Palavras Domesticadas

Palavras Domesticadas

domingo, 31 de maio de 2015

Walter Franco Fala de Sua Carreira - 1993

No início dos  anos 90 o jornal O Globo tinha uma seção nas edições de domingo intitulada "Que Fim Levou", que falava de um artista, seja da música, das artes cênicas ou qualquer outra atividade, que teria tido um destaque em seu meio de atuação, e que no momento estava afastado da mídia. Um dos artistas destacados foi Walter Franco, que na época estava afastado dos meios de comunicação. A jornalista Cleusa Carmona fez a matéria com Walter, que também falou de usa carreira:
"O Festival Internacional da Canção de 1972 revelou para o Brasil um jovem compositor que entraria rapidamente para o rol dos 'malditos' da MPB: Walter Franco, polêmico criador de 'Cabeça', que causou escândalo ao interpretar sua canção com forma e conteúdo inteiramente fora dos padrões da época. Vaiado incondicionalmente, Walter Franco jamais foi perdoado pela maioria. Mas a minoria que conquistou transformou-se numa legião de fãs que até hoje continua fiel a seus sons alternativos e experimentais.
Mais odiado que amado, Walter Franco passou os últimos 18 anos à margem do sucesso fácil e comercial. Hoje, no entanto, acha que o espaço para suas criações musicais está mais aberto. Tem público variado: da geração que o acompanha desde os tempos de 'Cabeça' até os jovens que o descobriram muitos anos depois.
- Meu trabalho sempre se voltou ao auto-conhecimento espiritual. Quando o lancei, meu trabalho era hermético, agora há mais espaço - avalia ele.
Paulista, de 48 anos, Walter Franco está há sete anos sem gravar. Seus discos, porém, continuam nas prateleiras das lojas e vendem bem. Este ano, a gravadora independente Baratos Afins, de São Paulo, reeditou três de seus últimos discos: 'Revolver' (1975), 'Vela Aberta' (1980) e 'Respire Fundo' (1982). A reedição animou o compositor que, no entanto, continua sem pressa para produzir um novo trabalho.
- Cada um tem uma coisa muito particular para ser aperfeiçoada sempre. Como meu trabalho é na área de criação, me dispus a fazer pouca coisa. O artista tem direito de entrar e sair quando quiser - reivindica.
Coerente com sua linha de trabalho, Walter Franco continuou a fazer shows em palcos alternativos, mas também lotou recentemente espaços como o Sesc-Pompeia e o Centro Cultural São Paulo. Paralelamente às apresentações, desenvolveu criações mais comerciais para jingles de campanhas publicitárias e políticas.
Atualmente se prepara para um show, de 14 a 16 de dezembro, no auditório do Crownn Plaza, em São Paulo. Um espaço de 150 lugares que tem sido frequentado por artistas de linha mais alternativa. Além de uma retrospectiva de seu trabalho, o compositor pretendo apresentar composições inéditas e parcerias como 'Nasça', com Arnaldo Antunes; 'Pedra Polida', com Paulo Leminski; e 'Tótem', com Costa Neto.
No palco do Crownn Plaza, Walter Franco enfrentará sozinho o desafio da voz e do violão. Mas não deverá deixar de fora uma parte experimental. Além do trabalho com a palavra, o artista pretende utilizar o som quadrifônico: sons instalados nos quatro cantos do auditório.
- Faz parte de um trabalho experimental que desenvolvi com o estúdio de sons, do silêncio e com o qual  realizei uma gravação para o Museu da Imagem e do Som, encerrando a Semana de Música Contemporânea - explicou.
O trabalho com a palavra e com os gestos vem de sua formação como ator da Escola de Arte Dramática de São Paulo:
- Comecei na música através da poesia.
Walter Franco resume seu trabalho atual como uma mescla de balada, rock e reggae. Uma síntese de sons e temas ao mesmo tempo intimistas e extrovertidos, abstratos e concretos. Tudo isso, segundo ele, poderá ser colocado em disco no próximo ano com produção do também compositor paulista Guilherme Arantes.
Antes disso, suas composições inéditas ficarão dentro dos espaços fechados e com gosto restrito. Mas Walter Franco diz que continua na mesma linha de criação com  a qual começou, nos tempos de 'Cabeça', falando de coisas que só muito tempo depois se tornariam novidade:
- Antes de tudo virar moda, eu já buscava a mente quieta, a espinha ereta e o coração tranquilo."

sábado, 30 de maio de 2015

Jorge Mautner Lança Livro Miséria Dourada - 1993

Jorge Mautner é um artista múltiplo. Cantor, compositor, cineasta e escritor, Mautner sempre foi acima de tudo um pensador, que através de seus textos expõe suas visões a cerca de uma série de questões. Autor de diversos livros, sempre instigantes e reflexivos, em 1993 lançava Miséria Dourada, pela editora Maltese. Na época o jornalista Antonio Carlos Miguel comentava o lançamento e traçava um perfil de Mautner, num texto intitulado "O kaos contra o nazismo":
"Mais conhecido por sua atuação na música popular, Jorge Mautner volta à ficção com o livro 'Miséria Dourada' (Editora Maltese). Ele estreou há 31 anos, com o romance 'O Deus da Chuva e da Morte', que lhe valeu o prêmio Jabuti de revelação literária. Nascido em São Paulo, em 1941, filho de judeus vienenses que vieram ao Brasil organizar o repúdio ao nazismo, Mautner sempre transitou entre música e literatura. Em 1958, aos 17 anos, compôs 'O Vampiro', lançada num compacto e duas décadas depois regravada por Caetano Veloso. Neste mesmo ano, o escritor começava a aparecer, através da revista 'Diálogo', do filósofo Vicente Ferreira da Silva.
- A minha música é uma continuação da literatura. As minhas canções são fábulas e nunca deixei de escrever na realidade. Tenho mais de duas mil páginas escritas inéditas -  conta o escritor/cantor.
Nos anos 70 ele voltou a publicar, mas 'Fragmentos de Sabonete' (75) e 'Panfletos da Nova Era' (80) estavam mais próximos do ensaio do que da ficção. Agora, além de 'Miséria Dourada', a Maltese programa a reedição dos quatro livros de Mautner lançados nos anos 60: 'O Deus da Chuva e da Morte', 'Kaos', 'Narciso em Tarde Cinza' - que formam a 'trilogia do kaos' - e 'Vigarista Jorge'. Será a oportunidade de os leitores mais novos entrarem em contato com uma literatura que fundia a técnica da escrita automática dos surrealistas, o existencialismo e a influência beatnik, com ecos da juventude transviada dos anos 50. Na época, a crítica ortodoxa repudiou os temas e a postura do jovem 'vigarista'. E, em 1965, ele abandonaria o Brasil.
- Com o golpe de 64, o meu livro foi apreendido. Antes mesmo do Ato Institucional número 5, em 1968. 'Vigarista Jorge' foi o primeiro a ser incurso na Lei de Segurança. Fui então para os Estados Unidos, onde me tornei secretário do grande poeta americano Robert Lowell.
Ele voltaria ao Brasil em 1972, depois de uma temporada em Londres, onde conheceu os então exilados Caetano Veloso e Gilberto Gil. A empatia foi imediata, e o período está registrado no longa-metragem, filmado em 16mm, que Mautner dirigiu.
- Quero relançar 'O Demiurgo', filmado em Londres com Caetano e Gil. Ele é muito atual, e inclui dez minutos com Gil completamente nu, que tive que cortar na época. Tem um problema de sincronização, porque ele é em som direto, e o câmera estava 'viajando'. Mas hoje é possível corrigir isso.
Jorge mergulhou fundo no movimento hippie dos anos 60 e 70. Seus sete discos editados - o último foi Pedra Bruta, em janeiro deste ano - mantiveram acesos seus ideais. E o que soava anacrônico nos yuppies anos 80 hoje volta à tona.
- Como pensador e sempre na marginalidade, maldito, eu influenciei três gerações. Não escrevo para agradar, e sim para tumultuar e para revelar. Ao contrário de hoje em dia, que só produzem coisas para bajular, para vender... enfim, perfumaria. O meu ofício de escritor é de revelar, no sentido de Dostoievsky. Também sempre me opus aos concretistas, discordo do formalismo deles. Já a minha influência da negritude vem dos nazistas, que hoje em dia estão em alta absoluta. O meu novo livro trata disso, o 'kaos' contra o nazismo. E o Brasil tem uma missão profunda, se o mundo não se 'brasilificar' ele vai virar nazista. Essa missão do povo brasileiro é profundíssima, porque aqui, embora nós tenhamos uma democracia formal, em parte, é na verdade o único lugar que misturou índio, negro e branco. Daí a grande riqueza e a grande novidade, ainda para o século XXI, da nossa cultura. Por isso cito o tropicalismo, Caetano e Gil. O Brasil é o país mais negro do mundo, mais do que a Nigéria. E também a maior nação de escravos do mundo moderno. Somos a nona potência industrial, e o salário mínimo está abaixo do Haiti. Esta é a tecla básica."

