e Let Me Sing, Let Me Sing.
Um dos convidados mais curiosos da festa é o brega Falcão, que vai estar cantando Tu És o MDC da Minha Vida e Sessão das Dez. A acompanhá-lo, um Barão Vermelho desfalcado apenas do percussionista Peninha. 'É ótimo para lembrar aquele lado brega do começo da carreira do Raul. Quando ouço o MDC fico lembrando do auditório do Chacrinha', avaliza Roberto Frejat, líder do Barão. Sua participação com a banda, porém, é mais roqueira, cantando músicas como Pastor João e a Igreja Invisível, Só pra Variar e No Fundo do Quintal da Escola (ambas já gravadas pelo Barão). O guitarrista, que só conheceu Raul perto do fim da vida (quando cedeu horário no estúdio para ele e  Marcelo Nova gravarem as demos do Panela), diz que a imagem do maluco beleza é a que mais forte ficou  na mente dos fãs, dez anos depois. 'Ao mesmo tempo em que era esotérico, iconoclasta, espiritualista, Raul tinha esse lado popular, de Gita e Trem das Sete. Ele conseguiu ser o maluco popular, uma coisa que só se permite no Brasil. Se fosse nos Estados Unidos, internavam ele', diz. "

continua


terça-feira, 22 de janeiro de 2019

Gilberto Gil Fala dos Lisérgicos Anos 70 (International Magazine - 1999) - 3ª Parte

"- Você então começou a gravar um segundo disco em inglês, que você largou para trás quando voltou para o Brasil em 1972.
- Pois é, eu não me lembro nada desse disco. Eu tava dando prosseguimento natural, da mesma forma como Caetano fez 'Transa' em seguida a seu primeiro disco em inglês. Eu fiz umas quatro ou cinco músicas mas parei, não só porque estava voltando como também porque não tinha material para complementar. Eu não tinha orientação suficientemente clara para prosseguir, mas estava sendo produzido por Ralph Mace. Tutty Moreno e Chris Bonnett estavam comigo, mas eu já estava numa outra fase. Eu já não estava tão na coisa de ficar em casa compondo, eu já estava solto e já era amigo de Jim Capaldi.
- Não deu tempo de gravar nada com esses amigos como Jim Capaldi?
- Não deu tempo, provavelmente nesse momento teria rolado alguma coisa. Eu saía muito, gostava de tocar bongô nas jam sessions do Revolution e do Speakeasy. Eu tocava com o guitarrista do King Crimson e também com Dave Gilmour, do Pink Floyd, além de Jim Capaldi e Alan White - que era da Plastic Ono Band; ele trabalhou com Lennon e Yoko, antes de ir pro Yes. Terry Reed, um R&B branco da tradição de Alexis Korner, e John Mayall também. Minha turma era essa, então eu já não tava muito no projeto pessoal. Mas aí, quando esses desdobramentos de relacionamentos iam começar, é que eu vim embora. Quando eu ia começar a realmente conhecer outras pessoas, através do Jim Capaldi e do David, eu voltei.
- O que fez você voltar? Você não gostava de lá?
- Ah, mas a perspectiva de voltar era grande.
- Você não pensava em dividir seu tempo, indo e voltando?
- Não, eu vim e reassumi. Viajar era mais difícil, era preciso que houvesse os interesses manifestados claramente a partir de lá. Eu voltei e me reintegrei completamente à vida brasileira e à expectativa de carreira no Brasil. Eu só fui retomar o interesse internacional em 1978, quando fui pra Montreux.
- 'Expresso 2222' foi gravado com muitas músicas que você trouxe de Londres, num clima de quase ao vivo.
- Ele e Eu já tinha vindo de lá, Expresso 2222 também. Aqui eu me reencontrei com a música nordestina e é por isso que coloquei Pipoca Moderna no começo do disco. Sai do Sereno também, eu tirei essa de um disco do Abdias. Aí eu retomei a paixão pela música nordestina.
- Mas você voltou com uma banda e começou a fazer shows, bem antes de gravar o LP 'Expresso 2222'. A impressão é de que foi gravado praticamente ao vivo...
- É, mas ele foi todo montado no estúdio. Ele foi concebido e ensaiado no estúdio, muito embora eu tivesse feito apresentações com o grupo. Bruce Henry era o baixista, Tutty Moreno era o baterista e o Perna Fróes era o tecladista etc. Brand New Dream talvez fosse do repertório daquele segundo disco em inglês, mas ficou só no show. Quando eu fui fazer o 'Expresso 2222' com a produção do Roberto Menescal, nós fizemos tudo no estúdio. Por exemplo, o Bruce não se adaptou com o samba e o Lanny, que era o guitarrista, pegou o contrabaixo e gravou Chiclete com Banana. Lanny toca baixo porque Bruce ainda não estava suficientemente integrado.


