Palavras Domesticadas

Palavras Domesticadas

quinta-feira, 30 de abril de 2015

João Bosco na Bronca - Jornal Canja (1980) - 1ª Parte

O Jornal quinzenal Canja nº 15, de outubro de 1980 trazia uma matéria com João Bosco, que estava lançando seu disco Bandalhismo. Na matéria  Bosco reclamava da falta de empenho de sua gravadora RCA em divulgar seu disco, e soltava o verbo. A matéria, assinada por José Trajano tinha por título "João, a mágoa e o bandalhismo": 
"João Bosco está magoado comigo. E eu não sabia.
A gente fala disso mais adiante, antes vamos encher o pote com uma estupidamente gelada e ouvir o homem que tá na maior bronca, invocado mesmo, com  a sua gravadora, a RCA.
A coisa andava preta faz tempo. Mas agora em São Paulo, onde João veio lançar seu sexto LP, Bandalhismo, e fazer duas semanas no teatro Pixinguinha, o caldo engrossou. E ele não ficou quieto não, botou a boca no trombone.
- 'Agora chega. A gravadora só tem feito atrapalhar. Não promove os meus discos, cria um hiato enorme entre um trabalho e outro, atrapalha até a divulgação que eu mesmo banquei. Para os shows dão uma verba ridícula, que não cobre nem um terço dos gastos. E olha que o Bandalhismo foi todo produzido por mim: horas de estúdio, os músicos, até os impressos de divulgação que são distribuídos nas portas dos meus shows. Pena que tenho de fazer mais um disco sob contrato, porque minha vontade era dar no pé já.'
Oito anos João Bosco tem de RCA. No ínício, quando veio de Ouro Preto, achou que as coisas podiam acontecer ali. O Luis Eça, que arranjou seu primeiro LP, deu força, disse que um cast da pesada ia ser formado. Que nada. Nada aconteceu e João dançou. Hoje, ele abre os papos dando bronca nos homens. Não deixa por menos, diz que vai partir pra uma de disco independente.
- 'Mas um disco independente com coerência. Temos uma editora, a Saci, junto com o Aldir, Paulinho da Viola, Joyce, Sérgio Ricardo e Maurício Tapajós. Podemos pensar em trabalhos juntos ou mesmo sozinhos, mas de uma forma que funcione, nada de sacanagem.'
O caso está tão sério que, no dia do lançamento do disco em São Paulo, junto com  a exposição de Elifas Andreato - que fez a capa de Bandalhismo - no Sesc, João nem olhou para os diretores da gravadora. Quis mostrar toda a sua indignação. E mostrou, sem dúvida.
Encontrei João no dia seguinte à estreia do show almoçando às 4 horas da tarde numa cantina do bairro da Consolação. Enquanto mandava ver uma lasanha verde, o papo foi indo. Do disco novo, o maior entusiasmo. Do show, mais ainda. Os músicos, também na mesa, davam a maior força.
- 'Fizemos o show lá no Cine-Show Madureira, pintamos aqui em São Paulo  depois viajamos pelo Brasil afora. É um show cuidado, são dez pessoas envolvidas na coisa, entre músicos, técnicos de som, etc'.
E o trabalho com Aldir, já são quase 11 anos, tem também o Paulo Emílio, dá pra fazer um balanço da coisa?
Senti João na defensiva. Falou do trabalho da dupla e do trio (com Paulo Emílio) de uma maneira que eu não entendia bem. Perguntei, então, se havia alguma bronca, mágoa mesmo da imprensa ou de dentro do meio musical. Sei lá, alguma coisa estava incomodando.
João não hesitou e mandou ver. Disse que estava magoado com uma matéria que escrevi - faz tempos - na Isto É.
- 'Você se precipitou, me colocou numa posição de afastamento. Não deu tempo à coisa, criou uma situação' "
(continua)

