Palavras Domesticadas

Palavras Domesticadas

domingo, 31 de janeiro de 2021

Cazuza, a Ovelha Negra do Rock (Revista Roll - 1986)


 Em 1986 Cazuza iniciava sua carreira-solo, após deixar o Barão Vermelho. Já tendo um trabalho de compositor reconhecido por vários medalhões da MPB, Cazuza lançava seu primeiro disco individual, cuja faixa-título Exagerado, foi um de seus maiores sucessos. A revista especializada em rock, Roll,  em seu nº 28 trazia uma matéria com Cazuza, assinada por Luiz Carlos Mansur:

"Cazuza chega atrasadíssimo de um dia na praia, mas disposto a abrir o verbo. Diante da magnífica visão do Jóquei Clube e da Lagoa, em seu novo apartamento, iniciamos nosso papo e lhe pergunto sobre o súbito estouro de sua carreira-solo - que decolou direto para os píncaros da glória, imediatamente depois do lançamento do primeiro LP.

'Eu cheguei a achar que iam me vuduzar bastante, depois da minha saída do Barão. Mas eu já tinha uma imagem favorável, por parte da imprensa, desde a época do meu trabalho com o grupo. E quando saiu o disco, as críticas foram todas favoráveis, a reação foi muito boa. Acho que comecei com o pé direito'.

Quanto ao relacionamento com o Barão, não há queixas, muito pelo contrário, 'Tá genial, ótimo. Tenho ido aos shows deles, tenho composto com o Dé (baixista)... É uma coisa que eu não fazia quando estava no Barão, e agora estamos compondo... E eu acho genial o Frejat cantando, sempre dei força pra ele cantar. Inclusive nos shows era ele quem puxava a voz, a sua emissão é parecida com a minha...'

Uma  característica do Barão, e também de Cazuza, sempre foi a fidelidade ao blues, veio básico do rock. Acrescente-se a isso uma temática fortemente marcada pela influência de grandes nomes da nossa música (geralmente marginalizados pelos roqueiros) como Lupiscínio Rodrigues, por exemplo, e temos um trabalho original na nova safra de rock in Brazil. Na verdade, Cazuza (e o Barão) estão muito mais próximos de uma suposta 'linha evolutiva' do rock brasileiro do que outras bandas de sucesso atualmente.

'Eu sempre ouvi muito Lupiscínio, Angela Maria, as grandes damas do blues, como Billie Holiday. E confesso que realmente não estou por dentro do rock contemporâneo. Se você me pedir pra identificar uma dessas bandas inglesas novas, não vou conseguir'. Sem dúvida, sua cabeça já foi feita há bastante tempo. Tanto que, entre as inúmeras participações especiais que ele tem feito em discos alheios, destacam-se as do LP de Elza Soares e do novíssimo de Celso Blues Boy (na faixa 'Marginal')

Essa história de 'exagerado' é mesmo autobiográfica? 'Olha, essa música é mais uma leitura sobre essa coisa do derramamento, da paixão, e é quase como uma brincadeira em cima disso. Essa letra tem muito a ver com o lance da relação passional, que você vê muito retratado no blues, no samba-canção. E eu brinco um pouco com essa coisa toda'...

Já 'Medieval', com sua letra brilhante ('será que eu sou medieval?/ baby, eu me acho um cara tão atual/ na onda da nova idade média/ na mídia da novidade média') tem despertado muitas polêmicas por aí... Você é medieval, Caza? 'Eu sou de uma geração que pegou as consequências daquela agitação toda dos anos 60, revolução sexual, etc. E o que eu tenho visto hoje em dia é que as pessoas estão voltando a se colocar em posições muito rígidas, demarcadas, quando antes havia um jogo de cintura maior. É nesse retorno que eu vejo pintado a tal da 'Nova Idade Média'.

Uma coisa que chama a atenção no primeiro LP solo de Cazuza é o flagrante descompasso entre algumas letras (fortíssimas) e o arranjo das músicas 'leves' demais). Saudades do Barão? 'Não, isso é proposital mesmo. Eu quis experimentar colocar letras bem fortes em cima de músicas não tão pesadas. Mas não é uma coisa presente no disco inteiro. Em 'Só  As Mães São Felizes' (mais uma vítima da 'extinta' censura neorepublicana) já é aquela coisa bem arrastada, pesada mesmo...'

Os shows superproduzidos (ou pelo menos produzidos) devem ser, a partir de agora, a tônica do trabalho da maioria dos rock'n rollers nativos. Principalmente depois do pontapé inicial dado pelo RPM. Mas não é esse o caminho de nosso amigo. 'Não faz muito meu gênero esse tipo de coisa. Eu não conseguiria fazer um show todo dirigido, prefiro ir cantando e o canhão de luz me seguindo, se for o caso. Mas acho ótimo isso do RPM, sou muito amigo do Paulo Ricardo, adoro as coisas que ele escreve. Isso desde o tempo em que ele era crítico' (pra quem não sabe, ele atendia pelo nome de Paulo Ricardo Medeiros).

Cazuza consegue se relacionar otimamente tanto com os maiores expoentes da nova linguagem rock brasileira como os bastiões da MPB. E é de Gilberto Gil, patrono do rock in Brazil, a melhor definição que Caza encontra para suas letras. 'Ele disse que o que eu escrevo revela que tenho uma grande piedade pelo ser humano. Isso me deixou emocionado, foi o melhor elogio que poderiam me fazer'.

Para os shows que correrão o Brasil este ano, Cazuza e sua banda ensaiaram exaustivamente. 'É ideal você ter uma banda fixa, o seu trabalho rende muito mais. Cazuza vai deixar de ser uma marca pessoal para passar a designar o trabalho da banda como um todo'. A banda é praticamente a mesma do disco, à exceção do tecladista Nico Resende. Como o show do Parque Lage acabou sendo cancelado (por imposição da 'lei'), ficamos restritos à aparição no 'Mixto Quente'* e ao show no Canecão.

No mais, já com a agradável presença do Ezequiel Neves, mito do rock nacional e uma espécie de mentor espiritual de Cazuza (e do Barão), deixamos a tarde se esvair enquanto nosso herói preparava-se para o ensaio noturno. Na saída, o rádio do carro, naturalmente, tocava 'Exagerado'. A toda."
 

* Programa dominical da Globo, gravado em shows montados na praia


 


sábado, 30 de janeiro de 2021

Hermeto Pascoal - Revista Pop (1978)


 Hermeto Pascoal sempre foi um músico que despertou curiosidade e atenção, pela forma livre e espontânea como costuma conduzir e elaborar sua música. Em sua edição nº 69, de julho de 1978, a revista Pop trazia uma matéria com Hermeto, assinada por José Emílio Rondeau:

"Para os índios Yawalapiti, do Alto Xingu, a música é um espírito que mora numa pequena oca, do 'dono da música'. O espírito vira guardião do músico, no momento em que ele toca é escolhido por ele. No Rio de Janeiro, o espírito da música mora num quarto de 10 metros quadrados de cimento frio, que dá para um banheiro ladrilhado e uma saleta menor, com janelas. É a sala de ensaios onde Hermeto Pascoal inventa seus sons loucos e, sem camisa, de short azul, chinelas, cabelos recém-presos pela mulher Ilza, avisa a  quem interessar possa:

'As pessoas vivem dizendo; 'Esse Hermeto Pascoal é um doido, se esconde naquele buraco no subúrbio, deve ter porcos e galinhas em casa, uma horta, um troço assim'. Não é nada disso: de louco só tenho o amor pela música, meus instrumentos, um viveiro de pássaros e um cachorro que faz cocô na entrada da casa e me mata de vergonha.'

Escondido em sua casinha em Senador Camará, no modesto bairro Jabour, Hermeto prepara suas alquimias sonoras, transformando em música ruídos de rua, de animais. As suas pesquisas muitas vezes nascem de um simples passeio pela rua: 'Eu estava em São Paulo para fazer uns shows, e resolvi dar um passeio pelas ruas, para ver como andava aquela cidade grande. Andei, andei, até que parei numa esquina muito movimentada, daquelas bem barulhentas, com bastante motor, buzina, sirene, apito de guarda, gente gritando, xingando, correndo de um lado pro outro. Aí descobri música naquela zorra toda. Assim: eu estava de cabelo preso e parado na esquina. Peguei e tapei os ouvidos com as mãos e fiquei assim algum tempo, com aquela zoeira toda meio abafada, mas zunindo lá fora, até que tirei as mãos dos ouvidos e levei aquele bruto choque com a cidade, com a agressão de todos os barulhos ao mesmo tempo. Aquilo ficou muito forte dentro de mim, e a partir desse contraste compus Do Feto à Vida, que seria exatamente o relato da gestante, do nascimento, do crescimento e morte. Mas ainda não terminei a música, só fiz até a hora em que o cara já é um executivo dono de uma empresa, cheio de neuroses. Parei aí'.