Houve algum choque, quando você entrou no estúdio com toda essa carga inglesa com alguém como Roberto Menescal?
- Pra ele talvez tenha havido... (rindo) Pra mim não, eu tava com a minha turma. O Perna tinha se integrado também e o Lanny, que nós tínhamos deixado aqui, havia sido reintegrado ao grupo aqui. Só tinha vindo de lá comigo, afinal o Bruce também e estreamos em Recife, no Teatro do Parque. Em seguida, nós gravamos o LP com produção do Menescal.
- Algum tempo depois você começou a gravar um novo álbum, inicialmente com Só Quero um Xodó. A música era de Dominguinhos e o próprio entrou em estúdio contigo. De onde surgiu esta aproximação?
- Eu conheci Dominguinhos quando ele foi com Gal para uma apresentação no Midem, no início de 1973. Foi ali que que ele me apresentou o Xodó e nós apresentamos a música lá, daquele jeito mesmo. Eu me lembro que nós voltamos e logo entramos em estúdio, para gravá-la para um disco meu. Originalmente a música tinha sido gravada pela Anastácia, mas ela era um xote bem regionalista. Comigo ela já ganhou uma levada de blues e acabou virando  um xote-reggae, né? Eu cheguei a gravá-la de uma forma bem reggae no show no show do Tuca, lançado no disco ao vivo do ano seguinte, mas ele acabou só tendo músicas inéditas. Ali a ideia era gravar um disco inédito mesmo.
- É o disco menos comercial de sua carreira.
- É, mas teve Lugar Comum, João Sabino, Menina Goiaba e Herói das Estrelas, além daquela música do Caetano, Sim Foi Você. Esse disco merecia ser remontado, porque é bem exíguo em sua concepção de LP e o CD comporta muito mais tempo.
- Em Menina Goiaba você faz referência ao disco que nunca foi feito. Numa entrevista sua naquela época, você fala que está fazendo muitos compactos mas não queria fazer um LP.
- É, eu não fiz um LP e é por isso que fiz aquele disco ao vivo no final de 1974. Porque eu deveria ter feito um pouco depois do 'Expresso 2222', mas eu não finalizei. Aquelas gravações que ficaram pra trás dão um disco inédito.
- Mas você acabou indo trabalhar com João Donato, produzindo um disco em que na verdade você chega a cantar. É o LP 'Lugar Comum'...
- É verdade, eu não só toco e canto algumas coisas como também compus quatro ou cinco músicas. Eu canto A Bruxa de Mentira. É, eu conheci o João Donato através da Miúcha - que tinha voltado dos Estados Unidos depois de sua separação de João Gilberto. Nós ficamos amigos e Donato era muito amigo dela. Nós nos conhecemos e, enfim, fizemos de imediato uma amizade e começamos a conviver. Passávamos noites e noites por aí, juntos na casa de Caetano e na casa de amigos dele. E aí, pronto, fizemos muitas coisas através dos anos... inclusive A Paz.
- E Jorge Mautner, como você conheceu?
- Eu o conheci em Londres, ele tinha ido de Nova Iorque para Londres... especificamente para nos visitar e nos conhecer. Ele tinha nos conhecido muito rapidamente em São Paulo.
- É, ele gravou alguns compactos na RCA na mesma época que você, Caetano e Gal.
- É, com a história da Bomba Atômica, né? Nós sabíamos da existência dele, porque ele foi para os Estados Unidos. Quando nós fomos pra Londres, ele acabou indo visitar-nos em 1970. Ele fez o filme 'O Demiurgo' lá conosco, é um filme completo. Eu faço papel de um deus e toco alguma coisa. Nós acabamos fazendo muitas coisas juntos, inclusive no disco inglês, três músicas são parcerias nossas.
- De repente, você fez mais músicas com Jorge Mautner e com João Donato do que com Caetano.
-  Ah sim, com Caetano não chega a dez. Ele se refere a isso como autonomia, como a independência dos dois projetos. Há uma autosuficiência, então ele supre suas próprias necessidades como músico e eu supro as minhas como letrista. Só raramente nós nos encontramos...
- E quanto ao trabalho com Jorge Ben naquele lendário álbum duplo?