quarta-feira, 29 de abril de 2015

Depoimento de Roberto Menescal À Revista Zero - 2ª Parte

Jorge Ben e Tim Maia:
"O Jorge Ben veio bem depois. Nesse meio tempo outro fato que rolou foram os encontros dos músicos. Até então estamos falando de gente compondo. Paralelo a isso, os músicos começaram a sentir que aquele tipo de música que a gente compunha era legal pra se tocar. E eram músicos mesmo, não tinham nome, e começaram a se reunir num lugar chamado Beco das Garrafas, em Copacabana. Esses músicos tocavam em bares próximos ao local e depois se reuniam no Beco. Esse lugar passou a ser um ponto de encontro pra quem queria ouvir música legal. Elis Regina chegou ao Rio de Porto Alegre e foi pra lá. Todo mundo que gostava de coisas mais modernas ia pra lá. E Jorge Ben começou a aparecer nesses bares e a dar suas canjas, aquele filão ainda rudimentar.
Ele trouxe uma coisa vigorosa ao que fazia. Quem me falou do Jorge - eu já conhecia, mas não me liguei muito, porque focava mais na harmonia. Eu seguia uma linha mais no lado jazz-cool, e o Jorge era o contrário disso - foi o Tom. Ele falou: 'Você já ouviu Jorge Ben?'. E mostrou umas coisas. Foi então que comecei a perceber um pouco da importância do Jorge. Confesso que não fui eu que efetivamente descobri a importância dele.
Tim Maia também só fui conhecer anos depois, quando eu já era produtor da Polygram, lá pra 1970, 71... Nessa época Tim Maia já havia voltado de uma temporada em que morou fora (nos Estados Unidos). Mostraram-me o som dele, e ele até gravou uma música minha."
Chico Buarque:
"A bossa nova foi para São Paulo. Quando digo isso quero dizer que ela se profissionalizou - porque o Rio cria e São Paulo profissionaliza. Então, aconteciam muitos festivais de bossa nova nas faculdades, e em um desses festivais apresentaram um garoto 'menino de faculdade, que faz música'. O Chico entrou e a gente pensou: 'Que bacana, nossa música já está influenciando outra geração'.
A Nara se ligou muito no Chico, e me mostrava as coisas dele. Depois fui trabalhar como produtor de Construção (disco de 1971), e passei a fazer contato mais direto com ele. Depois fizemos (a trilha do filme) Bye Bye Brasil.
Ele foi um cara que revolucionou a letra, a crônica, bastante influenciado por Noel Rosa. E foi influenciado por várias coisas, pela bossa nova também, em harmonias. Mas acho que o Chico é mais aberto do que só bossa nova."
Ditadura:
"Quando a ditadura chegou, começaram imediatamente os movimentos contrários, de luta na música. Naturalmente as letras começaram a mudar bastante. Não as nossas, porque nós éramos muito alienados com o que acontecia no Brasil. Mas em relação a quem participava ativamente, Geraldo Vandré, Carlos Lyra (que nasceu bem bossa nova e depois se desvencilhou). Enquanto nós falávamos do samba de verão, os caras falavam de Nordeste. Aquilo me deixou perplexo. Eu pensava; 'Então acabou tudo isso que a gente está fazendo?'. Isso me assustou no começo, mas depois a gente começou a descobrir a beleza de certas coisas.
É claro que houve um exagero. Você deixava de fazer sua música pra compor sobre o Nordeste, como se só existisse aquilo. Isso acho que interrompeu um pouco o crescimento musical - no sentido harmônico - pra uma priorização da letra. Esta começou a ter uma relação muito forte na função música-letra, e depois isso fez com que as pessoas desenvolvessem macetes pra driblar a censura e conseguir falar certas coisas. Aí a poesia cresceu. Mas pra mim deu uma bagunçada, porque o estilo musical ficou tão baseado nas letras que a música ficou em segundo plano. Como em 'Subdesenvolvido', que não é uma música qualquer, mas no final a letra é que importava. Depois tudo foi se acertando, a coisa fluiu.
Menescal, nos anos 60
Vou contar uma coisa que aconteceu comigo. Eu era tão por fora de tudo, minha vida era outra, trabalho, trabalho, trabalho, que nem sabia direito o que estava acontecendo. Até que um dia eu ganhei o prêmio de 'melhor compositor do ano', da Rádio Jornal do Brasil, e a festa era em um prédio velho, bem conservador, com elevadores com portas de ferro, grades e tal. Fui lá receber o prêmio. Logo depois eu estava fazendo música para uma peça de Abraão Medina, que era um cara que movimentava a noite carioca. Aí vieram dois caras me entrevistar. Pedi pra eles entrarem: 'Estou terminando o tema, vou passar pra pianista'. Entraram os dois caras. 'Boa tarde', 'boa tarde'. Esperaram, Acabei o que tinha que fazer e eles falaram: 'A gente pode sair desse lugar? Muito barulho. Tem um lugar aqui do lado. 'Fui conversando com os caras, sentamos numa salinha e eles: 'Podemos começar? Você esteve no Zicartola?'. E eu: 'Estive sim. Fui no lançamento do disco Tom Visita Caymmi.' 'O que aconteceu lá?. 'Lançamento, coquetel'. 'E quem estava lá?' 'Família Caymmi, sei lá, tanta gente'.
Eles começaram a fazer isso com  todo mundo que estava por lá, e eu nem sacando, pensando: 'Achei que fosse entrevista comigo, não com todo mundo'. Daí perguntei: 'Qual a pauta da matéria?'. E eles: 'Que matéria? Aqui você está sendo interrogado, porque no Zicartola acontecem coisas subversivas'. Daí eu falei: 'Mas esse jornal é o quê?'. E eles: 'Não, aqui é do DOPS (Departamento de Ordem Pública e Social)' (risos).
E isso é um retrato da época. Eles devem ter sacado que eu era por fora. Foi ali que eu vi o que estava acontecendo no Brasil. Até então eu não sabia. Eu e talvez mais alguns amigos meus. Os da praia (risos). Aí eu falei: 'Gente, está acontecendo uma coisa grave aqui.'
Mas minha música continuou sendo a mesma, não modifiquei nada, apenas meu comportamento. Fiquei mais atento."

terça-feira, 28 de abril de 2015

Depoimento de Roberto Menescal À Revista Zero (2004) - 1ª Parte



O compositor e produtor musical Roberto Menescal deu um depoimento à revista Zero nº 14, de 2004, cuja matéria de capa era sobre os 30 anos de ditadura militar. Menescal falou sobre vários assuntos, como Bossa Nova, ditadura e alguns artistas com quem conviveu e trabalhou, tanto como músico, quanto como produtor e diretor de gravadora. Eis a matéria:
Nascimento da Bossa:
"Não dá pra dizer que existe uma data de nascimento da bossa nova, do começo. Existe uma chegada por vários lados, ao mesmo tempo. O universo todo deu condições para que aquilo acontecesse, e justamente naquela hora.
Nós éramos um grupinho de Copacabana que usava a praia em todas as possibilidades que ela oferecia. A gente jogava futebol, vôlei, namorava, se encontrava. O nosso escritório era a praia. O que favoreceu muito foi o fato de a casa da Nara Leão ser em frente a ela, e era um apartamento muito bom para  a época.
Além disso, seus pais, muito liberais, preferiam que os amigos fossem a sua casa do que saíssem. Essas condições todas fizeram com que os encontros fossem ali, na beira de Copacabana, o que proporcionou uma influência do mar e da natureza na música muito grande.
Era uma turma esportista e isso fez com que mudasse um pouco o foco do assunto das letras na época. A geração anterior à nossa era a que se encontrava nos bares depois do trabalho - com essa dinâmica, as letras falavam de perda, de tristeza, 'ela me deixou', o assunto se focava principalmente nisso.
E nossa visão da vida era de natureza, esportista, o mar, as casas de verão, os barquinhos... Acho que calhou de produzirmos uma música que a juventude que habitava ou que estava chegando ao Rio de Janeiro se identificava e precisava - era época também do boom das universidades. Eles procuravam uma nova forma de estudo, de vida e, naturalmente, de uma nova forma de expressão por meio da música. A bossa nova caiu como uma luva.
Por isso os primeiros shows foram nas universidades, e apoiado por elas. Nós tivemos tudo aberto pra chegar."
Capa da revista Zero nº 14
Tom Jobim, Vinícius e João Gilberto:
"Nós somos de uma geração depois da deles, e quando você tem 18 anos, oito anos de diferença é bastante. O Tom era um cara que trafegava no que a gente chamava de moderna música brasileira. Ele fazia parte desse grupo com os intérpretes, e nós estávamos à procura dessa tal música nossa, à procura da batida, do violão. A gente não sabia tocar um samba e até hoje eu não sei tocar (risos). Assim, buscávamos nossa maneira própria de tocar samba. Mas, ao mesmo tempo ouvíamos muito jazz, porque era a única música de que a gente gostava mesmo.
Recebíamos informação, influência do jazz, por meio dos musicais da Metro, do cinema, e vivia fuxicando discos. Não tínhamos aqui os grandes concertos do gênero, nossos ídolos eram todos de fora. Então, procurávamos imitá-los, mas sempre ouvindo as novidades do Jobim e de outros compositores daqui.
Até que Jobim começou a ter notícias da meninada que estava procurando fazer uma coisa na mesma direção que ele. A gente não o encontrava, mas foi acontecendo uma aproximação natural. Num apartamento que o Carlinhos Lyra e eu alugávamos, criamos uma academia de violão, e ensinávamos quem quisesse aprender. Aí o Jobim bateu lá um dia, final de tarde, em que eu estava dando aulas para uma menina, e disse: 'Menescal?'. Eu, emocionado, né?, aquela figura na minha frente. Aí ele me chamou para gravar a trilha do Orfeu, larguei a menina na aula e fui embora com o violão.
Esse foi um acontecimento muito importante não só pra mim, mas pra toda a nossa turma. Primeiro porque foi um contato musical de fato, e depois porque foi um elo que começou a ser criado. Ele queria pagar um cachê, e eu achava um sacrilégio ele me pagar - eu é que queria pagar um cachê pra ele, por trabalhar ao seu lado. Então, ele me levou pra jantar e disse: 'Então eu te pago um jantar', e me deu a dica:
- 'O que você está fazendo?'
- 'Ah, eu estou estudando pro vestibular de Arquitetura.'
- 'Mas você não quer ser músico? Então estuda música. É tão simples!'
E eu saí dali decidido, parei de estudar. Só que a partir do momento em que você para de estudar, tem que seguir uma profissão. E a turma que estava em volta - por isso te digo que foi importante - levantou aquela bandeira: 'Vamos ser músicos, profissionais.'
Ao mesmo tempo, eu estava na minha casa em uma festa - Bodas de Prata dos meus pais - e aquela situação toda formal, eu estava atendendo a porta, recebendo os presentes, as pessoas, quando toca a campainha. Era um cara em manga de camisa. Pensei que fosse entregar alguma coisa, e ele perguntou: 'Você tem um violão?'
Respondi: 'Mas o que é? Está tendo uma festa aqui.'
E ele: 'Mas não tem um cantinho?'
Sem saber quem era, levei-o pro meu quarto, e quando ele deu o primeiro toque eu disse: 'Você é o João Gilberto?'. E ele: 'Como você sabe?'
- 'Pela sua música, eu disse (risos)
Aí saí com ele e voltei três dias depois, após mostrar aquela peça pros meus amigos. Então você vê que as coisas chegaram juntas, foi muito fácil o começo."

