Palavras Domesticadas

Palavras Domesticadas

sábado, 30 de janeiro de 2010

O Incrível Thelonius Monk


Monk tocava com devoção absoluta, numa concentração total, submerso na música. Tocava com os dedos retos, boca semi-aberta ou fechada, com as bochechas chupadas para dentro. Balançava a perna direita batendo ou deslizando o pé e parecia divertir-se mais que qualquer músico, embora compenetrado e sem sorrir. Aproveitava cada acorde, dava a impressão de estar descobrindo cada passagem que executava. No meio de uma frase conseguia tirar o lenço do bolso, usando a mão esquerda para o que vinha sendo tocado com a direita, enxugava o suor e continuava. Nada o perturbava.
Sua mão esquerda derivava francamente do estilo “stride piano”, o mesmo que Duke Ellington e Fats Waller, nada de acordes blocados e fechados como um cacho. Duas ou três notas bastavam. Com a mão direita fazia frequentes arprejos com apenas três dedos, desprezando o anular e o mindinho, numa anti-técnica pianística em favor da expressividade percussiva. Às vezes atacava o teclado com o cotovelo direito, atingindo várias teclas de uma só vez. Saía tudo perfeito, sem uma nota a mais ou a menos.
Nos solos, estudava o teclado de cima, como quem olha um campo de pouso sem saber onde vai aterrissar. Pousava com ambas as mãos abertas para atacar um acorde quebrado e esquisito, que nem ele mesmo parecia saber como soaria. Soava no mesmo tempo desconforme e certeiro, puro zen, na medida justa para aquela aparente trapalhada de sons. Com a mão direita, às vezes martelava sem parar as mesmas notas junto com uma progressão harmônica na mão esquerda que não combinaria com tal repetição. Naquele instante só ele parecia ver sentido nisso, A plateia iria entender depois. Aí veria que tudo aquilo tinha uma lógica de matemática pura. Quem recebia e decifrava as mensagens do canonizado Thelonius Monk, subia aos céus de emoção. Nunca mais esquecia.

Do livro Música na Veias, de Zuza Homem de Melo

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Leila Pinheiro e Roberto Menescal , Um Excelente Show




A programação de verão promovida pela prefeitura de São João da Barra tem trazido excelentes shows, que têm lotado a área do Novo Balneário da praia de Atafona. O local, amplo e aprazível, é bem apropriado para esse tipo de evento, e tem se constituído na melhor opção de lazer para quem gosta de boa música. Normalmente os shows de verão que acontecem nas praias privilegiam um tipo de música que atrai grandes multidões, como axé ou pagode, o que torna um programa inviável não só para quem prima pelo bom gosto musical, mas também para aqueles que preferem fugir da baderna que normalmente é promovida pelos apreciadores desse tipo de música.
A mudança de horário, das 17h para as 18:30h, foi benéfica para o público, que não é obrigado a se expor ao forte sol da tarde, e para os artistas, que podem usar os recursos de iluminação que só um show noturno pode proporcionar.
No domingo, 24 de janeiro, Leila Pinheiro e Roberto Menescal fizeram um show de alta qualidade para quem aprecia uma boa MPB, principalmente Bossa Nova.
Menescal faz parte da história da música brasileira, já que foi um dos principais músicos e compositores da Bossa Nova, criando verdadeiros clássicos do gênero, com sua parceria com Ronaldo Bôscoli. Seu estilo de tocar violão criou escola, e ajudou a definir a batida característica da Bossa Nova, da mesma forma que o violão de João Gilberto. Nos anos 70, já longe dos palcos, virou diretor da gravadora Polygram, e deixou a carreira musical de lado. Só no final dos anos 80, voltou a se apresentar, dessa vez em dupla com Nara Leão, pouco antes da morte da cantora. A partir daí, Menescal sempre se apresenta ao lado de alguma cantora que tenha alguma, ou muita afinidade com a Bossa Nova. Ao longo desses anos, tem feito dupla com Cris Dellano, Wanda Sá, e agora com Leila Pinheiro.
Leila, que surgiu para o cenário musical em 1985, quando defendeu a música Verde, no Festival dos Festivais, da Globo, após gravar um disco dedicado à Bossa Nova, passou a dedicar boa parte de seu repertório ao gênero, por isso se tornou uma parceira perfeita para Menescal.
O show foi aberto com Rio, de Menescal e Bôscoli,seguido de outros tantos clássicos da Bossa Nova, como Ela É Carioca, Meditação, Você, Vagamente, Se É Tarde Me Perdoa, Lobo Bobo e outros. Acompanhados por um trio, de baixo, teclados e bateria, além da guitarra semi-acústica de Menescal, a dupla empolgou o público. Mas o show nao se prendeu somente à Bossa Nova. Leila teve seu momento solo, quando Menescal e a banda deixaram o palco, e ela ficou só com seu teclado. Leila então variou seu repertório com composições próprias, além de músicas como Brincar de Viver, de Guilherme Arantes, Preciso Aprender a Ser Só, de Marcos e Paulo Sérgio Valle, Vitoriosa, de Ivan Lins e Vítor Martins, e duas de Renato Russo: Pais e Filhos e Tempo Perdido. Ela inclusive anunciou que seu próximo projeto é gravar um cd só com músicas de Renato. Após o momento solo, Menescal e banda retornam ao palco, e novamente a Bossa Nova domina, com a interpretação de Rapaz de Bem, de Jonnny Alf, e mais duas de Marcos e Paulo Sérgio Valle: Samba de Verão e Gente. Também foi relembrada uma composição meio esquecida de Menescal, A Morte de Um Rei de Sal. Duas composições mais recentes de Menescal foram também mostradas; uma em parceria com Leila, e Feliz Ano Novo, de Menescal e Aldir Blanc.
O saldo final foi dos mais positivos. A boa música agradece.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Marimbondo Vascaíno Intruso de Fogo