- Nós estávamos ali, éramos ambos da PolyGram na época, tínhamos uma admiração mútua muito forte... Já tínhamos cantado Jazz Potatoes juntos no 'Phono 73', né? Enfim, a gente já vinha com essa ideia de fazer alguma coisa juntos. Aí foi a oportunidade, incentivados pelo André Midani... nós gravamos ao vivo no estúdio. Fizemos coisas curiosíssimas, eu me lembro por exemplo da gravação de Taj Mahal. Nós tínhamos ensaiado Morre o Burro Fica o Homem e o Jorge começou a tocar a introdução e eu achei que a gente ia gravar Morre o Burro. Mas aí ele começou Taj Mahal... (rindo) e foi tudo gravado já pensando num disco. Nós realmente estávamos fazendo um disco já ali. No Glorioso São Cristóvão, ele achou um santinho no estúdio e foi fazendo a música. Jurubeba foi a mesma coisa, eu bebia jurubeba e levei uma garrafinha pro estúdio. era um estimulante que eu gostava de tomar, aquilo era um hábito da Bahia. Aí, brincando no estúdio com 'juru jurubeba', a música foi surgindo. E as outras todas também, foi tudo improvisado.
- Como foi 'Refazenda'? Desde o início ele já tinha toda aquela concepção, com orquestra e tal?
- Já, foi conceitual sim. Depois do 'Expresso 2222', aquele meu primeiro disco conceitual. Aliás, daí em diante todos os meus discos passaram a ser conceituais. Eles continuaram a ser conceituais, como tinha sido o disco do Tropicalismo.
- Phil Collins diz que disco conceitual ficou perdido no tempo e que ninguém mais faz isso.
- Ah, mas nós continuamos fazendo. Caetano faz, 'Estrangeiro' é e 'Circuladô é. 'Parabolicamará' é, 'Eterno Rei Mu'...
- 'Refavela' também?
- Sim, imagina... 'Refavela' é o segundo da trilogia iniciada com 'Refazenda'. Depois veio o terceiro com 'Realce', pois o 'Refestança' foi só uma brincadeira no meio de tudo... porque a Rita quis brincar com o 're'. Todos três têm seus manifestos. 'Refazenda' é o manifesto do recuo, da retaguarda e da volta; 'Refavela' é o que revela, fala e vê a coisa da música negra; e 'Realce' fecha a trilogia, com um salário mínimo de cintilância. Foi o terceiro movimento, mas quando eu fiz o 'Refazenda' eu não sabia que estava iniciando uma trilogia. Quando eu fui pra África é que apareceu o 'Refavela' e aí eu concluí que depois teria que fazer um terceiro.
- Você nunca pensou num quarto volume?
- Não, porque eu queria uma trilogia. Os volumes ficaram afastados pelo tempo e por outros projetos, como foram os discos dos Doces Bárbaros, o 'Refestança', o 'Antologia do Samba Choro' e o 'Ao Vivo em Montreux'. Foram três discos de estúdio onde eu entrei para fazer três pronunciamentos claros a respeito de certas coisas, portanto aí reside o sentido conceitual de cada um dos três discos. É o conceito do re, que passou por todos os três e que depois, na Warner, nós misturamos os três no 'Re-Sol-Vida'. É a solução, 'resolvida', talvez o quarto volume a que você se referiu. É uma coletânea que mistura o repertório dos três discos, misturados e divididos em 'Re, 'Sol' e 'Vida'. Foram três LPs...
- As músicas do 'Refazenda', disco que você demorou tanta a fazer - já que 'Expresso 2222' é de 1972 -, já vinham sendo trabalhadas?
- Já vinha sim, muito embora eu só tocasse O Rouxinol em shows. Ela é da mesma época de Lugar Comum, eu acho que fiz ambas em Salvador na mesma semana. Eu estava gravando um disco em estúdio mas nunca terminei, depois gravei o 'Refazenda' todo de uma vez. Só aproveitei Essa É pra Tocar no Rádio, que tinha inclusive o Dominguinhos tocando sanfona... na mesma época de Só Quero um Xodó. Mas deixei pra trás todo um trabalho... que, de todo modo, eu quis que fosse feita toda uma coleta de todo esse material. Mesmo o que não saía todo numa caixa, depois a gente vê o que vai fazer. Na verdade, o material inclui muitos elementos que não são comerciais e que não devem ser encarados como repertório para coletânea. "