Louco de hospício? Ou, quem sabe, segundo a terminologia de Raul Seixas, um autêntico maluco-beleza que curte verdadeiros transes musicais com o barulho de uma simples máquina de costura: 'Tenho duas, cada uma com um tipo percussivo diferente'. Bruxo dos sons, mago de instrumentos inventados por ele mesmo, Hermeto garante que sua cabeça anda ótima: 'Às vezes eu até tenho que freá-la, porque é música saindo a toda hora, no mínimo uma por dia. Assim, nem a banda aguenta, logo eles que são todos uns caras bem mais novos do que eu...'

Quarentão assumido, canceriano convicto, Hermeto já tocou com três quartos dos melhores músicos do planeta - como Chick Corea, Alphonso Johnson, Joe Zawinul, Chester Thompson, Milton Nascimento, Miles Davis, Airto Moreira e muita gente mais. Às vezes com algumas confusões, como na gravação do álbum Charade, do cantor africano Bobby Makay: 'Isso aconteceu na Era de Cristo, é antigo mesmo. Era uma faixa pra ser tocada por catorze percussionistas ao mesmo tempo, numa região pobre, sem recursos, e os instrumentos usados foram enxadas, foices, ancinhos, essas coisas. Eram agricultores, gente da roça: imagine os catorze batucando ao mesmo tempo" Só tive um probleminha com o dono do estúdio, que não deixou que eu pendurasse o Bobby de cabeça pra baixo. Você sabia que o timbre da voz muda quando você canta de cabeça pra baixo? Pois é, mas o cara lá não deixou!'.

Dentro das muitas histórias que Hermeto tem pra contar, cabem também algumas tristezas. O caso de Miles Davis, por exemplo: 'Eu não digo que ele tenha roubado a minha música, porque ele gosta dela como se fosse um presente. Mas não mencionar meu nome como autor é uma injustiça! Só depois de três anos é que retificaram a autoria de Igrejinha (Little Church, nos Estados Unidos) para Davis e Pascoal, e isso só depois de eu ter movimentado meus advogados na América, porque senão, não sei não...' E não foi essa a única vez. Brincando, ele ameaça: 'Esperem mais um pouco e dou o nome de todos aqueles que me roubaram aqui e nos Estados Unidos'.

Eu te benzo/ eu te curo/amanhã você amanhece duro - o serra-velho (um pedaço de pau amarrado numa corda, que zumbe quando é girado no ar) acompanha a musiquinha que traz a Hermeto lembranças do tempo das Alagoas: 'Quando eu era pequeno, a criançada toda fazia assim: na quinta-feira santa, a gente escolhia uns velhinhos bem velhinhos, cavava um buraco fundo na frente da casa deles e  começava a chamar o sujeito pra que ele caísse no buraco. A gente começava a girar o serra-velho e  cantar aqueles versinhos. Não que fosse maldade, a gente não desejava a morte de ninguém. Era só uma brincadeira com música no meio'.

Criando sem parar, desde criança, Hermeto já inventou instrumentos como a gangorrafa - uma mesa de percussão com treze garrafas - e passou por alguns 'escândalos musicais'. Como em 1975, no festival Abertura, com a música Mavum Vevum Pefôco*, ou no Festival Internacional da Canção, quando foi proibido de apresentar A Matança do Porco** porque queria colocar porcos e  galinhas no palco. O que pouca gente entendeu é que era uma atitude musical, e não política; 'Mesmo quando toco instrumentos que já existem, toco de um jeito que ninguém ainda tocou, e espero o mesmo de todos os que me procuram para tocar comigo'.

Ele tem sete filhos, seis deles com o nome começando em F - 'É só dizer Fá que vem todo mundo correndo' - e prefere ficar longe da cidade para criar música. 'Se precisar, vou para mais longe ainda', ele diz, na salinha que gosta de chamar de 'escritório'. Um albino doido - para quem não entende seu trabalho - ou o melhor arranjador do mundo, segundo Gil Evans, às vezes Hermeto precisa guardar seu trabalho na gaveta durante algum tempo, até que se criem condições de mostrá-lo: 'Só agora estou mostrando músicas feitas há uns cinco ou dez anos, que até hoje meus campeões de banda acham difíceis de tocar. Só que não são difíceis. É a cabeça deles que tem que estar limpa, bonita - como eu sinto que a minha está agora. Nem sei se algum dia serei alcançado, mas isso nem vem ao caso'.
Do sertão de Pernambuco aos metrôs de Nova Iorque, gravando músicas suas ou até de seu pai (um velhinho de mais de 70 anos, Paschoal José da Costa, autor de O Galho da Roseira), o papa da música free brasileira  tem suas queixas: 'Eu fiquei calado por muito tempo, esperando que acontecesse alguma coisa, que tudo fosse aos poucos sendo descoberto pelo mundo ou que as pessoas que me fizeram mal se retratassem e vissem que não havia necessidade de nada daquilo'.

Gênio com cara de cientista louco, Hermeto conta que muitas vezes a execução de suas músicas tem uma história tão ou mais complicada do que a própria composição.: 'Foi o caso de Do Feto à Vida. A primeira e única vez que vi essa música ser apresentada foi por um coral paulista de não sei quantas pessoas, e para escrever aqueles sons todos, UNFSS...ARHHHN...TCHINN... botar tudo isso numa pauta não é moleza não, viu? E praquela gentarada ler  aquilo e se acostumar com o som... Ihhhh, bota tempo nisso...'

Quem entra na casinha do bairro Jabour logo sente que o espírito da música anda mesmo por ali, pousado nos cabelos cor de palha de Hermeto Pascoal: 'Louco, eu? Olha, minha cabeça está linda, campeão!' "



* Na verdade a música de Hermeto que participou do festival Abertura foi Porco na Festa

** A música que Hermeto concorreu no Festival Internacional da Canção se chamava Sereiarei. A Matança do Porco é título de um disco do Som Imaginário




sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

Gonzaguinha - A Busca do Equilíbrio nos Caminhos do Coração (1982)


 Em 1982 Gnzaguinha já era um compositor e cantor consagrado na MPB.  Suas músicas eram gravadas por diferentes intérpretes e seus discos eram aguardados com expectativa. Assim foi com Caminhos do Coração, álbum que estava sendo lançado na época, e que ganhou uma matéria com entrevista na revista Música nº 63, em texto assinado por Tetê Ribeiro:

"Quando Luiz Gonzaga do Nascimento Júnior - o Gonzaguinha, apareceu como compositor, em 1968, no I Festival Universitário da Música Popular com 'Pobreza por Pobreza', e no ano seguinte classificava-se em primeiro lugar com a música 'O Trem', as pessoas não poderiam imaginar que um dia aquele jovem franzino e introvertido seria uma das figuras mais respeitadas e que já começava a solidificar seu espaço na história da MPB.

A cada disco, a cada show, Gonzaguinha - além do seu crescimento como pessoa e intérprete - confirma a coerência e o conteúdo de sua obra, construída com muito chão-pó-poeira. Ao longo desses anos, Gonzaguinha, filho de Luiz Gonzaga, o Rei do Baião, que nasceu no bairro do Estácio, na barra pesada do Rio de Janeiro -, sempre foi uma figura polêmica e controvertida, amada por uns, contestada por outros.

Hoje, quando acaba de lançar - Caminhos do Coração - o décimo elepê de uma carreira de 15 anos, Luiz Gonzaga Jr., afirma que muita coisa mudou. - 'Eu tenho consciência de que não sou o mesmo. Talvez eu não esteja sendo tão severo quanto eu era anos atrás, a ponto de Gilberto Gil me colocar que eu não deveria ser tão severo com as pessoas. Estou me mostrando mais, me questionando, conversando com as pessoas, estou num momento de auto-crítica, de muita calma. Porém, continuo sendo uma pessoa de muito trabalho, uma pessoa que quer aprender sempre porque não sou, nem quero ser verdade absoluta, ninguém é verdade absoluta. Faço o que faço com a consciência que tenho. Sou uma pessoa preocupada em aprender constantemente, nunca estacionar como pessoa.'
Música: Muitas cantoras estão gravando músicas suas, como você vê isso?
Gonzaguinha: 'Não sei explicar o porquê, acredito que seja consequência de um trabalho sério.'
M: Você fez 'Uma Canção de Amor' e "Quarto de Hotel' especialmente para Joana, e 'Redescobrir', para Elis. Você faz música por encomenda?
G: 'Eu trabalho por encomenda; uma pessoa cantar uma música minha é uma relação de amor. Eu só faço música para uma pessoa quando eu a conheço bem.'
M: A lacuna deixada por Elis Regina pode ser ocupada por outra intérprete?
G: 'Como Elis Regina só ela mesma; e não existe sucessora para esta ou aquela cantora.Existem pessoas que têm grandes trabalhos como Maria Bethânia e Gal Costa; outras com um caminhar muito longo como Simone, Joana, e Clara Nunes; cada uma será acontecendo dentro do seu tempo, porque cada uma tem seu trabalho. Não se  pode dizer que uma determinada intérprete será sucessora de Angela Maria ou de Elizete Cardoso; a história de ambas, o trabalho delas é completamente diferente. É como querer que apareça um novo Chico Buarque, um novo Milton Nascimento ou um Gilberto Gil. O novo é justamente porque porque não é. Então isso não existe, é uma colocação limitada.'
M: Compor muito num curto espaço de tempo pode levar a uma repetição?
G: 'Às vezes eu me repito um pouco; se se repete num aspecto de memória é perigoso, porque pode levar a uma acomodação.'
M: Você declarou algumas vezes que todos os trabalhos são uma vida. Caminhos do Coração é mais um momento seu?

