Palavras Domesticadas

Palavras Domesticadas

domingo, 31 de janeiro de 2016

João Gilberto Lança "João" - 1991 (1ª parte)


Em 1991, cercado de grande expectativa, João Gilberto lançaria mais um álbum, intitulado simplesmente "João". Às vésperas do dia marcado para o lançamento o jornal O Globo fez uma matéria sobre o disco, colhendo depoimentos de Tom Jobim e do jornalista Moysés Fucks. A matéria, que tem por título "Uma bossa sempre nova", começa com o seguinte texto:
" 'João', o novo disco de João Gilberto, chega às lojas no dia 3 de abril. O cantor gravou 12 músicas (o LP tem apenas dez), entre elas 'Palpite Infeliz', de Noel Rosa, 'Ave Maria do Morro', de Herivelto Martins e 'Sampa', de Caetano Veloso. O Globo pediu ao compositor Tom Jobim e ao jornalista Moysés Fucks, editor dos suplementos Turismo, Família e revista da TV, do Globo, que comentassem o novo trabalho de João. Uma mesma frase aparece nos dois depoimentos; 'João é um gênio'. Em 1958, Fucks era diretor artístico do Grupo Universitário Hebraico do Brasil. Foi ele que organizou o primeiro show que reuniu o pessoal da bossa nova. João Gilberto e Tom Jobim não participaram, mas o espetáculo contou com Silvinha Telles, Carlinhos Lyra, Nara Leão, Roberto Menescal e Luizinho Eça e foi apresentado por Ronaldo Boscoli. Como Ruy Castro conta no livro 'Chega de Saudade - a história e as histórias da bossa nova', Fucks redigiu o programa do show, anunciando o evento como 'uma noite bossa nova'. Essa foi uma das primeiras vezes que aquele tipo de música foi associada ao termo 'bossa nova'. "
Abaixo, o depoimento de Tom Jobim:
Tom Jobim, João Gilberto e Stan Getz
"Antes de mais nada, João Gilberto é um craque. Tenho todos os discos dele, desde o primeiro, 'Chega de Saudade', gravado pela Odeon em 1959, em 78 rotações. Considero João um patrimônio nacional. Ele é um grande sambista, é baiano, conhece todos os ritmos. Puxou ao pai, Seu Juveniano de Oliveira, que era músico em Juazeiro, onde João nasceu. Não gosto de tecer considerações sobre o trabalho de ninguém, mas João é formidável. Ele é bom para o Brasil. Não posso dizer que João continua o mesmo. Uma pessoa hoje não é igual no dia seguinte, mas ninguém deve ficar se preocupando se João mudou ou não, se ele está melhor ou pior. O importante é que João Gilberto é um gênio. O nome dele já está inscrito na História do Brasil.
Ouvi o disco novo pela primeira vez na quarta-feira à noite, dia 20. Era uma ocasião muito especial porque minha filha estava fazendo 4 anos. A casa estava muito barulhenta - era uma festa de criança - e a agulha do meu toca-discos não estava muito boa. Mas prestei atenção em algumas faixas, como 'Eu e o Meu Coração', de Inaldo Vilarinho e Antonio Botelho, e 'Palpite Infeliz', do Noel Rosa. Em 'João', João Gilberto gravou as músicas de que ele gosta, que estão dentro do seu coração. Algumas são clássicas, como 'Eu Sambo Mesmo', de Janet de Almeida, que abre o disco, e 'Eu e Meu Coração'. Eu mesmo gravei 'Eu e Meu Coração' pela Continental, com a Dóris Monteiro, há milhões de anos. Esse samba está muito bonito no disco, foi bem gravado pelo João.
Ele também canta bem em inglês o clássico do Cole Porter, 'You do Something To Me'. Pensado bem, tudo é clássico em 'João', como 'Ave Maria do Morro', do Herivelto Martins, que João ouvia em Juazeiro, e 'Sampa' do Caetano Veloso. E a gravação de 'Palpite Infeliz' é maravilhosa.
Esse repertório é uma curtição do João Gilberto. Nós não podemos ficar simplesmente repetindo os sucessos da época da bossa nova. João tem uma vida monástica. É um homem recluso, não gosta de badalação, não liga para bebida nem cigarro. É uma pessoa dedicada à arte e à música, que não está preocupado em ver seu disco na lista dos mais vendidos nem suas músicas na parada de sucessos das rádios. Ele simplesmente dá o melhor que pode para todos nós. Não sou crítico musical e detesto essa história de fazer crítica do trabalho dos outros. Os artistas são ótimos. Eles sabem das coisas muito antes das outras pessoas. O João deveria gravar sempre, cada vez mais. Mas eu sei que há outras coisas para fazer. Eu também não gravo com mais frequência porque tenho que trocar o pneu do carro, afinar o piano, mandar cortar a árvore que está caindo no jardim.
Conheço João Gilberto há muito tempo, poderia contar milhares de histórias, mas a memória não ajuda muito, são mais de 30 anos. Me lembro de uma história que o Ruy Castro conta no livro 'Chega de Saudade - a história e as histórias da bossa nova'. O episódio aconteceu durante as gravações do 'Getz/Gilberto', em Nova York, em 18 e 19 de março de 1963. Eram duas estrelas e eu participava das gravações do disco tocando piano. Como João não falava inglês, eu me sentia como Antonio, o intérprete. Naquela confusão de estúdio, o João se irritou com o Stan Getz e começou a xingá-lo, em português. O Getz queria saber o que o João estava dizendo e eu traduzia como 'ah, ele tem um enorme prazer em gravar com você'. Claro que o Getz desconfiou: 'com esse tom de voz, não parece que ele está muito satisfeito', disse. Mas o disco 'Getz/Gilberto' ficou muito bom. Mas o trabalho do João que eu mais gosto é o 'Amoroso', gravado na América em 1977. Como esse disco é bonito! O mundo inteiro respeita João Gilberto porque ele é um grande músico, um intérprete formidável. O João é uma pessoa muito criativa. E ninguém canta como ele. "
(continua)

sábado, 30 de janeiro de 2016

Geraldo Vandré - Jornal O Dia (2005)

