Palavras Domesticadas

Palavras Domesticadas

domingo, 18 de fevereiro de 2018

Peter Gabriel no Brasil - 1993


Peter Gabriel, quando deixou o Genesis, resolveu seguir uma bela carreira-solo, lançando grandes discos. Gabriel era o front-man do Genesis, e mesmo com o grande sucesso que a banda fazia na época, decidiu seguir carreira-solo, arriscando trocar um sucesso garantido por uma sempre arriscada empreitada individual. Em seu trabalho solo Peter Gabriel não se prendeu ao progressivo, gênero que o consagrou como vocalista de uma das  bandas mais representativas do estilo. Resolveu arriscar, e abrir o leque de estilos, sendo inclusive identificado por parte da crítica musical como um artista de world music, um rótulo criado para identificar músicas normalmente criadas por artistas de países que tem uma sonoridade própria, e que não se encaixam em referências musicais mais conhecidas, como países africanos, latinos, e a música brasileira, entre outros. Em 1993 Gabriel tocou Brasil, numa turnê intitulada Secret World Tour. O show que ele fez na casa de shows Imperator no dia 7 de outubro daquele ano, foi comentado no jornal A Clava do Som, em matéria assinada por Mario Marques Neto:
" 'Finalmente vim tocar no Brasil'. Mais apoteótica que as primeiras palavras dirigidas ao público por Peter Gabriel só mesmo sua entrada no palco. Singelo, misterioso e fascinante, o vocalista lança seus olhos azuis na plateia que retribui com os olhos fixos em todos os seus movimentos. O que parecia ser uma loteria - já que a poucas horas do show houve modificações no repertório - se transformou no melhor espetáculo do ano.
Com o Imperator lotado, Gabriel despreza o infeliz, fabricado 'world music' e mistura Música Progressiva, ritmos africanos e pop refinado, aliados à tecnologia de ponta. Não aquela coisa de 'chaka chaka' e derivados. Música trabalhada, característica rara num mercado onde a música fácil vende mais. E não poderia ser diferente. A banda infernal que o acompanha não desmente isso: Davis Rhodes (guitarra), Tony Levin (baixo), Manu Katché (bateria), Jean Claude Naimro (teclados) e L. Shankar (violino).
A Secret World Tour, que percorre a América Latina divulga seu mais recente trabalho, 'Us' (aliás, segundo disco com  título resumido em apenas duas letras. Superstição?), que contaria com a participação da polêmica Sinéad O'Connor. O desespero tomou contas dos fãs quando foi anunciado o possível 'backing' de Gal Costa em pelo menos três músicas, substituindo Sinéad já que a irlandesa teve que voltar mais cedo por motivos não divulgados. Graças a Deus não aconteceu.
Ao contrário do que a maioria esperava, o show de Gabriel foi mais progressivo que pop. Utilizando elementos básicos nas mudanças de clima outorgados pelo eficiente Naimro e sustentados por heroicas viradas de batera do africano Katché, Gabriel surpreendeu quando colocou à prova seus dotes vocais, íntegros e sem ruídos cômicos. 'Solsbury Hill', uma de suas composições mais inspiradas, foi distinta da apresentação em 'Plays Live', que foi amparada por Mr. Synergy, Larry Fast. 'Red Rain' também foi fundo na galáxia progressiva, esticando os módulos até o ritmo concreto. 'In Your Eyes', algo meio 'brasileiro', tipo 'forró-melodia', saltou do disco com mais alguns pontos, devido à presença do mestre Milton Nascimento, que deu uma 'palhinha' entremeando a canção com um refrão da clássica 'Carpet Crawl' (Genesis), e pelo jeito era uma das poucas coisas que ele conhecia do trabalho de Gabriel, face ao constrangimento a que foi submetido. Isso porque nas três músicas em que permaneceu no palco ficou mudo. Em 'Biko', balada progressiva com sangue africano, sua voz praticamente não apareceu. Ao final da  música, foi deixado de lado por Gabriel que abandonou o palco sem nem olhar para Milton. E ele foi atrás um tanto decepcionado. O grupo de meninos do Olodum foi um show à parte. Um pouco fora de compasso, valeu mais pela animação, o clímax.
Pra solidificar ainda mais essa praia progressiva, Gabriel teve o apoio do violino de Shankar como solo para sua voz e, hora ou outra, duelavam as vozes. Shankar fazia o agudo aportando o tom de Gabriel.
Peter Gabriel nos tempos do Genesis
Se o conceito de Peter Gabriel junto à crítica subiu nos últimos três anos, se deve à música 'Mercy Street', do disco 'So", que fez o nome do ex-Genesis frequentar as FMs brasileiras onde se encontra consignado. A projeção da música pop no Brasil é tão forte que entre a belíssima 'Come Talk To Me' e a fraquinha 'Sledgehammer' adivinha qual deu mais ibope? É. A segunda foi o pico de empolgação do show enquanto a primeira, que foi a abertura, ficou a ver navios.
As músicas de 'Us' ao vivo tiveram um tratamento instrumental que valorizou as performances dos músicos, explorando seu lado teatral. E nessa arte, Gabriel era melhor com o progressivo. É que o teor das novas músicas impõe ao cantor coreografias que nada tem a ver com sua personalidade. Pulinhos, rebolados, corridas ao redor do palco, caras e bocas, mão pro lado, braço pro outro. Estranho. Mas Gabriel se esforça para parecer natural. Quem já o prestigia há algum tempo, sabe que ele é sóbrio e às vezes, muito tímido. É o lado pop da coisa. "