(continua)

segunda-feira, 27 de abril de 2015

Paulo Leminski: O Mundo Acabou em 1925

Atitude, a última obra de arte possível do século quer nasceu futurista transformou o redondo em quadrado no cubismo, arrepiou os cabelos com o expressionismo, transformou a arte em utilidade na Bauhaus, transformou sonhos em realidade no surrealismo e dinamitou tudo nessa Armagedon que foi o movimento Dadá (Cabaré Voltaire, 1916)
Depois do dilúvio e do apocalipse, só artesanatos. A arte, a Grande Arte acabou com a 1ª Guerra Mundial e a Revolução Russa.
Toda a arte do século XX é mero artesanato, nenhum passo além das vanguardas entre 1908 (futurismo) - 1925 (surrealismo).
A grande arte do século XX é o cinema, arte tecnológica e de feitura coletiva dependente em tudo de inovações industriais (som, cor, cinemascope, som Dolby, vídeo-cassete), coletivamente feito, coletivamente consumido.
Os europeus, letrados, inventaram nos anos 60 o "cinema de autor", (Godard, Resnais, Malle, Antonioni), filmes assinados, até caligraficamente, como um poema ou um livro. Bobagem: que seria de um filme de Fellini sem a trilha sonora de Nino Rota?
Os americanos, mais à vontade no século XX, nunca tiveram dúvidas.
O grande John Ford ficou surpreso quando foi recebido em  Paris pelos críticos dos "Cahiers du Cinéma" como um gênio. Ele sempre se considerou apenas um eficiente empregado dos grandes estúdios de Hollywood.
Como o cinema, síntese de artes, a arte no século XX só progrediu nos seus "fronts" tecnológicos. Novos instrumentos na música.
A Grande Arte já foi toda feita. É um gigantesco lixo donde a humanidade criativa agora extrai a matéria-prima reciclada para expressar a sensibilidade e produzir emoções.
Na literatura, a mais conservadora das artes, tudo já estava feito mais ou menos aí por 1925.

                                                                                                                               Paulo Lemisnki

domingo, 26 de abril de 2015

Veludo ao Vivo - 1976

A banda Veludo era uma das mais importantes do rock brasileiro dos anos 70. Ao lado de bandas mais fam é sempre lembrado quando se fala de rock brasileiro daquele período. Tive a oportunidade de assistir a um show da banda em um festival que aconteceu em minha cidade, Campos dos Goytacazes/RJ, em 1975, abrindo para os Mutantes e o percussionista Dom Um Romão, e pude testemunhar a energia da banda no palco.
Em sua edição nº 24, de outubro de 1976, o Jornal de Música, em sua seção "Ao Vivo", é feita uma resenha de um show da banda no Teatro Teresa Raquel, no Rio, um espaço onde sempre rolava grande shows de MPB e rock. A matéria é assinada por Ezequiel Neves, e é intitulada "Veludo, Agora Um Som Latino". A formação da banda já estava bem modificada em relação à mais conhecida, mas pela crítica, a banda estava tomando um bom rumo, com a entrada de novos integrantes. Abaixo a reprodução do texto:
"O Veludo tem uma longa história. Primeiro era conhecido como Veludo Elétrico (idos de 72), e depois disso, a maioria de seus participantes se dispersou por outras bandas. Paul de Castro (guitarra) segurou a barra com seus blues elétricos e o Veludo prosseguiu sua eufórica caminhada em 73/74. Me lembro de um show no João Caetano onde o grupo apareceu com uma formação de deixar todo mundo de quatro. O show era dividido com o Vímana, Mutantes e Terço. Mas me lembro mais do assalto sonoro detonado por Paul e Cia: a banda estava de lascar, com metais explodindo e um balanço de fazer dançar múmia de faraó.
Depois disso houve uma fase meio desiquilibrada. Entre a fidelidade ao blues e os voos progressivos eruditosos, Paul de Castro optou pelo segundo lance. E veio o dilúvio afogando Paul, Nelson Laranjeiras (baixo), Elias Mizhari (teclados) e Aristides Marques Mendes  (bateria). O requiescat in pace aconteceu no Maracanãzinho, quando o quarteto abriu o show de Bill Halley. As vaias foram maiores que as que Nana Caymmi ganhou em todos os Festivais da Canção.
Quando Paul resolveu deixar o quarteto para entrar nos Mutantes pensei que o Veludo fosse, definitivamente, bater as botas. Fiquei no pensamento, pois uma tarde topei com Aristides, que me contou coisas amazings. Além de dizer que o Veludo já estava ensaiando com muita gente nova, me contou também que o seu negócio não era martelar a bateria, e sim atacar de guitarrista.
Dito e feito. Fui ver o novo Veludo numa segunda-feira, no Teresão, e saí de lá ouriçadíssimo. Não que a nova banda esteja tinindo, mas o que vi e ouvi dá pra sacar que lances melhores ainda vão pintar. Em primeiro lugar, o Veludo agora é um septeto (Aristides, guitarra e bandolim; Nélson, baixo; Elias, teclados; Afonso Correa, percussão; Paulo Norte, flauta e guitarra; Flávio Cavaca, vocal, percussão, violão; e Pedro Pedra, vocais), o que abre novas possiblidades sonoras e um largo campo para improvisações. E o melhor: a banda está mesclando muito bem o balanço da percussão, um som latino ao extremo, com investidas bem próximas ao som progressivo muito elitista. E o rock come solto, deixando a garotada na maior euforia.
Ainda acho que as novas composições (não guardei o nome de nenhuma delas) precisam ser mais elaboradas e definidas, mas isso são grilos que o tempo apagará. O que precisa ser dito é que as grandes forças do grupo são mesmo Nélson e Aristides. O primeiro está simplesmente esporrante, louco, diabólico - arrojando uma técnica fantástica. O segundo, além de de ser bastante desinibido no palco, faz misérias e cospe fogo à guitarra. E faz tudo sem nenhum show de exibicionismo, apenas se esbaldando com o que adora fazer, e faz bem às pampas... Quer queiram ou não queiram: estamos diante de um dos melhores guitarristas do Brasil.
PS - O grupo Apaluza abriu o show do Veludo. Apesar dos integrantes muito bons, o Apaluza ainda está verde."