sexta-feira, 29 de maio de 2015

Os Stones Visitando o Brasil - 2ª Parte

"Lutando contra as drogas e com o casamento em crise, Taylor veio ao Rio atrás de sossego, mas não conseguiu, mesmo ficando com amigos íntimos. 'Havia repórteres e fãs na porta da minha casa o tempo inteiro. Um dia, Mick, muito cansado, disse que eu estava me promovendo às custas dele. Minha mulher ficou uma fera e o expulsou de casa. Ele foi se hospedar com o Neville de Almeida e a Liége Monteiro. Mas, meses depois, quando voltei para Londres, fiquei novamente na casa dele, sem problema', lembra Brandão. No Rio, Taylor conheceu muitos outros brasileiros, como o jornalista Ezequiel Neves. 'Ficamos muito amigos. Ele era simpático, mas também tímido. Uma pessoa muito doce'
Em 1975, Mick Jagger veio mais uma vez ao Rio acompanhado da mulher Bianca e da filha Jade, hospedando-se na casa de Florinda Bulcão, no Joá. Sérgio Motta, diretor da Som Livre, era na época gerente de selo da gravadora Continental, que representava a Rolling Stones Records. 'Recebemos um telex da matriz dizendo que Jagger podia gastar sem limites. Eu deveria levar o dinheiro para pagar o aluguel da casa, mas carreguei, também, muitos aditivos, que o deixariam satisfeito, conta Motta, que passou a semana colado em Jagger. A Bianca não deixava ninguém se aproximar dele. Quando ela foi embora, levei-o a vários lugares. Na Privé, uma boate em Ipanema, ele levou o soco de um bêbado, que quase foi morto pelos seguranças. Mas ele gostava mesmo do Sótão, na Galeria Alaska, que não era apenas uma boate gay. Um dia o vi conversando com uma mulher muito bonita. Mas, na verdade, era um travesti. Disse isso baixinho para ele, que foi gentil e soube livrar-se com educação. Não era o que queria', lembra Motta, que promoveu o encontro de Jagger com o DJ Big Boy para a gravação de um programa de rádio, antes da ida do roqueiro a Búzios.
Mick Taylor no Brasil, com Ezequiel Neves
Motta também esteve junto de Charlie Watts em sua primeira visita ao Rio, em 1976. 'Ele ficou incónito. Saímos pouco, indo apenas a pontos turísticos e as restaurantes', recorda. Mas André Midani, diretor da Warner, organizou uma festa para Watts onde estiveram muitas personalidades  do meio artístico. 'A Rita Lee, que não foi convidada, levou amigos e quase foi barrada', afirma Motta.
Depois dessa visita, demorou para que os Stones voltassem. E, quando vieram, não foi apenas para passear, mas para trabalhar. Jagger veio em 1984 para gravar o clipe de seu primeiro disco solo, She's The Boss, trazendo com ele a mulher (agora Jerry Hall), o diretor Julian Temple e atores como Dennis Hooper e Rae Daw Chong. O músico Markú Ribas, que conheceu Jagger em 1968, chegou a trabalhar no filme, o que rendeu, mais tarde, a chance de ser o único brasileiro a gravar com os Stones. 'Foi no disco Dirty Works, em 1989, no estúdio da EMI em Paris. Eles são caras abertos e engraçados, mas muito profissionais', afirma o músico e percussionista mineiro."

quinta-feira, 28 de maio de 2015

Os Stones Visitando o Brasil - 1ª Parte

Os Rolling Stones já tocaram no Brasil em três oportunidades, mas antes disso, alguns de seus membros já haviam visitado nosso país. A primeira dessas visitas aconteceu em janeiro de 68, quando Mick Jagger, e sua mulher na época, Marianne Faithful  vieram curtir um período de férias em nosso país. Depois, em dezembro, Mick, em sua segunda passagem por aqui, trouxe o parceiro Keith Richards. A foto acima mostra a dupla desembarcando no aeroporto do Galeão com suas bagagens. Outros membros da banda, como Mick Taylor e Charlie Watts também andaram por aqui.
Por conta do badalado primeiro show da banda no Brasil, que aconteceu em janeiro de 1995, o Jornal do Brasil publicou um caderno especial sobre a banda em 25 de janeiro daquele ano, contando histórias,  curiosidades e depoimentos sobre os Stones. Um dos assuntos destacados foram essas visitas turísticas que os membros citados fizeram por aqui. A matéria, assinada por Edmundo Barreiros, trazia por título "Noites de farras e macumba":
"Enquanto os fãs brasileiros sonhavam em ver os Rolling Stones tocando no Brasil, vários integrantes da banda estiveram aqui em busca de sossego, diversão e inspiração. Mick Jagger foi o primeiro a aterrissar no Rio, em 1968. Gostou tanto que veio outras vezes, uma delas com o parceiro Keith Richards. O baterista Charlie Watts e Mick Taylor, guitarrista da banda entre 1969 e 1974, também apareceram por aqui. Primeiro como turistas, depois para mostrarem trabalhos solos, em 1992 e 1990.
Em janeiro de 1968, o Rio recebeu a visita de um exótico cabeludo vestido com roupas extravagantes. Era Mick Jagger, que veio com sua mulher Marianne Faithful e com o filho dela, de 3 anos. Seu cicerone foi Fernando Sabino, que tinha sido adido cultural na embaixada do Brasil em Londres. 'Eles eram muito elegantes, verdadeiros ingleses', recorda o escritor, que convidou amigos, entre eles o jornalista e compositor Nelson Motta, para conhecerem o astro. 'Fomos ao Antonio's, no Leblon. Foi um escândalo quando Mick e a mulher fumaram um baseado enorme na varanda do bar', recorda Motta. Depois do Rio, o casal foi esconder-se no interior da Bahia. 'Na primeira noite, ficamos doidões e assistimos a uma cerimônia folclórica chamada Santeria. Não havia outros brancos além de nós e todos ficaram ofendidos. Fomos embora rápido e acho que essa experiência levou Mick a usar samba como base em Simpathy for the Devil', escreveu Marianne Faithful em sua autobiografia, publicada no ano passado nos EUA.
Keith Richards e Mick Jagger chegando ao Copacaba Palace
Em dezembro de 1968, o casal Jagger voltou com Keith Richards e sua mulher, Anita Palemberg. 'Fomos ao Brasil procurar um feiticeiro', declarou Richards na época. Mas a viagem foi mais organizada, e antes que pudessem se esconder na fazenda do empresário Walter Moreira Salles, em Matão, interior de São Paulo, foram convidados para alguns jantares no Rio.
'Me lembro de um em que a fauna era bastante  heterogênea.  Keith Richards olhou para o lado e comentou com o meu irmão Fernando: 'Você acredita em discos voadores? Eu tenho que acreditar e espero que eles baixem aqui. É a única chance da gente se salvar do caos que é este jantar', lembra o cineasta Walter Salles Jr., filho de Walter Moreira Salles. Segundo Mariane, apesar da repressão daquela época no Brasil, não foi difícil para os Stones fazerem a cabeça. 'Fumamos muita maconha, tomamos xarope, tudo que pudemos conseguir. Nessa viagem, Mick fez You Can't Always Get You Want, escreveu ela.
Jagger, Sérgio Motta e o radialista Big Boy
Em 1974 foi a vez de Mick Taylor vir ao Rio. Ele tornou-se muito amigo do baixista Arnaldo Brandão em Londres, e acabou ficando em sua casa, no Joá. 'Nessa época ele já pensava em deixar a banda. Depois de um show a que assisti na Europa, ele reclamou que Keith Richards tinha aumentado muito a própria guitarra. Então eu falei: 'Mas vi você fazendo o mesmo, indo várias vezes ao amplificador.' Mick respondeu: 'Não era para aumentar nada, era para cheirar umas carreiras, recorda Arnaldo Brandão, que morou com  a mulher na casa de Taylor na Inglaterra."
(continua)