Mesmo tendo abandonado a carreira artística há muitos anos, e ter se tornado uma figura reclusa, Geraldo Vandré nunca foi esquecido. Em qualquer relato sobre a era dos festivais, ou o cenário da MPB nos anos 60, seu nome é sempre lembrado, por ter sido uma figura muito participante, tanto na condição de cantor, compositor ou mesmo um articulador de movimentos entre compositores, tanto pelo viés artístico, como também político. E foi justamente por seu posicionamento político que Vandré foi perseguido, preso e exilado no período mais violento da ditadura militar. Numa época em que ídolos musicais são criados pela mídia, manipulados, e fadados ao esquecimento daí a alguns anos, artistas como Geraldo Vandré, que abdicaram da carreira, ainda são lembrados e cultuados. Inclusive acaba de ser lançada uma biografia sobre ele. Em 13/02/2005 o jornal O Dia trazia uma matéria sobre Vandré, com depoimentos de Geraldo Azevedo e Marcelo Melo, do Quinteto Violado. O título da matéria é "A falta que ele faz", e fez escrita por Sabrina Wurm, e segue abaixo:
"Sem fazer shows nem lançar discos há mais de 30 anos, Geraldo Vandré e sucessos como Pra Não Dizer que Não Falei das Flores nunca foram esquecidos - mesmo que apareça um ou outro fariseu para chamá-lo de morto-vivo. Aproximando-se dos 70 anos (12/9), Vandré participou do primeiro festival, na TV Rio, há 50 anos, com o nome artístico de Carlos Dias (homenagem aos ídolos Carlos Galhardo e Carlos José, e Dias, seu sobrenome). Consolidou-se na carreira há 40 anos, já como Geraldo Vandré (abreviação de Vandresígilo, sobrenome do pai), lançando o segundo LP, Hora de Lutar, e assinando a trilha do filme A Hora e a Vez de Augusto Matraga, de Roberto Santos.
Exilado em 1968 e recluso desde que retornou ao Brasil em 1973, Vandré ainda emociona com a última música conhecida que escreveu no país antes de ir para o Chile: Canção da Despedida, censurada por 16 anos. Fãs e amigos de Vandré ainda esperam que o trecho 'Já vou embora, mas sei que vou voltar' se concretize de fato. Afinal,ele nunca retomou a carreira. 'O exílio dele nunca acabou. Ele saiu do exílio físico para o mental', acredita Geraldo Azevedo, aos 60 anos, que o acompanhou com o Quarteto Livre.
Por ter negado o passado musical, não autorizar regravações e ter se tornado frequentador das repartições da Aeronáutica, Vandré se tornou um mistério. Já disse que só cantaria novamente no país quando a sociedade entendesse que nunca foi torturado, e homenageou a Força Aérea Brasileira, em 1985, com a música FABiana.
 O amigo Marcelo Melo, de 60 anos, do Quinteto  Violado, garante que ele continua criando no apartamento onde mora na Rua Martins Fontes, em São Paulo. E, vez por outra, liga para propor novo trabalho: 'A última vez que me telefonou foi em novembro. Sempre propõe que a gente faça show na América Latina. Cantarola canções novas, fica de ligar depois, mas some'.
 Da turma das antigas, Marcelo é um dos únicos que com quem Vandré mantém contato. Mesmo assim, não se veem desde 1998. 'Na última vez, conversamos na casa dele, que é uma loucura. Livros, jornais, tudo no chão. Ele dorme num colchão', detalha Marcelo. 'Vandré sofre de esquizofrenia. Alterna momentos de lucidez com devaneios. Acredito que está em tratamento na Aeronáutica', diz
O Quinteto Violado teve a honra de gravar República Brasileira, única inédita registrada desde o exílio, lançada no álbum Quinteto Canta Vandré, de 97. Vandré acompanhou ensaios no Rio, e Duda Alves, tecladista do Quinteto, recorda de um jantar com o ídolo, em 94. 'Soubemos da morte de Ayrton Senna juntos. E Vandré soltou; 'O homem precisa ir para Imola para ser imolado', recorda Dudu.
Quando o Quinteto entregou a Vandré o tributo pronto, o compositor o classificou como uma droga. 'Mas depois ligou para perguntar se poderia ficar com o arranjo de República. Para ter falado isso, deve ter adorado', ri Marcelo. Geraldo Azevedo conseguiu permissão para regravar canções de Vandré apenas uma vez. 'Para minha antologia, ele negou. Então respeitei a decisão dele', diz Geraldo.
Dos velhos tempos em Paris, quando lançaram Das Terras do Benvirá, em 73 - último disco de Vandré - Marcelo elege o momento inesquecível. 'No caminho de um show na Bélgica, fomos presos. Vandré deixou haxixe no porta-luvas', lembra.
Com saudades do parceiro de palco, Geraldo Azevedo reencontrou Vandré só cinco vezes depois do exílio. Nenhuma nos anos 90. Uma delas foi num show, em São Paulo, de surpresa. 'No camarim, me elogiou, mas pediu para não dizer que ele compôs Canção da Despedida, conta Geraldo. 'Nunca mais voltei a ver aquele Vandré feliz, mas hoje ele é referência', diz Geraldo.
Da história de Vandré, o pesquisador Jairo Severiano destaca o festival de 1968, quando Pra Não Dizer que Não Falei das Flores ficou em segundo lugar, atrás de Sabiá, de Tom Jobim e Chico Buarque. 'Vandré incentivou a maior vaia já vista nos festivais', recorda ele, já preparando-se para pesquisas no Arquivo Nacional. A instituição abre, até o fim do ano, acervo com 70 mil letras censuradas durante a ditadura, entre elas canções de Vandré. 'Hoje, você tem uma época de crônicas sociais', diz Marcelo Yuka, ex-Rappa. "O que mais me comove é que a dor social é mais sutil, mas não menos violenta do que a daquela época', continua Yuka. "

domingo, 10 de janeiro de 2016

Jeff Beck - A Genialidade Presente no Rock - International Magazine (1991)

