Palavras Domesticadas

Palavras Domesticadas

segunda-feira, 12 de junho de 2017

Erasmo Carlos - Revista Pop (1975)

Erasmo Carlos foi um dos primeiros ídolos que tive na música. Quando ainda era criança, a Jovem Guarda me arrebatou, e Erasmo era um dos meus cantores preferidos, ao lado do seu parceiro Roberto Carlos. Mais tarde, já adolescente, continuei acompanhado a carreira de Erasmo, que nos meados dos anos 70 fazia o que havia de melhor no rock brasileiro daquele período.  Por isso, ao fazer a  milésima postagem desse blog, eu escolhi uma matéria com Erasmo Carlos. A postagem de número mil teria de ser com alguém muito especial pra mim, por isso escolhi essa ótima matéria, publicada em maio de 1975 na revista Pop, e assinada por Eduardo Athayde: 
"Um escravo do rock'n roll. É assim que Erasmo Carlos costuma definir sua posição musical. Não nega que tenha recebido diversas outras influências - o jeito de cantar de João Gilberto, para falar de uma. Mas a música que mexe com seu sangue, que o faz ficar todo arrepiado e que ele gosta mesmo de cantar - esta música é sem dúvida o rock'n roll.
Por isso, no ano passado, depois de superar uma crise de timidez, medo, desorientação e algumas doses de uísque a mais, Erasmo lançou um LP sustentado basicamente por rock: 1990 Projeto Salva Terra. O disco, além de de colocar uma faixa nas paradas de sucesso (Sou uma Criança Não Entendo Nada), revelou um Erasmo cheio de garra e energia, buscando forças inovadoras no rock brabo dos anos 50. Em questão de de algumas semanas, o amigo 'Tremendão' dos tempos da Jovem Guarda, que há dez anos atrás não podia sair na rua por causa do assédio das fãs, estava brilhando outra vez - agora como um dos maiores troncos da nascente 'floresta brasileira de rock', como ele mesmo gosta de falar.
Ele já tem 33 anos, muitos fios de cabelo branco, três filhos e uma mulher, Narinha, que é uma verdadeira fonte de energia para o seu trabalho. E, mesmo dizendo que é 'uma criança que não entende nada', revela grande lucidez, quando fala do rock e seu envolvimento com a juventude: 'Anos atrás, a maior dificuldade do rock era o descrédito: as pessoas não sacavam sua extraordinária importância como meio de expressão dos jovens e de afirmação de um comportamento social que busca cada vez mais a quebra de preconceitos. Ninguém admitia a possibilidade de existência do rock brasileiro, e a gente era chamado de alienado... Havia festinhas em apartamentos em Ipanema onde eu nem podia pensar em tocar violão - fatalmente seria linchado'.
Mas não era por isso que Erasmo iria deixar de ser um rockeiro. Quando a Jovem Guarda acabou e a  televisão já tinha desgastado completamente sua imagem, ele ficou um tempo parado. Então, em 68, apareceram os baianos e o tropicalismo, virando a mesa da música popular brasileira.
Ao mesmo tempo em que sua cuca ficou meio fundida com tudo o que estava acontecendo, Erasmo sentiu que só havia uma maneira de conseguir sobreviver como músico: seguir o caminho indicado pelo coração, isto é, o caminho do rock. Com a mulher Narinha conseguiu a estabilidade emocional, e com ela foi aos Estados Unidos sacar o que estava acontecendo por lá.
Quando voltou, estava mais seguro de seu trabalho: 'Ocorre que no meu trabalho sempre houve muita honestidade e sinceridade, e aos poucos fui firmando minha maneira de fazer música. O que pouca gente saca é que o rock não é só um som, e sim um todo refletindo os apelos existenciais da juventude, que encontrou eco para suas mais legítimas aspirações, tais como vestir-se descontraidamente, usar os cabelos como quiser, ser dona de si mesma.
Diferente do seu (ainda) parceiro Roberto Carlos, Erasmo permanece fiel às gerações mais novas. Hoje, seu público tem muitos daqueles caras que o aplaudiam no tempo da Jovem Guarda. Mas também tem muita gente da nova geração, com menos de 20 anos. Isso seria, segundo ele, resultado de uma identificação que vai além de simples padrões de comportamento: 'A vida de cada pessoa é um livro. Eu sempre fui bandido, jamais aceitei as coisas que tentaram estabelecer pra mim. Minha geração é do tempo do cuba-libre, festinha de formatura, namorinho e uma ou outra aventura na Barra da Tijuca. Não sou homem de dar conselhos, mas acho que fazer uso de tóxicos é malandragem de otário, embora cada um seja dono de si mesmo. E uma coisa é certa: o mundo é dos jovens, e eles já se aperceberam disso. A cada dia que passa há maior abertura e surgem novas chances para os jovens consertarem o que os mais velhos estragaram.'
E houve ainda outra mudança fundamental no rockeiro Erasmo Carlos: ele renunciou à imagem inatacável e sempre adorada de ídolo, que tinha no início da carreira. Preferiu descobrir o que sobrava dele mesmo depois da Jovem Guarda, assumir os grilos e aceitar, antes de tudo, que é um cara como qualquer outro: 'Antigamente as pessoas achavam que eu era um homem de acrílico, sem diarreia, vômitos, ressacas e muitos medos. Eu era pra eles um ser casto, puro, limpo e perfeito. Claro que eu não era nada disso, mas me acostumara à ideia de nadar a favor da corrente que me empurrava. À medida que os anos foram chegando, fui me convencendo de que não era nada daquilo que eu queria. E comecei a ficar enjoado. O sucesso não é uma boa, tira toda a tranquilidade da gente. O que realmente interessa é o prestígio do seu trabalho. Cara bonita e carrão são bobagens. Atualmente nem gosto de ser artista, quando estou fora do palco - sou um sujeito comum que ama sua família acima de tudo e que luta pelo reconhecimento de seu trabalho. Não posso dizer que repudio totalmente o comportamento das fãs daquele tempo, mas agora, quando saio na rua, as pessoas me reconhecem e me respeitam. Isso sim, é uma muito boa'.
E reconhecimento ao seu trabalho é o que não falta. Seu disco foi bem recebido por toda a crítica especializada e provocou uma enxurrada de convites para shows. Então, no começo deste ano, incentivado por Narinha, Erasmo deu um rolê na timidez e decidiu voltar a se apresentar aos palcos. Nada de televisão, como nos tempos da Jovem Guarda, 'porque não dá pé apresentar rock na televisão brasileira. Os técnicos não sabem gravar, você fica limitado a um espaço muito pequeno para se movimentar e o sonzinho nem dá para empolgar. É muito chato cantar pra uma máquina. Me amarro mesmo é em curtir um sonzão com a garotada vibrando, e isso só é possível em concertos, de preferência ao ar livre'.
Companhia Paulista de Rock
Assim, arrebanhou o baterista Dinho (ex-Mutantes), o baixista Sérgio Kaffa (ex-Scaladácida), o pianista Tuca (ex-Apokalypsis), o guitarrista Liminha (ex-Mutantes) e Ion Muniz, um cara que toca sax e flauta. Com esses cinco músicos fundou a Companhia Paulista de Rock, uma banda que prefere se divertir nas águas do rockão brabo a ficar se enrolando em fios e watts na procura do 'rock progressivo'. Com a banda, Erasmo fez ótimas temporadas no Rio e em São Paulo, participou de alguns festivais ao ar livre e quer correr o Brasil inteiro, este ano, levando para toda a moçada os recados e toques de um escravo do rock'n roll."
 