sábado, 17 de fevereiro de 2018

Gal Costa - Jornal Hit-Pop (1977)

Em 1976 Gal Costa lançou o álbum Gal Canta Caymmi, que foi muito bem recebido por  público e crítica. Nesse disco Gal homenageava o grande mestre que influenciou tanta gente em nossa música, em especial os baianos. Após ouvir inúmeras composições de Caymmi e selecionar o repertório, o disco foi lançado tendo que se deixar muitas boas composições de fora. Em janeiro de 1977, o jornal Hit-Pop, suplemento da revista Pop, traz uma entrevista com Gal, que ensaiava o show que seria realizado com o repertório do disco. Na entrevista Gal fala de seu trabalho, do disco, do show, e de uma polêmica que acontecia na  época, entre os baianos e os demais artistas nordestinos, em especial os cearenses. A matéria intitulada "Depois dos trinta, Gal quer voltar a acontecer" é assinada por Eduardo Athayde:
"Era a terceira vez que Vatapá era ensaiada. Naquele calor infernal, Gal Costa se empenhava ao máximo, movimentando-se na saleta de ensaios da gravadora Phonogram. Seus músicos é que demonstravam cansaço. Gal sentou-se ao lado do guitarrista Perinho e reclamou:
- Tá faltando molho. Aumenta o pique, Perinho.
A uma ordem do líder, Rubão (baixo), Antonio Adolfo (piano) e Pedrinho (bateria) empreenderam um pique que deu a devida retaguarda rítmica à pulsante voz de Gal. Assim alegre, ela retomou a alegria, os vestidos floridos, o riso aberto.
- O pique nunca deixou de existir, mas está tudo mais forte agora. Estou louca para pisar num palco e rasgar o peito.
Quando isso acontecer, o público verá uma cantora cheia de garra e de explosões, voltando ao gênero que abandonara nos tempos de 'Cantar' e 'Encontro com Caymmi'. Gal tem sido muito bem comportada, na voz e no palco. Ela analisa a mudança:
- Esses dois últimos anos de minha carreira foram super-gratificantes. O Caymmi, eu sempre admirei, mas não o conhecia pessoalmente. O show que fizemos juntos foi uma grande homenagem a ele, e só isso já tornava o espetáculo uma coisa difícil, corajosa. Ali, eu tinha que ter muita vitalidade, para compensar a quietude do Caymmi, e tentar equilibrar a coisa. Mas foi um show realmente genial.
São quase dez horas da noite. Gal está ensaiando desde as cinco, repassando músicas para conseguir aquele pique falado. Vestida de calça jeans, blusa vermelha amarrada na cintura, descalça, ela rodopia num minúsculo tablado de madeira, enquanto canta Baby. Gal está contente, e mais alegre fica ao lembrar dos 'Doces Bárbaros':