sábado, 25 de abril de 2015

Egberto Gismonti - A Música do Astral Para Fazer Dançar a Cabeça - 5ª Parte

"Egberto entende o Brasil através de uma frase de Teixeirinha, o cantor sertanejo: 'Ele tem uma frase ótima que define essa situação com clareza. Uma vez um repórter perguntou ao Teixeirinha porque ele não fazia um show no Anhembi ou no Maracanã. Ele respondeu que era porque ele trabalhava no resto. E o Brasil é isso aí. Tem Rio de Janeiro, São Paulo e o resto. Tanto a nível de cultura quanto de política. Achar que está difícil o Rio e São Paulo em peso, eles acham. Somou 20 milhões de pessoas. Para 120 milhões de pessoas isso é minoria. Em Cuiabá eu achei duas pessoas que concordaram com esse raciocínio. As outras não. João Pessoa, Natal e Belém, a mesma coisa. Lá as preocupações são outras.'
Egberto Gismonti é uma pessoa que acredita. Nos Estados Unidos, onde viveu durante um tempo da vida, filiou-se a uma seita denominada nanmyorroringuekuiô, mas que já não frequenta no Brasil: 'Lá, essa seita é muito conhecida, e me ajudou a aliviar a tensão, bem mais forte lá que aqui. Através das reuniões e desse som - nanmyorroringuekuiô - , e outros parecidos que têm num livro de umas 100 páginas, eles pretendem criar um novo som que estabeleça uma relação deles com o astral da natureza. E ajudou, porque lá você tem um rolo compressor muito mais pesado do que aqui. Os problemas são os dele, não os nossos. Você ouve falar em metalúrgico mas não sabe quem é o Lula, o que é o PT.'
A natureza está sempre próxima à vida de Gismonti. Da viagem ao Alto Xingu ele trouxe uma energia que lhe possibilita um equilíbrio nem sempre ao alcance de todos. 'Apesar do que me aflige muito, e aflige a todo mundo, essa instabilidade, a dependência dos humores, ninguém saber como será o jogo da economia amanhã, hoje a taxa de inflação é tal e de amanhã ninguém sabe, apesar disso tudo, eu tenho conseguido me equilibrar razoavelmente. Através dos meus amigos, da música, da pintura, da literatura, eu chego a um estado bastante saudável. Consigo me equilibrar razoavelmente entre o que eu chamo de natureza e cultura.'
'A partir de um certo momento, começou a entrar outra coisa na minha cabeça que veio desencadear uma brincadeira muito grande, mas que é sustentada não por otimismo e bom humor. O que sustenta é acreditar que ainda dá pé para o homem. E só posso levar isso com muito humor e uma solidariedade razoável. Sem esses dois componentes, não dá.'
'Deu pra sentir como é a tribo do Sapaim lá no Alto Xingu, perto do Posto Leonardo, no meio da Floresta Amazônica. Mas dá para transportar uma energia muito violenta através da cultura deles e conseguir mantê-la há três anos e pouco viva no Rio de Janeiro. Nessa cidade, andando na Avenida Rio Branco, dá pra sacar onde está o riacho, o capim, a saúva que morde porque você pisou na casa dela, o tatu que fez um buraco. Quer dizer, dá para sentie a natureza que eu vi de perto e me provocou uma energia que me permite suportar a vida nessa cidade e conseguir separar a impossibilidade de se viver dentro de uma cidade como essa, da relação afetiva que eu tenho com as pessoas.'
Egberto e Naná Vasconcelos
Egberto tem algumas certezas. Como a de que, com ele, avião não cai. 'Se cair, o problema é dele, eu continuo voando. E também aprendi isso com a solidão. A mesma solidão que me forçou a carregar minha casa dentro de mim. Onde eu me sento é a minha casa. Vou para lá, para cá, e minha casa vem junto. A cada lugar ela ganha um movelzinho, um adorno. Mas ela está dentro de mim'. Como a de que ainda há muito o que fazer: 'O que eu faço ainda não está feito. Faço música há muito pouco tempo. Ainda há muitas combinações a experimentar. E tenho certeza de que vou chegar a uma música que ainda será uma saída para a música instrumental do Brasil.' "