quarta-feira, 27 de maio de 2015

Rita Lee: "Eu Queria Ser uma Corista de Rock" (1976) - 2ª Parte

'"Rita trouxe uma série de pios, de apitos, de instrumentos e objetos rituais, como um certo e mágico pau-do-diabo. Um grande cone em que esferas e seixos deslizam lentamente criando um som de água escorrendo. É usado na Amazônia para invocar a chuva e será ouvido no novo LP.
- São Paulo oferece a eletrônica, a guitarra, a coisa amplificada. A gente não pode prescindir da tecnologia. E nem exagerar sua importância. Antes dessa viagem, eu me sentia como uma espécie de turista, via as coisas de longe. Depois, me misturei com as pessoas. É na direção dessa integração que quero levar a minha música. E quero que as pessoas se divirtam - divertir os outros é a maior diversão. Mensagens? Nada disto. Um diálogo, uma forma de comunicação entre as muitas raças desses muitos planetas em que vivemos.
Que ninguém acredite, contudo, que a turnê teria sido apenas um idílico retorno à pureza e ao coração aberto por entre os sabores inebriantes de graviolas, cajás, sapotis e praias não poluídas. A garotinha que um dia iria casar com os Beatles e os Rolling Stones viveu também sua noite de Altamont. A primeira grande tragédia, o maior choque: 
- O rapaz caindo a meus pés, fulminado por um colapso. Um amigo, que há quase dois anos cuidava da segurança da aparelhagem. Na plateia, seis mil pessoas esperando minha entrada. Não recuei - entregava o microfone pro auditório, a coisa não estava dando, mas eu ia. Todos pareceram entender. A saída foi quase silenciosa, mas solidária.
Contando essa história, Rita mostra outra imagem: é uma mulher forte, temperada pela estrada, com uma grande capacidade de compreender o que lhe acontece. O reverso da Gum-Gum, deliciosa e estabanada personagem que ela usa para dialogar com o público infantil das matinês. E o flash-back trágico é substituído por outros, menos doloridos:
Rita Lee e Tutti Frutti
- A partir do meu último disco senti que as pessoas passaram a ouvir minhas letras. Antes, vinham a mim falando do meu som. Agora, citam frases, fazem perguntas, trocam ideias. Pensando no público que consigo atingir me sinto com uma responsabilidade maior. Porque agora vejo o quanto posso tocar as pessoas, e quero dizer coisas que contribuam para que elas se sintam melhores. O diálogo ficou muito mais estreito, íntimo. Uma história da viagem? Bem boa? Ah, em Belém: eu sozinha no hotel, voz no telefone perguntando por Ritalí. Ia dizer que tinha saído, mudei de ideia. A mulher no outro lado do aparelho pareceu ter levado um choque, não acreditava que eu existisse mesmo. 'Não conheço a senhora, dona Ritalí, pensei que era invenção da minha filha. Aí, vi seu nome nos cartazes de rua, resolvi telefonar. Não sei as músicas da senhora, somos pobres, não temos toca-discos'. Contou que a filha falava em mim o dia inteiro, que cada vez que ia comer servia comida também pra mim, como se eu só fosse visível pra ela. A mãe levou a garotinha ao hotel, cantamos juntas. Ela entende 'Ovelha Negra' como uma história infantil. Foi deslumbrante quando eu fiz a Gum-Gum e a menina, que apenas me olhava como se de fato eu não existisse, passou a brincar comigo. Era como se ela estivesse conhecendo um personagem de fadas. De repente, eu pude ser pra uma pessoa o Peter Pan que nunca apareceu pra mim.
 Rita fala também de sonhos que nem dez anos de estrada conseguiram destruir. E alguns não foram realizados ainda: ela queria tocar com Rod Stewart (o superstar pop que mais adora, 'um homem que curte ser popular, uma voz de feiticeiro, que gosta de futebol, que se coloca no mesmo plano diante das pessoas'), com Raul Seixas, com Gilberto Gil. Quando fala desses ídolos tem o mesmo saudável deslumbramento de qualquer fã, como se houvesse entre ela e eles uma enorme distância. Conta, com evidente prazer, que mandou uma música (das mais de 20 compostas para o novo LP, que só terá nove faixas) a Ney Matogrosso, 'Bandido Corazon'. E que fez uma outra pedida por Caetano: 'Fiz e já mandei, é uma criação dizendo que o pior da vida é a timidez'.
Rita se cala e ouve Mônica contar sobre a excursão. Tudo preparado com antecedência de quatro meses e um rigoroso planejamento. Pensou-se em coisas tão necessárias e esquecidas quanto calcular a quantidade necessária de material de reposição, na melhor forma de embalar e catalogar o equipamento, em contatos e reservas de hotéis. Um investimento de 300 mil cruzeiros (que retornaram com lucros), gastos com publicidade, alimentação e hospedagem para 22 pessoas - a maioria delas dedicada à montagem do enorme palco de 15x12 metros e ao complexo sistema de iluminação. A organização impecável deu ao rock até mesmo a respeitabilidade comercial que sempre lhe negam quando cantado em português: conseguiu-se para a viagem o patrocínio antecipado da empresa aérea Transbrasil.
 Num balanço dos dez anos, Rita pode até mesmo rever antigas admirações e criar outras: 'Eu amava Paul McCartney com os Beatles, agora nem tanto. Tenho gostado do Bad Company. Do Yes eu gostei demais. Eles até fizeram minha cabeça durante um tempo. Mas depois foram se fechando, virou uma coisa religiosa, e assim não dá. E tem também os no (ah! os Stones), não é só essa de yes.
Na vastíssima tina de leite onde se atiraram atrás da glória os corajosos ou desgarrados ratinhos do rock, Rita Lee Jones foi o primeiro a nadar com vitalidade suficiente para amanhecer a salvo, estirado sobre a sólida manteiga do sucesso. Outros ainda nadam, muitos se afogaram.
- Como me sinto depois disso tudo? Tenho às vezes flashes, saudades dos Mutantes, das brincadeiras. Mas isso passou, eu sei. Era tudo bom, mas radical demais. Eu me sinto... eu me sinto, principalmente uma profissional. Eu curto isso."

terça-feira, 26 de maio de 2015

Rita Lee: "Eu Queria Ser uma Corista de Rock" (1976) - 1ª Parte

Em 1976 Rita Lee lançou o disco Entradas e Bandeiras, pela Som Livre. Quando ainda estava gravando o disco, a revista Rock, a História e a Glória nº 17 fez uma matéria com ela, assinada por Edmar Ferreira:
"No começo, bem no começo, a garotinha sonhava casar com os Beatles e os Rolling Stones. Como isto era difícil e suas paixões variavam também entre Elvis Presley e os Beach Boys, ela passou a querer simplesmente estar perto deles, amá-los como qualquer groupie faria. Difícil ainda. Rita Lee Jones decidiu então aproximar-se dos seus ídolos sendo como eles. Ou tentando: 'Eu queria ser pelo menos uma corista de rock'. Essa decisão, que superou dúvidas como uma primitiva vontade de ser atriz, um curso de Comunicações abandonado no terceiro ano e uma surpreendente vocação para a Veterinária, teve influências de Caetano Veloso e Gilberto Gil.
Para que o rock brasileiro ganhasse sua primeira superstar Rita batalhou dez anos. Dez anos para encher os teatros, as praças, os estádios de qualquer região do país. Dez anos para fazer de 'Ovelha Negra' um manifesto infanto-juvenil ouvido e cantado em tom de desafio de Pelotas a Natal, de Belém a Florianópolis. Miss Jones não se veste mais de noiva, tampouco se deixa manipular em direção a um mecânico estrelato de shows de moda. Muito menos repetiria como qualquer menina as brincadeiras de cabra-cega com  a realidade. Dez anos de estrada transformaram Rita Lee numa profissional: ela está gravando seu novo LP, Entradas e Bandeiras, iniciado logo após uma desbravadora excursão pelo Norte. Sete concertos para um público total de 30 mil pessoas em Salvador, Recife, Natal, São Luís, Belém. Manaus, também incluída no  roteiro, acabou apenas como um fecho turístico do roteiro: a falta de estrada para transportar as seis toneladas de equipamento e a impossibilidade de embarcar aparelhos tão grandes pela estreita porta de um Boeing, obrigaram o cancelamento do último concerto programado.
Rita mora numa rua tranquila de Vila Mariana, bairro paulista tipo classe-média-sem-maiores-pretensões-graças-a-deus. Sem grandes portões, sem guardas vigilantes no pequeno jardim, a casa não é exatamente o que se poderia esperar de uma superestrela. Nenhum barulho, a não ser o da campainha. Luzes suaves, móveis antigos, um piano, toalhas e uma cortina de crochê, plumas, flores secas, santos numa sala. Na outra, a tevê colorida, com o som baixo, sintonizada no Canal 5. Músicos e amigos chegam com calma. Rita, vestida de branco, alegre, brinca com com Marta e o intranquilo Zig, seu casal de jaguatiricas.
Ela fala da excursão, certamente um grande roteiro para um épico sobre o rock. Afinal, as cidades onde fora pela primeira vez nunca tinham visto nada semelhante. O gigantesco caminhão transportando seis toneladas de eletrônica poderia ser comparado a uma caravela do Descobrimento. Ou aos primitivos veículos das entradas e bandeiras originais. Em Salvador, a primeira escala e um imprevisto desagradável: 'A precipitação mal intencionada de um repórter me transformou em traficante de cocaína prestes a ser capturada pela polícia', conta Rita. Uma história desagradável, com um happy-end festejado no palco em cerimonial que incluiu a queima de um jornal com a constrangedora manchete, aplausos da plateia e a participação de uma lata de lixo como indispensável coadjuvante antes da palavra 'Fim'.
Mas as coisas desagradáveis, explica Mônica Lisboa, há mais de dois anos manager de Rita Lee e do Tutti Frutti, têm um enorme poder de unir o grupo, de solidificar ainda mais nosso relacionamento. Ela, com sua sócia, Judy Spencer, responsável pela parte visual dos shows, conseguiu equilibrar suas relações com a equipe misturando eficiência administrativa e cálida afetividade - combinação sem dúvida inusitada no confuso panorama do show-bizz nacional. Rita fala mais: das pessoas, das surpresas, do deslumbramento pela descoberta de um outro ritmo na vida das pessoas.
- Me sinto mais brasileira depois dessa excursão, conheço mais a terra onde moro, onde nasci. Consegui falar para os outros, e senti que lá isso fica mais fácil, as pessoas são mais tranquilas. E passaram pra nós esse tipo de vibração, enriqueceram mais a gente. Porque é reconfortante você trocar coisas com os outros. Minha tecnologia pelo modo de viver deles; cordas de guitarra por pulserinhas; ouvir folclore e informar sobre o Metrô. Tudo sem qualquer pressa ou pressão, sem desconfiança. Eles faziam perguntas, olhavam tudo, mas sempre com aquele jeito de 'que bom que vocês vieram tocar aqui pra gente'. "
(continua)

segunda-feira, 25 de maio de 2015

O Polirítmico Rogério Duprat - Revista Música (1980)