- Foi um momento maravilhoso. Reencontrei Gil, Cae, Bethânia. Somos pessoas que se conhecem há muito tempo, e que nunca se encontravam, à vontade, para discutir, curtir. Na Bahia, iniciando a carreira, éramos jovens e idealistas, sonhadores que queriam tomar o Rio de assalto. Com os 'Doces Bárbaros', tivemos a chance de de nos expormos, brigarmos da forma mais despojada possível. Isso tudo nos enriqueceu muito. Bethânia, que sempre foi a mais desligada do grupo, entrosou-se no show de verdade. Éramos como irmãos, e havia muita tensão no ar. Ou você pensa que irmão não briga? Ninguém podia mentir, e tivemos que rasgar o coração, para conseguir nosso intento. Tudo era encarado como uma forma de criação, e resultou num despojamento total das individualidades, e extrema boa vontade de todos.
Às onze, Gal resolve parar. E, da Barra, seguimos para seu apartamento em Ipanema., 'onde me seguro, enquanto as obras de minha casa na Barra não terminam'. Mal se abre a porta do sétimo andar, três cachorros, enormes filas, intimidam o visitante. Em poucos minutos, Gal está se servindo de vatapá e algas marinhas, mistura que garante ser ótima. Na tevê, um tape de futebol. Gal, sorvendo uma cervejinha na lata, quer saber: 'Rivelino joga bem, né, nego? Pelo menos, tem um chute arretado. Não entendo muito de futebol, mas me amarro no chute do Rivelino'.
Ao lado da amiga Vilma, Gal fica curtindo o jogo do escrete brasileiro, sem se esquecer de repartir atenções entre os três cachorros. Que continuam intimidando o visitante desavisado. Com os pés sobre o sofá - findo o tape, desligada a tevê - Gal Costa fala sobre sua vida, sua carreira:
- Agora, estou sentindo uma vitalidade muito grande nas pessoas, com relação à música. Uma vontade de criar coisas bonitas e fortes. Estou totalmente apaixonada pelo meu trabalho. Quero retomar as  coisas que fiz em Fa-Tal e Le-Gal, mas de uma forma nova e madura. Muito ritmo. Não sei se é o verão, mas parece que estou renascendo. Aliás, dizem que depois dos 30, a gente cria alma nova. Acho que isso é o tal de amadurecimento. Isso não quer dizer absolutamente, que Gal Costa se acomodou. Pelo contrário. Estou de olho, preparando o bote certo.
Resumindo. Em poucos dias, a brejeira Maria da Graça volta a dar lugar num palco, à exuberante Gal, misto de mulher e pantera, disposta a rasgar o peito e conquistar o público. E  é essa mesma Gal Costa que se mostra enfezada, ao comentar as  declarações de Fagner. O compositor cearense, tempos atrás, acusou o 'grupo baiano' de se fechar em igrejinha, impedindo a ascensão de novos valores. Gal está furiosa: 'Mas isso é uma ingenuidade das mais tremendas. Nunca tive, ou tivemos intenção de prejudicar alguém. Se Fagner não acontece é por incompetência. Belchior é novo e já estourou muito na praça. Ele é sacador, é brilhante, coisa que não acontece com Fagner. Isso é coisa de criança. Pior ainda. É uma forma para explicar incompetência. Aliás, quem é esse tal de Fagner?' Gal desculpa-se: quer dormir. "

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

Burnier e Cartier - Jornal de Música (1976)