G: Minha relação é trabalho-vida, eu não separo um do outro, porque se eu faço um trabalho e o exponho aos mais variados entendimentos, é minha vida que está ali.'

M: Em 15 anos de carreira e 10 discos, o que você modificaria  no seu trabalho?

G: 'Cada vez que se trabalha ou que se realiza um trabalho, está se vivendo todos os trabalhos, os quais são uma vida. Não existiram momentos ou trabalhos mais fortes. Ou mais forte será. Quanto à modificação, eu gostaria de gravar novamente os meus primeiros discos; justamente para ver a prática do hoje ou do ontem. Acho que não teria muito sentido colocar músicas daquela época hoje, tudo é espaço-tempo.' 

M: A objetividade é algo muito mais forte nas suas músicas, porém muitas pessoas a questionam. Como você encara isso?

G: 'A clareza e a objetividade são uma necessidade; acho que de repente as pessoas acham que objetividade incomoda. A música 'Quarto de Hotel' fala da solidão de uma pessoa, porém nem sempre quando você está só significa que a pessoa esteja se sentindo só, ou vice-versa. Eu acho ótimo esse tipo de questionamento porque de repente eu percebo que meu trabalho está passando uma mensagem pras pessoas, está tocando as pessoas.'

M: Você não tem muitas parcerias, por quê?

G: 'Acho que é uma questão de oportunidade, porém já fiz algumas músicas com meu pai e Miltinho; e compor sozinho é uma prática que pra mim não é difícil.'

M: Como você vê o reconhecimento tardio do trabalho de pessoas como João do Vale, seu pai e o falecido Jackson do Pandeiro?

G: Toda vez que uma pessoa morre - no caso Jackson do Pandeiro - prestamos grandes homenagens, se bem que o trabalho do Jackson já é reconhecido. Meu pai é uma pessoa que está sempre atuante, mesmo sendo marginalizado. Infelizmente, esses coisas ainda acontecem.'

M: As crianças estão sempre presentes nas suas músicas. Qual sua relação com elas?

G: 'Minha relação com as crianças é ótima, principalmente porque eu sou meio moleque, meio criança. Tenho um filho - Daniel, 10 anos -  somos muito amigos e eu aprendo muitas coisas com ele. Devido a essa relação forte com as crianças, estou pensando em fazer um trabalho em teatro; um musical provavelmente.'

M: O que é 'Caminhos do Coração'?

G: 'É vida, é sentimento, é meu momento de calma, é mais vida. 'Caminhos o Coração' é uma espécie de sucedâneo do 'Coisa Mais Maior de Grande, Pessoa'. 'Caminhos do Coração' foi um disco que eu não estava a fim de fazer, a minha situação emocional no momento - acabei de me separar da minha mulher. Depois achei que eu não deveria esconder esse momento que estou vivendo; então, entrei no estúdio e fiz o disco, que não tem muita ordem como nos anteriores; não foi proposital, aconteceu de sair assim. 'Caminhos do Coração' é vida mesmo, 'Maravida' tem vida, 'Felicidade' tem vida, 'Ser, Fazer, Acontecer' tem vida. A música que dá nome ao disco é muito importante pra mim. É muito do que eu vivi e viverei; é uma coisa de muito que andar por aí e cada vez com maior profundidade.' "







quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

Jefferson Airplane - O Acid Rock de San Francisco


 A revista Internacional Extra era uma das várias revistas sobre rock que circulavam pelas bancas nos anos 80. Em seu nº 26 (1983), a publicação traz uma matéria sobre o "acid rock" ou rock psicodélico, que era muito difundido na cidade de São Francisco, na Califórnia, por bandas que se estabeleceram na cidade. A matéria dá destaque à banda Jefferson Airplane :

"San Francisco era uma festa permanente, com a descoberta do corpo marchando ao lado da libertação de todas as fantasias. Os Fillmores de Bill Graham eram palcos de concertos delirantes, em que luzes estreboscópicas, filmes e slides forneciam o componente visual de viagens inesquecíveis. A trilha sonora era provida pelo Jefferson Airplane, Grateful Dead, Country Joe and The Fish, Charlatans, Quicksilver Messenger Service e Big Brother and The Holding Company. Os dois primeiros foram expoentes destacados do rock progressivo.

Agrupado por Marty Balin e Paul Kantner, músicos folk dos coffee-houses do Haight Ashbury - bairro dos intelectuais e pirados de San Francisco -, o Jefferson Airplane misturava jazz, folk, blues, música experimental, efeitos especiais. Seu LP de estreia, Takes Off (1966), ainda trazia influências dos Beatles e Byrds, mas a seguir veio uma obra-prima, talvez o disco mais característico do acid rock: Surrealistic Pillow. Foi quando ingressou no grupo a excepcional Grace Slick, intérprete carismática e de voz poderosa. O aeroplano teria então como tripulantes os guitarristas/vocalistas Kantner e Balyn, o baterista Spencer Dryden, o guitarrista líder Jorma Kaukonen, o baixista Jack Cassady e a cantora Grace Slick, mantendo essa formação durante seu apogeu, no período 1967/69.

Disco-síntese das curtições e crenças da geração das flores, Surrealistic Pillow brinca com a percepção lisérgica em 'Embryonic Journey' dá uma versão atualizada das peripécias de Alice no País das Maravilhas ('White Rabbit') e proclama a esperança de que todos os problemas da humanidade se resolveriam na cama ('Somebody To Love'). Meio deslocadas nesse contexto, há duas canções melancólicas, pungentes, de cristalina beleza; 'Today' e 'Coming' Back To Me'.
Depois, acompanhando o movimento de consciência da coletividade que expressava, o aeroplano foi baixando à terra e se defrontando com suas mazelas políticas e sociais. After Bathing At Baxter's (1967), em que seu som ganha toques jazzísticos, ataca a Guerra do Vietnã, a repressão policial e a sociedade de consumo. O apocalíptico Crown Of Creation (1968) fustiga os executivos do sistema ('Logo vocês conseguirão a estabilidade que tanto buscam/ Da única forma que é concedida/ Num lugar entre os fósseis do nosso mundo') e aproveita uma adulta canção sobre triângulo amoroso, 'Triad' - composição de David Crosby, cujo conjunto, o Byrds, havia rejeitado como imprópria.
Bless Its Pointed Little Head (1969), mostrando por que o conjunto se tornou a atração maior dos Filmore Lest e Oeste. E foram fulgurantes suas aparições nos festivais de Woodstock (em Altamont subiu ao palco antes dos Stones e sofreu as primeiras consequências da tensão ambiente, com um membro sendo agredido ao apartar uma briga nas primeiras filas).
Volunteers (1969), com sua faixa-título que era um incitamento à ação revolucionária, coroou a fase política do Airplane, além de servir como um canto-do-cisne do conjunto. Sua decadência refletiu o desânimo que se abatia sobre as crianças do flower power, cujos projetos ousados e generosos se chocaram contra o conformismo da maioria silenciosa. As saídas de Marty Balin (por divergências), Jack Cassidy e Jorma Kaukonen (foram formar o Hot Tuna) valeram como golpe de misericórdia. No ano seguinte, 1972, o aeroplano despencou de vez. Kantner e Slick permaneceram na ativa, realizando trabalhos-solo que acabam propiciando um reagrupamento em 1973, como Jefferson Starship.
A proposta agora, era de 'uma música popular calcada em todos os tipos de música feitos por americanos na sociedade contemporânea', sem acid rock ou contestação. Melodias concentradas, intensas, valorizadas por interpretações sutis - além do excelente trabalho vocal, marca registrada dos Jefferson, havia também o violino mágico do Papa John Creach, no entanto, após os auspiciosos Dragon Fly (1974) e Red Octopus (1975), a astronave entra em pane; o Papa vai rezar em outros altares e o grupo opta por um rock pesado que conviria melhor a principiantes."


quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

Brian Jones - O que mudou depois de sua morte?