O maestro e arranjador Rogério Duprat (1932-2006) foi uma figura fundamental para que a Tropicália alcançasse o patamar em que chegou, não só no Brasil como internacionalmente. Seus arranjos para as composições tropicalistas deram um sabor especial àquelas músicas inovadoras, que só alguém que tivesse a sensibilidade e o alcance de entender as propostas dos baianos, que fundiam o rock, a bossa nova, a música dita cafona, e demais experimentalismos, poderia acrescentar tanta coisa como ele acrescentou.
Em 1980, a revista Música, em seu nº 44 trazia uma matéria com o grande maestro, assinada por Carole Chidiac, e intitulada "O polirítmico Rogério Duprat":
"Saudosismo ou não, já faz tempo que o tropicalismo veio para derrubar muitos 'ismos' musicais no Brasil. Quase que consegue. Antes disso, trataram de passar um visto em muitos passaportes pelaí. Mas, para quem entendeu, ficou uma lição digna, em meio a tanta falta de dignidade, que, para variar, acabou mais uma vez imperando nesse varonil Brasil.
Mas prova de genialidade, foi também o que não faltou e a lembrança de um nome como Rogério Duprat só traz bons fluidos. Bendito seja o arranjo de 'Domingo no Parque' deste inovador carioca nascido há 48 anos.
Hoje, Rogério Duprat prefere a paz de morar fora do perímetro urbano, num pequeno sítio, e suas atividades musicais se limitam em dirigir duas produtoras fonográficas: 'Pauta' e 'Vice-Versa', ambas em São Paulo.
Foi com Calisto Corazza que Duprat estudou violoncelo, instrumento que tem até hoje a predileção do maestro. Aos 21 anos de idade ele já fazia parte da Orquestra Sinfônica de São Paulo, e aos 23, passou para a Orquestra Sinfônica Municipal. Ato contínuo foi nada menos que violoncelista, fundador e diretor da Orquestra de Câmara de São Paulo, quando compôs noturnos, sonatas, etc.
Os anos 60 marcaram suas atividades na música popular já que compôs, desta feita, música para teatro, cinema e televisão, integrando também o movimento Música Nova. Foi à Europa estudar com Pierre Boulez e Karlheinz Stockhausen durante um ano. Seu interesse pela música experimental fez com que se juntasse a Damiano Cozzela, quando fizeram música com computador. Isso tudo, provando que seu conhecimento musical vai de erudito, passa pelo popular e chega ao experimental, coisa que no mínimo, representa total falta de 'falsos pudores' para com a forma de se fazer música, que sempre será universal, como ela mesma.
Ao lado de Caetano e Gil esteve como diretor do programa que se propunha a mostrar o tropicalismo e só poderia mesmo chamar-se 'Divino Maravilhoso'. Pouco depois, de volta à Europa, se apresentou como arranjador e regente no Midem, em Cannes, e voltou a trabalhar com Damiano Cozella, a quem considera seu grande mestre.
Hoje em dia, embora atento a tudo (ou ao pouco?) de música que se faz no Brasil, Duprat opta mais pela tranquilidade e não tem vontade nenhuma de ficar expondo opiniões, ainda menos posições, o que é muito pior. Sua obra musical está aí, para quem quiser constatar, registrada em nove LPs, além de ter assinado a trilha musical de mais de trinta filmes, que lhe valeram vários prêmios. E isto é tudo. E é muito. Porque quem nasceu pra Rogério Duprat não pode (nem deve) querer continuar a bater numa tecla inaudível a longa distância. E enquanto isso, ele atua. Mudo."

domingo, 24 de maio de 2015

Zé Keti - A Voz de Todos os Morros

Zé Keti (1921-1999) foi um sambista que fez história, e deixou sua marca na MPB. Compositor inspirado de sambas e marchas de carnaval, fazia parte da ala de compositores da Portela, e sempre será lembrado por sambas antológicos, como "A Voz do Morro", "Opinião" e "Diz que Fui por Aí", além da marcha-rancho "Máscara Negra", que até hoje até tocada nos carnavais.
Em 1998, um ano antes de falecer, Zé Keti recebeu uma bela e merecida homenagem, ao ter seu nome lembrado na festa do "Prêmio Shell", uma importante festa, que reunia grandes nomes de nossa música numa premiação dos destaques do ano em várias categorias. Em sua edição de de 04/10/99 o jornal O Globo trazia uma boa matéria com o compositor, que iniciava com o seguinte texto do jornalista João Máximo:
"Zé Keti foi uma das atrações da festa de 70 anos de Nelson Pereira dos Santos, terça-feira passada, no Teatro Municipal de Niterói. Muito emocionado, mas firme, subiu ao palco para cantar 'A Voz do Morro', samba que - graças ao sucesso do filme 'Rio 40 Graus', de Nelson, e do mesmo samba como tema principal, do próprio Zé Keti - uniu os dois para sempre.
O movimento serviu de trailer. Ou melhor, de teste para a voz e o coração de Zé Keti, que no dia 24 de novembro vai subir a outro palco, o do Canecão, para reviver o mesmo 'A Voz do Morro', 'Máscara Negra', 'Opinião' e 'Diz que Fui por Aí', seus maiores sucessos. Será o grand finale da noite de entrega do Prêmio Shell deste ano ao compositor que dois outros mestres da matéria - Paulinho da Viola e Élton Medeiros - consideram dono do mais inconfundível estilo de samba. Zé Keti inclui-se entre os que melhor cantaram os morros cariocas, sua gente, seu cotidiano, suas tragédias.
Até a grande noite, os testes se sucedem. Pressão alta, o coração volta e meia lhe pregando sustos, a memória claudicando, Zé Keti, como um craque às vésperas da decisão, concentra-se para o show. Concentra-se e treina. A festa de aniversário de Nelson, a sua própria (faz 77 anos no próximo domingo), uma ou outra reunião familiar em que revive velhos sambas, tudo faz parte dos preparativos. Sob os cuidados da filha Geisa e da acompanhante Jane, ele está de volta à casa de Inhaúma, num dos blocos do Conjunto Residencial Cidade do Som."
Zé Keti com Cartola
Num box que faz parte da matéria, com título de "Uma revelação dos anos 50 segue brilhando nos 60", o jornalista João Máximo faz um resumo da carreira de Zé Keti, destacando a frase "Nem a inveja derrotou 'Máscara Negra' ".
" Os filmes de Nelson Pereira dos Santos - Rio 40 Graus, do qual é 'A Voz do Morro' e 'Rio Zona Norte', que tornou conhecido 'Malvadeza Durão' - projetaram o nome de Zé Keti como a mais importante revelação de sambista daqueles tempos. Estávamos nos anos 50, com o samba rigorosamente em baixa. Tempos depois, a bossa nova representando nova ameaça para o samba tradicional. Zé Keti voltou à cena com mais força. Em parte porque seus sambas, com tiradas sociais, serviam aos intelectuais que se opunham ao regime militar, em parte porque tinham ao mesmo tempo, qualidade e apelo popular. Estávamos nos anos 60, tempos do 'Opinião' (show que ele fez com Nara Leão e João do Vale) e das primeiras canções de protesto.
Zé Keti experimentou, no auge do sucesso, muita admiração e alguma inveja. Admiração dos intelectuais e também dos sambistas que aprenderam com ele que a bossa velha era forte o bastante para disputar com a nova um lugar nas paradas. Lembremos apenas que, até então, Cartola, Nelson Cavaquinho, Élton Medeiros, Paulinho da Viola, Candeia, Ney Lopes, Carlos Cachaça e tantos mais ainda não tinham gravado um disco.
Os invejosos tentaram destruí-lo. E mais de uma vez. Quando do espetacular sucesso de 'Máscara Negra', um dos últimos clássicos do carnaval brasileiro, houve quem inventasse ter ele passado para trás um parceiro. Pior foi o jornalista-compositor que, tendo uma marcha concorrendo com 'Máscara Negra', foi às rádios pedir aos programadores que não tocassem a de Zé Keti e sim a sua. Nenhum motivo estético o movia: o jornalista-compositor simplesmente argumentava que um 'crioulo comunista' não devia tocar no rádio. Claro que ninguém lhe deu ouvidos: 'Máscara Negra' era tão bonita que superava qualquer preconceito.
Zé Keti seguiu assim, impondo-se pela beleza de suas músicas. Enquanto teve força e fôlego foi construindo a obra que lhe vale agora um prêmio em tudo e por tudo justo."