Existem pessoas que acabam se tornando personagens fortuitos em algum momento de nossas vidas. Personagens que somente fizeram parte de um breve instante que vivenciamos, e que normalmente seriam logo depois esquecidos. Pessoas que nunca soubemos o nome e que nem somos capazes de reconhecer se encontrarmos na rua, mas que por algum motivo permanceram em nossa memória, e acabam ganhando uma denominação especial. Vou citar um desses personagens.
Eu havia entrado para uma empresa, e na fase de treinamento, um dos módulos do curso de preparação acontecia em Petrópolis, onde havia uma grande área onde se localizava um núcleo de treinamento pertencente à empresa. Nossa turma chegou num domingo à noite, para lá pernoitarmos, e iniciarmos nosso curso no dia seguinte.
No local havia salão de jogos, instrumentos de samba, som à disposição, bar com cerveja, campo de futebol society, piscina, etc. Aproveitamos a noite livre e tomamos conta do ambiente. Jogamos sinuca e damas, improvisamos uma roda de samba, tomamos muita cerveja, e tudo a que tínhamos direito.
No dia seguinte, após o curso, já no final da tarde, jogamos futebol e tomamos banho de piscina, apesar do frio que fazia. À noite, fomos para a área de lazer. Mas ao chegarmos, já havia um outro grupo no ambiente, que havia chegado naquele dia, e desfrutando de "nosso" espaço.
A primeira imagem dos invasores que me lembro de ter visto foi um coroa tentando acompanhar com um pandeiro uma gravação de Johnny B. Good com Chuck Berry, que um dos nossos colegas havia levado, de uma coletânea de rocks dos anos 50. Logo pensei comigo: "Esse pessoal vai cortar nossa onda". Esse pensamento foi geral entre o nosso grupo. Tínhamos que disputar com eles os instrumentos de samba, as mesas de sinuca e o espaço. Ficamos putos com a situação, e por isso não houve uma integração entre os dois grupos.
Nosso curso durou três dias, assim como o difícil convívio com a outra galera. No último dia, uma quarta-feira, passaria na tv um jogo entre Cruzeiro e Vasco. Um de nossos colegas, chamado Cláudio, era muito vascaíno, e começou a exaltar o Vasco em voz alta. Um dos membros do outro grupo, também vascaíno, e já meio bêbado, após ouvir as exaltações ao Vasco, se aproximou de nós e falou algo do tipo: "É isso aí!" Mas o pessoal de nosso grupo não se manifestou, nem mesmo o colega vascaíno. Então denominei esse personagem fortuito de Marimbondo Vascaíno Intruso de Fogo.
O "Marimbondo" é porque costumo chamar de marimbondos certas pessoas que preferíamos que não estivessem em determinado lugar onde temos que ficar, pois causam incômodo, como os marimbondos. Se há uma casa de marimbondos em um determinado local por onde temos que passar, nos sentimos incomodados. Por ele ter se manifestado após uma declaração de apoio ao Vasco, virou Marimbondo Vascaíno. O "Intruso" é devido à sua condição para nós, naquele momento. O "de Fogo" é porque uma das formas usadas para definir uma pessoa embriagada é dizer que ela está "de fogo", e é também uma brincadeira com o título de um livro de José Sarney chamado Marimbondos de Fogo.
E assim esse personagem foi denominado de Marimbondo Vascaíno Intruso de Fogo.