domingo, 11 de junho de 2017

Hermeto Pascoal - Revista Manchete (1982)

Hermeto Pascoal sempre foi reconhecido como um músico dos mais criativos do mundo. Sua forma de compor e executar suas músicas chamam a atenção pelo inusitado, e principalmente pelo belo resultado final. Falar de  Hermeto é falar de um  Brasil universal, que ganha fronteiras e conquista os ouvidos que buscam algo de novo, e encontram em sua música todo um universo musical que se abre e despeja sobre as pessoas uma música que não se prende somente a amplitude das sete notas musicais. Em 1982, a revista Manchete trazia uma matéria com esse grande músico, assinada pelo editor da revista, e crítico e pesquisador musical dos mais respeitados - Roberto Muggiati. A matéria se intitula "O homem que inventou a música". Em uma introdução à entrevista, a revista traz o seguinte texto:
"Chorinhos, zabumbas, guarânias, frevos, valsas, dobrados, xotes, xaxados, modinhas, improvisos jazzísticos e peças de ar erudito. - a caixa de surpresas de Hermeto Pascoal tem de tudo. Aos 46 anos, o mago da música instrumental voltou à cena com uma recente temporada carioca e um novo disco. Neste, o primeiro que lança depois de quase três anos, Hermeto novamente se multiplica, tocando bombardino, cavaquinho, flautas, sax alto, ocarina, bateria, surdo, percussão, piano (usa o piano acústico com folhas de jornal), hormônio, clavinet, apitos, assobio e voz, ou efeitos vocais que incluem uma 'voz satírica com apito'. Ao lado dos nomes dos músicos, figuram créditos tão estranhos como o dos 'cães vocalistas' Velho, Princesa, Bolão, Mike e Penélope, e os cantos a cargo do Galinho Garnizé e da Cigarra do Flamboyant. Enquanto não está viajando, pelo Brasil ou pelo exterior (em 83 vai repetir com seu grupo a turnê europeia do ano passado), Hermeto 'se esconde' no Bairro Jabour, em Bangu, a 40 km do centro do Rio. A gente do bairro já se acostumou com os gringos extraviados em busca do ashram de Hermeto; muitos, mesmo, desembarcam no Galeão e vão direto para Bangu à procura do mestre. Roberto Muggiati, de Manchete, achou o caminho e conversou com Hermeto sobre o seu trabalho atual e seus planos. Eis um resumo da entrevista:
Animais musicais -  'Tudo começou no Rio, há muitos anos, no FIC. Levei um porco e quatro galinhas, mas o pessoal ficou assustado, pensou que eu fosse soltar o porco no auditório. Eu tive paciência e esperei. Em Missa dos Escravos usei o porco como queria, como introdução da música com os dois violões, e a partir daí todo mundo passou a entender a minha ideia. Mas foi neste último disco que consegui um lance ainda mais bonito, com os cachorros, a cigarra e o galo. Gravei em casa, com a intenção de usar no disco, mas sem saber em que música. Queria que fosse surpresa, até para mim. Coincidiu que a passagem do galo é uma coisa maravilhosa: a música é em si bemol e, quando toquei, o galo estava em si bemol também. Tecnicamente, passamos cada som para um canal e usei os bichos em cada faixa como um instrumento. A cigarra eu vou continuar: num próximo disco quero transcrever os sons da cigarra, que são uma infinidade.'
O som da surpresa - Sintetizador? Se eu tenho minha capacidade de criação, não sinto necessidade do sintetizador. Não acrescenta nada, apenas encobre muitas coisas. Posso até tocar um, dar uma canja, mas não vou levar para um estúdio. Um estúdio de gravação é para mim como uma catedral. E já tem tanta coisa lá mesmo - um cinzeiro, uma tampa de piano - que o sintetizador é um negocinho pequenininho. E, depois, o timbre dele é horroroso, irritante. Eu gosto do som diferente. O som do sintetizador é programado, não é um som de surpresa. Quando toquei com o McLaughlin no Festival de Jazz de São Paulo, me deram um sintetizador. Eu escolhi tocar sem nenhum programa, usando-o como se fosse um simples piano. Ele e seus músicos deliraram, o baterista até rasgou a bateria e me deu um abraço que quase me sufocou. Foi uma jogada diferente: é isso que eu chamo o som da surpresa.'
Um desafio - 'Num recente programa de TV, eu falei que gostaria de fazer uma espécie de duelo - um desafio sadio - em que viesse um músico com todos os sintetizadores do mundo e eu usando o que quisesse, coisas que as pessoas me trazem, ou que eu trago de casa: um pedaço de enxada, égua com pedras dentro, uma mesa, um espelho, dois ou três cachorros pequenos. Acho que o sintetizador não dava nem pra começar...'
O instrumento Hermeto - 'Quer saber como surgiu esta coisa de usar a voz, os lábios, o corpo? Eu acho que o músico é um mágico e tudo é possível para ele. Só é preciso que confie em si mesmo. Eu imagino um cara com um lenço, fazendo uma mágica, eu me sinto assim.'
Sua obra composta - 'Fico invocado quando tento juntar minhas músicas, de tanta coisa que tenho guardada.  Pretendo lançar um dicionário-método, com meus temas escritos, cifrados e tudo, as pessoas me pedem muito. Faço música como escrevo uma carta. Nos últimos shows, eu compunha enquanto os músicos ensaiavam no palco. Por isso não ouço muita coisa dos outros, muitos discos, me dá vontade imediatamente de pegar um instrumento e sair tocando, compondo. Devo ter umas mil ou 1.500 composições, só das novas; das antigas, põe outros tantos.'
O som de tudo - 'As pessoas me trazem muitas ideias, as conversas, eu aproveito tudo, até um cara xingando, outro cara rindo. Eu vejo cada pessoa como um instrumento, um som, uma voz. Tudo isso, a fisionomia das pessoas, me atrai, me dá uma motivação, e eu saio correndo pra compor.'
O próximo disco - Agora vou dar um furo: vou fazer um disco sozinho. Sozinho mesmo... Sem instrumento, sem nada, sabe como é? Não vou levar instrumento nenhum e quero fazer tudo com a voz - ritmo, pandeiro, bateria. Vou alterar a velocidade para que a voz fique fininha e imite um trompete. Tudo que eu imaginar de instrumento que existe eu quero fazer com a voz, e com sons do meu corpo, abrindo os vocais, tipo grupo, sem escrever nada, no estúdio, usando vários canais... Vou fazer blocos, vou fazer ritmos. Vou me desafiar mesmo. E vai ser um lance fascinante...' "

sexta-feira, 9 de junho de 2017

Ednardo - Um Voo e um Berro de Iracema a Ipanema (1976)