segunda-feira, 21 de janeiro de 2019

Gilberto Gil Fala dos Lisérgicos Anos 70 (International Magazine - 1999) - 2ª Parte

"- Em momento nenhum você pensou em usar aquele grupo que o Caetano havia utilizado em Alegria Alegria, os Beat Boys?
- Não, Caetano já tinha os Beat Boys com ele e eu queria uma coisa parecida. Na verdade, nesse momento em que eu estava procurando o Quarteto Novo, talvez o Caetano ainda não tivesse encontrado os Beat Boys. Mas já, de todo modo, queríamos - tanto eu quanto ele - um conjunto com abordagem contemporânea e que incluísse aqueles elementos...
- ... mas jamais um conjunto da Jovem Guarda, como Renato e Seus Blue Caps, Incríveis ou Fevers, que eram os grandes grupos da época, né?
- A gente não tinha afinidade com eles. Não era nem questão de afinidade, a gente simplesmente não tinha aproximação. Nós éramos um grupo completamente diferente. Eles trabalhavam com o Roberto, a Jovem Guarda já tinha um status e era uma estrutura. Aquilo era uma redoma, o único da chamada MPB que chegava lá era Jorge Ben. Ele tinha trânsito, porque era da mesma turma que o Roberto aqui na Tijuca. Enfim, nós não entrávamos ali. Saí, quando eu cheguei no Quarteto Novo, falei com o Airto - que era quem liderava o grupo: 'Eu queria fazer, mas eu queria botar umas coisas diferentes... a la George Martin, como no disco dos Beatles'. Aí o Airto foi muito claro, muito enfático no sentido de dizer que não queria nenhum experimentalismo desse tipo. O som deles era um som brasileiro, nordestino, com viola. Era um som violado, era aquilo que depois veio a ser o Quinteto Violado. Aí eu disse: 'Bom, se vocês não querem, tudo bem'. Fiquei até um pouco decepcionado, porque eu queria muito e gostava muito deles. Eles eram a coisa mais nova na música popular, como um conjunto de quatro craques e tal. Eu tive que procurar e aí, nesse ínterim, relatando ao Rogério Duprat sobre minha intenção de fazer uma coisa 'george martiana', 'beatleniana' e tal, com aqueles elementos que me encantavam naquele momento, ele me disse: 'Ah, tem um grupo que trabalha comigo lá na Bandeirantes, no programa do Ronnie Von, e que é perfeito pra isso. Se eles quiserem, vai ser bacana. Eu vou falar com eles'. Ele foi, falou com eles, marcou um encontro e nós nos encontramos e daí veio Domingo no Parque.
- E aí eles acabaram tocando em várias faixas de seu próximo disco, já em 1968. 
- Eles começaram a me acompanhar em shows e com isso gravaram várias faixas comigo.
- Você foi responsável pela ida deles pra Polydor?
Um pouco, um pouco. Foi através de nós que eles vieram. Primeiro nós gravamos o disco 'Tropicália', depois é que fizemos os LPs individuais meu e do Caetano.
com os Mutantes
- Como foi a gravação deste disco? As faixas de cada um foram gravadas individualmente, para depois serem reunidas num disco, ou vocês realmente gravaram tudo junto?
- Olha, não muito num clima de festa não. Eu tive muitas dificuldades na realização daquele LP, porque eu recusava muitos arranjos do Rogério Duprat. Eu tava numa dificuldade muito grande, porque eu tinha muito entusiasmo por todas aquelas investidas inovadoras mas era muito inseguro com aquilo tudo. Primeiro, porque eu não tinha domínio técnico de linguagem de instrumentação. Eu tocava mal e rudemente meu violão, na linha da Bossa Nova e do regionalismo baiano-nordestino - vindo da tradição 'caymmiana'.
Seria como ir ao 'Sgt. Pepper' sem passar pelo 'Help'?
- Exatamente, sem saber nada. Eu nunca tinha pegado uma guitarra elétrica, eu nunca havia convivido com grupos de rock. Nada de nada de nada, então o Rogério Duprat, os Mutantes e os Beat Boys é que eram os únicos elementos com os quais nós contávamos - especialmente o Rogério Duprat, que, muito entusiasmado com a coisa dos Beatles e com o experimentalismo do George Martin, encontrou um mínimo denominador comum. Nós admirávamos muito e queríamos trabalhar com aquilo, então ele é que era o grande entusiasta. Tanto é que os arranjos de 'Tropicália' são dele, todas as músicas têm um arranjo orquestral.