 Nos anos 80 circulava uma boa revista sobre rock, chamada Rock Stars. Era uma revista de formato pequeno, que falava de rock, lançamentos, resenhas de discos, notícias e seções fixas, dentre elas, uma especializada em Rolling Stones, chamada Satisfaction. Em sua edição nº 8, de 1984, a revista traz uma matéria com o controverso ex-membro do Stones, Brian Jones. Discordo de alguns trechos da matéria, principalmente quando há insinuações infelizes que Mick Jagger pode ter dado graças a Deus pelo desaparecimento de Jones, por ser também de temperamento forte e se sentir incomodado por uma espécie de disputa pela liderança da banda. Primeiro, que Brian Jones antes de morrer já não fazia parte dos Stones, portanto, não fazia mais sombra a Mick no quesito liderança. Segundo, mesmo se houve divergências pessoais, sentir alívio pela morte do ex-companheiro seria um grande exagero. Segue a matéria:

"Brian Jones deixou o planeta Terra há 15 anos, no dia 3 de julho de 1969. Ele foi encontrado numa piscina, em circunstâncias que até hoje não foram muito bem esclarecidas. Houve até alguns magazines estrangeiros que questionaram a possibilidade de ele ter sido assassinado. Ora, que motivos teriam para assassiná-lo, por exemplo, seus colegas de conjunto?

Os motivos são poucos, mas não são muito fortes. Um deles é que o Brian Jones era um osso duro de doer. Em outras palavras, um sujeito genioso que insistia muito sobre aquilo que queria e acreditava. E uma das coisas que muito queria e acreditava era a boa música. Pouco antes  de morrer, andava dedicando-se ao aprendizado de outros instrumentos (ele foi o único Stone que apareceu tocando uma cítara, coisa que nunca atraiu seus colegas). Notem que o Mick Jagger demorou vinte anos para aparecer em público co uma guitarra. Se ele tivesse feito isso há quinze anos, teria poupado uma série de manobras ao conjunto.

O fato prático é que, válida a correlação, ou não, depois do desaparecimento de Brian Jones, os Rolling Stones tomaram um rumo mais pop. Até a imagem mudou. De repente, o visual psicodélico cafajestoso, que muitos advogam ter sido anterior ao que os Beatles usavam, foi substituído por terninhos glitter, colants coloridos e (pelo menos em certa época) batons. O único membro que parece ter resistido foi Keith Richards, mas é como diz o provérbio, uma andorinha não faz o que todos verão.

Analisando friamente, quem deve ter dado graças a Deus pelo desaparecimento de Jones foi o Mick Jagger. Ele também é dotado de uma personalidade muito forte e não estava a fim de ser incomodado por ninguém. Por outro lado, Jagger é um dos maiores responsáveis pelo desbunde dos Rolling Stones. Podemos ter uma ideia do que ele acha atualmente do rock, se levarmos em conta o que ele disse no ano passado numa entrevista que foi ao ar pela rede Manchete brasileira. Foram palavras suas: - 'Acredito que o rock está para a música, assim como as ilustrações em literatura estão para a pintura em geral.'

Pense bem; qual o papel das ilustrações que aparecem numa literatura? Se você quiser optar por uma resposta trivialmente óbvia, basta apenas dizer: - 'São ilustrações.' Caso queira ser um pouco mais eufemístico, poderá mencionar que têm o papel secundário de ampliar a compreensão, ocupa um lugar bem próximo no contexto geral do século XX. Terceiro lugar, é graças ao rock que Mick Jagger é Mick Jagger.

Antes de encerrarmos nossa apreciação sobre a era pós-jonesiana dos Stones, precisamos dar uma esticada d'olhos sobre o LP Undercover, em particular sobre as letras. À primeira vista, sensacional. Sensibilidade com os menos favorecidos (parece até coisa de religioso), denúncias da violência e da miséria do mundo, posicionamento em favor da América Latina. Tudo bem, mas quem vai acreditar nisso? Nessas horas é difícil deixar de lembrar daquela paródia que o Frank Zappa fez sobre os Beatles com um disco chamado We Are Only It For The Money ('estamos nessa somente pela grana').

Sinceramente, os Stones podem continuar sendo a maior banda de rock do mundo, mas se o Brian estivesse vivo, hoje, provavelmente estaria esclerosado, ou então acabaria por morrer de desgosto."


 


terça-feira, 26 de janeiro de 2021

Caetano Veloso Fala do Disco Qualquer Coisa (2012)


 Em 2012, ano em que completou 70 anos, Caetano Veloso foi homenageado com uma série de fascículos vendidos em bancas que trazia como destaque um de seus discos, onde vinha um CD encartado, e um depoimento feito pelo Caetano ao pesquisador Rogério Fróes, falando sobre a obra destacada. No volume 15 ele falou sobre o disco Qualquer Coisa, lançado em 1975:

"'Depois do 'Araçá Azul' eu fiquei dois anos sem fazer álbuns, então quando fiz o 'Jóia' acabei fazendo o 'Qualquer Coisa', informa Caetano Veloso, que em 1975 entrou no estúdio da Phonogram para gravar um disco que valeria por dois. Ou talvez dois álbuns com cara de álbum duplo separado na maternidade.

O 'Araçá Azul' tinha chegado num ponto muito radical, então pra retomar as canções como eu queria, eu quis fazê-lo numa situação pós-Araçá Azul. Então 'Jóia' nasceu deste comprometimento, e 'Qualquer Coisa' já foi como deixar rolar o que acontecesse, fosse o que fosse. Foram gravados e lançados simultaneamente. O que fosse uma espécie de canção pós-Araçá Azul, ia pro 'Qualquer Coisa'. Tanto as regravações, quanto composições. Tem Beatles nos dois, mas no 'Jóia' só tem Help - que é jóia' (rindo). As outras foram tudo 'Qualquer Coisa', informa Caetano, 37 anos depois, em depoimento exclusivo para este projeto.

'Você sabe que até hoje eu gosto da gravação Eleanor Rigby?', pergunta Caetano. 'Eu acho bonita e não me incomodo se no mundo de língua inglesa ninguém notou, nem acha. Eu acho que é boa. Parece que sou modesto, dizendo que faço coisas modestas e não imagino que vão ter permanência por sua importância artística. Isso que eu falei é verdade, não é modéstia. Eu acho isso mesmo, em geral. Agora, tem algumas coisas que eu acho que posso dizer de uma maneira e que podem soar arrogantes. Por exemplo, o mundo de língua inglesa é que vai ter que se curvar um dia, mais cedo ou mais tarde, ao fato de que essa gravação de Eleanor Ribgy é bonita... assim como aquela de Jokerman, que eu fiz anos depois. É uma canção de Bob Dylan que eles não consideram bonita, mas eu adoro. Eu acho a canção linda e acho minha gravação muito bonita'.

Caetano vinha do experimentalismo anticomercial de 'Araçá Azul', lançado em janeiro de 1973 e que definitivamente encalhou nas prateleiras. O artista caiu na estrada e mergulhou nos circuitos universitários, fazendo participações em festivais. Gravou compacto para o carnaval de 1974, mas efetivamente aproveitou o ano para investir na atividade de produtor musical - fazendo o álbum 'Cantar', de Gal Costa, e o experimentalíssimo 'Walter Smetack'. A Phonogram monta uma coletânea intitulada 'Temporada de Verão', reunindo gravações ao vivo de Caetano, Gal e Gil no verão baiano, e o disco chega ao mercado em abril - para embalar as turnês de inverno dos artistas. Caetano termina o ano de 1974 preparando um novo compacto para o carnaval, desta vez com 'Cara a Cara' e 'Hora da Razão'.