Em 1976 Ednardo lançava o disco Berro, seu segundo disco solo, que sucedeu O Romance do Pavão Misteriozo, de 1974 e o disco coletivo do Pessoal do Ceará, lançado três anos antes. Ednardo na época estava estourado em todo o Brasil com Pavão Misterioso, tema de abertura da novela Saramandaia, de Dias Gomes. Na ocasião o jornal O Globo fez uma matéria sobre o lançamento em sua edição de 14/06/76, assinada por Tania Pacheco:
"De repente, na novela 'Saramandaia', uma música explodiu e invadiu a cidade, de Ipanema à Feira de São Cristóvão; o 'Pavão Misteriozo'. E Ednardo, um cearense de fala macia, 31 anos, que largou o diploma de engenheiro químico para ser compositor no sul, apareceu. De boné travesso, tranquilo, se despedindo das pessoas ainda bem nordestino - 'um cheiro pra você -, mas defendendo a sua música.
A canção da novela é a faixa de um elepê - 'O Romance do Pavão Misteriozo' - que não explodiu por injustiça (e a RCA nos deve uma regravação); 'Berro', seu novo disco, acaba de ser lançado. E Ednardo está aí, na sua 'Chegança', falando suas coisas, suas lutas, sua música.
FAIXA 1: PARTIDA
'Amanhã se der o carneiro/ o carneiro/ vou m'imbora daqui pro Rio de Janeiro/ As coisas vem de lá/ e eu mesmo vou buscar/ e vou voltar em vídeo-tapes/ e revistas super coloridas'
No Nordeste, as coisas tão muito na cara da gente. A todo instante. É um cara que bate na sua casa, pede um esmola e agradece cantando... Uma vez, me arrepiei todinho: o cara chegou, pediu, dei a esmola, e ele cantou uma música tão forte, mas tão forte... Não me lembro como era, mas durante muito tempo ela me marcou. E tem o cordel, que funciona pra gente como uma espécie de jornal sertanejo, onde as pessoas chegam com atraso de muitos e muitos anos. São coisas que apaixonam, que você começa a 'fazer parte', a curtir esse transação.
(Só vejo sentido na arte se ela for colhida do povo e devolvida a ele. A arte elitista é uma tentativa furada de federalizar a arte. De criar o 'artista federal').
Então, esse cordel, quando eu li, me deu um 'clique', porque eu descobri um sentimento de liberdade muito grande dentro dele. Como no cordel do Romance do Pavão Misterioso. Pintou uma espécie de paralelismo entre essa liberdade e tudo que eu estava defendendo em termos de música, de ideias, e, depois, do 'circunstancialismo' das pessoas aqui no sul.
Isso tudo tá muito presente no meu primeiro elepê - 'O Romance do Pavão Misteriozo'. Embora as músicas aparentemente não tenham nada com o cordel, têm tudo, ao mesmo tempo. Porque elas foram feitas durante certo tempo de vivência. A gente em Fortaleza, nos bares, falando em vir pro Rio, que parecia ser a capital onde a gente poderia fazer o nosso trabalho. E elas foram pintando. Por isso, o disco conta tudo, desde esse tempo em que a gente queria fazer música, vir pra cá, até o momento exato de gravar, em 1974.
'Vai, meu filho, vai/ que eu lhe dou essa medalha assim/ como o seu avô me deu/ mas a força maior, você sabe/ está em você que nasceu'.
FAIXA 2: CHEGADA
'Sorrias/ e a tua voz, estranha estrada, amiga/  perdeu-se ao longe na partida/ e não ficou ninguém em teu lugar.'
Logo que a gente chegou, depois do entusiasmo da chegança, pintou a calmaria. Tudo parado. Não dava para vislumbrar como eu ia poder mostrar as músicas, chegar ao produtor, conseguir a gravadora.  E pintou também a nostalgia.
('Na parede, o calendário/ no calendário, outro dia/ e no dia a mesma espera/ de nada esperar um dia/ no umbral da porta, já torta/ a sombra, o sombrio olhar/ e no olhar coisas mortas/ que ninguém virá velar.')
Era impossível viver no presente e as pessoas se voltavam para o passado, para a nostalgia, pra poder sair do tempo tão escuro. Eu tinha vindo direto pro Rio. Fiquei aqui um ano, procurando sobreviver de música. Quer dizer: mais morrendo que sobrevivendo. Era 1971, e a barra foi pesada mesmo. Quando já estava faltando tudo, pintou um programa na TV Cultura, de São Paulo. A gente escolhia uma pessoa, e compunha sobre o sujeito. Pintava um cachê minguadíssimo, mas que ajudava a gente a sobreviver.
Do programa passamos à gravação do primeiro elepê: eu, Belchior, Rodger e Teti. Foi o 'Meu Corpo, Minha Embalagem, Todo Gasto na Viagem', que apelidaram, simplesmente, de 'Pessoal do Ceará'.
Depois é que veio o 'Pavão', meu primeiro disco sozinho, em que pude finalmente, dizer minhas coisas. E romper com a nostalgia.
'De qualquer jeito é cedo/ de qualquer jeito há medo/ de qualquer jeito/ a força vem do braço/ ou da palavra sai/ corre/ toca o alazão, meu pai/ na poeira cinzenta o sol/ e o cavalo vai/ Estrela branca na testa/ alazão/ me veste de perneira e gibão/ arranca  o meu sorriso do chão/ abre os meus braços na imensidão'.
FAIXA 3: CLARÕES
'Há um direito e um torto, a cavalo ê/ eu não estou bem morto, cavalo ê/ corre na areia, no vento, cavalo ê/ no mato seco do tempo, cavalo ê/ pula da torre da igreja/ pula por cima da mesa.'