O nº 5 do jornal musical International Magazine trazia uma matéria sobre um dos maiores guitarristas da  história do rock - Jeff Beck. A matéria é assinada por Geraldo Muanis, e dá uma geral na carreira do genial guitarrista:
"A capa do LP 'Jeff Beck's Guitar Shop', lançadop em 89 no Brasil, expressa de forma concisa a obsessão de um mito. Jeff Beck, um dos mais legítimos representantes da legião de 'guitar heroes' ajusta os controles de seu instrumento de guerra em uma oficina. Como um artesão, prepara e molda a velha companheira para seguir a longa jornada dentro do rock. Não poderia haver maior sutileza.
Jeff Beck já proporcionou à riquíssima história do rock momentos inesquecíveis, brilhando intensamente, com a pureza de um diamante. Deixou um rastro de genialidade em bandas como Yardbirds, Jeff Beck Group e Beck, Bogert & Appice. E discos importantes, obrigatórios na coleção de qualquer iniciante.
Temperamental e muitas vezes injustiçado, Beck sempre soube, entretanto, de seu valor, principalmente quando deixou de lado o rock and roll branco para trilhar os caminhos do jazz. Aos 46 anos, conserva a mesma energia herdada das guitarras de Muddy Waters, Bo Diddley e B.B. King. Na fúria selvagem ou na suavidade de um blues, o mestre acaricia e ela se entrega, rendendo-se mais uma vez à sua genialidade.
Mesmo antes de fazer seu nome, já carregava os pesados rótulos de antipático e egoísta. Tocou em vários grupos, quase sempre com vida muito curta. Passou a chamar a atenção quando, por recomendação de outro heroi da guitarra, Jimmy Page, assumiu a responsabilidade de substituir o 'Deus' Clapton no Yardbirds. A partir daí a banda passou a viver sua melhor e mais produtiva fase.
Quem diria! O autodidata, que começou a tocar guitarra com uma corda e, assim que se julgava capaz, pulava para outra, até obter o domínio completo do instrumento, transformou-se em estrela do rock londrino, revolucionando todas as formas de utilizar o potencial de seu instrumento de trabalho. Por falar em autodidata, a capa de 'Guitar Shop' é bem sugestiva.
O cineasta Michelangelo Antonioni teve a felicidade de eternizar uma apresentação ao vivo dos Yardbirds no filme 'Blow Up'. Uma imagem grandiosa e que virou saudade. No final de 66 Beck deu adeus para os coleguinhas e partiu para um novo projeto: o Jeff Beck Group, com Rod Stewart nos vocais, Ron Wood no baixo e Mick Waller na bateria.
Foram apenas dois discos, mas que porrada! 'Truth' e 'Beck Ola' são simplesmente antológicos. Principalmente o primeiro, que traz músicas como 'Let Me Love You', 'Rock My Plimpsoul', 'Blues De Luxe', 'Shape of Things', 'You Shock Me', 'I Ain't Supertitious' e a instrumental 'Beck's Bolero', de Page. John Paul Jones e Nick Hopkins têm participações especialíssimas. O brilho de Stewart não ofusca Beck, mas incomoda sua estrela. O fim está próximo.
Stewart e Wood formaram o Faces. Beck sofre um desastre a volta à estrada somente em 71, com uma versão mais negra de Jeff Beck Group. A união dura apenas dois discos: 'Rough and Ready' e 'Jeff Beck Group'. Embora a banda apresenta-se impecável, principalmente no segundo trabalho, Bob Tench (vocal), Clive Chaman (baixo), Max Moddleton (teclados) e Cozzy Powell (bateria) foram buscar outros caminhos sob a alegação de que as vendas estavam aquém do esperado.
No final de 72 uniu-se ao baixista Tim Bogert e ao baterista Carmine Appice, ex-Vanilla Fudge e Cactus. 'B. B. & A.' vendeu bem, mas não obteve o mesmo respaldo da crítica. Um segundo disco, que Beck terminou clandestinamente no interior da Inglaterra - havia racionamento de energia -, jamais foi lançado. Sem motivação, simplesmente abandonaram o barco sem dar maiores explicações.
Cotado para substituir Mick Taylor quando este deixou os Rolling Stones, Jeff Beck recusou-se ironizando que necessitava de mais energia, 'pois seria apenas um empregado para que eles continuassem mais um ano'. Beck disse que o chamaram até Rotterdam, onde durante três horas tocou somente três acordes. 'Acho os Stones uma boa banda, mas seu estilo de música é muito banal, se comparado com o que estou desejando realizar', disparou.
O lançamento de 'Blow By Blow', na primavera de 75, assinala a entrega total de Jeff Beck ao jazz contemporâneo, demonstrando claramente que sua disposição era fazer uma música aberta a todas as experiências. Sua carreira solo prosseguiu com os seguintes elepês: 'Wired' - 76, 'Jeff Beck with Jan Hammer Group Live - 77, 'There an Back' - 80, 'Flash' - 85 e 'Jeff Beck Guitar Shop' - 89."

sábado, 9 de janeiro de 2016

Rogério Duprat: "Gil Sabe Tudo Antes" - Revista do CD (1992)