- Você fez Miserte Nóbis e Geleia Geral pensando na concepção do disco ou você já as tinha prontas?
- Não, aquilo tudo já foi dito sob a égide de um manifesto tropicalista que Caetano e Capinam... e Torquato Neto escreveram, onde já se publicavam os princípios básicos daquele conjunto de atitudes e daquela empreitada artística nossas. E daí, essas composições já foram feitas em função desse conceito.
- Questão de Ordem escapou de 'Tropicália' e também de seu disco tropicalista.
- Essa foi uma música do festival seguinte e ficou só no compacto mesmo porque foi feito para aquele festival. O 'Tropicália' saiu antes, aí eu já estou com os Beat Boys e o Caetano com os Mutantes em É Proibido Proibir. Houve uma inversão. Eu não sei se estou com o grupo completo, mas pelo menos 3 dos membros gravaram comigo - Tony Osanah, Willy e Marcelo... John, um hippie americano que eu havia acolhido em minha casa, também participou da gravação... tocando percussão numa calota de fusca.
- Pouco depois veio a prisão e com ela, o exílio e a despedida com Aquele Abraço. Você já sabia que teria que partir quando a compôs e gravou?
- Sim, porque eu tinha vindo ao Rio para tratar a minha saída do país com o Segundo Exército. No avião, na volta para Salvador, eu terminei de compor. Comecei na casa de Gal...
- Daquela safra de composições, muita coisa acabou sendo gravada pela Gal: A Coisa Mais Linda Que Existe, Cultura e Civilização e Com Medo Com Pedro. Você também tocava muito nos discos de Gal e de Caetano, exercia muito a função de compositor e músico. 
- Eu era uma espécie de coringa do grupo, né? Mesmo com Bethânia, também, muito depois. Como era tido como o 'músico do grupo', muito embora não saiba exatamente porque - já que meu desenvolvimento ainda não era lá essas coisas.
maestro Rogério Duprat
- Mas o próprio Caetano reconhecia isso, afinal ele demorou muito a tocar em seus shows e em seus discos. No próprio disco dele de 69 você é quem abre, tocando violão naquele 'false start' de Irene. Vocês parecem ter gravado tudo junto naquele início de 1969, antes de partir para o exílio. Tanto o seu disco quanto o dele?
- Sim, nós viajaríamos no dia seguinte... num domingo. Na véspera, nós gravamos Aquele Abraço com produção de Manoel Berenbein. O velho Marçal toca, comandando a bateria. Fizemos isso aqui no Rio e eu me lembro que Wilson das Neves toca, as meninas das Gatas também estão lá. Eu já tinha gravado o resto do disco na Bahia, em bases de voz e violão registradas no estúdio JS. Nós estávamos em prisão domiciliar em Salvador e Rogério Duprat foi pra lá e nós gravamos tudo só com voz e  violão. O estúdio JS só tinha os mesmos dois canais que eu havia deixado pra trás em 63. Os dois LPs, o do Caetano e o meu. As fitas foram gravadas lá e o Rogério as trouxe, para que fosse feita a complementação em playback. O conjunto de baixo, guitarra, bateria foi adicionado aqui, juntamente com os metais do Chiquinho de Morais. Eu não pude acompanhar esse trabalho, mas gravei Aquele Abraço pra fechar o disco.
- Você gravou demos de Cultura e Civilização e Com Medo com Pedro nesse mesmo dia, além de uma versão do Hino do Bahia em dueto com Caetano Veloso.
- Pois é, eu nem sei porque Cultura e Civilização não entrou no disco. Eu fiz lá em Salvador, nesse período do confinamento.
- Como foi a experiência em Londres? Você começou a compor em inglês, mas já tinha domínio da língua quando foi pra lá?
- Não, eu não dominava nada. Eu tinha os rudimentos do ginásio. E tinha tido algum contato assim mais regular com leituras em inglês, muito dificultosas, na época da faculdade. Muito da literatura disponível era em inglês, então eu tinha que ler com o auxílio de um dicionário. Conseguia ler, mesmo que mal, mas não falava nada. Lá em Londres nós fomos para a escola, Caetano também foi estudar inglês. Tínhamos a expectativa de ficar lá e não sabíamos por quanto tempo, então tínhamos que começar a nos preparar para ficar.
- Vocês viviam de que? De royalties de disco?
- Sim, de royalties.
- Então naquela época disco dava dinheiro?