'Pavão' foi recebido pelo público com um silêncio involuntário. As gravadoras - não só a RCA, não! - querem faturar em cima do sucesso. Elas não dão crédito à gente. Então o disco não teve divulgação. Eu pedia poster, e não davam. Tive que usar os velhos, que a Continental tinha me dado, do disco do 'Pessoal do Ceará'. Agora, depois que a música foi para a novela, que todo mundo começou a cantar, me deram 500 posters. Mas, antes, eles não acreditavam. Ninguém acreditava.
Então, em 1975 eu virei uma caldeira. Uma caldeira que você enche de lenha, começa a botar fogo, e não tem válvula de escape. Fui acumulando as coisas, sem poder botar fora. E isso é o tipo de coisa que pode funcionar muito legal, mas também pode contribuir pra o aniquilamento do criador. Porque você pensa mil coisas e não consegue extravasar. Conheço muita gente por aí que tem coisas belíssimas, pra dizer, pra mostrar, e não consegue. E isso leva às vezes a um envelhecimento das pessoas.
('Uma a uma/ as  coisas vão sumindo/ uma a uma se desmilinguindo/ e o mar engolindo lindo/ e o mal engolindo e rindo').
Então, 75 foi um ano de tentativas em várias áreas - o Festival da Globo, a RCA, tudo. Houve até uma tentativa heroica de fazer shows no pau e pedra, transando microfones, emendando, indo nas universidades, me oferecendo, acertando tudo, arranjando os instrumentos, e fazendo os shows. Foi um murro violentíssimo, isso tudo. Um murro que transparece muito no 'Berro'. Por isso, inclusive, esse título. Porque ou você faz arte, ou é o gigolô da própria arte. E o que muita gente não entende, principalmente as gravadoras, é que quando você institucionaliza uma coisa, cristaliza; e aí se acomoda, tem medo da mutação, de se despedaçar. Quando nesse despedaçar é que está justamente a chave do segredo.
FAIXA 4: BERRO
'Consuma tudo em suma/ definitiva e completamente/ na destruição somente/ nesse absurdo aniquilamento/ é que talvez surja/ um outro novo momento.'
'Berro' é o resultado disso tudo; é meu grito, minha raiva. Como é que você quer que a gente seja terno, passando um ano fazendo show emendando fiozinho? Minha música é meu momento. Não há fabricação para alcançar parada ou fugir dela. Só tem eu mesmo. Se o sucesso chega fico satisfeito. Se saio de casa e vejo passar uma lavadeira cantando o 'Pavão', me emociono até as lágrimas. Mas não vou compor pensando nisso não.
Tem uma coisa que um cara de Brasília sacou, que é muito verdade: é necessário que a gente redescubra a simplicidade.. No falar, no fazer. Porque com  a situação brasileira, os compositores começaram a sacar toda uma linguagem simbólica, cheia de metáforas para escapar da tesoura. Acho que até certo ponto isso foi bom, mas é necessário redescobrir a simplicidade.
E a transa emocional do 'Berro' foi muito raivosa. Foi todo o ano de 75 para ser colocado num elepê! o Toninho foi lá pra casa e eu cantei umas 50 músicas para ele. E fomos cantando, cortando. Teve música - a 'Cauim', que foi cortada na hora de editar o disco. A gente tinha até gravado, e vimos que os sulcos iam ficar muito apertados, prejudicando a qualidade do elepê, e desistimos.
'Faz muito tempo que eu não vejo o verde/ daquele mar quebrar/ nas longarinas da ponte velha/ que ainda não caiu'
FAIXA 5: LONGARINAS
'Cada braça de caminho/ um soluço de saudade/ toda vereda da roça/ vai descambar na cidade'
Agora, tem gente que me acusa de 'nostalgia' aguda, sempre que falo do Ceará. Não é. Quando a gente mora no Nordeste é bombardeado o tempo todo com o Rio e São Paulo, com as coisas do 'sul-maravilha'. Aprende a cantar a garota de Ipanema, Copacabana, a princesinha do mar, antes de cantar a Praia de Iracema. E agora, se eu gravo falando  na praia de Iracema, dizem que é saudosismo agudo. Mas eu acho que para se universalizar a gente não tem que romper com as próprias raízes. Tem é que e aprofundar. Tanto faz falar na fome do Nordeste, como na de Bangladesh. Então, por que não falar das coisas de lá, pelo amor de Deus? Eu acho que se eu sou de lá, e agora estou aqui, tenho é que aproveitar as duas coisas e fazer a síntese.
Por isso, no 'Berro', eu procuro, inclusive, cantar coisas importantes de lá, que nem chegaram muito aqui, como o movimento 'Padaria espiritual', um negócio danadíssimo, muito sério, que atingia principalmente a área cultural, na transição entre Brasil Império e Brasil República..
Canto isso e canto tudo, porque nunca calco minha música num objetivo definido . Vou fazendo o que está pintando na minha vida. Vou trabalhando sem pensar a longo prazo. O que eu quero mesmo é ter condições de fazer música. Cantar e dizer as coisas que me importunam de perto. Ou as coisas que eu gosto de perto.
'Somos umas vacas/ retalhados nesse açougue/ Do boi só se perde o berro/ e é justamente o que eu vim apresentar' "