sexta-feira, 24 de abril de 2015

Egberto Gismonti - Música do Astral Para Fazer Dançar a Cabeça - 4ª Parte

"E essas pessoas que estão no Jornal Caipira são seu alimento maior. Delas recebe não só os atos criativos como indicações do que deve ou não ser lido ou visto. Egberto depende profundamente dos amigos. Como da carta astral que recebe mensalmente e dos encontros, que se repetem mês após mês com seu pai-de-santo. 'Vou lá mensalmente, conversamos muito, ele joga meus búzios e chegamos a acordos ótimos.'
Como artista sensível e brasileiro, ele tem ideias definidas sobre o país. E não negaceia: 'Eu vejo o Brasil muito de fora. Mais de fora do que de dentro. No plano das artes, vejo um momento de muito mais coragem do que antes. Tem muita gente que resolveu se produzir. Outro dia, seis caras me pediram para vender seus livros na entrada de um show que fiz em Cuiabá, livros independentes. E eles me falaram de artistas plásticos que já trabalham com xerox e que também queriam expor. Olha bem, trabalhando com xerox em Cuiabá. Eu acho que o momento é de coragem por causa disso, mas não de esperança. As pessoas ou dão ou descem. Está tudo dificultado, apesar da aparência de facilidade.'
Esse momento de coragem, porém, tem merecido uma certa reserva por parte de Gismonti. Apesar de não caber uma comparação do mercado fonográfico nacional e do norte-americano, a confrontação é inevitável: 'Eu acho isso muito positivo, mas não sei onde vai dar. Isso ocorreu nos Estados Unidos há 30 anos, e caso se repita aqui, vai ser horrível. O que começou com os Irmãos Espelunca acabou virando CBS e Warner Brothers e acabaram contratando o Pelé por 100 milhões de dólares. A gente vai ter as grandes companhias brasileiras e é irreversível, não tem jeito não. É como a mata que acaba, o índio que acaba, a avó que morre. Cresceu, cai nisso aí. E eu não tenho a menor ideia de como se sai disso.'
Viajando em turnês, dando espetáculos por todo o país, Gismonti tem uma visão ampla do Brasil e do momento atual. 'Acho que tenho muito pouco a acrescentar no tocante a economia, sociedade. Concordo com o que a minoria está achando. Concordo que está impraticável, que está inseguro, que está indefinido, que apesar da gente ter eleições no ano que vem isso não está dizendo nada, concordo que esta suposta democracia que está aparecendo não alivia em nada a barra dessa geração de 30 e poucos anos.'
Nós já pagamos os 15 primeiros anos e vamos pagar com mais 10 de fome. Coisa da nossa geração, estamos levando porrada. Quer dizer, o cara fez 15 anos, debutou, virou tudo em 64. Aí disseram não, falaram em desafogar, mas com certeza até os 40 e poucos anos essa porrada vai continuar firme. Isso para essa minoria etária, da casa dos 30 anos. E quem concorda com isso é uma minoria, não é maioria não. Quer dizer, quando se fala em Brasil, as grandes maiorias são minorias.' "

(continua)

quinta-feira, 23 de abril de 2015

Egberto Gismonti - Música do Astral Para Fazer Dançar a Cabeça - 3ª Parte

"Egberto passou a fazer uma música de acordo com o tamanho das pessoas, e expôs-se à crítica. E o primeiro produto foi um trabalho realmente anárquico, já dentro dessa fase de questionamento dos conjuntos. Pronto para gravar um disco na Alemanha com mais ou menos três brasileiros, os planos mudaram. A isenção do depósito compulsório (*), de triste memória não lhes foi concedida. Egberto só tinha o suficiente para a sua e acabou embarcando sozinho. Lá perpetrou, em cumplicidade com Naná Vasconcelos, uma peça de berimbau e orquestra sinfônica.
Mas ele não inclui aí nenhuma coragem: 'É um negócio tão maluco que dá certo, escreva-se o que se escrever. A crítica alemã se rasgou em elogios, mas localizando a coisa sob outro aspecto. Eles não têm a menor noção de que berimbau se toca no sarro. Não sabem que a moeda toca cada vez em um lugar diferente da corda porque o dedo vai-se cansando. Aí ficou engraçado, porque eles comentavam as comas que o Naná conseguia, analisavam tudo. O disco, quando saiu no Brasil, teve críticas do tipo 'mas que falta do que fazer'. E na Alemanha eruditizaram o berimbau.
Essa forma de anarquismo, porém, não se estende à orientação política de Egberto. Sem tomar conhecimento da política partidária, ele tem intimidade absoluta com a política fonomecânica, como contratado de multinacionais. Convivendo com os grandes capitais da indústria de discos, ele assimilou a política em suas formas contratuais e editoriais. E a domina com maestria suficiente para ser, como afirma brincando, o Departamento Cultural de sua contratante.
'O fato de eu não querer demais nem de menos me fez exercer a profissão de músico dentro de um processo político-econômico que não permitia. E me possibilita ficar seis ou sete anos em uma companhia fazendo discos caríssimos que não vendem comparados a outros. E felizmente os caras continuam a aceitar isso. Aceitam porque eu sou mais importante que a música que eu faço. Tanto que meu nome é muito mais conhecido que minha música. E essa situação vem de que as companhias de discos são obrigadas a prestar contas aos seus acionistas do que venderam e também do que fizeram, sobretudo sendo uma multinacional. Eu estou no campo do que fizeram, não do quanto venderam. Por isso eles me permitem fazer coisas dentro dessa crise do mercado fonográfico.'
 E não é só isso que lhe permitem. Permitem muito mais. Como o Jornal Caipira, de 14 páginas, que acompanha cada disco de Gismonti, mesmo que nada tenham a ver com as matérias nele contidas. Nele colaboram os amigos. Nomes como Carlos Drummond de Andrade, Geraldo Carneiro e Ferreira Gullar. 'Essas pessoas têm muita influência no que faço. Ouvimos juntos, eles julgam, criticam. E um dia resolvi colocar alguma coisa a mais  nos meus discos. É muito pouco 30 minutos de música por 800 cruzeiros, não acha? E resolvi pedir a essas pessoas que colocassem alguma coisa delas nesses jornais. Hoje, já há até uma empresa de aparelhagem de som disposta a patrocinar o Jornal Caipira. A ideia está sendo sedutora. De repente, eu tenho um jornal de circulação nacional. Só eu e o Roberto Marinho. Não é ótimo?' "
Esse jornal deixa claro que a música não o preenche totalmente. Desenhista bissexto, Egberto Gismonti lê bastante. Em Fernando Fernando Pessoa, ele encontrou muito o que pensar sobre a solidão, um de seus temas fortes. 'A prosa de Fernando Pessoa deve ser lida por vários motivos. Primeiro, porque economiza uma boa grana de analista numa época em que se ouve, e sabe-se que é verdade, as pessoas dizendo que moram em tal prédio já lá se vai tempo e nunca viram o vizinho. E segundo, porque me parece necessário o conhecimento da história de um sujeito profundamente solitário e que teve a felicidade de saber escrever sobre tudo que tinha por dentro. Porque a história dos solitários a gente só fica conhecendo através do noticiário criminal dos jornais. Ler o Fernando Pessoa me ajudou a compreender que a capacidade do ser humano de suportar dor e alegria é muito maior do que eu acreditava.' "
(*) Havia uma lei que obrigava os brasileiros que viajavam para o exterior, a depositarem um valor, que depois era devolvido pelo Governo, chamado Depósito Compulsório, o que onerava ainda mais as viagens internacionais.