E é no início de 1975, passado o tradicional verão na Bahia, que Caetano mergulha em estúdio para gravar um novo álbum. Depois de mais de dois anos sem gravar um álbum solo, a alta produção acabou gerando um material para um álbum duplo - mas Caetano preferiu criar conceitos diferentes para ambos e dividir o repertório de acordo. Era época em que tudo carecia de um manifesto, tudo precisava ter movimento. Com ironia, Caetano redige uma apresentação para cada trabalho. Mas hoje, 37 anos depois, Caetano analisa com mais objetividade o tal 'Qualquer Coisa', cuja capa remetia à arte original de 'Let Be', o último álbum lançado pelos Beatles, cinco anos antes. 'Rogério Duarte ouviu as gravações das músicas dos Beatles e sabia o quanto eles tinham sido importantes pra gente. Essas gravações dos Beatles são um reconhecimento da importância que eles tiveram pra nós em 1966... para acontecer o que aconteceu em 1967, às vésperas do Tropicalismo, saiu nas revistas especializadas valorizando o trabalho musical do quarteto de Liverpool quando foi lançado o lendário LP 'Sgt Pepper's Lonely Hearts Club Band'. E, mais adiante, no final de 1968, quando saiu o famoso 'Álbum Branco', Caetano foi convidado a fazer livres traduções, com sua interpretação, de letras do disco para uma revista semanal. 'Okky de Souza era novinho, um garoto ainda, e me pediu pra traduzir algumas letras do 'Álbum Branco'', lembra Caetano.
'Qualquer Coisa' e 'Jóia' poderiam ter tido vida longa, mas não tiveram. No final do ano, depois de gravar e lançar - para o carnaval de 1976 - o compacto puxado por 'A Filha de Chiquita Bacana', Caetano mergulhou com Gilberto Gil, Gal Costa e Maria Bethânia no projeto Doces Bárbaros, que celebraria com turnê, disco e filme os 10 anos do início da carreira daqueles nomes já consagrados da MPB.



segunda-feira, 25 de janeiro de 2021

Sá, Rodrix & Guarabyra (Jornal Rolling Stone - 1972)


 O jornal Rolling Stone nº 13, de julho de 1972 trazia uma boa matéria com entrevista com o trio Sá, Rodrix & Guarabyra. O chamado rock rural era ainda uma novidade, e a nova proposta musical do trio abria uma nova vertente no rock brasileiro. A matéria intitulada "Hoje é dia de rock rural' é assinada por Luiza Lobo:

"Ninguém diz que é naquele apartamento sempre fechado do Jardim Botânico que Luís Carlos Sá, Zé Rodrix e Gutemberg Guarabyra ensaiam (com gato siamês & livros, Bebel & guitarra & violão & viola & tranças e tudo ou quase nada).

- As pessoas agora vão se ligar na proposição da gente. - diz Luís Carlos Sá (e afina a viola). Vão relacionados com os problemas do cotidiano e entendendo com muita clareza e transparência problemas do síndico do prédio, de gente que sai pelo mundo. O primordial é fazer sentir que nós não somos, em absoluto, diferentes deles.

- A gente agora está mais  preocupado com a problemática existencial das pessoas, como elas sentem, como elas ouvem música (agora). E isso não nos traz problemas com a cultura/Censura. Para encarar qualquer outro tipo de ação, em todas os níveis, você tem que estar legal consigo mesmo existencialmente.

- Pela primeira vez a gente está fazendo exatamente o que quer, na Odeon - diz Zé Rodrix. Chega no estúdio e consegue gravar o que quer, com o som que for. Não faz a menor concessão, nem em termos  comerciais e nem pra vender mesmo. E isso é muito difícil no Brasil. Eu, por exemplo, comecei  a fazer música mais ou menos na mesma época que o Guarabyra. Luís Carlos é mais antigo, o decano do grupo. Na época, eu estava num conjunto, um quarteto vocal chamado Momento 4. Trabalhei bastante no Brasil inteiro, inclusive cantei Ponteio, com Edu Lobo, no mesmo ano em que Gutemberg ganhou com a Margarida o Festival Internacional. Gutemberg e eu saíamos sempre juntos, e até fizemos um LP que não aconteceu graças ao serviço de divulgação da Phillips. Mas por essa época o pessoal não entendia muito a música que eu fazia com o Momento 4. Instrumento elétrico chocava. Hoje não acham nada demais, mas na época houve reação - o mercado de trabalho se fechou e a gente acabou com o grupo.

Zé Rodrix

Foi então que Zé Rodrix desbandou para o Rio Grande do Sul, numa de hippie, mas ele realmente 'não tinha estrutura', realmente não tinha, e voltou. Então aconteceu o show com Milton Nascimento e nasceu o Som Imaginário. Luis Carlos Sá, - o decano, como eles o chamam - morava na Tijuca, pelos idos de 65. A Luli, uma amiga, gravou 3 músicas dele, pela Phillips. Então ele resolveu ser cantor e foi fazer teste na Odeon. Depois do teste mandaram chamá-lo. Pra ser cantor ainda não dava, mas Peri (Ribeiro) ia gravar duas músicas dele num compacto duplo (Giramundo e Escadas do Bonfim).

- Aí o disco estourou no Brasil inteiro e era um tal de todo mundo querer gravar minhas músicas - e eu achando que só devia deixar gravar quem eu gostasse. É   que eu tinha só 19 anos e estava me sentindo assim meio novo gênio ou enfant gaté da MPB. E com esse negócio de eu não querer que qualquer um gravasse, as pessoas começaram a desistir, e eu então caí no mais completo ostracismo.

Guarabyra - quase o tempo todo sem falar - então explica (explica-se) com aqueles olhos de Bom Jesus da Lapa e cara de meu Deus, o que é isso:

- Eu também passei por isso. Eu estava em Bom Jesus quando soube que duas músicas minhas tinham sido classificadas no Festival (Magarida e Marinheiro Olê). Eu vim pro Rio. Mas ninguém queria defender as músicas - e já estava na  base do Agostinho dos Santos. Então resolvi defender eu mesmo, com o Grupo Manifesto - Guto, Gracinha e Fernando Leporace, Mariozinho Rocha e tal. Aí eu tinha um contrato com a Phillips para gravar, e o disco não saiu na data, a gravação ficou ruim e veio o famoso veto, isto é - a Phillips não gravava mais nada, mantendo, no entanto, o contrato de dois anos. Nem me deixava gravar fora, nem desfazia o contrato Então começou a onda: puxa, você só tem Margarida, só tem uma música, e de festival (e nem de festival era, eu tinha feito para uma namorada, via a  música mais ou menos como uma brincadeira, sarro).

Dadas as explicações, eles param de falar e começam a tocar: Me Faça Um Favor, Viajante, Azular, Casa no Campo, Cigarro de Palha (ensaio para o show Opinião).

E pinta mais um bando de gente do outro lado da rua que também põe a cara de fora, todo mundo olhando, assim com o olho bem aberto (o apartamento é térreo, então precisa fechar a janela, que não dá pé).

Eles tocam, então, o tal som rural, caipira, folclórico, regional, sertanejo, não no estilo mais pro latino-americano e pan-americanista do Ruy Maurity, mas alguma coisa assim como baião, 'tudo o que for de São Paulo pra cima'. E que for misturado com o rock. O rock que eles ouviam todo sábado e os despertou para este som e harmonia. E definem:

- O rock é o baião de Luiz Gonzaga, só que num compasso binário (um, dois é igualzinho ao baião, só que vai sempre reto, sem sincopar)."

 

 

domingo, 24 de janeiro de 2021

Os Grandes Festivais (Revista Rock Espetacular Vol. 2 - 1977)


 No final de 1976 e início de 1977 foram publicados no Brasil três volumes de uma revista que contava a história do rock, desde seu surgimento nos anos 50 até o momento da publicação, ou seja, até meados dos anos 70. Dentre os assuntos abordados, não poderia faltar os grandes festivais de rock. Segue o texto:

"Um festival não é apenas um desfilar de vários nomes mais ou menos estelares do rock. Além do número de artistas apresentados, há outros elementos definidores: o local, ao ar livre, longe da cidade, se não bonito pelo menos agradável; sua capacidade de comportar enormes contingentes de público; e a intenção de e disposição desse público em formar algo mais que uma simples plateia de rock; a ideia, sempre presente em maior ou menor grau, de que todos estão ali para algo que transcende a música, uma celebração tribal, um ritual de união do clã.

Pelo menos esse era o espírito da grande era dos festivais, que vai do fim dos anos 60 ao início dos 70. Hoje, os festivais subsistem, é certo: mas são, cada vez mais, apenas mostras em grande escala dos últimos lançamentos ou das grandes estrelas do rock.

Curiosamente, a ideia de 'festival de música' não começou com o rock, mas com o jazz. Em toda a década de 50 foi o festival de jazz e folk de Newport, Rhode Island, Estados Unidos, que reuniu maiores audiências e concretou ideias e informações musicais. O filme Jazz on A Summer's Day popularizou a mostra, que foi responsável pelo lançamento, entre outros nomes, de Bob Dylan. Dylan foi aclamado e sacramentado em julho de 63, quando suas canções folk contemporâneas de revolta e inconformismo calaram fundo na plateia quando, em 1965, ousou ligar uma guitarra elétrica em seu palco, acompanhado pelos não menos elétricos e rockeiros músicos da Band. Os tempos, como ele havia previsto, tinham mudado. Newport, ainda hoje mostra significativa de jazz, blues e folk, não era mais o denominador comum da juventude. era preciso criar uma nova fórmula.