- Dava pouco... e a gente vivia com pouco. Vivíamos basicamente com isso, mas depois de um ano nós começamos a tocar - com a perspectiva de gravar lá, que surgiu através dos contatos da própria Philips daqui. Ralph Mace, que veio a ser o produtor dos nossos discos lá, ele tinha relacionamento com a Philips, e ficou sabendo que nós estávamos em Londres e que éramos dotados de um talento e de um propósito artístico. Enfim, foi recomendado a ele que cuidasse  da possibilidade de nos aproveitar em gravações. Ele foi, tomou contato conosco e arrumou o selo Famous Music e se incumbiu da  produção. Foi aí que eu mandei chamar o Tutty Moreno o Caetano mandou chamar o Momó, Moacyr Albuquerque, que havia sido músico nosso nas últimas realizações lá na Bahia... antes de virmos para São Paulo. E aí Caetano fez aquele primeiro disco com Tutty Moreno e um baixista.
Gil e Caetano em Londres
- O que aconteceu com seu disco?
- Foi lançado em Londres e também nos Estados Unidos, ocasião em que fui aos Estados Unidos pela primeira vez. Não aconteceu nada de excepcional, mas os discos nos introduziram na área dos experts. Na verdade, no meu caso o disco serviu para que eu me chegasse com o conjunto de meu repertório. Eu fui convidado a fazer shows em Nova Yorque, a propósito do lançamento do disco, e eu cantei parte do repertório do disco mas principalmente coisas que não estavam  no disco e que eu trazia do Brasil. Eu tive a oportunidade de fazer um programa de televisão chamado Camera 3, que ainda existe até hoje na TV americana. Esse programa teve certa repercussão e eu me apresentei num teatro off Broadway, com uma ambientação produzida pelo Hélio Oiticica. Esse disco abriu caminho pra mim na Europa também, porque eu me lembro que fui me apresentar na Alemanha e na França. Ele saiu em vários países. "

continua


domingo, 20 de janeiro de 2019

Gilberto Gil Fala dos Lisérgicos Anos 70 (International Magazine - 1999) - 1ª Parte