(continua)

quarta-feira, 22 de abril de 2015

Egberto Gismonti - Música do Astral Para Fazer Dançar a Cabeça - 2ª Parte

"Experimentar combinações diferentes está no sangue de Egberto, um sangue onde convivem e exuberância italiana e a sagacidade árabe. E reúne a tendência ao misticismo dessas raças, um misticismo que sempre encontra uma forma de se sobressair. A música sacra faz parte de sua iniciação, como os dobrados com que o avô e o tio embalavam os sonhos que povoavam os crepúsculos dos domingos do Carmo.
'Eu soube desse misticismo através das pessoas. Elas vinham e falavam disso comigo', relembra. Também por parte dos críticos, 'mais os estrangeiros que os brasileiros'. Egberto lembra com humor a crítica que Chris Albertson, do mensário americano Stereo Review, fez do disco Solo: 'Foi curiosíssima. Ele conta que chegou em casa e colocou o disco. De repente, teve a impressão de que estava conversando com alguém. E quando terminou, travava uma verdadeira discussão. 'Não concordo com isso ou com aquilo', dizia ele. E para um americano escrever isso, é porque deve ter sido razoavelmente forte.'
A gravação de Solo foi uma nova experiência para Egberto. Depois de tocar sozinho no estúdio durante cinco ou seis horas, o produtor Manfred Eicher pediu-lhe para voltar no dia seguinte e tocar o que ele não sabe. 'Ele achou que eu só tocara o que sabia, havia sido como num show'. Egberto voltou no dia seguinte e, sem saber direito o que fazia, gravou um novo disco. 'Quando comparei os dois, não tive a menor dúvida de qual era o melhor.'
Não são poucas as provas do misticismo que impregna a sua música. Recentemente, Egberto recebeu um convite do diretor de O Exorcista para musicar a cena mais forte de seu novo filme, Cruising. 'São 14 minutos. Ele quer que eu vá para o estúdio, assista a cena quantas vezes quiser e faça essa trilha. E uma das condições é que eu pegue um avião de volta assim que terminar, para que não possa mudar nada.'
Em janeiro, Gismonti fez um espetáculo no Teatro Castro Alves, na capital da Bahia, o centro do misticismo no Brasil. 'Foi uma coisa que me alegrou muito. Do lado tinha um show do Moraes Moreira, que é carnaval puro, do outro lado tinha não sei quem, também tocando carnaval. A moçada entrou ouriçadíssima. Mas depois de 20 minutos havia outro espírito. Estavam todos calmos, um relax total.' Egberto tocou durante três horas, e sua música foi forte o suficiente para fazer o povo de Salvador esquecer por algum tempo seu carnaval. 'As pessoas sempre comentam que a música está mexendo com alguma coisa diferente. Mas eu não notei antes, isso me veio de fora para dentro.'
Foi no Alto Xingu, porém que esse viramundo sofreu as maiores mudanças. 'Antes de ir lá, estava com Ravel, Stravinsky ou Villa-Lobos na minha música. E lá eu senti que era mais, que era a linguagem para para falar com os deuses. Os sertanistas do Posto Leonardo, onde eu fiquei, me disseram que, segundo os índios, só existem seis bons tocadores de jacuí. E um bom tocador de jacuí é aquele que consegue representar a voz dos espíritos.'
Para quem vive sentado em aviões, hotéis ou em frente do piano, a caminhada diária de ida e volta à aldeia era uma verdadeira maratona. Porém, plenamente recompensada no momento em que Aiopu disse a Egberto que seu irmão Sapaim o chamava para dentro da Casa Sagrada. 'É lá que eles guardam as três flautas jacuí. Um lugar pequeno, uns dois metros de altura, semicircular. Entrei e eles já estavam lá, uma vibração de arrepiar.'
Nesse dia, Gismonti conseguiu seu recorde: mais de 12 horas ouvindo música. 'Eles começaram às sete da manhã. Ao meio-dia, deram uma parada e eu pedi ao Sapaim que voltasse à primeira música, e ele respondeu que já não podia mais. O sol havia mudado de posição. E continuou tocando. Depois de 12 horas de música, me dei conta de que eu já nem sabia quem era o instrumento, o músico, a música. Era um todo só.'
Depois da viagem ao Xingu, Egberto largou de lado a velha cachaça, trocou a religião católica pelo espiritismo e a companhia de numerosas orquestras por alguns acompanhantes musicais. 'Aquele dia com Sapaim foi muito forte. Pensei que nos anos e anos de escolas de música nunca haviam me falado sobre uma integração tão grande, uma relação tão íntima entre música, músico e instrumento, pontifica.'
'A partir desse momento, a orquestra desapareceu da minha vida. Eu me toquei que não sabia ao menos como era a relação do músico com o seu instrumento, quanto mais do músico com seu instrumento com outros músicos e seus instrumentos. Era coisa demais para minha cabeça. Pude me aprofundar muito mais no que eu sabia fazer e a música passou a ter uma outra função. Passei a ter mais coragem como músico. Era bem mais fácil me cercar de uma orquestra e fazer uma música incompreensível mas respeitável. Já fazer essa música com mais um ou dois fica bem mais frágil, sobre uma linha mais fina. A grandiosidade assusta as pessoas o suficiente para que elas não se coloquem como críticas. Na medida que você faz um rolo compressor, não dá pra criticar.' "
(continua)