A Revista do CD nº 10 (janeiro de 1992) trazia uma matéria com Gilberto Gil, que estava lançando o disco Parabolicamará. A matéria, logicamente, fala do disco, das músicas, da concepção do trabalho, etc, e também traz um depoimento do maestro e arranjador Rogério Duprat, que trabalhou com Gil e demais tropicalistas. A matéria diz "O maestro Rogério Duprat tornou-se cúmplice das 'loucuras' de Gil desde o início do Tropicalismo". Segue abaixo a transcrição do box que traz o depoimento do maestro e arranjador, e que é assinado por João Carlos Baldan:
"Ao arquitetar o estonteante e premiado arranjo da música Domingo no Parque, de Gilberto Gil - cuja apresentação feita pelo próprio Gil no Festival da TV Record de 1967 praticamente inaugurou o Tropicalismo no país - o maestro Rogério Duprat, 60 anos, tornou-se uma espécie de regente do movimento. É que, indisfarçavelmente, sua participação foi sobretudo um ato de cumplicidade que perdurou até o ano seguinte, quando o peso da repressão exilou Caetano e Gil em Londres. Atualmente Duprat, aposentado, passa a maior parte do tempo no seu sítio em Itapecerica da Serra (Grande São Paulo), dedicado à literatura, a estudos de ciências exatas e à marcenaria. Aqui, ele fala de Gil e do célebre arranjo de Domingo no Parque: 'O convite para fazer  o arranjo partiu do maestro Júlio Medaglia, que fazia parte do júri dos festivais da Record, que havia imaginado uma feição cinematográfica para a música. Mas ocorre que Gil é uma arte-final, compõe sempre muito bem-acabado, de modo que o arranjo era só para enfeitar, como, aliás, deve ser. O arranjador é um ornamentador, que deve trabalhar com arte. Pensei, em princípio, em trabalhar com o conceito de simplicidade e inovação; com a originalidade dentro da redundância. Nessa linha tinha que seguir um pouco o caminho de Radamés Gnatalli, como aquele seu jeito na introdução de Aquarela do Brasil. Em todo caso, acrescentei e desvirtuei. Na verdade, foi uma junção de três experiências:  e de Gil, músico e bem informado com tempero baiano; os Mutantes, primeiro grupo de rock importante do país; e eu, que posso me autodefinir como um guerrilheiro cultural também. Juntei características da música eletrônica e atonal - estudei com Stockhausen na Alemanha nos anos 60 - com  a música  popular de Gil; resolvemos enfrentar preconceitos inesperados de colegas ao introduzir instrumentos eletrônicos; as guitarras estavam chegando à MPB. Nomes consagrados como Chico Buarque e Geraldo Vandré contestavam, achavam que se tratava de colonialismo cultural. Como já tinha mais de 30 anos, entrado no PC (Partido Comunista) aos 18, brigado com muito stalinista na vida, não tinha mais saco para discussões; partia para o trabalho.
Rogério Duprat
'Mas o fato é que o trabalho estava batizado pelo Tropicalismo como um todo, disparado pela invasão baiana a São Paulo em 1967. Dela  Gilberto Passos Gil Moreira era o melhor músico; na trupe do desbunde, o mais versátil. Cantava bem, tocava bem, pensava bem. E também era inovador. Sempre foi e é ligado a tudo. Fala com você e filosofa; percebe a a mosca e quer ver o sentido do voo - tudo ao mesmo compasso. A permanente mudança é seu mérito, até porque nunca sabemos o que ele vai fazer amanhã. Ele passou por mil ondas: do Fino da Bossa (quando Elis Regina gravou músicas tradicionais da MPB) até a vivência tropicalista. Teve depois o exílio de dois anos na Inglaterra; teve sua volta, a readaptação, a redescoberta, a refazenda. Depois Gil fez reggae como Bob Marley, fez rap, fez tudo... Hoje nem dá para imaginar. Mas sair em 68 com bata, cabelão, barba, ele e Caetano - era preciso coragem e a certeza do que se queria fazer. Era iminente a mudança, seja nos costumes, nas roupas, no modo de viver, na música. era preciso saber o que fazer. E Gil sabia, adiantado'. "

sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

Jethro Tull - o Som Mágico que Ilumina os Pirados (Revista Pop 1975)