sábado, 23 de maio de 2015

Eric Clapton - Série Gênios do Rock Revista Ele Ela (1974) - 3ª Parte

" Com o Cream, a música pop se desenvolvera, do mesmo modo com que Dylan influenciara muitos letristas. Ao lado de Jimi Hendrix - cujo nome está ligado ao próprio crescimento do rock nos anos sessenta - Eric estava sempre um ou dois degraus acima de seu público e de seus contemporâneos. Isto trouxe alguns problemas - ele sempre tocava para pessoas que queriam que ele olhasse para trás, para as músicas que o público ouvira e amara, ao invés de perceber progresso e mudança dos solos que excitavam Clapton. Havia vezes em que uma multidão gritando pelo seu número favorito, parecia uma multidão gritando por sangue em uma tourada. Daí ele preferir atualmente tocar em pequenos clubes como vos velhos tempos: 'Nós não queremos mais ser grandes de modo algum!...'
Ao sair do Cream, Eric voltou a Surrey onde nasceu, mas logo formaria outro grupo na tentativa (que mais tarde se frustrou) de recuperar o espírito do Cream. O grupo era o Blind Faith (Fé Cega), e contava, além de Ginger Baker, com os talentos de Rick Grech (baixista do ex-Family) e Stevie Winwood (vocais e teclados). Stevie fora do Manfred Mann's e depois formara o Traffic, uma das melhores bandas da era do flower power inglês.  O Blind Faith gravou um álbum belíssimo (hoje uma raridade para os aficionados), e realizou a seguir uma tournée milionária pelos Estados Unidos. Clapton aproveitou uma folga e voou para Toronto com John Lennon, solando num concerto que a Aplle Records gravou com a Plastic Ono Band.
Infortunadamente , o potencial do grupo nem bem começara a ser usado, quando resolveram se dissolver - apesar do sucesso aparecer desde o início, quando eles tocaram num concerto grátis no Hide Park, Londres, para 36 mil pessoas. Na excursão pelos EUA, um grupo pouco conhecido, acompanhava o Blind Faith com sucesso: Delaney and Bonnie. Eric gostou tanto deles que os levou para a Inglaterra, para uma tournée que trazia George Harrison de volta após três anos. Delaney and Bonnie e seus músicos foram usados no primeiro álbum solo de Eric, que financiaria a excursão deles pela Europa e Estados Unidos.
Clapton refere-se a esta temporada lembrando que: '... o que acontecia era que a gente ensaiava pouco, a gente se conhecia pouco. Eu ia para os grandes concertos e descia do palco tremendo como uma folha, pois eu sentia que novamente eu deixaria o público deprimido. Comecei uma grande amizade com Delaney enquanto o meu relacionamento com o Blind Faith pifava. Eu percebera que o Blind Faith não dava mais pé. Eu queria ser o guitarrista-líder com Delaney porque eles estavam tocando música soul.'
Página de abertura da matéria
 Foi esta a primeira vez que Clapton se lançou como líder de um grupo, com Bobby Whitlock (órgão/vacais), Jim Gordon (bateria) e Carl Radle (baixo). A primeira apresentação ocorrerá no concerto das Liberdades Civis do Dr. Spock. O novo nome do grupo era Drek and the Dominoes. O público recebeu muito bem a volta de Eric e mais uma vez as entradas para os shows se esgotaram rapidamente e foram vendidos milhões de discos. No verão viajaram pelas principais cidades inglesas, e no outono percorreram os EUA, lançando um álbum duplo vibrante e sensível (Why Love Has To Be So Sad, Presence of Lord, Got To Get Better In a Little While e outras). Duane Allman (do Allman Brothers Band) impressionara Eric e foi convidado a tocar com o Derek nas sessões do Layla, em outubro de 70. Layla era o pseudônimo dado por Eric ao seu grande amor não correspondido Pat (ex-senhora George Harrison), hoje sua companheira.
Quando os Dominoes se separaram, Eric se retirou voluntariamente para seu sítio em Surrey. Sua ausência gerou rumores que ele estava viciado, que estava morrendo ou até que já morrera. Depois das mortes súbitas de Janis Joplin e Jimi Hendrix, a ele coube o bizarro e necrófilo título: Próximo Mais Provável a Morrer. Qualquer coisa que Eric tenha feito em sua carreira, ele nunca se comprometeu por causa de modismos, nem alterou seus padrões em benefício da massificação do rock. Ao contrário, ele escolheu fazer música do seu jeito, da sua cabeça. Quando outros artistas contemporâneos, tendem a ser copistas - o som de Eric tem a originalidade e a autenticidade que o tornavam inigualável.
Em agosto de 71, saindo do isolamento, ele tocou no concerto pelas vítimas de Bangladesh, sem dúvida o grande acontecimento daquele ano, contara com estrelas do primeiro plano (Leon Russel, Billy Preston, Klaus Voorman, Ringo Starr e  outros). O Velho Mão Lenta só voltaria a abandonar sua solidão em janeiro de 73, no Rainbow Theater de Londres , ao lado de Pete Townshend, Ronnie Wood, Stevie Winwood, Jim Capaldi e mais algumas feras do mundo pop. O resultado pode ser ouvido no álbum Eric Clapton Rainbow Concert. Mais uma vez, após três anos de silêncio virtual, Eletric Eric (como o chamam no Village de Nova Iorque) voltou em triunfo com o álbum 461 Ocean Boulevard, tocando com Yvonne Elliman (do Hair e Jesus Cristo Superstar) , Carl Radlle (baixo), Jamie Oldaker (bateria), George Terry (contrabaixo) e o produtor Tom Dowd. O compacto I Shot the Sheriff explodiu na praça e duas excursões, uma à Europa e  outra aos EUA, fizeram enorme sucesso. Ele diz de sua última fase: 'Eu quero estar aqui, agora, acontecendo. Voltei cheio de fé. É claro que não sei o que virá depois. Mas sempre que eu ponho meu novo álbum na vitrola e começo a pensar que é ótimo, eu ponho Stevie Wonder logo depois para mostrar a mim mesmo que há coisas melhores. Eu acho ele incrível, sem contar a predileção natural que tenho por cantores. Nunca compro um disco por causa da guitarra-líder, mas pela voz do cara.' A admiração de Eric por cantores como Ray Charles e Stevie Wonder se explica, provavelmente, por sua timidez e medo de cantar. Só agora seu talento vocal começa a ser utilizado.
Suas músicas mudaram pouco, mas a velha magia de seus solos permanece intacta. Não há mais o frenético rock dos primeiros dias, os solos longos e emotivos, embora seu estilo de tocar continue cheio de malícia. De qualquer modo, na maior parte do álbum percebe-se um novo estilo e um novo Eric Clapton a ser ouvido.. Ele podia ter voltado e tocado dentro de seus padrões antigos, mas ao invés disto, fez o mais difícil, trouxe algo novo. Ele pode agora parecer menos com Deus (Clapton é Deus?!?), porém seu disco prova que ainda é o melhor guitarrista por aí. Ainda quer seja delicioso olhar para trás e lembrar as glórias do passado, é o futuro que  importa agora. Pois Eric Clapton é um gigante do rock para sempre."

sexta-feira, 22 de maio de 2015

Eric Clapton - Série Gênios do Rock Revista Ele Ela (1974) - 2ª Parte

"Mais tarde, os Yardbirds contariam com Jeff Beck na guitarra-líder e com Jimmy Page, primeiro tocando baixo, e depois na segunda guitarra-líder. A turbulência e o egocentrismo de duas estrelas (Page e Beck) cortariam em apenas seis meses a vida deste potencialmente supergrupo. O Led Zeppelin formou-se depois e continua fortíssimo. A reputação de Eric, portanto, já fora estabelecida e em abril de 65 ele entrava para o Bluebreakers de John Mayall, cujos grupos tinham incluído nomes quentes do blues britânico, convidara Clapton para se unir a ele trabalhando nos vocais e na guitarra-líder. Assim, nos quinze meses subsequentes Eric passou da etapa de aclamação do público a uma verdadeira lenda, surgida a partir dos pubs enfumaçados e clubes de blues dos subúrbios ingleses. Ele se transformou no heroi da guitarra - ficou bastante claro que Clapton não era meramente o membro competente de um grupo, mas uma estrela capaz de inspirar o seu próprio culto. Seus fãs logo inventaram um slogan à altura do seu ídolo: Let God play a solo (Deixem Deus tocar um solo).
O Bluebrakers era, sem dúvida, o que havia de melhor no gênero e a cuca de Eric, desde os primeiros dias de sua relação apaixonada e religiosa com a  guitarra, estava cheia de Robert Johnson, Erlind Boy Fuller, Skip James, Chuck Berry, Bo Diddley, B.B. King e Son House. Chegara a hora de desenterrar toda a vibração que partia dos seus dedos compridos e macios. Apesar da forma purista com que a linguagem simples do blues era tratada, o Bluebrackers tomara um rumo suficientemente rígido para que Clapton  se frustrasse e, em meados de 1966, partisse novamente atrás de seus sonhos. Antes de deixar o purista John Mayall, Clapton gravara três faixas para a marca Elektra, como E. Clapton and the Power House, que incluía Ben Palmer (no piano), Jack Bruce (no baixo), Steve Winwood (órgão), Paul Jones (gaita) e Pete York (bateria). A experiência de contato com novos músicos fora enriquecedora e Clapton percebeu a possibilidade de novas trilhas para seu espírito criativo. 'Até tocar com Mayall o blues era o único tipo de música e eu não gostava de mais nada.'
A oportunidade de realizar o sonho de todo músico em possuir um supergrupo surgiu em julho de 66, logo depois de sua saída do Bluesbrakers. Ginger Baker, que já fora baterista do Alexis's Corner Blues inc. e no Graham Bond Organization, sugeria agora a formação de um novo trio. Eles eram ambos músicos dos músicos, assim como Jack Bruce, que completou o grupo na guitarra-baixo. Bruce trabalhara com Ginger Baker no Grahan Bond Organization, e cada um deles sabia da excepcional performance dos companheiros. Portanto, não havia porque não dar à banda um nome mais do que adequado: Cream (Creme). A conjunção dos três talentos fez do Cream um inacreditável supergrupo que iria influenciar  toda uma geração de músicos. Eles foram lançados no Twisted Weel, em Manchester e tocaram ao vivo pela primeira vez no festival de jazz & blues de 1966, diante de dez mil fãs alucinados, encharcados de suor e chuva. O sucesso foi imediato e o Cream logo abandonaria o estilo dos primeiros concertos, partindo para um trabalho que manifestasse o improviso criativo de cada um. Este caminho, integrado com as habilidades inesgotáveis do grupo, fez a música pop avançar e amadurecer. No período de dois anos, a fama de Cream ultrapassara os domínios de sua majestade e eles gravaram: Fresh Cream e Disraeli Gears (em 1967) e Wheels of Fire (1968), sob o selo ATCO Records. Uma série de clássicos da música pop surgiria das mãos destes três gênios do rock - Sunshine of Your Love, Strange Brew, White Room, Teles of Brave Ulysses etc... No final de 1968, quando o trio se desfez por causa de insatisfação pessoal e musical, tinham se estabelecido como o mais importante grupo desde os Beatles, e seu sucesso estava assegurado no mundo inteiro, tanto nas apresentações ao vivo, quanto gravando. É Clapton quem conta como as coisas começaram a ir mal com o Cream: 'Depois do Filmore (1967), fizemos uma excursão de cinco meses. Tocávamos quase todas as noites e aquilo me deixou exausto. Uma noite eu parei de tocar na metade de um número, e meus colegas não notaram. Fiquei ali olhando, em pé, e os caras tocaram a música até o fim, como se nada houvesse acontecido. Que droga, eu pensei. Você vê, o Cream era originalmente um trio de blues, como Buddy Guy, o guitarrista com seção rítmica. Eu queria ser Buddy Guy, o guitarrista com uma boa seção de ritmo. Outra ideia sobre o Cream era transar coisas estranhas e absurdas no palco. A canção Water Papper, eu creio que fazia parte deste tipo de atitude. Fizemos um som no Marquee e pusemos um gorila no palco.. Havia também gelo seco. Sem sentido, sem propósito... só loucura.' Fora disto havia uma constante guerrinha entre Jack e Ginger, porque um adorava o som do outro, mas não se suportavam como pessoas. Clapton costumava ser o mediador, mas já estava cansado de sê-lo, e isto ajudou a entornar o caldo."
(continua)                                                                                      