domingo, 10 de janeiro de 2010

Um Show Inesquecível



Era verão de 79. Final de janeiro. Um dia abro o jornal e leio uma nota anunciando que Milton Nascimento iria dar um show na praia de Grussaí. Seria numa quarta-feira, 02 de fevereiro. Nesse dia eu teria que estar em Niterói para fazer uma prova de vestibular para uma faculdade de psicologia. Teria que fazer uma opção: o show ou o vestibular. Optei pelo primeiro. Eu não tinha tanta convicção quanto ao curso, e ter que morar fora a partir daquele ano. Quanto ao show, eu tinha a mais absoluta certeza que não poderia faltar. Comuniquei a minha mãe minha decisão. Ela não se opôs.
No dia do show chovia forte. A praia fica há aproximadamente 40 km de Campos. Rumei para a rodoviária embaixo de chuva forte, vestindo um casaco de chuva, de nylon. O próximo ônibus me deixaria no local do show meio que em cima do horário marcado. Torcia para o show atrasar um pouco para que eu não perdesse nada.
Ao chegar, fui direto para o Grussaí Praia Clube, local do show, que tinha acabado de começar. Comprei o ingresso, e ao entrar no salão, vi o palco de longe, pois o ginásio estava tomado de gente. Tentava me posicionar em um local onde pudesse ver melhor o palco, que estava bem distante. Naquele momento uma menina me fez um favor que eu nunca me esqueci. Vendo que eu procurava quase desesperadamente encontrar uma melhor posição para ver melhor o palco, ela me indicou uma porta próxima a nós, dizendo que se eu entrasse por ela ficaria bem perto do palco. Corri para a porta, e para minha alegria fiquei de frente pro palco. Nem deu para agradecê-la direito.
Milton tinha lançado há pouco tempo o Clube da Esquina 2. Com ele vieram Novelli (baixo), Danilo Caymmi (flautas), Nelson Angelo (guitarra), Raimundo Queiroz (teclados), Robertinho Silva (bateria), além da participação especial de Beto Guedes.
Vários clássicos foram cantados, e eu quase não acreditava que estava há poucos metros daquela voz que eu tanto admirava. Promessas do Sol, Canção do Sal, Cravo e Canela, Paula e Bebeto, e tantas outras músicas foram apresentadas. Então Beto Guedes subiu ao palco, e junto a Milton, fez o dueto antológico de Fé Cega, Faca Amolada. Em seguida Mlton deixou o palco por conta de Beto, que cantou Lumiar e Amor de Índio.
Ao voltar ao palco, Milton cantou Travessia, para delírio do público Não me lembro de todas as músicas tocadas, mas o auge do show foi com Maria Maria, que na época fazia um grande sucesso, e foi a música que encerrou o show. Logicamente rolou o bis, que veio com Para Lennon e McCartney. A música novamente levantou a plateia, e eu, contagiado pelo clima, comecei a pular e cantar feito um louco. Lembro-me bem que como não haveria mais ônibus de volta pra cidade após o show, talvez tivesse que esperar amanhecer o dia para voltar pra casa. Então levei um sanduíche de queijo embrulhado em um papel de pão, para quando batesse uma fome. Mas durante Para Lennon e McCartney eu pulava tanto, que o sanduíche, que estava em meu bolso, voou longe, e eu nem reparei. Um cara que estava próximo o devolveu intacto.
O show foi encerrado com A Lua Girou, só com voz e violão. Foi inesquecível. Ainda guardo a matéria de jornal que saiu dois dias depois, e ilustra essa postagem.
Terminado o show, já não chovia, e era hora de tentar uma carona. Fui para a beira da estrada, e não demorou muito uma amiga que passava, parou e me deu uma carona. Saiu tudo perfeito. Só faltou agradecer a menina que me mostrou aquela porta.