quarta-feira, 7 de junho de 2017

Airto Moreira em Visita ao Brasil (1977)

O percussionista Airto Moreira deixou o Brasil rumo aos Estados Unidos, no final dos anos 60, e lá construiu uma brilhante carreira. Airto tocou com nomes mais do que consagrados do rock e do jazz, como Miles Davis, Santana, Chick Corea, John McLaughlin, só para citar alguns. Ao lado de sua esposa, Flora Purim, Airto ganhou respeito, prestígio e fama no circuito do jazz, e passou a ser um músico muito requisitado em gravações. Numa de suas vindas ao Brasil, em 1977, o músico conversou com Antônio Carlos Miguel e Nena Mujica, do Jornal de Música, que publicou uma matéria intitulada "Airto de volta (por pouco tempo) ao país da burocracia":
Airto Moreira esteve no Brasil durante 15 dias (final de junho e início de julho) para resolver alguns problemas pessoais, rever os familiares e acertar detalhes com a sua nova gravadora, a Warner (WEA). Aproveitamos sua estada para esta entrevista, onde ele mostra que a fama e o sucesso nos Estados Unidos não o alienaram da situação brasileira, pelo contrário, ele continua ligado no que acontece aqui. No dia da entrevista Airto tinha passado toda a tarde tentando conseguir que sua filha, Diana, de 4 anos, viajasse sem pagar os 16 mil(*): ela tinha passado 3 meses na casa dos avós enquanto Airto e Flora viajavam numa grande excursão. Mesmo tendo passaporte americano (ela nasceu lá), por ser filha de brasileiros teria que tirar um passaporte brasileiro e deixar o tal depósito. Apesar de toda esta tarde com os burocratas Airto ainda teve tempo (e saco) para esta entrevista. Entre os inúmeros problemas que o trouxeram havia o de algumas músicas suas que estavam sendo usadas sem a sua permissão:
'A Globo estava usando uma música minha como fundo prum personagem da novela 'O Bem Amado', esta música foi gravada no disco Free, o problema é que eles nunca pagaram os direitos autorais; o mesmo está acontecendo com uma música do Hermeto que gravei, ela está sendo usada num desses comerciais do governo que passam antes dos filmes. Também não pediram a nossa autorização. Então eu vim resolver isto e procurar uma pessoa que me represente e passe a defender meus interesses'.
Para Airto, que já está fora do Brasil há 10 anos, a situação do músico brasileiro ainda é muito precária, ele que emigrou pra os Estados Unidos em busca de melhor campo de trabalho observa que não houve melhora:
'... e em certos setores as coisas pioraram mais, é o caso da falta de liberdade de expressão, quase ninguém tem direito a falar o que pensa. Os poucos que ainda conseguem dizer alguma coisa são Chico, Milton,, e até mesmo Hermeto, que apesar de não cantar faz um tipo de música que expressa esta vontade de livre criação.'
Uma opção, ainda hoje, seria buscar trabalho no exterior: para Airto, depois da época da bossa-nova estaria ocorrendo agora uma nova era fértil para a música brasileira, o público americano pede um novo som e somos nós que temos as melhores condições. A sua nova gravadora, Warner, também tem estimulado bastante a nossa música. Airto não sente necessidade de se radicar aqui, apesar de ter interesse em que sua música seja mais conhecida pelo público brasileiro:
'Todo artista tem desejo de ser reconhecido no seu país de origem, mas por enquanto não houve interesse nem dos produtores nem meu: eles preferem trazer artistas como Rick Wakeman, um menino que enche o Maracanazinho, mas vai assistir a nossos concertos de gravador na mão, porque ele está ligado no nosso som, do mesmo modo que John McLaughlin, o Wayne Shorter ... Então o dia em que alguém se interessar realmente eu venho na hora, mas não é pra tocar no Municipal, eu quero é tocar pra muita gente, com preços bem populares.
Airto, que tocou em discos de Miles Davis, Gato Barbieri, Chick Corea, Weather Report, John McLaughlin, Tom Jobim, entre outros, parou de trabalhar como músico de estúdio. Agora ele só participa quando tem uma ligação mais pessoal com o artista, este é o caso do disco com o grupo uruguaio OPA.