O pioneiro da fórmula festival-de-música-e-curtição foi o de Monterey, em 1967. Comparados com os festivais-gigante do fim da década, Monterey foi quase ridículo: apenas alguns milhares de pessoas, num local não tão vasto assim, assistindo aos shows sentados em cadeirinhas desmontáveis e bancos. Mas, considerando as presenças em palco e o espírito reinante no ar - as 'boas vibrações' como já se dizia - Monterey foi um marco, a cristalização do grande 'desbunde' das flores, som, paz & amor. Lá desfilaram Hendrix, Janis Joplin, The Who e muitos luminares do rock psicodélico da Califórnia, como Jefferson Airplane e Mamma's & The Papa's.

Em 1969, dois grandes eventos estabeleceram definitivamente o mito dos festivais. Na Ilha de Wight, ao largo da costa britânica, um quarto de milhão de pessoas aclamaram triunfalmente o homem que, 4 anos antes, tinha sido escorraçado de Newport: Bob Dylan quebrava o silêncio auto imposto com um concerto memorável, acompanhado pela Band, integrando o grande elenco do festival.
Mas foi no Festival de Woodstock, no interior do estado de Nova Iorque, que o mito se firmou de vez. Durante três dias mais de 500 mil garotos vindos de todos os cantos da América (e do mundo) ouviram (mais do que viram) os sons de Hendrix, Who, Crosby, Stills, Nash & Young, Santana, Richie Havens, Joan Baez. Mas, mais do,que isso, eles formaram uma gigantesca comunidade alternativa que, embora durando apenas esses 3 dias, criou a nítida ilusão que algo de novo e renovador estava, enfim, acontecendo. Como disse Max Yasgur, proporietário do local onde se realizou a mostra: 'Woodstock provou ao mundo que meio milhão de garotos podem ficar juntos para curtir alegria e música, e só alegria e música. Deus os abençoe por isso.'

Ou, como escreveu Joni Mitchell na canção-hino Woodstock: 'Nós somos poeira de estrelas/ nós somos ouro/ somos carbono de um bilhão de anos/ e precisamos retornar ao Jardim'.

Woodstock, o festival, deu um prejuízo de 100 mil dólares a seus organizadores. Mas Woodstock, o filme, rendeu 17 milhões de lucro, disseminando por todo o mundo a ideia de que, para fugir das pressões e desumanidades da vida urbana no mundo ocidental, bastava um fim de semana no campo em companhia de alguns milhares de outros garotos com  o mesmo problema de evasão e ao som de um rock potente.

É claro que logo o mito do festival foi descoberto como boa fonte de renda. - E se tornaram comuns os festivais mais ou menos improvisados, com condições mínimas de higiene, preços exorbitantes e artistas que só podiam ser vistos de longe, muito longe, e ouvidos com igual dificuldade.

Os opostos também não tardaram a aparecer: seis meses depois da celebração pacífica de Woodstock, Altamont se tornou sua antítese. Em dezembro de 69 os Rolling Stones resolveram encerrar sua excursão americana com um grande concerto grátis no autódromo de Altamont, Califórnia. A organização do espetáculo foi apressada e improvisada. O grupo de motoqueiros Hell's Angels, conhecido por sua violência, foi convocado para atuar como força de segurança. Quando o show terminou, quatro pessoas estavam mortas: duas atropeladas, uma afogada e um rapaz preto esfaqueado pelos Angels a poucos metros do próprio palco. Foi um choque violento no mito pacífico e revolucionário que Woodstock tinha ajudado a  criar em torno dos festivais.
Mas a maioria dos festivais dos anos seguintes não foi nem o céu de Woodstock nem, é claro, o inferno de Altamont. Na melhor das hipóteses, tornaram-se agradáveis fins de semana no campo, ao som de bom rock, como no Festival de Bath, em 1970 na Grã-Bretanha. No pior dos casos, era uma espécie de assalto à mão armada, com promotores e empresários brigando por dinheiro - cifras astronômicas - enquanto as multidões de garotos aturavam uma música péssima e banheiros entupidos (como no festival da Ilha de Wight em 1970).
Na Grã-Bretanha, o festival que mais se aproximou do de Woodstock foi o de Glastonbury em 1971. Durou uma semana, e não teve nada a ver com o clima de 'fim-de-semana-hippie' que reinava nos outros eventos. O bom tempo e a atmosfera legendária de Glastonbury contribuíram para criar o ambiente necessário de paz e união.
No Brasil, a era dos festivais parece ter terminado antes de começar. Por uma série imensa de obstáculos e dificuldades, nenhum dos espetáculos programados conseguiu se aproximar sequer de Glastonbury, quanto mais de Woodstock (embora fosse essa sua pretensão). Os menos desorganizados e tumultuados foram os de Guarapari, ES, em 1970, o Dia da Criação em Caxias, RJ, em 1972 e o Som, Sol, Surf de Saquarema, RJ, em 1976. 
O maior festival já realizado, em termos numéricos, foi o de Watkins Glen, Estados Unidos, em julho de 73, reunindo 600 mil pessoas para assistir Allman Brothers Band, Grateful Dead e The Band. Mas estava longe a atmosfera de euforia e esperança que reinou em e a partir de Woodstock, quatro anos antes.
Vistos em perspectivas, os festivais permanecem equidistantes do idílio de Woodstock e da violência de Altmont como grandes festas comunitárias, rapidamente encampadas, como todo o resto, pela sociedade de consumo."
 




sábado, 23 de janeiro de 2021

Os 50 Anos de Paul McCartney (1992)


 Em 18/06/92 Paul McCartney completava 50 anos. Toda vez que um grande ídolo completa uma data redonda e simbólica, como 50 anos, ela é sempre lembrada e festejada. Com Paul, figura emblemática e símbolo da juventude dos anos 60 e 70, quando fez parte dos Beatles, e seguiu depois uma bem sucedida carreira-solo, não poderia ser diferente. O jornal O Globo, quatro dias antes, em sua edição de 14/06/92, trazia uma matéria sobre a efeméride, assinada por Antônio Carlos Miguel, e intitulada "Um herói ou um vilão?":

"Nessa quinta-feira, dia 18, o mais bem sucedido dos Beatles completa 50 anos. Trinta anos depois de eles terem assinado com a EMI e lançado o compacto de estreia, 'Love Me Do'; 25 anos depois da chegada às lojas do álbum 'Sgt. Pepper's' e 22 anos depois de anunciar seu afastamento do grupo, Paul McCartney ainda divide opiniões dos órfãos dos fab four.

Enquanto John ficou com a fama de criativo e revolucionário, Paul tem sido normalmente pintado como o mais comercial e  conservador do grupo. Essa é uma leitura simplista e maniqueísta, mas de certa forma referendada pelos primeiros trabalhos solos de ambos. Ainda mais naquele radical período, no início dos anos 70.

Desculpem o humor negro, mas se quisermos achar um aspecto positivo na morte de John Lennon foi o de manter a aura mítica dos Beatles. Nada mais melancólico do que as nostálgicas e caça-níqueis reuniões que dinossauros do rock costumam protagonizar. E disso os Beatles estão livres. Mesmo que por linhas tortas, em meio a brigas por dinheiro, LSD em excesso, ciumeiras de 'yokos e lindas' o prematuro fim do quarteto incrementou a lenda. Mas, a partir de 1970, John, Ringo, Paul e George passaram a ter que enfrentar a desconfortável comparação com o passado beatle.

Hoje é unânime a ideia de que o melódico e romântico Paul encontrava no ácido e agressivo John o contrapeso exato. No entanto, os papéis dos dois muitas vezes se misturaram. O álbum 'Sgt Pepper's', um marco divisor na música  popular, nasceu principalmente das inquietações de Paul. Numa entrevista para a 'Rolling Stone', em 1986, McCartney deu sua versão: 'John vivia com a mulher e o filho e eu era solteiro em Londres. Vivendo por minha conta, indo ao teatro, procurando as novidades da vanguarda, filmando em super-8, conhecendo Allen Ginsberg... Curtia a música de Stockhausen e fiz algumas gravações domésticas muito loucas. Fui eu quem introduziu John em muitas dessas coisas e também o apresentei a Yoko Ono'.

Nas suas carreiras individuais, também Paul foi quem mais gravou e, apesar de irregulares, em seus álbuns estão os momentos mais fiéis aos Beatles.