quinta-feira, 21 de maio de 2015

Eric Clapton - Série Gênios do Rock Revista Ele Ela (1974) - 1ª Parte

Em 1974 a revista masculina Ele Ela publicava uma série de matérias que tinha por título "Gênios do Rock", e o nono músico destacado foi Eric Clapton, que vinha de um longo período de afastamento, fazendo tratamento contra o uso de heroína, e estava lançando o ótimo álbum  "461 Ocean Boulevard". A introdução da matéria, escrita por Márcia Mattos, trazia o seguinte texto:
"Certo dia ele leu em algum lugar que o rock tinha nascido do blues. E resolveu pesquisar por conta própria para saber se era verdade. O resultado foi o desenvolvimento de um estilo incrível, que levou o público a dizer 'Eric é Deus' ou chamá-lo de 'Eletric Eric'. Sem nunca assumir o estrelismo, Eric Clapton se tornou um dos maiores guitarristas do mundo inteiro."
Abaixo a primeira parte da matéria:
"Robert Stigwood, famoso empresário, anunciou historicamente numa festa, em abril do ano passado: 'O velho Mão Lenta está de volta.' Eric Clapton que já foi chamado de Deus, estava saindo de um pesado isolamento de três anos de silêncio, interrompidos apenas por dois concertos beneficentes e rumores de vício em heroína. Agora, com seu novo álbum 461 Ocean Boulevard e uma excursão bem sucedida, Clapton parece que voltou para ficar. Mão Lenta (Slowhand) era o irônico apelido de Clapton, hoje com 29 anos, quando seu estilo fluido, com a espontaneidade que a lingua do blues oferecia, começou a chamar a atenção geral em 64 com os Yardbirds.
Eric, como a maioria das estrelas do fechado clube de milionários do rock, aos 8 anos já ganhava sua primeira guitarra (de plástico), mas alguém se sentou em cima dela, destruindo-a. Nosso heroi só voltaria a tentar música na adolescência, quando se desapontou com seu curso na Escola Kingston  de Arte. Começou a aprender violão acústico, que convencera seus pais a comprar. 'Na hora do recreio eu punha discos o tempo todo. Muddy Waters, Big Bill Broonzy... só blues. Naquela época, eu li na capa de um disco algo como: O rock'n roll tem suas raízes no blues, e coisas desse tipo. Então eu achei que tinha que descobrir aquilo por mim mesmo.'
 Seu estilo sofreu as primeiras influências marcantes quando ele entrou em contato com o blues negro: 'Comprei um disco de Leadbelly. Fiquei ligadíssimo. Eu nunca tinha ouvido nada igual. Entrei na jogada do blues pelas mãos de Son House e Robert Johnson.'
Com um passado completamente invejável, tendo percorrido inúmeros grupos e tocado com  a nata do rock, Eric não é o que se chamaria de uma estrela. Seus olhos tímidos, o corte de cabelo sempre variando (dizem que seus solos são como seu rosto: mudando sempre), o perfil suave e atento, esconde uma energia infinita, a sensibilidade e a pureza do seu talento musical. Através dos anos, o prestígio de Clapton firmou-se e ele passou a ser aclamado nos quatro cantos do mundo, apesar de sua modéstia em não gostar nem mesmo de ser tido como líder dos grupos em que tocou. Em 1969, a revista especializada Melody Maker declarou-o 'maior músico do mundo'. Em 1970 foi a vez da Guitar Player anunciá-lo como o 'melhor guitarrista do mundo'. Ele foi chamado de 'rei dos guitarristas de blues', e o Music Express falou de seu trabalho com o grupo Cream: 'É o tipo de som a partir do qual o mito aparece.' O maior elogio, porém, nasceu do público - numa estação do metrô londrino escreveram em 1965: 'Clapton is God' (Clapton é Deus'), e a frase se espalhou pelos muros da Inglaterra. Apesar disso tudo, ele sempre foi, fora da música, um anônimo completo. Mesmo no palco, tem adotado uma série de disfarces para proteger sua individualidade. Numa noite ele pode aparecer com um terno sofisticado, e na na outra com um velho jeans  desbotado.
Eric largou a escola e trabalhou durante algum tempo ajudando o pai - um pedreiro - antes de entrar para seu primeiro grupo. The Roosters era o nome e várias vezes contou com Paul Jones e Tom McGuiness do Manfred Mann's e Brian Jones dos Rolling Stones. Quando o grupo se dissolveu Eric se uniu à turma de Liverpool, Casey Jones and the Engineers, mas a união foi breve, pois o som de Casey possuía muito comercialismo e caía nos mesmos clichês dos seguidores dos Beatles. As raízes do menino pobre que cresceu nos becos escuros de Surrey, levavam-no muito mais para os braços tristes e solitários do blues, do que para o repeteco do yeah-yeah-yeah estridente.
Eric se uniu então aos Yardbirds, em outubro de 1963. Costumavam tocar no Crawdaddy Club em Richmond, onde os Rolling Stones começaram seus dias de glória. Tocavam rock e blues e quando resolveram entrar no terreno pop comercial, Eric fez as malas e se mandou, depois de gravar um dos grandes sucessos da época: For You Love. É ele quem diz: 'Somente depois que estive com os Yardbirds por uns dezoito meses é que comecei a levar minha música em termos sérios. Percebi que era aquilo mesmo que eu queria pelo resto de minha vida... então era melhor que eu fizesse a coisa direito... estava sempre querendo subir mais um degrau e quase nunca satisfeito com o meu modo de tocar.' Tony McPhee, do The Groundhoghs, recorda estes tempos: 'Eu me lembro dos Yardbirds logo depois que Eric entrou. Ele costumava usar pedal de distorção de uma maneira incrível. O efeito era impressionante, o seu potencial já era óbvio.' "
(continua)

quarta-feira, 20 de maio de 2015

Wagner Tiso: O Maestro Sai da Sombra (1977)