'Eu mantive contato com eles na época que fazia parte do grupo Return To Forever. Chick (Corea) estava partindo pruma música mais técnica, uma coisa muito ensaiada, rápida e eletrônica, eu prefiro um som mais espontâneo; como Chick partiu pra essa, eu saí para formar o meu próprio grupo. Foi quando um amigo diretor de cinema me falou de um trio uruguaio que tocava muito bem música brasileira num clube em New Jersey. Na hora eu não me interessei muito, afinal uruguaio tocando música brasileira, né? Só duas semanas depois fui assistir e gostei do lance, eles estavam tocando uma música minha, conheciam todo meu trabalho, o de Edu Lobo, Hermeto, então eu os chamei para fazer parte do grupo que gravou 'Fingers'. Desde então a gente tem se apresentado junto, só que não é uma coisa rígida, às vezes eu vou prum lado, e eles pra outro.'
No bate-papo abordou-se a situação do cenário musical americano, tentamos ver o o que é que sobra de toda a confusão: rock, jazz, funk, punk, música latina. A crítica americana tem 3 definições mais em uso pra classificar o som de Airto: 'latin-rock', 'jazz' e 'música progressiva'; este, ele acha mais apropriado, 'pois é mais abrangente, não fecha, propõe um futuro, uma progressão como o próprio nome diz'. Milton Nascimento ainda estaria num estágio inicial, 'ainda não é uma coisa muito popular', seu trabalho é mais curtido entre os músicos e pessoas que conheceram seu trabalho com Wayne Shorter (no disco 'Native Dancer'). O aumento desta popularidade depende de uma maior batalha, fazer shows, divulgar mais, entrar em contato com o público americano. Neste ponto me lembrei de uma entrevista que juntamente com o jornalista Brother fiz com o saxofonista Gato Barbieri. Nesse papo ele se declarou cansado desta batalha toda, a maratona de shows para a divulgação de dois discos por ano, tudo um processo muito desgastante. Airto não concorda com Gato:
'Eu gosto de tocar a música que estou fazendo, gosto dos músicos que tocam comigo e não faço isso por obrigação. O som do Gato foi produzido (N.R. O disco citado é 'Caliente', com produção de Herb Alpert) e ele não curtia totalmente o que estava fazendo, não foi um trabalho que ele tivesse autonomia. Eu produzo meus próprios discos ou então escolho o produtor, esta é uma cláusula de que faço questão nos meus contratos. O mesmo acontece com Flora, é ela também quem escolhe o produtor, as músicas, o estúdio, os músicos.'
Airto e Flora Purim
Não haveria nada de novo acontecendo no cenário musical americano, o que há é uma mistura de tudo que é música'. Airto se disse fã de Jeff Beck, um músico de rock que se aproximou do jazz, 'as duas coisas que continuam sendo as mais fortes, o funk já é uma coisa mais produzida: Os músicos de jazz viram a força do rock e tentam se aproximar dele, pegam mais vitalidade. Já o músico do rock, que é mais novo, tenta se aprimorar incorporando o jazz; os latinos se aproximam dos dois, eu acho que é isto o que estou fazendo.'
Até Herbie Hancock que passou um tempo fazendo (ou faturando com funk, está de volta ao jazz. Para Airto o funk é muito limitado, uma música feita em série, quase maquinal...
E o punk-rock?
Eu acho que o punk-rock é o final do lance, o final de um processo todo, o restinho o que sobrou do acid-rock...'
No final, depois de todo o papo, Airto se lembrou:
'As pessoas percebem que a arte brasileira tem muita força, mas ninguém procura saber os motivos, este é um lance que ninguém me perguntou. A arte aqui no Brasil é muito mais forte que nos Estados Unidos (em criatividade, em amor, em alma...) porque aqui é uma necessidade, enquanto lá é um produto, aqui as pessoas têm necessidade de se comunicar umas com as  outras, é uma transa bem mais chão que lá, é disto que eles sentem falta' "