Em 1999 foi lançada uma caixa de CDS com material inédito de Gilberto Gil, chamada Ensaio Geral. Esse material é de sua carreira inicial pela PolyGram, e Gil na ocasião deu uma entrevista ao produtor desse trabalho, Marcelo Fróes, publicado no jornal musical International Magazine - edição 52:
" - Quando você ainda estava na Bahia, você gravou algumas coisas por uma gravadora pequena. Como foi esta fase?
- Teve um compacto duplo pela JS, mas antes eu gravei dois 78 rotações com músicas que inclusive não eram minhas. Eram de um autor de lá, um rapaz muito humilde - um funcionário público com aquela vaidade de querer ver as suas coisas gravadas. Nesta época eu tava trabalhando com Jorge Santos em jingles, começando a me enfronhar com a coisa do estúdio e eu era um cantor disponível - ligado ao staff do estúdio. Ele foi lá e encomendou estas gravações ao Jorge, pois ele queria gravar duas ou três marchinhas de carnaval que ele tinha. E eu gravei, acabei gravando a Marcha do Lacerdinha (N.Ed: na verdade Coça Coça Lacerdinha, lado B de Povo Petroleiro, jingle para a Petrobrás), que é sobre esse bichinho que dá nas árvores e que no final da tarde arde nos olhos. Esse foi o primeiro 78 rotações, depois eu fiz um outro com As Três Baianas, que mais tarde vieram a formar o Quarteto em Cy, aqui. Neste segundo disco eu já gravei uma música minha, que era o Bem Devagar. Felicidade Vem Depois eu não gravei naquela época, embora tenha sido a primeira época a ser composta. Eu acho que o único registro dessa música está num compacto duplo que veio na revista 'O Bondinho' (1972). No compacto duplo da JS entraram Serenata de Teleco-Teco, Maria Tristeza, Vontade de Amar e Meu Luar, Minhas Canções, que depois rendeu um último compacto com Decisão (Amor de Carnaval) e Vem Colombina. Depois disso tudo é que eu vim pra São Paulo e gravei aquele compacto pela RCA com Procissão e Roda.
- Tanto nesse compacto como numa coletânea do 'Festival do Balança', da qual você participou cantando Iemanjá, há créditos que agradecem a cortesia de Discos Mocambo.
- Estranho, porque eu não me lembro e ter sido contratado deles. Aliás, mesmo com Jorge Santos em Salvador eu não tinha contrato. Casa compacto que fiz com ele foi um negócio. Saiu errado então, porque nessa ocasião eu estava contratado pela RCA.
- E a ida pra Philips? Você sentiu muitas diferenças nessas passagens, já que gravou inicialmente compactos num estúdio pequeno em Salvador, depois foi gravar outro compacto numa grande gravadora em São Paulo e, depois, finalmente um álbum no Rio de Janeiro?
- Foi logo em seguida, já pra fazer o disco 'Louvação'. Já havia diferenças notáveis, pois em Salvador era tudo gravado diretamente no acetato. Gravávamos com músicos disponíveis, na Bahia não havia gravadora com banda própria. Era músicos locais; Orlando, por exemplo, era um baixista que tocava tanto na sinfônica quanto em orquestras locais. Logo depois, quando gravei o compacto duplo, nós já gravamos num gravador de fita de 2 canais... mas as condições ainda eram muito precárias. O estúdio era pequeno e improvisado, mas era o único que existia na cidade. Foi feito especificamente para gravar jingles e pequenos spots de rádio.
com Gal
- Você fez muitos jingles? 
- Fiz alguns, uns seis ou sete. O Jorge Santos deve ter sim, ele tem... das Lojas Cruzeiro, dos Calçados Calma e da Polígono Filmes. O estúdio era preparado pra isso. Quando ele começou a gravar esses discos, eu me lembro que o primeiro disco do qual participei foi a gravação do Mestre Bimba, que era o grande mestre da capoeira local. O Jorge resolveu fazer um disco de capoeira, com os toques e os cânticos do Mestre Bimba, e nós fomos gravar com um pequeno gravador portátil lá na Amaralina, onde ele tinha uma academia. Depois é que vieram os meus discos, mas as condições eram muitos precárias. Então, quando eu cheguei em São Paulo, esse primeiro compacto - gravado sob a direção de Carlos Castilho, que fez os arranjos e dirigiu o estúdio - já foi num estúdio da Paula Freitas. Era um estúdio de 4 canais, profissional e com tratamento acústico e dimensões maiores. Bethânia tinha feito um LP, mas tanto eu como Gal e Caetano só fizemos compactos. Só gravei duas músicas na RCA, além daquela versão ao vivo de Iemanjá que está no disco do festival.