No final do ano passado, ele lançou o pretensioso 'Liverpool Oratorio', sua primeira incursão na área erudita - que grande parte da crítica pede que seja também a última. Mas não perdeu sua paixão pelo rock and roll dos anos 50. Como provou o álbum de covers 'Schooba CCCP/The Russian Album' - editado entre nós em 1991 e gravado inicialmente para o mercado da ex-União Soviética. Se os Beatles estão definitivamente incorporados à história, aos 50 anos, Paul McCartney ainda não pendurou as chuteiras.
A assessoria de imprensa de Paul McCartney, em Dean Street, no Soho de Londres, alega desconhecer onde, como ou se os ex-beatle vai comemorar seus 50 anos. Mas a mídia britânica promoverá um verdadeiro festival McCartney para celebrar a vida e a obra do músico.
No próximo fim-de-semana, a TV britânica programou os já clássicos filmes 'Help' e 'Os Reis do Iê-Iê-Iê'. No domingo, será mostrado um documentário do produtor George Martin celebrando os 25 anos da gravação de 'Sgt Pepper's'. Na quinta-feira, a BBC Radio fará um 'dia Paul McCartney', executando todas as canções que chegaram ao top ten. E o expert em Beatles, Brian Matthew, também mergulhará nos arquivos de som da BBC para revelar fitas obscuras de Paul e dos Beatles. Mas, numa indicação de que a idade pesa, o programa 'Redescovering Yesterday' será apresentado na Radio 2 - de público mais adulto - e não na Radio 1, o reduto do rock.
Também será editada uma biografia oficial, 'Paul Macca McCartney', escrita por Ross Benson."



 


sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

Elis & Tom - Um Disco Histórico Relançado (2004)


 Em 1974 foi lançado Elis & Tom, um disco histórico da música brasileira, um álbum que pode ser chamado de perfeito, mesmo para o mais exigente dos ouvintes. Em 2004, em comemoração aos 30 anos de seu lançamento, a gravadora Universal (antiga Phillips) lançou uma edição especial do álbum, em CD e DVD Áudio. Eu que já possuía a edição original em vinil, também adquiri essa edição comemorativa, e posso dizer que valeu a pena. Na ocasião, a revista Shopping & DVD Music nº 92 (outubro/2004) trouxe uma boa matéria sobre o relançamento, assinada por Alyne Azuma:

"Em seu aniversário de trinta anos, Elis & Tom, um dos álbuns mais importantes da música brasileira, ganha uma versão reeditada na qual toda a riqueza musical e achatada pela tecnologia da época é revelada e disponibilizada ao público numa edição especialíssima em DVD áudio e CD.

Quando Elis completou dez  anos com a gravadora Phillips (atual Universal), o então presidente André Midani perguntou à  cantora o que ela queria ganhar em comemoração à data. Para surpresa de todos e alegria do mundo inteiro, Elis respondeu que queria um disco com músicas de Tom Jobim... com Tom Jobim.

Tom, Elis e César Camargo Mariano

Como Tom já morava há anos nos EUA nessa época, o ideal, ou pelo menos mais fácil, teria sido trazê-lo para o Brasil. Mas como outros compromissos o impediam de vir para cá, depois de muitas complicações logísticas e financeiras, Elis Regina, César Camargo Mariano, o quarteto de Elis e o produtor Aloysio de Oliveira (ponte fundamental entre as duas partes, Elis e César e Tom Jobim) partiram para os EUA.

Apesar da admiração mútua, Tom e Elis eram de gerações distintas, Elis representando o novo e Tom, em suas próprias palavras, o velho. Essa diferença foi motivo para tensão entre ambas as partes, mas, na verdade, tudo não passava de pura ansiedade e apreensão. Nada que não se resolvesse no estúdio, quando todos os envolvidos colocaram finalmente vozes, cérebros e mãos à obra.

Numa excelente metáfora feita pelo próprio Tom no  final do processo, e reproduzida fidedignamente por César na ocasião do lançamento do álbum, 'Eu gosto de tomar banho de banheira, com água parada. Já vocês gostam de tomar banho de chuveiro, com água fresca'.  Numa citação reproduzida no encarte do álbum, Elis declara: 'Nos meus dez anos de gravadora, ganhei de presente um encontro com Tom. Foram momentos vividos por  duas pessoas muito tensas, que só conseguem se descontrair através da música. (...)'

Mas esse e outros percalços (como o fato de César ter sido impedido de reger as cordas por uma questão sindical), só dão mais tempero ao álbum. Cada história revelada ou relembrada por alguém que viveu aquilo tão intensamente como César Camargo Mariano pode facilmente, e provavelmente vai, dar um livro. 'O clima da gravação, do estúdio, propiciaram o que o álbum é hoje. Ninguém nunca tinha tido contato com isso. Só eu e pouquíssimas pessoas envolvidas no processo', explica o maestro.

Eis, que agora, trinta anos depois, esse material foi restaurado, por ninguém menos do que o próprio César Camargo Mariano, marido de Elis na época, arranjador e instrumentista do álbum e a única pessoa viva hoje que acompanhou o processo do ponto de vista profissional (artística e tecnicamente) e pessoal com tanta intensidade. Numa parceria entre a Trama e a gravadora Universal, detentora do acervo da extinta Phillips, César e o engenheiro Luis Paulo Serafim passaram meses numa minuciosa restauração da matriz, que envolveu transferência, restauração, mixagem em estéreo e mixagem em 5.1. 'A música já pagou um preço muito alto pela distorção e essas perdas que as  gravações sofriam', comenta César. E explica: 'Pensou-se numa restauração. O objetivo não era mostrar coisas novas, e sim o clima da gravação. Nada foi editado, nem na época, nem agora. Não havia motivo para editar, seria uma traição.'

Aloysio, César, Tom e Elis

E, para deleite do público, além das 14 canções já conhecidas, Elis & Tom traz duas faixas bônus em DVD, 'Bonita' e 'Fotografia', que aparece no álbum na versão 'oficial' e no bônus numa versão alternativa que Elis tocava nos shows. 'Bonita', a despeito dos protestos de Tom e César, foi cortada por Elis por achar que seu sotaque cantando em inglês não estava bom o bastante.

Outro presente que a nova versão traz é uma espécie de 'antes e depois' de cada faixa. As piadas, comentários, contagens, marcações e pequenos ruídos agora podem ser ouvidos como se o ouvinte estivesse lá participando da gravação. 'Quando a música propunha um fade out, deixava-se para cortar na mixagem. Tantos que as interpretações eram bruscas, como dá pra notar. E a festa acontecia nesse espaço. Todas as improvisações aconteciam no fade out. Isso faz parte do clima, então tinha que deixar. Os comentários e  piadas, também', revela.

Aloysio de Oliveira e Tom

O sistema 5.1, utilizado por César Camargo Mariano na reedição de Elis & Tom traz uma fidelidade absoluta permitindo a audição de detalhes praticamente imperceptíveis numa versão comum. Se o ouvinte fechar os olhos, vai se imaginar em 1974 no meio do estúdio assistindo a gravação do disco. Para quem dispões de um home theatre e tiver caixas bem posicionadas, o DVD áudio traz uma riqueza sonora inigualável, digna de uma boa sala de cinema. Pra quem não tem, o DVD áudio (que não traz imagens em movimento) pode muito bem ser tocado num aparelho de DVD e satisfazer plenamente o desejo de ouvir o álbum com o máximo de realismo. E, de quebra, ainda há a versão em CD que também traz qualidade sonora muito superior.

Mas, independente do equipamento que cada um tem em casa, o que importa é que um patrimônio da música brasileira, e tesouro mundial, acaba de ser disponibilizado com toda a qualidade que a tecnologia oferece e toda a sensibilidade."






quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

John Mayall - O Pai do Blues Inglês


 John Mayall é uma figura fundamental no desenvolvimento e revigoração do blues a partir dos anos 60. Pode-se dizer que o blues, ritmo originário dos EUA, ganhou nova vida a partir dos músicos ingleses, que trouxeram a influência em sua música dos velhos bluesmen, que andavam esquecidos. E John Mayall, que através de seu grupo "John Mayall's Bluebrackers" ajudou a trazer de volta o mais autêntico blues, e formar uma série de músicos que vieram a brilhar posteriormente. Por isso, Mayall pode ser considerado o pai do blues inglês. No fim dos anos 90, uma série de fascículos que se encontravam em bancas de revistas, chamado "As Feras do Rock", traziam dados biográficos de nomes importantes do rock, blues, e outras vertentes. Esse é o texto publicado sobre John Mayall:

"John Mayall é o santo padroeiro do blues britânico, uma personalidade excêntrica, perfeccionista e discutível, que incentivou a carreira de inúmeros músicos importantes, porém não duvidou em se desfazer daqueles que considerava problemáticos. Entretanto, se há uma coisa que não se pode negar é a sua paixão pelo blues e a  sua capacidade de contagiar com esta emoção a todos os que estiverem a sua volta, dentro ou fora do palco.