Em sua edição nº 36 (outubro de 1975) a revista Pop trazia uma matéria com a banda Jethro Tull. Na chamada da matéria, a revista trazia o seguinte texto:
"Da flauta mágica de Ian Anderson sai um som que lembra contos de fada, florestas encantadas e outras transas que levam a moçada para um mundo onde a realidade e fantasia são uma coisa só. Ele é a alma do Jethro Tull, grupo de cinco ingleses que estava em recesso por causa da crítica. Mas que voltou com muito mais magia, iluminando os pirados do mundo."
Na época, a banda realmente entrou em recesso, e estava voltando à ativa, mas não creio muito que o período de recesso tenha sido motivado pela crítica musical. Talvez tenha sido uma necessidade de reformular o som, pensar em novas sonoridades, já que o líder da banda, Ian Anderson sempre foi um artista inquieto. Mas é verdade que o disco A Passion Play, de 1973, foi muito mal recebido pela crítica da época. Abaixo a matéria:
"Os caras que curtem a música pop a sério costumam dizer que 'se você quer ouvir alguma coisa no estilo do Jethro Tull, não há outro jeito: tem que ouvir o próprio Tull'. Isso tem uma explicação: desde que apareceu na Inglaterra, em 1968 (com o LP This Was), até agora - quando voltou a se apresentar ao vivo depois de mais de um ano de recesso - o grupo dedicou-se a um estilo de música original e único, que nenhum outro grupo pop se aventurou a imitar ou desenvolver. E superficialmente, a fórmula do Tull parece não ter segredos: baseia-se em rock, sons eruditos, canções medievais e jazz.
Ian Anderson
Mas o segredo é Ian Anderson, o líder do grupo, e sua flauta mágica. Ele é um dos caras mais inquietos, inteligentes, pirados, criativos e brilhantes de toda a história da  música pop. Em cena, parece um duende tocando uma flauta encantada. Dança como um louco, voa entre os outros caras do conjunto, cria um clima que conduz os ouvintes ao universo dos contos de fadas, florestas encantadas, sapos que se transformam em príncipes e por aí a fora. Dizem até que sua flauta é encantada e tem vida própria.
Ao redor dele, quatro músicos de grande sensibilidade e poder de improvisação seguram o conjunto: John Evan (teclados), Jeffrey Hammond-Hammond (baixo), Martin Barre (guitarras) e Barriemore Barlow (bateria e percussão). O resultado do envolvimento desses caras com a lúcida piração de Anderson, que usa desde a flauta, até violão e acordeão, é realmente inimitável: como bruxos ou mágicos, eles conseguem levar as cabeças do público aos limites mais remotos da consciência, onde a realidade e a fantasia transformam-se numa coisa só.
E o sucesso parece não ter muita importância para eles: acima dele, está a preocupação com  a música e  o prestígio.
Barriemore Barlow e John Evan
Quando o Jethro Tull surgiu, em 1968, ao mesmo tempo que seu primeiro LP subia nas paradas, a crítica inglesa saudava o grupo como inovador e surpreendente. Uma série de shows irrepreensíveis e dois novos discos (Stand Up, em 69, e Benefit, em 70), com um repertório baseado em baladas acústicas, serviram para confirmar o sucesso. Mas Ian Anderson não estava satisfeito. E em 1971 ousou lançar Aqualung, um álbum conceitual questionando valores religiosos e sociais. No ano seguinte, novo trabalho conceitual, Thick as a Brick, enfatizando a preocupação humana e social com minorias rejeitadas pela sociedade. As músicas do disco, apresentadas de forma teatral pelo grupo, foram saudadas como 'a coisa mais inteligente apresentada pelo rock até então'. O segundo disco do ano (Living in the Past) também bateu recordes de vendagem.
E em 73, o Jethro Tull apresentou A Passion Play, outro trabalho ousado que rendeu muito dinheiro mas sofreu críticas violentas da imprensa. Por isso, em agosto desse ano, justo quando o LP chegava ao primeiro lugar das paradas inglesas, Ian Anderson anunciou que o Jethro Tull entraria em recesso, por tempo indefinido. Ficou um buraco na música pop.
Mas, no ano passado, o mago Anderson entrou novamente em transe e reuniu outra vez os músicos, escreveu novo álbum (War Child), falando das trágicas consequências da guerra atômica, e o Jethro Tull voltou para a estrada. E foi muito bem recebido por todo mundo."

quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

Cassiano - Jornal do Disco (1979)

Cassiano é um dos mestres do soul brasileiro. Nos anos 70 se destacou no cenário musical brasileiro com sucessos como A Lua e Eu e Coleção. Mas na época já não era um músico e compositor iniciante, já tinha uma carreira e dois discos gravados. Em 1979, o Jornal do Disco, que vinha encartado na revista Som Três trazia uma matéria com ele, assinada por Júlio Barroso, que anos depois se destacaria como membro da banda Gang 90. A matéria tem por título "O som da marginália do Rio", e faz um protesto contra o preconceito que a música dos subúrbios do Rio, que traziam uma batida black e soul, sofria por parte da crítica e da própria indústria fonográfica. Eis a matéria:
" 'Primavera, 'Murmúrios', 'Coleção', 'Ana, 'A Lua e Eu' - sucessos que foram cantados pelo povão, frequentaram com ótima presença as trilhas de novelas da Globo, e renderam bons royalties para a indústria fonográfica. Seu criador?
Pouca gente conhece Genival Cassiano, iniciador de uma escola musical consagrada pelo público, amaldiçoada ou simplesmente ignorada pela crítica, e sem dúvida com reflexos no comportamento das massas negras jovens, generalizadas pela sigla Black Rio, Sampa, Belô.
Cassiano, que iniciou sua carreira na época da Bossa-Nova, atravessou o período áureo da Jovem Guarda com o trio Os Diagonais, e gerou as bases musicais do suíngue negro brasileiro ao lado de Tim Maia e seus discípulos, é um paraibano que se pode dizer um homem com histórias a contar, muita coisa a cantar. Desprezado pela indústria, que o considera um perfeccionista extremado, mesmo desastroso, um verdadeiro Von Strohein do balanço nativo, é ignorado pela Kriptica musical brasileira que burramente o considera um arremedo da música negra americana. Eles não veem o gênio de Cassiano, elogiado por Caetano Veloso e Gal Costa, que o consideram um dos grandes cantores brasileiros. Compositor de melodias populares, cultor de harmonias refinadas, imagens românticas simples, vivências de um nordestino no perímetro Copacabana/Central do Brasil. A música de Cassiano é um mistério que o mundo não entendeu, e que a massa elegeu com sua sabedoria vinda do coração.
Chamar a música de Cassiano de influenciada, de xerox soul, é, primeiramente, má fé, além de muita burrice. Afinal, as duas andam de mãos dadas. No Brasil oitenta, pós-tropicalista (blá-blá-blá), tudo é permitido, aliás, nada mais cansativo do que repetir as palavras do mestre baiano: É proibido proibir... Temos hoje cearenses que que fazem country rock, pernambucanos que iniciaram seu rock xaxado, bem próximo ao locomotive breath do Jethro Tull: velhos e novos baianos fazem reggae, e até Chico Buarque fez versão de música italiana. E daí? Melhor pra todo mundo!
Mas mesmo assim, é engraçado notar que os puristas têm uma implicância toda especial pela escola carioca do suíngue black. Luiz Melodia, do Morro do Estácio, apesar de figura de culto, ainda não foi dimensionado a altura. Tim Maia recebe sempre um porém das pessoas ditas Kultas. Novos compositores como Tureko, Célio José, Paulo Roquete são simplesmente ignorados. E muita gente que aplaude a gravação de Melodia, 'Falando de Pobreza' nem sequer imagina que é uma autoria de um crioulo de Acari, o tal de Tureko.
Cassiano da Paraíba não grava há anos, seu último LP na CBS foi suspenso após um regime de verbas de produção altamente ridículo. Doura-se a pílula dos que cantam o Nordeste, o Norte e o Centro-Oeste, gente geralmente de formação universitária, que canta as secas e a vida de gado. Tudo bem. Não é modelito reação, não. É só um toque, um lembrete.
A música dos guetos urbanos cariocas está no mesmo estágio focalizado por Nelson Pereira dos Santos em Rio 40 Graus. O compositor popular carioca recebe sua glorificação num esquema PIS-PASEP. Se nós fizermos a conta, levando em consideração o fato de Cartola, Zé Keti e outros terem recebido o seu PIS com décadas de atraso... Quando vai pintar uma brecha para os novos valores da margem do Rio? Mas vamos berrar pela cultura carioca efervescente dos morros, do subúrbio, do Centro. Para Cassiano cantar o ritmo da Central. E tirar o Rio dessa margem, traçar roteiros turísticos pela cidade. Pra balançar o povão com seu Funk Favela."