terça-feira, 21 de abril de 2015

Egberto Gismonti - Música do Astral Para Fazer Dançar a Cabeça - 1ª Parte

Tenho guardada  entre várias antigos recortes que preservo em uma pasta, uma xerox com várias páginas de uma boa matéria com Egberto Gismonti. Não dá para identificar de qual revista eu copiei, mas talvez seja da revista Planeta. A data, eu creio que seja 1981 (já que não há nenhuma referência quanto a isso). O texto, que tem por título "Egberto Gismonti - A Música do Astral Para Fazer Dançar a Cabeça"  foi escrito por Lito Cavalcanti, que aqui reproduzirei em várias partes, devido à extensão da matéria:
"Aos 34 anos, Egberto Gismonti ocupa a cadeira reservada à música no cenário da intelligentsia brasileira. A ele, toda a cultura nacional tributa  a mais profunda reverência. Nos já longos 13 anos e mais de 20 discos - dos quais nove no exterior, seu maior mercado - em que paira sobre a música de vanguarda, Egberto já gravou em 22 países e é hoje detentor de um prêmio Grammy, a versão musical do Oscar.
Se isso já lhe granjeou o respeito internacional, nem sempre, porém, lhe rendeu o entendimento. O disco Dança das Cabeças, gravado com o percussionista Naná Vasconcelos, foi brindado com o Disco do Ano em cinco países nas mais discrepantes categorias. Música pop na Alemanha, brasileira no Brasil, folclórica no Japão, experimental na Inglaterra e jazz nos Estados Unidos.
'Ninguém entendeu nada', dirão os mais afeitos à compartimentação dos rótulos. 'Cada um viu de um lado que a música contém', analisa o autor. 'Cada pessoa vê cada coisa de uma maneira diferente. Cada um vê o que procura', sentencia esse músico de extremos. Egberto Gismonti toca com a Sinfônica de Boston, com Herbie Hancock ou Miles Davis. Mas também se dispõe a caminhar dois quilômetros e pouco de selva amazônica, carregado de violões e quejandos - logo ele, um sedentário contumaz - na ida e na volta para, durante dez dias ininterruptos, sentar-se à entrada principal de uma aldeia indígena no Alto Xingu e tocar até o anoitecer para uma plateia capaz do mais pétreo mutismo. Toda essa maratona para, um dia, ser admitido à Casa Sagrada, uma oca apertada, e ver durante mais de 12 horas o indio Sapaim tirar os menos ortodoxos sons da jacuí, a flauta sagrada nativa.
Popularesco para os eruditos, eruditizado para os populares, Egberto Gismonti não cabe no hermetismo dos chavões. Dono de uma inteligência minuciosa, que arde como a brasa lenta de Sagitário - seu signo - mas procura a profundeza das águas de Escorpião - o ascendente - esse filho da minúscula cidade do Carmo, no Estado do Rio, carrega no peito toda solidão do mundo. Com ela aprendeu a conviver ao chegar ao Rio de Janeiro, mal saído da puberdade. Fazendo uma música que ninguém aceitava e sólido na decisão de não abrir concessões, o meninote ganhou a porta do mundo. E conheceu a aridez de terras estranhas, o deserto de hotéis e aviões. Durante anos, o que mais ouviu foi 'o concerto foi lindo. Espero revê-lo no próximo ano. Até logo.'
Egberto aprendeu a vida pelo lado mais aflitivo. Talvez por isso hoje a pretenda lúdica. 'Só quero me divertir. Acabou a brincadeira, não quero mais.' Uma possível volta à infância tranquila no Carmo, filho de família estável do ramo da boa pinga, tão ligada à sua vida quanto a música, que o atavismo lhe impôs. 'Trabalho só quero ter com o Alexandre', decreta. Fala do filho que tem com Rejane, um marco na vida. Para ele, o início da Era de Aquarius. 'Ela chegou para mim quando nasceu meu filho, a 13 de fevereiro.'
A música está em tudo que o cerca. Sua fala é onomatopaica. O disco Em Família  começou a ser gestado quando o ventre de Rejane começou a ceder ao pequeno corpo em formação. Mas nem por isso Egberto dá à música o superdimensionamento comum aos aos que dela vivem. 'Eu sou muito mais importante que minha música. Eu e qualquer um. A música é parte de uma pessoa e deve ser vista apenas como parte. Esse é um ponto que eu gosto de debater com os críticos. No Brasil, ninguém fala da música especificamente, e sim da pessoa. Eu não concordo com isso em hipótese nenhuma. A música que um cara faz é um troço tão pequeno. Como se pode saber de uma pessoa por meio de uma música que dura só três minutos?' Pergunta indignado.
Uma postura incongruente para quem moureja a maior parte da vida sobre o teclado de pianos ou as cordas de violões. Pode ser. Mas uma vida é pouco para um músico disposto a tentar todas as combinações de sons - nem sempre musicais - do universo. 'Tenho a mais absoluta certeza de que vou fravar muitos discos até morrer', vaticina."
(continua)

segunda-feira, 20 de abril de 2015

Descobrindo a Banda Ten Years After

Muita coisa de rock eu conheci primeiramente através da leitura, e às vezes muito tempo depois pelo som propriamente dito. Eu costumava ler revistas sobre rock, e tomava conhecimento da existência de diversos artistas e bandas, sabia as formações das bandas, os títulos e capas dos discos, mas não tinha contato com a música propriamente dita. Aos  poucos fui tomando contato com a música, em programas de tv dedicados ao rock ou em poucos programas de rádio especializados em rock, como o clássico Sessenta Minutos de Música Contemporânea, que eu conseguia captar através da Rádio Jornal do Brasil AM, do Rio. Como não tinha nenhum amigo mais próximo que possuía discos de rock, também não tinha como conhecer melhor o som das várias bandas que eu passava a conhecer só por ouvir falar ou ler em revistas. Curiosamente, eu costumava conversar com pessoas que realmente conhecia muitas bandas, e pelo conhecimento teórico que eu tinha das bandas através da leitura, falava como se eu também conhecesse o som das bandas, pelas citações que eu fazia.
Uma das bandas que eu descobri através de uma matéria em revista, mas que só fui conhecer sua música alguns anos depois, foi o Ten Years After, através de uma matéria publicada na revista Pop, especializada em rock e comportamento jovem, e que eu sempre lia. A matéria, publicada em outubro de 1974, tinha por título "É o Rock a Mil por Hora", em uma alusão ao estilo ligeiro com que o líder da banda, o guitarrista Alvin Lee tocava sua guitarra. As fotos da matéria são exclusivas, clicadas por um brasileiro, Antônio Ferraretto DÁvila. Segue a matéria:
Leo Lyon, baixista do Ten Years After
"Frenéticos solos de guitarra num timbre quase estridente, e uma velocidade incrível - esta é a marca registrada do som do Ten Years After, conjunto inglês formado em 1967 que se mantém até hoje com os mesmos caras: Alvin Lee na guitarra e vocal, Leo Lyons no baixo, Chick Churchill nos teclados e Ric Lee na bateria. Os solos alucinantes brotam como mágica, dos dedos de Alvin, o líder do grupo, considerado o guitarrista mais veloz do mundo. Isso é motivo de orgulho, mas também de preocupação para Alvin Lee: 'Se eu ficasse o dia inteiro em casa, treinando, poderia ser ainda mais rápido. Mas, e daí? Nós queremos levar uma música legal para todo o mundo, e não ficar apenas mostrando que eu posso ser o guitarrista mais veloz.'
Alvin Lee
A explosão do Ten Years After foi no Festival de Woodstock, em 1969. Numa apresentação memorável, estraçalhou o rock I'm Going Home com um de seus frenéticos solos e depois deu um desdobre tremendamente sensual com o microfone, cantando com os lábios grudados nele, como se estivesse deixando ali os beijos que queria distribuir para o público.
A partir daí, o Ten Years After (que só era curtido na Inglaterra) garantiu seu lugar no coração da garotada de todo o mundo e passou a ser respeitado como um dos grandes conjuntos de rock. Mas Alvin Lee e seus amigos logo trataram de mostrar que não é só do rock que eles se alimentam. E toda a carga sensual dos blues negros negros começou a aparecer em seus discos e shows. E é assim, calcado nos blues e no rock puro, que o Ten Years After está fazendo shows incríveis, enquanto seu novo disco, Positive Vibrations, vende milhares de cópias nos EUA e Inglaterra."