No início dos anos 90, Mayall declarava que, em algum momento, ele chegou a pensar que o público desfrutaria com qualquer coisa que tocasse, mas que efetuou demasiadas mudanças e isto confundiu seus seguidores. Sua longa experiência musical lhe levou a um conhecimento absoluto das formas, técnicas e recursos do blues. Tal domínio é o mesmo que, a nível intelectual, lhe permite compor suas músicas explorando o jazz, o country e o boogie-woogie, com a mesma genialidade dos seus idolatrados J.B. Lenoir, Sonny Boy Williansom e John Lee Hooker, a quem precisamente dedica a música 'John Lee Boogie'. Pelos mesmos motivos, experimenta com vozes femininas pela primeira vez em 1975. O nível visceral é o da sua entrega nas interpretações. O que outorga credibilidade à materialização de tudo o que elaborou em sua mente, como no caso do acelerado 'Why Worry'. Sendo também o que lhe faz trazer à tona, toda a sua força com a gaita, em 'A Big Man' e 'Reaching For a Mountain', e é a chave de ouro com que John Mayall fecha uma etapa da sua carreira, sucedida por um longo período de absoluta esterilidade criativa que finalizaria apenas a finais dos anos oitenta."


quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

Clube da Esquina - Histórias da Gravação (International Magazine - 2004)


 O Clube da Esquina é um disco clássico e histórico. Todo mundo que gosta de música sabe disso. Gravado em 1972, o disco é cultuado e sempre lembrado quando se fala dos grandes discos já lançados no Brasil. O jornal musical International Magazine nº 107, de novembro de 2004, em matéria assinada por Marcelo Sanches conta histórias da gravação e divulgação dessa grande obra:

"No exterior, a imprensa especializada vive comemorando datas de lançamento dos discos importantes de sua música popular. Aqui no Brasil a gente repete o hábito, mas normalmente falando dos álbuns importados também, esquecendo que a MPB possui verdadeiras obras-primas que nada ficam devendo aos 'Pepper's' e 'Pet Sounds' da vida. Alguém se lembra que há 32 anos atrás o antológico 'Clube da Esquina' foi lançado?

Em 1972, Milton Nascimento ainda estava longe de um reconhecimento popular. Ele, Lô, Beto Guedes e um amigo estavam morando em um apartamento no bairro do Jardim Botânico, no Rio, mas tiveram de mudar-se dali por causa das constantes reclamações dos vizinhos que não aceitavam 'aquele bando de cabeludos entrando e saindo a todo instante'. A saída para esse 'incidente' foi oferecida temporariamente pela EMI-Odeon, que havia alugado uma casa de praia para que Milton e os seus músicos ensaiassem as novas canções que entrariam no disco que viria a ser gravado. Nesta casa, em Mar Azul, próxima ao Rio, toda a turma de músicos permaneceu morando por dois meses, ensaiando os temas e, claro, bebendo uma quantidade imensurável de  cervejas, whisky e tudo o mais que pudesse ser ingerido. Lá estavam Wagner Tiso, Zé Rodrix, Toninho Horta, Fredera Luis Alves, Tavito, Naná Vasconcelos, Beto Guedes, Lô Borges, Márcio Borges, Fernando Brant, Ronaldo Bastos, Roberto Silva, Novelli, Beto Guedes e, claro, Milton.

Galera reunida

Depois do período de ensaios, o grupo partiu para os estúdios da Odeon, no Rio, em plena Cinelândia, para iniciar as gravações. De início, Milton enfrentou a resistência da gravadora para que fosse gravado material para um álbum duplo. Aceita a ideia, o disco começou a ser gravado, com acréscimo das participações de Eumir Deodato, Paulo Moura e Nelson Angelo. Ainda durante as gravações, Milton tinha alguns shows agendados, como o do MAM, numa noite qualquer no início de 72. Porém, como relata Márcio Borges no livro 'Os Sonhos Não Envelhecem', o excesso de bebida fez com que o compositor entrasse no palco e desmaiasse em cima da bateria antes de cantar uma só nota!

A solução encontrada pelo guitarrista Fredera foi fazer um discurso acusando a repressão militar em vigência pelo stress de Milton! Quando chegou a hora de fazer a temporada de lançamento do álbum, o teatro escolhido para a série de shows foi o obscuro Teatro da Cruzada Eucarística São Sebastião, na periferia do Rio de Janeiro. Plateia com vários lugares vagos, o primeiro show foi tenso, com os músicos esquecendo suas partes,, Milton esquecendo as letras, Lô e Beto Guedes nervosos e tensos, Ronaldo Bastos brigando com o empresário de Milton, um certo 'Mané Gato', enfim, um caos devidamente fuzilado pela crítica, que julgou tudo muito precário e amadorístico. Nas apresentações seguintes, vários acontecimentos pitorescos deixaram transparecer a tensão e as  condições realmente precárias do grupo: Tavito e o baterista Robertinho Silva tiveram ataques histéricos em pleno palco, para horror do pequeno público presente, sendo retirados aos berros e urros pelos amigos. Os shows só foram se ajustar na medida em que a temporada avançava. O álbum também não escapou das críticas, que acusavam Milton de copiar Caetano Veloso e Chico Buarque, de demonstrar uma suposta desorientação musical e utilizar letras incompreensíveis demais, além de classificar a voz de Lô Borges, parceiro de Milton no disco, de fraca e inconsistente!

Lô Borges

Bem, quase toda a obra importante provoca controvérsias em seu tempo de chegada, o que torna compreensível a reação ao LP duplo 'Clube da Esquina'. O álbum veio consolidar o ecletismo proposto pela obra de Milton & Cia, mas  deixou nítida a marca da música dos Beatles em grande parte das canções. Em 'Um Gosto de Sol', depois da belíssima interpretação de Milton, acompanhado apenas de um piano, a faixa se encerra com um imponente e emocionado arranjo de cordas, utilizando a mesma melodia de 'Cais', pressupondo uma ligação temática entre ambas. Esta seria uma marca da música de Milton, forte sinal da influência dos Fab da fase 'Sgt Pepper's': uma canção dividida entre duas seções, com arranjos distintos, intercalando o erudito e o popular.

Lô Borges surpreendeu com temas complexos demais para sua idade de 16 anos, fazendo de seu 'Trem Azul' uma das canções mais populares do álbum, além de 'Um Girassol da Cor do Seu Cabelo', parcerias com o irmão Márcio. Para outros críticos especializados em MPB, o 'Clube' é o disco mais tropicalista já gravado no país. A poesia espalhada pelas canções, divididas entre os parceiros habituais como Fernando Brant, Murilo Antunes e Márcio Borges, vai da simples recordação de uma cena interiorana observada num quarto de hotel ('Paisagem da Janela'), pelo cinema ('Tudo O Que Você Queria Ser', inspirada numa cena do filme 'Viva Zapata', de Elia Kazam) até fortes referências ao que acontecia nos porões da ditadura militar, já que os compositores estavam próximos dos acontecimentos, pois tinham amigos exilados e foragidos. Das canções que abordam essa questão, 'San Vicente' e 'Um Gosto de Sol' são as mais cortantes e poéticas. Além das tristes memórias da ditadura, o álbum também evoca uma fase em que havia mais união e amizade entre artistas e a juventude em geral. O clima de comunidade e irmandade da época foi um fator imprescindível para que essas canções nascessem.

O LP teve um impacto bastante salutar em outros artistas e intérpretes, principalmente em Elis Regina. Numa fase em que buscava reorientar sua carreira, Elis escolheu Milton para principal fornecedor de canções, agora com uma admiração nunca vista, nem mesmo quando da gravação de 'Canção do Sal'. Em seu LP de 72, a 'baixinha' gravou 'Nada Será Como Antes', de Milton e Ronaldo Bastos, incluída no 'Clube'. A gravação da cantora teve êxito junto ao seu público, e causou surpresa em boa parte da crítica especializada. Então, as coisas para Bituca começaram a fluir positivamente. 'Clube da Esquina' veio abrilhantar ainda mais um momento riquíssimo para a MPB, que assistia ao retorno de Gil e Caetano ao país com dois discos maravilhosos, 'Expresso 2222' do primeiro, e 'Transa', do segundo. Gal não havia ficado pra trás, com o magnífico 'A Todo Vapor', e Chico Buarque já havia lançado um ano antes o seu clássico 'Construção'. Apesar de toda a censura imposta pela ditadura militar, a MPB resistia com discos fundamentais para a sua perpetuação.

Se o álbum 'Clube da Esquina' utilizava instrumentos eletrificados em sua quase totalidade, bem como 90% da produção fonográfica brasileira, isso tinha uma razão óbvia: a plena incorporação da textura sonora do rock dentro da MPB. O 'Clube' foi uma das principais obras artísticas da época a definir com requinte e brilhantismo esta tendência modernizadora e mundializada, uma obra-prima que extrapolou as fronteiras ditadas por puristas e retrógrados em geral, que ainda viam na eletricidade das guitarras uma ameaça à 'tradição' de nossa canção popular. Vou além: fixou em definitivo a proposta dos tropicalistas, unindo o rural, o urbano, a tradição e a modernidade em dois LPs antológicos, peças fundamentais na coleção de quem quer que se julgue um admirador de música popular. Salve Minas Gerais!"