terça-feira, 5 de janeiro de 2016

Hermeto Pascoal - O Bruxo e o Estúdio (Revista Bizz 1986)

A revista Bizz nº 7 (fevereiro de 1986) trazia uma matéria com Hermeto Pascoal, falando da gravação de mais um disco, de como é sua  relação com o estúdio de gravação e demais depoimentos do grande músico, numa matéria assinada por José Augusto Lemos. Um trecho de apresentação diz:
"No palco, Hermeto transforma-se na música em pessoa e a celebração vara a madrugada. Mas como será que esse bruxo da improvisação sem limites se comporta dentro dos rigorosos esquemas do trabalho em estúdio? A curiosidade matou o gato, mas José Augusto Lemos quis ver para crer."
"O estúdio da gravadora Som da Gente fica numa viela de Perdizes, um simpático bairro paulistano. Um belo estúdio, com seus 24 canais sob exímia pilotagem de Marcus Vinícius, um dos raros peritos em engenharia de som deste país.
Por trás do vidro que separa sua cabine do estúdio propriamente dito, Marcus vê o seguinte espetáculo: o Campeão - como Hermeto é chamado por sua troupe de músicos - mais três membros da troupe estão tecendo uma intrincada e hipnótica teia melódica, munidos apenas de quatro garrafas. O take é interrompido para acertar a afinação de uma delas. Uma gotinha, depois outra gotinha de água vão sendo acrescentadas até a nota atingir a altura desejada. Se no palco ele é um demiurgo possuído pelo espírito da música, no estúdio Hermeto revela-se um meticuloso artesão, ourives experimentalista.
'Nesta música eu jamais poderia fazer isso, cada um teria de tocar com doze garrafas... no estúdio eu posso pegar essas doze, jogar cada uma num canal separado, fazer acordes completos.'
Aproveito para fazer a pergunta que roía minha cabeça enquanto assistia à gravação. Não seria muito mais rápido e fácil gravar uma única vez o som  da garrafa, jogar a amostra num sampler como o Emulator e ter, instantaneamente esses timbres em todas as notas do teclado?
Hermeto esboça um sorriso budista, aquele que pretende esconder a sabedoria: 'Ah, é muito mais gostoso a gente bater, soprar, sentir, esse prazer ninguém me tira.'
Como produtor, Hermeto deu também um belo trato em discos de Fagner (Orós) e Robertinho do Recife (Robertinho no Passo). Na primeira pausa na gravação da 'música das garrafas', Hermeto recebe Tetê Espíndola, que quer um arranjo dele para uma das faixas de seu novo disco. Logo depois, ele conta o encontro: 'Ela trouxe a música pra me mostrar com a craviola, mas eu disse que não precisava escutar. Pedi a ela que gravasse só a voz, e ela: 'Mas como? Cantar a música sozinha, sem harmonia nem nada? Eu respondi: 'Exatamente, eu sei que tem uma história sua nessa música, que você me contou, e a história é sua e você deve cantar sozinha. Depois eu junto a minha história... vai sair com muito mais força'. Alô, produtores, eis aqui um genuíno produtor.
Mais tarde, outra visita. É o saxofonista Carlos Alberto Sion, que veio conhecer a música que Hermeto compôs especialmente para ele gravar com seu grupo, o Pau Brasil. Enquanto isso, Carla - a divulgadora do Som da Gente - conta que já é de praxe Hermeto entrar no estúdio com várias músicas prontas e, depois, improvisar tanto nas horas de folga (com a fita sempre rodando, claro) que essas músicas iniciais acabam tendo de ceder seu espaço às novas, compostas ali no ato.
Quando estou saindo, a troupe volta para mais uma camada de garrafadas melódicas. Demorou uns três dias para a música descolar da minha cabeça."

segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

Walter Franco Gritando com Afinação - Revista Música (1980) - 2ª Parte

" 'Levei o disco branco às últimas consequências, em termo de hiper-sensibilidade. O espanto permanece até hoje imune ao tempo, face ao pique da proposta bio-elétrica que exercitei na época. E, se a veiculação comercial foi prejudicada pelo radicalismo dessa proposta em relação ao grande público, pode-se dizer que o LP se colocou no centro de uma corrente da MPB, dos que viveram as mesmas experiências e detinham a mesma informação.'
E - pasmem! - sequer nesse trabalho francamente experimental Walter igualou a contundência de suas apresentações ao vivo, que se constituíram em verdadeiros rituais de de liberdade. 'Alguma concessão a gente é obrigado a fazer, para sobreviver como criador dentro de um espaço comercial; eu tenho procurado conceder sem me violentar. Agora, quem me acompanhou ao vivo, possui de mim uma imagem muito mais completa. Em 1973, por exemplo, eu desenvolvia a temática das possibilidades, ia desde a respiração e silêncio (como diz o poeta) até levar às últimas consequências a possibilidade de inflexão'.
Seu segundo LP, 'Revolver', sairia em 1975 e se constituiria, segundo ele próprio, numa síntese entre rock progressivo e MPB. Marca, além disso, uma guinada em seu trabalho, que abandona a aspereza e virulência responsáveis pela imagem de maldito. Que houve, você cansou de carregar esse fardo? 'Olha, minha obra foi sempre voltada para o exercício do auto-conhecimento, em termos existenciais. Mesmo quando tive uma participação social, ela se deu a partir da minha busca individual de harmonia e equilíbrio. Às vezes, inconscientemente, eu refleti anseios gerais. Então, a transição entre o primeiro e o segundo LP deve ser entendida como resultado das vivências e experiências acumuladas nesses dois anos de intervalo. A partir de uma descoberta, temos sempre que ir para outra, e outra, e outra. Não faz sentido permanecer estático, explorando determinado filão. Recuso-me a isso. Para mim, cada trabalho possui existência única'.
Segundo Walter, a fase ultimamente atravessada pela MPB é a da reconciliação, com um espaço 'que sempre existiu' sendo ocupado com maior intensidade pelos artistas de sua geração. E ele acha que isso se explica, em última análise, por uma aproximação do nível consciente e inconsciente de participação, pois em todas as estruturas sociais os artistas sempre funcionaram como 'instrumentos de afinação' dos anseios da coletividade.
Então, nada mais natural que o relativo sucesso de 'Respire Fundo' (1978), um impulso à carreira de Walter 'em termos de números, bem como de execução nas rádios AM e FM'. Isso também é visto sob  o prisma da reconciliação dessas necessidades todas, do meu lado criativo com os imperativos comerciais dessa estrutura a que conscientemente pertenço. E é fantástico para um artista como eu, até há pouco tido como maldito, ligar o rádio e ouvir minhas músicas em várias estações. Nos shows, então, tudo tem virado festa, com  as pessoas participando do canto, da dança, de corpo inteiro'.
O lado 'insubmisso' da personalidade de Walter continua se manifestando nos festivais, como no Abertura, quando respondeu às vaias com que a plateia 'brindava' Muito Tudo jogando uma hipotética partida de dados com (se bem nos recordamos) Júlio Medaglia e Rogério Duprat (*). E mais recentemente, através da visceral Canalha, verdadeiro hino do último certame da Tupi.
'Canalha é a soma de todas as experiências, reciclada. É meu momento de maior prazer na liberação das energias primais, um exercício da liberdade, do grito com afinação. Se todos nós gritássemos com afinação haveria muito mais harmonia no universo. A desarmonia consiste na desafinação.'
Mas Walter se vê imbuído atualmente de 'uma necessidade de harmonia cada vez maior' e sente-se na obrigação de passar esse estado de consciência para as pessoas. Assim, 'Vela Aberta', recentemente lançado, é por ele definido como 'um esforço de conciliação de dimensões, das relações exterior-interior, causa-efeito, yin-yang, masculino e feminino, tudo isso colocado numa linguagem mais simples, mais ao dia a dia.'
A regravação de composições antigas, como Tire os Pés do Chão, Feito Gente e Me Deixe Mudo, não é, ele faz questão de frisar, uma reafirmaçao de seu ego, mas sim 'uma reciclagem: com isso, as novas gerações poderão saber como andava minha cabeça há dez anos'. E ele fala com entusiasmo da 'importância do mergulho que devemos dar em todas as possibilidades do universo musical, fazendo desde uma cantiga de ninar até um grito primal'.
A existência da faixas como O Dia do Criador e Divindade seria indício que sua obra passaria a ser predominantemente mística? 'Olha, este LP tem igualmente Canalha, de outras intenções, embora a veja também como manifestação da divindade que há em todos nós. Deus entra no meu pensamento e em minha obra como personificação dos anseios e ideais de perfeição, de busca de equilíbrio, de harmonia, de simplicidade. E nesse sentido me refiro desde ao Deus cristão até, por exemplo, a Govinda, entidade indiana que me inspirou uma das músicas do LP passado. Mas isso sem nunca me afastar do cotidiano, das coisas divinas, que também se manifestam no dia a dia'.
Perguntamos a Walter se há algo ainda a acrescentar. E ele nos oferece esses versos, de uma música que está compondo e resume suas preocupações atuais:
'Viver é afinar o instrumento
de dentro pra fora
de fora pra dentro
a qualquer hora a qualquer momento.' "
Obs: Trata-se da música Serra do Luar, que Walter lançaria no ano seguinte, no festival MPB Shell 81, da Globo. Esse trecho da letra sofreria uma mudança: em vez de 'a qualquer hora, a qualquer momento' ficou 'a toda hora, a todo momento'