sexta-feira, 17 de abril de 2015

Belchior: Um Grito da Juventude Sufocada

Belchior é sem dúvida um dos artistas mais representativos de sua geração, aquela que se destacou nos anos 70. Tendo alcançado um reconhecimento em 1971, quando saiu vencedor do Festival Universitário da TV Tupi, com Hora do Almoço (na época, estudava Medicina), Belchior veio conhecer o sucesso de verdade em 1976, quando Elis Regina gravou Como Nossos Pais e Velha Roupa Colorida, de sua autoria, e mais tarde, no mesmo ano, quando gravou seu segundo disco - Alucinação.
Em 1980, a revista Música nº 41 trazia uma boa matéria sobre Belchior, escrita por Luiz Sérgio de Viveiros, e que trazia um belo título, que refletia bem os temas mais usuais em suas letras: "Belchior: Um Grito da Juventude Sufocada";
"Um dos melhores letristas  surgidos pós-tropicalismo foi Belchior, um cearense criado em  Sobral, e que vindo desse interior sem parentes importantes e sem dinheiro no bolso, se tornou um sensível repórter dos conflitos da juventude brasileira e latina (da América do Sul).
Seu trabalho é coerente e contínuo dentro de um estilo poético caracterizado pela crueza dos fatos, pelo clima concreto e relativamente subjetivo que envolve sua música/poesia.
O primeiro disco solo foi gravado em 1974 na Chantecler, contendo a antológica e fundamental 'Na Hora do Almoço', música que situa a família num cotidiano, até irônico e passivo. Essa letra envolve símbolos do paternalismo - presente em nossa realidade social.
Nesse trabalho há outros momentos envolvendo (paralelamente à sua poética)  a realidade, talvez mais nordestina que brasileira. E uma música muito forte: 'Senhor dono da casa', que encara frente a frente e 'exploracion'.
Em 1976, viria o Alucinação (Phonogram), um disco ótimo e fundamental para a música brasileira dos anos 70. Belchior rebuscou conflitos de uma geração ainda perdida; envolvida no 'sonho' dos anos sessenta e estática perante um futuro já presente. Remexeu os quadros das memórias...
The dream is over. Era preciso gritar.
Aliás, John Lennon é um compositor que influenciou (e influencia até hoje) o seu trabalho de maneira muito especial, já que sentimos uma 'força' herdada por Belchior na temática e no estilo musical discursivo e irreverente.
Em 1977 (na WEA), 'Coração Selvagem' e 'Paralelas' marcariam o romantismo desse compositor que já não é puramente nordestino e sim reflexo da urbanidade que o cercaria desde os tempos dos cabarés da Lapa e da São Paulo violenta.
'Todos os Sentidos', de 1978, seria uma ruptura do seu trabalho com um engajamento direto. Sua mensagem viria através de uma estranha discoteca a partir de re-escritos de textos bíblicos, além da criação da imagem de mito sexual/sensual, embrionária da capa do disco anterior.
Seu mais recente trabalho, 'Era Uma Vez um Homem e Seu Tempo', é de certa forma a continuidade de trabalhos anteriores. 'Medo de Avião' estaria ligado ao 'Pequeno Mapa do Tempo'. 'Conheço Meu Lugar' é mais uma mostra de sua poética irreverente; 'Pequeno Perfil de um Cidadão Comum' enfoca o típico indivíduo classe média urbano.
Belchior é um dos mais sérios artistas de nossa música, já que seu trabalho é baseado em temas que vão desde a rotulação e os compromissos sociais, à marginalização do 'Novo', às barras do jovem oprimido nesses anos todos, à latinidade dos jovens sul-americanos, à massificação, à robotização do homem, e à polêmica man/machine."

segunda-feira, 6 de abril de 2015

Turíbio Santos Fala do Violão de João Gilberto

Turíbio Santos é um dos melhores violonistas clássicos do Brasil, reconhecido internacionalmente, e com uma ligação com a música popular e folclórica. Grande conhecedor de seu instrumento e da técnica violinística, Turíbio prestou um depoimento sob a maneira bem pessoal de João Gilberto executar seu instrumento, num caderno especial do Jornal do Brasil em 03/06/2001, em homenagem aos 70 anos de João Gilberto, completados naquele ano. O Texto de Turíbio é intitulado "João Gilberto, o Caçador da MPB":
"Uma das experiências mais curiosas que já fiz com o violão foi tentar acompanhar João Gilberto. Não. Não foi com ele ao vivo. Na realidade foi acompanhar uma gravação do cantor. Do tipo passo a passo.
Vamos imaginar você seguindo as pegadas de alguém na areia e colocando seus passos exatamente em cima dos passos da pessoa seguida. Assim, descobri primeiro a harmonia do João. Precisa, impecável, com soluções indiscutíveis. Trabalho de ourives.
Depois desvendei (ou tentei) o ritmo. Os problemas foram se complicando. A invenção do João é imbatível e o pior: sua execução é de uma perfeição que beira as raias do impossível. Maior surpresa ainda: ele extrai mensagens polifônicas (várias vozes, para os que não sabem) do seu violão, como se cada corda fosse tocada por um instrumentista diferente.
É isso mesmo. Aquele blem-blem que as pessoas utilizam para tentar ridicularizar a bossa nova, no caso dele, é a soma de conhecimentos musicais oriundos de uma prática, uma aplicação, um treinamento intenso. Coisa de João Gilberto.
Turíbio na capa da revista americana Guitar
Eu fiquei tão espantado com o resultado dessa experiência, a princípio singela e mais tarde diabolicamente complicada, que passei a entender melhor a aura de magia que envolve o cantor. Ele cerca suas canções com o instinto de um caçador. Ele as captura, se apaixona, enche de mimos, protege-as, e, finalmente, quando as liberta do cativeiro, elas têm a sua marca. Todos nós, intérpretes, fazemos isso de alguma maneira. No caso presente, o que interessa é a internsidade dessa devoção pela obra a ser interpretada. Quando ouço um Jacques Brel, uma Edith Piaf, um Sinatra ou Louis Armstrong morro de inveja da possibilidade de dizer poemas ao mesmo tempo de uma frase musical.
João Gilberto é rei desta arte: dizer um poema que não esconde a frase musical, que a realça, que a justifica. A cópia é uma das maneiras de se aprender na artes. Copiar João Gilberto é difícil, aliás, dificílimo. Mas quem tiver a paciência e a disciplina do exercício vai receber um banho de aprendizagem, uma cachoeira musical. E os que não tiverem, pelo menos fiquem atentos à concisão, à economia e objetividade desse caçador incansável da nossa música popular."