Parceiro e amigo dos primeiros tempos de Milton Nascimento na música, além de músico e arranjador dos melhores trabalhos do parceiro, Wagner Tiso é peça fundamental do movimento que ficou conhecido como Clube da Esquina. Aqui na matéria transcrita abaixo, a jornalista Ana Maria Bahiana fala desse grande músico, em 1977 num informativo do projeto Trindade, que reunia música e cinema, e gerou um ótimo documentário dirigido pela cineasta Tânia Quaresma:
"O Maestro: cigano, trespontano, vizinho, irmão, compadre, amigo básico de Milton Nascimento, sagitariano sombrio sempre se movendo, mineiro, muito nos palcos, nos estúdios. Aprontando: os arranjos brilhantes, a tapeçaria delicada que envolve a música de Milton, desde Clube da Esquina. E que brilha, tão clara, nos discos de Simone, Macalé, Sueli Costa, Paulo Moura. O músico, o criador: 14 anos de trabalho em silêncio, sonhando, arrumando, detalhando cada minúcia, com tanta obsessão de prazer 'que não tenho a menor dúvida, já está tudo completo na minha cabeça, é só sentar e escrever. É uma coisa vasta, sabe, que começa numa coisa de música de igreja, depois sai, já é música de fazenda, os cafezais... aquilo tudo é Minas.'
Antes de ser o maestro, Wagner é músico mineiro: o acordeom em família, o som dos tios, ciganos, no violino. Depois a amizade com o vizinho Milton Nascimento, os conjuntinhos de baile: Luar de Prata, o primeiro, W's Boys, o mais famoso já na cidade próxima de Alfenas, onde tinha ido, teoricamente, estudar  Farmácia. Em Alfenas havia bons músicos e novidades, como baixo, bateria, Milton era o crooner - com o pseudônimo de Wilton, para ficar de acordo com o nome do grupo - e cantava 'Sumertime', 'Exodus'...
Os amigos iriam se separar e se encontrar várias vezes. Separados de 61, por um curto estágio de Wagner nos juvenis da Ponte Preta, reuniram-se de novo na Belo Horizonte  de 1963, fervendo de música.
- Foi o Milton quem me escreveu, dizendo que em BH tinha músicos da pesadíssima, que só vendo pra crer. E era mesmo: era o Nivaldo, o Helius Vilela, muita gente boa. Foi lá que, pela primeira vez, me interessei por música clássica, passei a comprar partituras, ouvir, estudar. Foi lá também que eu ouvi jazz pela primeira vez, jazz free mesmo, de improviso.
Acho que essas coisas, mais os sons de Minas mesmo, de igreja, de fazenda, são os principais elementos do meu som. Ah, e tem o rock, é claro. Os Beatles. Jazz e os Beatles pra mim estão no mesmo plano.
Wagner foi um dos mineiros pioneiros na descida para o eixo Rio-São Paulo. Veio em 65, para trabalhar num disco do compositor Pacífico Mascarenhas - 'era a sensação mineira da época, o Milton daquele tempo' - e ficou. Seus conterrâneos não entenderam tamanha ousadia e o próprio Milton - que, dois anos depois, puxaria todo o trem mineiro com 'Travessia' - censurava Wagner cada vez que ele ia a Minas.
Mas Wagner não desistia. Começou pela noite, nas boates - 'era aquela história de ficar de smoking na porta das boates pra fazer a folga do pianista da casa' -, depois foi tocar com Paulo Moura, mestre de muita gente.
- Foi o Paulo sempre quem me salvou nos arranjos, porque eu nunca estudei música nem orquestração, não. Eu imaginava uma coisa, no começo, aí ligava pra ele e perguntava: escuta, como é que faz isso? E ele me dizia.
Mas o lançamento de Wagner no circuito Rio-São Paulo veio pelas mãos do antigo amigo Milton. Primeiro bicando os arranjos do LP Milton Nascimento (o de 'Beco do Mota', 'Sentinela'), depois fundando o Som Imaginário em 70, com seus velhos companheiros de boate, Luís Alves e Robertinho Silva. E, finalmente, em 72, Wagner se tornaria um dos principais responsáveis pela explosão de Milton, vestindo e apurando suas músicas com arranjos complexos, inteligentes, suntuosos, muitas vezes.
- A música de Milton é ótima para um músico. Dá espaço pra gente trabalhar. Mas eu sei que ela se enriqueceu muito com o meu trabalho. Ficou com mais nuances, mais climas... Antes não era assim não, o Milton fazia música que era a mesma coisa do começo ao fim, no mesmo andamento  e tudo.
De 72 até hoje Wagner tem sido, para grande parte do público, apenas o maestro: o orquestrador de Milton Nascimento. Para alguns, ele também é o músico, o líder incansável do Som Imaginário: 'Tentei mesmo levar adiante esse projeto, fui o único que participei de todas as formações, pensei que o Som tinha pegado uma parte do público do Milton, mas não era verdade. Bom, no fim, aí em 75, 76, já tinha uma plateia muito boa, muito grande, mas a produção era muito cara, dava prejuízo. Mas Valeu a pena, no fim  de tudo.'
Mas ele não é só músico e maestro - com experiência no exterior inclusive, coisas de prestígio como orquestrar e reger um concerto de Herbie Hancock, ou tocar nos dois últimos discos de Wayne Shorter. Wagner é compositor também, há 14 anos. É esse trabalho, minucioso, em silêncio, que ele elaborou por inteiro, nos mínimos detalhes e que está hoje esperando uma brecha para aparecer. Em Trindade - trilha do filme, com 'Tragicômico', sobre a situação do músico e show - ele fez uma pequena mostra  à guisa de estreia.
Mas ainda espera um prometido LP individual, e cava meios para se apresentar, solo, com mais frequência.
- Eu mesmo sou muito culpado por isso, mas, sabe como é, é a cabreirice mineira. Nós somos assim, meio arredios, enrustidos. A gente devia ter feito como os cearenses, como Fagner, aprontando o maior rebuliço, um puxando o outro. Mas somos cabreiros mesmo.
- Quando a gente está lá fora, fica doido pra voltar, acreditando que aqui tem movimento, que as coisas estão acontecendo. Depois chega e vê que não aconteceu nada. Mas tem toda condição de acontecer. Público tem, eu sei que tem, agora precisa investir, arriscar um pouco. E isso ninguém quer. "

terça-feira, 19 de maio de 2015

John e Yoko - 1975

Em 1975 John Lennon tomou uma decisão radical: deu um tempo na carreira, e resolveu se dedicar somente à vida doméstica, ao lado de Yoko e do filho Sean, que nasceu naquele ano, por coincidência no dia de seu aniversário. Esse retiro duraria 5 anos, quando gravou, ao lado de Yoko, o disco Two Virgins, em 1980. 
Mesmo afastado dos holofotes e da mídia, Lennon, vez por outra era matéria em jornais e revistas. Aqui no Brasil, por exemplo, saiu na revista Pop nº 37,  de novembro de 75, uma matéria sobre a vida doméstica do casal. A matéria, que tem por título "Aqui vive o casal mais livre do mundo", não vem assinada, e talvez seja a reprodução de alguma revista estrangeira. 
Em destaque, há um pequeno texto que diz: "Um piano branco e antigo, o aparelho de TV sempre ligado, jornais por todos os lados, espelhos e quadros malucos nas paredes. Há um clima de paz, magia e liberdade em todas as dependências do apartamento de John Lennon  e Yoko Ono, em Nova Iorque. E levam uma vida bem tranquila. De vez em quando, pegam suas bicicletas e saem pelas ruas desafiando os perigos do trânsito de Nova Iorque. E quando a fome pinta, é isso mesmo: um cachorro quente vale por um almoço." O texto se refere às fotos que acompanham a matéria, como à de baixo e a outra, que ilustram essa postagem.
Abaixo a transcrição:
 "É um apartamento grande, encravado num prédio antigo do Greenwich Village - o bairro boêmio de Nova Iorque. Já na entrada, há uma imensa lupa e uma escadinha de madeira, pintada de branco. 'Suba pela escada', diz John Lennon, 'e você vai ver que há alguma coisa escrita no teto, em letras bem pequenas.' A gente sobe e, com o auxílio da lupa, descobre a mensagem: SIM. 
Foi depois que eu li isto', diz Lennon, 'quando visitei uma exposição de Yoko, há muitos anos, que decidi ver o resto dos trabalhos. Esta era a primeira coisa que se via quando se entrava no local da exposição - e quando eu li, decidi que ela era ótima. Por causa disso, vi o resto e assim nos conhecemos...'
Desde que se conheceram, muita coisa aconteceu: gravaram juntos vários discos, passaram uma semana inteira num quarto de um hotel do Canadá, em protesto contra as guerras, Yoko foi acusada de pela separação dos Beatles, e enfim, no ano passado, John e Yoko acabaram se separando. Mas o grilo durou pouco: logo apareciam juntos, no badalado mundo da música pop. E John pôs fim às especulações: 'Nossa separação foi um fracasso.'
Daí para a frente, recomeçaram a vida em comum, uma vida onde a única regra rígida é a liberdade total. Liberdade para morar num apartamento maluco onde todas as paredes são brancas e o chão é forrado de finíssimos tapetes, onde eles só andam descalços. Liberdade para colocar três pedaços de madeira branca numa parede e largar, no chão, vários martelos e jarras de vidro cheias de pregos. 'Quem quiser, que finque um prego na madeira', diz Yoko. Isso é parte de uma de minhas propostas de participação artística.' Liberdade para fazer do banheiro uma das dependências mais aconchegantes da casa, com a imensa banheira exalando perfumes suaves.
No quarto, o televisor está sempre ligado (sem som), o violão está ao alcance da mão e há jornais por todos os lados (o casal Ono/Lennon faz questão de estar sempre bem informado). E na garagem do prédio, junto com os carros, há duas bicicletas: 'A gente curte o barato de andar no meio do trânsito de bicicleta. É importante correr perigos. Afinal, a maior caretice é ter medo...' "