(*) Na época, para se fazer viagens ao exterior, tinha que se fazer um depósito compulsório nesse valor.

segunda-feira, 5 de junho de 2017

A Longa Lista de Parceiros de Tom Jobim

Um dia após a morte de Tom Jobim, o Jornal do Brasil trazia um caderno especial falando de nosso grande compositor. Dentre os muitos textos sobre sua música, sua personalidade e seu pensamento, a edição de 09/12/94 falava sobre os muitos parceiros que o maestro teve ao longo da carreira, para valorizar ainda mais sua música. Segue abaixo o texto:
"Perfeito letrista das próprias músicas, Tom Jobim nunca se furtou a dividir com parceiros variados a sua produção musical. O primeiro deles foi Alcides Fernandes, com quem fez Solidão, cantada por Nora Ney e regravada por Caetano Veloso. Alcides era marido de uma empregada de sua família e, como contou o próprio Tom, ele o levou ao morro para conhecer de perto os sambistas. Nesse tempo - início dos anos 50 - Tom compôs com o baterista Juca Stockler, o Juquinha, em geral sambas-canções bem ao sabor da época, como Faz Uma Semana e Pensando em Você.
Em seguida, Tom começou a compor com parceiros mais conhecidos, como Dolores Duran (Por Causa de Você, Estrada do Sol e Se É Por Falta de Adeus) e Marino Pinto (Aula de Matemática, Ai Quem Me Dera). Em 1955 conquista um novo parceiro, Billy Blanco, com quem faz a ambiciosa Sinfonia do Rio de Janeiro e uma canção que seria seu primeiro sucesso de fato: Teresa da Praia. Era o início de uma penca de músicas de Tom que louvariam o Rio e seu estilo de vida.
Nesse mesmo ano, ele tem o mitológico e fundador encontro com Vinícius de Moraes. Um sem-número de pessoas afirma ter feito a tal apresentação. Mas o próprio Tom se encarrega de desfazer mal-entendidos: 'Várias pessoas me apresentaram ao Vinícius. Mas a apresentação oficial foi a do Lúcio Rangel. Essa é que ficou na história. Foi lá no Vilarino, no Centro da cidade, onde o pessoal bebia uísque e eu bebia minha cervejinha. Foi ali que o Lúcio Rangel me disse: 'O Vinícius está aqui precisando de um músico para sua peça de teatro'. Essa peça era o Orfeu da Conceição'. Começava ali a mais célebre parceria (ou grife) Tom & Vinícius: de Orfeu saíram pérolas como Se Todos Fossem Iguais a Você e Um Nome de Mulher. Dois anos depois, em 1958, a dupla seria finalmente lançada em disco através de Elizeth Cardoso em Canção do Amor Demais. Tom e Vinícius fariam cerca de 60 músicas regularmente até 1963, ano em que lançaram a mais famosa de todas, Garota de Ipanema, uma das cinco músicas mais executadas no mundo em todos os tempos.
Outro parceiro fundamental de Tom nos primórdios da bossa nova foi Newton Mendonça, que morreu cedo, em 1960, mas a tempo de deixar várias composições em parceria com Tom: Desafinado, Discussão, Foi a Noite, Caminhos Cruzados. Aloysio de Oliveira também compôs com Tom músicas como Dindi, Só Tinha de Ser com Você, Samba Torto e Inútil Paisagem.
Já na segunda metade dos anos 60, certa vez perguntaram a Tom o que havia e novo. 'Chico Buarque de Hollanda', foi a resposta. Pois o novato Chico seria seu novo parceiro. Foram ao todo doze canções: das primeiras Retrato em Branco e Preto e Pois É, até a linda e vaiada Sabiá (a vaia no Maracananzinho fez Tom Jobim chorar no Rebouças, voltando pra casa, testemunhou Chico), as canções da trilha do filme Para Viver Um Grane Amor e a última, Piano na Mangueira. Recentemente, Tom ficou meio sem parceiro fixo, compondo com letristas esparsos e musicando poemas que admirava. Com Cacaso fez Dinheiro em Penca, com Ronaldo Bastos, algumas músicas como Senhora Dona Bibiana e Rodrigo Meu Capitão. Tom também musicou poemas de Fernando Pessoa (Cavaleiro Monge e O Rio da Minha Aldeia) e Manuel Bandeira (Trem de Ferro)."