(*) Na verdade foi com Júlio Medaglia (maestro e arranjador de sua música) e o flautista Toni Osanah, que o acompanhou

domingo, 3 de janeiro de 2016

Walter Franco Gritando com Afinação - Revista Música (1980) - 1ª Parte

A revista Música nº 41 - 1980, trazia uma matéria com Walter Franco, compositor que desde a década anterior ficaria marcado pela fama de "maldito", por causa de seu trabalho experimental. A matéria é assinada pelo jornalista André Mauro:
"Em quinze anos de estrada, Walter Franco foi apresentador tranquilo de um programa radiofônico de MPB, o compositor estreante que reverenciava 'Che' Guevara, o profeta maldito e marginal de uma geração explosiva e, afinal, o cativante propagador de uma mística da natureza, da simplicidade e da harmonia. Agora tenta conciliar todas essas facetas num trabalho 'Vela Aberta' que verte a complexidade das relações exterior-interior, causa-efeito, yin-yang, masculino-feminino, numa linguagem simples e próxima ao cotidiano.
Walter Franco já nem se lembra das datas de início e encerramento de seu programa Marcando Bossa, na Rádio Marconi. 'Só sei que foram uns dois ou três anos seguidos, na segunda metade da década de 60'. Diariamente, com voz pausada, ele ia introduzindo as canções de Geraldo Vandré, Edu Lobo, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Sidney Miller, Sérgio Ricardo e tantos outros valores que ainda não entravam com assiduidade na programação da maioria das emissoras. E, se o repertório ajudava, o próprio estilo de Walter contribuiu para a surpreendente audiência conquistada pelo Marcando Bossa (chegou a ser o terceiro no horário!). Era, segundo suas palavras, 'uma conversa em frequência mais íntima', com recursos inovadores para a época, como a utilização de colagens de trechos de músicas e versos por ele destacados, para se chegar ao título da faixa a ser apresentada. Tudo isso sob uma orientação básica, 'pouca fala e muita música nossa'.
'Eu era um adolescente, com todos aqueles anseios de busca. Os canais de informação que utilizava para extrapolar tais anseios eram as coisas que aconteciam no mundo todo. Além disso, a especialização da MPB tinha então muito a ver com a poesia, a língua portuguesa, que sempre considerei muito rica e passível de aperfeiçoamento.'
Walter mostra-se reticente quando aludimos ao passado político de seu pai, Cid Franco, que certa vez se candidatou a governador pelo Partido Comunista Brasileiro. Prefere destacar a última etapa de sua evolução política, 'quando atravessou uma transformação cíclica, da juventude para a maturidade. Então trocou o materialismo pelo espiritualismo, modificando sua postura político-ideológica. Foi o primeiro vereador socialista-democrático em nosso país, acumulou sucessivos mandatos de vereador e deputado estadual pelo Partido Socialista Brasileiro, durante treze anos.
O velho Cid é até hoje homenageado pelo filho, que tem musicado várias de suas poesias. E Walter explica que a relação entre ambos sempre foi 'fraternal e harmônica, sem nenhum choque de gerações'. Fala com muito carinho da educação familiar, que lhe possibilitou 'essa ligação com a música, literatura, coisas das tintas, das cores'. E conclui: 'Guardo do meu pai a imagem de um apóstolo da não-violência, estudioso de Ghandi, que não colocava quaisquer restrições de cunho ideológico às relações entre as pessoas. Talvez seja este o maior legado que deixou, meu principal aprendizado'.
Da mesma forma que seu pai, Walter viveu uma fase próxima à esquerda ortodoxa, inclusive estreando como compositor com um necrológio grandiloquente a 'Che' Guevara, Não Se Queima um Sonho. Defendida por Geraldo Vandré num festival universitário pela TV Tupi, tratava-se de uma canção bem ao feitio da época ('Vem, meu companheiro 'Che', começava ela, e os aplausos e algazarra imediatamente eclodiam, encobrindo o resto). Hoje Walter dificilmente endossaria ideias e versos tão óbvios e talvez daí advenha um certo constrangimento ao tocar no assunto. Mas, em pleno 1968, que mais se poderia esperar de quem sente pulsar sob sua arte 'um ideal exacerbado de justiça'?
'Paralelamente ao Marcando Bossa eu me exercitava na coisa da música, estudava bastante. E também me senti atraído pelo teatro, seguia o curso da EAD (Escola de Arte Dramática), tive até oportunidade de musicar algumas algumas peças. Minhas composições obtinham boa repercussão nos festivais universitários da Tupi, quer dizer, dividiam as opiniões, era sempre gostar ou não gostar, sem meio termo. E, em 1972, eu estava pronto para apresentar uma linguagem individual, própria, no meu trabalho.'
E veio o Festival Internacional da Canção, a ousadia de mostrar uma proposta da vanguarda a um público que desde o fim do tropicalismo consumia apenas o dé ja vu. 'Pertenço àquela geração que de repente, descobriu uma informação imensa explodindo lá fora: Beatles, a eletrônica, a possibilidade completa de uma linguagem nova. Então, com 'Cabeça' aceitei o desafio de tocar a coisa adiante, ao invés de guardar só para mim e  os amigos aquelas descobertas'.
Walter em silêncio no palco, o gravador levando ao ar uma parafernália de palavras e frases, o público vaiando. O que significa tudo isso? 'Olha, em primeiro lugar, 'Cabeça' era um exercício de vários personagens, em diferentes canais, uma transa de mixagem, tudo isso. Mas era também uma tomada de atitude, refletia uma postura de insatisfação, minha e de minha geração, em relação a toda aquela realidade. Então resolvi levar o despojamento até o meu instrumento, a voz.'
'Cabeça praticamente revitalizou a MPB, foi como que uma pedra de toque em relação aos criadores da época, aos que lidavam com a comunicação de massa. O próprio Caetano Veloso tentou produzir algo semelhante em 'Araçá Azul', mas o manifesto da nova corrente seria mesmo o LP de estreia de Walter Franco, com a mosca no centro de uma capa toda branca (1973). Gritos primais à John Lennon - quem, então, não tinha dor e sufocamento para extravasar? - o clima lisérgico apropriado para quantos começavam a explorar a mente, a linguagem poética do concretismo, as metáforas poderosas que encucavam os censores (em Mixturação, o 'feto' de 'eu quero que esse feto saia' só passou transformado em 'afeto').

(Continua)