segunda-feira, 18 de maio de 2015

Memórias de Gal

Em sua edição de 24 de outubro de 2004 o jornal O Globo trazia uma matéria com Gal Costa, que falava num livro de memórias que ela estaria escrevendo. Mas a matéria dizia que os textos que ela andava escrevendo não iriam virar livro tão cedo, e talvez nem viriam. Mas o jornal teve acesso a algumas páginas escritas, e publicou em primeira mão, como os textos abaixo:
"Uma vez, quando criança, tive uma premonição muito forte. Morava na Graça (bairro de Salvador) numa casa muito simples. Dedé e Sandra (irmãs que foram casadas, respectivamente, com Caetano Veloso e Gilberto Gil) moravam em frente. Tinha duas janelas  e um portão. Estava sentada numa das janelas lendo um gibi, quando passou do outro lado da rua um rapaz, um cantor, que cantava na televisão local da Bahia. Era uma televisão bem irregular com programas ruins, e alguns bons, como o do Carlos Coquejo, por exemplo.
Eu me lembro que a rua toda correu, meus amigos, meus colegas, todos correram para o cara com pedaços de papel na mão pedindo autógrafos. E pensava: 'Que coisa sem sentido. Um pedaço de papel, que importância tem a assinatura de um cara num pedaço de papel? Que coisa ridícula'.
Ao mesmo tempo explodiu uma intuição que me mostrou exatamente na situação dele, dando autógrafos. Foi uma premonição extraordinária. Deveria ter uns 12, 11 anos, talvez menos. Foi um acontecimento muito forte. Mas não comentei com ninguém. Guardei dentro de mim porque achava que as pessoas poderiam achar loucura. Como essa, tive muitas outras antevisões. Tenho até hoje. E até hoje não conto pra ninguém porque receio que, se contar, essa espécie de encantamento poderá se partir e impedir a sua realização."
" Chico (Buarque) não se lembra de nada. Mas foi ele mesmo que me introduziu à diretoria da TV Record. Naqueles dias, Chico e Nara faziam 'Pra Ver a Banda Passar', um dos vários programas de música popular brasileira que a Record exibia semanalmente.
Cheguei ao Rio com a minha mãe em férias, coincidindo com a estreia de Bethânia no lendário show 'Opinião'. Lembro-me que assisti aos prantos. Bethânia era magra e, carregada de emoção, vergava o corpo com uma flexibilidade de vara verde, parecia que ia quebrar. A plateia enlouquecia. Voltei para a Bahia só pensando em vir para o Rio morar. Pedi um dinheiro emprestado a um primo que, quando soube que era para eu vir para o Rio virar cantora, recusou. Outro primo, porém, foi mais justo e lá vim eu com trezentos e poucos não sei o quê. Nossa moeda já mudou tanto que não sei precisar.
Feliz da vida, consegui uma vaga numa kitchenete na Sá Ferreira, onde só podia dormir e tomar banho. O resto do dia era passado em casa de primos, amigos e da turma da MPB.
Chico apresentou-me então o seu empresário Roberto Colossi e, por sua indicação, lá fui eu a São Paulo mais Chico falar com o bambambã da Record, o Marcos Lázaro. uma figura gorda, argentino, fumava um charuto com aquela presença dominadora dos nossas vizinhos do sul. Chico havia me aconselhado a pedir um bom cachê. Mas com aquela presença grandalhona e forte à minha frente, tímida como eu era, aceitei a merrequinha de cachê que me ofereceram. Fiz o programa do Chico com a Nara, depois o 'Fino da Bossa', como Jair Rodrigues e a Elis Regina, e um programa do Agnaldo Rayol... Enfim, conseguia um dinheirinho. Com isso saí da vaga da Sá Ferreira e aluguei um quarto - só pra mim - no Solar da Fossa. O banheiro era fora. Moravam lá: Caetano, Paulinho da Viola, Rogério Duarte... Foi um início difícil mas que me traz recordações, por mais difíceis que possam ter sido. Como o dia em que não tinha nada para comer, dinheiro nenhum, apenas um vale de casco vazio de uma Coca-Cola. Foi o que me salvou: com ele consegui um leite gelado e um bolinho de fubá."
 " Naquela época convivia com todo o ambiente tropicalista. Só falávamos dos movimentos novos que surgiam no mundo. Gil ouvia Hendrix o dia inteiro. Janis Joplin não saía da minha cabeça. Aquele som, aquele rasgo de voz foi me tomando de uma forma que criou em mim uma necessidade de fazer alguma coisa diferente do que eu acreditava, de tudo o que já fizera e de como eu entendia a música até então. Eu era muito radical, gostava de pouquíssima coisa. João (Gilberto) era meu ídolo e nada, quase nada passava pela minha peneira. Não gostava de iê-iê-iê, nem da jovem guarda, de nada. Precisava fazer alguma coisa para me expressar, botar pra fora o que eu sentia, com força, atitude, e que, falando francamente, chamasse a atenção sobre mim.
Gil e Caetano envolveram-se de corpo e alma com essas novas experiências da música popular brasileira. E dentre essas pesquisas me deparei com 'Divino Maravilhoso', uma canção que mexeu comigo. Caetano convidou-me para cantá-la. Expliquei que queria cantar de uma forma nova, explosiva, de uma outra maneira. Queria mostrar uma outra mulher que há em mim. Uma outra Gal além daquela que cantava quietinha num banquinho a bossa nova. Queria cantar explosivamente. Para fora.
Gil fez então o arranjo para o 'Divino Maravilhoso'.
Quando Caetano me viu pisar o palco cheia de penduricalhos no meu pescoço, aquela cabeleira afro armada por Dedé, quase morreu de susto. Ele não sabia de nada. Não tinha escutado o arranjo do Gil, nada, nada. Cantei com toda a fúria e força que havia em mim. Metade da plateia se levantou para vaiar. A outra metade aplaudiu ferozmente. Um homem na minha frente berrava insultos. Foi então que me veio ainda uma força maior que me atirou contra ele. Eu cantava diretamente para ele: 'É preciso estar atento e forte, não temos tempo de temer a morte!' Cantava com tanta força e tanta violência que o homenzinho foi se aquietando, encolhendo-se, e sumiu dentro de si mesmo. Foi a primeira vez que senti o que era dominar uma plateia. E uma plateia enfurecida como aquela. Naquele tempo de polarização política, a música era a única forma de expressão. Despertava paixões, verdadeiras guerras. Saí do 'Divino Maravilhoso' fortalecida, crescida. Acho que naquela noite entrei no palco adolescente, menina, e saí mulher. Sofrida, arrebentada, mas vitoriosa."

domingo, 17 de maio de 2015

Chuck Berry - O Pai do Rock'n Roll (1992)

Muita gente considera Chuck Berry o verdadeiro pai do rock, e não é nenhum exagero atribuir a esse brilhante compositor e figura básica em qualquer enciclopédia do rock'n roll essa paternidade. Em janeiro de 1992, sob o título "O Pai do rock and roll", o jornalista Tárik de Souza assina uma resenha sobre uma coletânea de Berry que estava sendo lançada no Brasil, chamada "Chuck Berry - The Great Twenty- Eight", em que o jornalista deu cotação máxima (excelente). Segue abaixo a matéria:
"Nos carnavais de branco que costumam ser os festivais de rock no Brasil, negro só entra na vaga da música étnica, ou no máximo como Prince, reinando num tecnofunk modernista. Daí o efeito ciclone do Living Colour no último Hollywood Rock. Uau! Quatro negros tocando rock' n roll! Mas se o diabo é o pai da matéria, como profetizou Raul Seixas, ele tem a cara preta de Chuck Berry empunhando a guitarra como uma Uzi engatilhada. Vinte e oito disparos certeiros de sua metralhadora giratória acabam de ser reeditados em álbum duplo, Chuck Berry - The Great Tweenty-Eight (BMG), com originais da pioneira Chess Records, de Chicago, gravados entre 55 e 65. A milhas do virtuosismo, Berry bate uma guitarra chispante para lubrificar as faixas curtas, quase todas com menos de três minutos de duração. Completa a figura do story teller libidinoso uma ginga de corpo anterior ao moonwalk de Michael Jackson e o  pulo do felino: um repertório de exaltação aos sentidos, narcisismo febril e rebeldia militante, capaz de recrutar um exército de adolescentes ávidos de adrenalina nos canos.
Levanta-festa indicado a qualquer tribo não mauricinha, The Great Tweenty-Eight opera como um manual  didático para roqueiros princiantes. O rock básico bebeu Berry em tonéis. Presley, Beatles, Stones, Dylan, Clapton, The Kinks, The Beach Boys, todos lhe devem algo - da pegada à postura ou até mesmo o empréstimo direto de hits, como Roll Over Beethoven, Rock and Roll Music, Sweet Little Sixteen, Memphis, Shools Days e Johnny B. Goode, todos incluídos no duplo. Back in the USA (também na seleção) inspirou Paul McCartney em Back in the URSS. Num pique brasileiro, Gilberto Gil homenageou acoplados, mestre e discípulo em seu Chuckberry Fields Forever. Além de senhas fervilhantes como 'Let it Rock', 'Long Live Rock'n Roll' e 'Too Much Monkey Business', que grudam nas letras e atitudes de ativistas subsequentes, Chuck Berry tramou a celula mater do discurso funcional de três acordes do rock'n roll. No filme biográfico Hail! Hail! Rock'n Roll, o documentário de Taylor Hackford, de 88, além do mentor Keith Richards, que despe o jeitão bandido para agir como tiete humilde, prestam vassalagem a Chuck Berry outros pioneiros como Little Richard e Bo Diddley - todos unânimes em atrlbuir-lhe o DNA da invenção.
 Nascido em outubro de 26, em San Jose, na California, Charles Edward Anderson Berry foi criado em St. Louis, no Missouri, onde formou um trio com Johnnie Johson no piano e Ebby Harding na bateria. O (então) jazzista Nat King Cole e o crossover do rhythm & blues de Louis Jordan foram seus antecedentes musicais. Os criminais enchem uma folha corrida digna de James Brown, com frequente envolvimento em corrupção de menores e transgressões menores e transgressões sexuais variadas, ficha de quem sempre levou a vida ao pé da letra da letra das canções. Nas 28 faixas do duplo, ele tripula pequenas formações onde o titular Johnson é eventualmente substituído ao piano por Otis Spann e Lafayette Lake. Willie Dixon, ás do blues, falecido esta semana, encarrega-se do baixo e a bateria passa por diversas baquetas. Raras incursões de saxes e até maracas pincelam timbres adicionais à lava incandescente do rock, onde Berry celebra ou alfineta incontáveis musas (Maybellene, Beautiful Delilah, Little Queenie, Carol, Nadine) e exalta a vida on the road (No Particular Place To Go, I Want To Br Your Driver). Pedra que rola não cria limo."