sábado, 3 de junho de 2017

Samba Esquema Novo, de Jorge Ben - Discoteca Básica

Existem discos que já nascem clássicos. É o caso de Samba Esquema Novo, lançado por Jorge Ben em 1963. O disco trazia uma renovação na forma de se fazer música, de tocar violão e de cantar. Naquele período em que a Bossa Nova, com sua batida característica, começava a dominar o mundo, Jorge Ben trazia uma coisa nova, uma renovação na forma de se fazer música, e mostrava pela primeira vez sua forma renovadora de compor, com letras inspiradas e despojadas, e melodias com uma marca pessoal que o acompanharia ao longo dos anos. Esse disco, muito merecidamente, é sempre lembrado quando se fala nos grandes álbuns lançados no Brasil ao longo dos anos, por isso não poderia ficar de fora de uma seção da revista Bizz chamada Discoteca Básica, onde um crítico destacava um álbum, nacional ou estrangeiro, e fazia uma resenha, mostrando porque o disco merecia entrar naquela seção. Em sua edição nº 62, de setembro de 1990, José Augusto Lemos fala desse grande clássico:
"O Brasil do início dos anos 60 era um país de grande efervescência cultural, onde o folclore e as artes populares não haviam ainda sido condicionados em frascos de formol e serviam de matéria-prima para as novas gerações. Nesse caldeirão quente cabiam tanto a reinvenção do samba, com a bossa nova, quanto os primórdios da sensibilidade pop- e rock'n roll da jovem guarda. E durante décadas estes extremos - na época, ideologicamente inconciliáveis - só se tocaram na música de Jorge Ben.
De nobre linhagem etíope, e musicalidade maturada na noite carioca, Jorge Ben trouxe para o samba pós-bossa  um novo violão - tão original quanto o de João Gilberto. Foram os dois, aliás, mais Tom Jobim, os grandes artesãos do 'samba híbrido', sincrético, desfolclorizado. Em comparação com a minunciosa dissecação harmônica de João Gilberto, o violão de Jorge Ben também fazia a festa nas síncopes e contratempos. A diferença estava justamente nessa costura: o bordão injetou tanto veneno rítmico que acabou dispensando qualquer tipo de contrabaixo pra as gravações. A voz de Jorge recebe apenas um sedoso colchão formado por uma bateria mezzo jazzy, encorpada com chocalhos e tamborins e do violão alquímico de Ben.
Contracapa do disco
Quando Samba Esquema Novo foi para as lojas, a fissura já estava devidamente instalada pelo sucesso do compacto que o antecedera: 'Mas, Que Nada', e 'Chove Chuva'. Tamanho impacto que dois anos depois Jorge estava nos Estados Unidos, desfrutando o status de hitmaker, ainda que através das pasteurizadíssimas versões de Sérgio Mendes para estas duas canções.
'Mas, Que Nada' abre o disco embalando um êxtase de longos melismas para, no final, entrar em órbita com o scat singing. Nesse tipo de alucinação vocal - e em suas particularíssimas letras - Jorge Ben deu um salto poético enorme. Espécie de novo Noel Rosa, mandou para o espaço preciosismos, parnasianismos, concretismos e entronizou uma fusão da gíria e da prosa malandra de esquina com um vocabulário próprio. Palavras como 'saiubá' e 'sacundin' talvez não signifiquem nada, mas moduladas melódica e ritmicamente podem explicar para nossos Olavos Bilac niu-uêivi-pós-pânqui a fundamental diferença entre versos para ler e versos para cantar. 'Por Causa de Você, Menina', que seria seu terceiro hit, radicaliza essa prosa intergalática ao pronunciar: 'Voxê passa  e não me olha/ mas eu olho pra voxê'.
Se apresentando no programa de Chacrinha
Ao longo da década, enquanto João Gilberto isolava-se cada vez mais no resgate e copydesc dos anos dourados da MPB, Jorge Ben soltava todas as amarras para experimentar. Retornando dos EUA, encostou o violão e passou a tocar uma guitarra elétrica - só por essa razão foi expulso do pseudo-refinado O Fino da Bossa.  Jorge foi jogar no time adversário, num outro programa chamado Jovem Guarda. O resultado dessa associação - o LP Bidú - Silêncio no Brooklin, de 67 - merece ser ouvido: tem baião psicodélico, muita eletricidade e efeitos de gravação de fazer  inveja aos californianos da época. Daí para a confraria tropicalista foi um pequeno pulo, sinalizando uma safra sensacional que amarra o final dos anos 60 ao final dos anos 70. Basta citar 'Que Pena', 'Que Maravilha', 'Charles Anjo 45' (talvez seu magnum opus), 'País Tropical', 'Fio Maravilha' e 'Taj Mahal'. Mesmo na década de 80, o alquimista entrou de sola com discos pioneiros na utilização de samplers - Dádiva (83) e Sonsual (84). O que veio depois não está à altura, infelizmente. Mas quem se arrisca a prever o que ainda vem por aí?"