- Você teve o privilégio de gravar como Gilberto Gil desde o começo, enquanto muitos grandes nomes começaram gravando como crooner ou sob um pseudônimo qualquer.
- É verdade, mas eu comecei como Gilberto Moreira nos primeiros discos de 78 rpm. O EP já foi de Gilberto Gil. (...) Mas, enfim, minha ida para a Philips já foi em função do estouro da Bethânia, da empreitada do Teatro de Arena - que fez o 'Arena Conta a Bahia', onde nos apresentamos todos juntos e onde despontamos para o público paulista. Aí, já tínhamos os compactos da RCA como referência de intérpretes e compositores. Éramos promessas de gente promissora e aí a Philips, que estava começando um trabalho de formação de novo cast com João Araújo, trouxe Caetano, Gal e eu. Quando Caetano voltou de Londres, Bethânia foi também pra Philips depois de alguns discos pela  Odeon.
Quem produziu o seu primeiro disco?
- Olha, eu lembro que os arranjos foram feitos pelo Dori Caymmi e pelo Carlos Monteiro de Souza, que era um maestro muito produtivo e solicitado naquela época. Bruno Ferreira, filho de Abel Ferreira, hoje mudou de nome e recentemente dirigia a Orquestra Sinfônica da Paraíba, foi o violonista e também fez alguns arranjos. Acho que João Mello, uma espécie de produtor da casa, produziu esse disco. Ele também produzia Jorge Ben e outros projetos.
- Você lançou inicialmente um compacto no final de 1966 - Ensaio Geral, com Minha Senhora no lado B. Só no ano seguinte saiu o álbum  'Louvação'.
- Minha Senhora foi uma música do Festival Internacional da Canção, numa gravação da Gal com arranjos de Francis Hime. Eu sinceramente nem me lembro de ter feito esse compacto antes do LP, nem tampouco esta gravação minha de Minha Senhora no lado B.
- Quando seu álbum já estava estourado, inclusive com as novas versões de Procissão e Roda, você conheceu os Mutantes. Como foi seu primeiro contato? 
- Eu os conheci exatamente quando estava procurando elementos para montar a apresentação do Domingo no Parque no festival. Eu tinha conhecido o Rogério Duprat, que já tinha feito suas primeiras gravações de vanguarda com seu próprio grupo. Ele já era um nome que tinha despontado nessa área de vanguarda paulista e participava de um programa na Bandeirantes, que era comandado pelo Ronnie Von. Nesse programa se apresentavam os Mutantes e o Rogério Duprat tinha uma participação qualquer. Eu o tinha conhecido através do Augusto de Campos e os Mutantes já existiam. Rogério é que me indicou Rita, Arnaldo e Serginho. O episódio foi engraçado, porque a música já estava feita e classificada... e então tinha que pensar na montagem do número. Eu havia gravado uma demo de voz e violão e mandado pra lá, então eu tinha que não só gravar direito como também apresentar a música no festival. E, para apresentar no festival, eu tive que montar alguma coisa e então pensei primeiro em utilizar o Quarteto Novo, que tinha se apresentado com o Edu Lobo em Disparada*. Era um grupo com Hermeto Pascoal, Heraldo do Monte, Téo de Barros e Airto Moreira. Eu pensei nesse quarteto pra fazer comigo Domingo no Parque e um dia fui falar com eles. Airto e Hermeto estavam no Canja, que é um instituto de música que existia em São Paulo e que fora criado pelos irmãos Godoy, do Zimbo Trio. Fui lá falar com eles e disse que queria que eles fizessem comigo, só que com uns elementos novos... já que eu estava com os Beatles na cabeça, né?

* Há um engano nessa resposta. Quem se apresentou cantando Disparada, de Geraldo Vandré, com o Quarteto Novo foi Jair Rodrigues e não Edu Lobo

Continua