A dupla Burnier e Cartier, formada por Octávio e Burnier e Cláudio Cartier foi uma bela revelação surgida nos anos 70. Em termos de visibilidade a nível nacional, a música Ficaram Nus, apresentada pela dupla no Festival Abertura da Globo em 1975 foi de grande importância. Chegaram a gravar dois discos, e depois a dupla foi dissolvida, e cada em seguiu carreiras individuais. Em dezembro de 1976 o Jornal de Música em sua edição 27 trazia uma entrevista com Octávio Burnier, falando da dupla e seus projetos, em matéria intitulada "Dois violões ficaram nus: Burnier e Cartier" e assinada por Paulo Macedo:
" 'Crosby, Stills, Nash & Young? Isso não tem nada a ver com o nosso trabalho. Nós ainda não conseguimos entender o porque dessa comparação. Nós nunca ouvimos esse grupo. O que nós fazemos é tocar nossas violas e cantar. Será que isso é imitar alguma coisa?' Achamos que quem fala isso está muito enganado e não entende bulufas de música'.
Atualmente, antes de prestar qualquer depoimento, a dupla Luiz Octávio Bonfá Burnier e Cláudio Brandini Cartier fazem questão de explicar que são improcedentes essas acusações de que são o estereótipo do quarteto sensação de Woodstock. Segundo Burnier a música é a única coisa que interessa: 'Nós só utilizamos letra na nossa música por dois motivos: o primeiro é porque o Cartier curte muito isso e  o outro é por causa da gravadora.'
Mas para falar dessa dupla que se tornou conhecida do público com a música Ficaram Nus, no Festival Abertura da Rede Globo, convém recapitular:
Burnier: Começou a tocar aos oito anos de idade quando o seu tio, o violonista Luís Bonfá lhe presenteou com um violão. Desde então não parou de tocar e passou a prestar atenção na técnica utilizada por seu tio. Aos 14 anos, participou do Movimento Artístico Universitário. Nessa mesma época, participou da série de programas Som Livre Exportação. Com 16 anos gravou o seu primeiro disco: Baby Liberato, na Som Livre, que foi um dos temas da novela O Homem que Deve Morrer. Em 71 fez parte do grupo vocal-instrumental Som Livre que depois se chamou Aquarius. Em 72 o Aquarius foi para a Espanha e gravou um LP na Ariola, só com músicas brasileiras. Em 73 voltou para o Brasil com a dissolução do grupo.
Cartier: Iniciou os seus estudos musicais aos 11 anos de idade com o professor Jodacyl Damasceno até ingressar na Escola Nacional de Música. Paralelamente à E.N.M. cursou e Escola Nacional de Belas Artes, trabalhando logo em seguida como professor de Artes Plásticas. Também atuou como cartunista de TV; produtor de filmes publicitários e compositor de jingles. Em 67 começou a participar do MAU e lá conheceu Burnier.
Com o encontro dos dois na casa do Dr. Aluízio Porto Carrero, sede do MAU, descobriram que possuíam os mesmo gostos. Mas a dupla só se concretizou com a  vinda de Burnier da Espanha.
- 'Durante esse período o meu período na Espanha - fala Burnier - o Cartier me enviava regularmente cartas. E nessas cartas ele me falava da  vontade que ele tinha de fazer uma dupla com dois violões. A última carta que eu recebi dele, foi quando eu estava vindo pra cá. E ele dizia que se eu não viesse ele iria para a Espanha fazer música comigo.. E quando cheguei aqui ele ficou muito contente e começamos a compor, participar de movimentos, fazer circuitos universitários, até que apareceu o Abertura, festival que nos projetou em todo o Brasil. A música que nós concorremos foi muito pichada pela crítica, porém, estranhamente, atingiu um sucesso surpreendente.'
Burnier e Cartier se apresentando no Festival Abertura em 75
E o LP que vocês estão lançando, como está?
- O que eu mais queria era lançar um disco instrumental, mas não existe gravadora nesse país que acredite nisso. Eu acho que o disco está muito legal e digo mesmo, gostei muito das letras. Não concordo, portanto com a Dona Ana Maria Bahiana que diz que nós precisamos arranjar outros letristas. Agora eu acho ideal um disco só com música, mas além da gravadora, o meu parceiro Cartier, que tem formação clássica, se amarra nas letras.
E os planos da dupla?
- Nós estamos planejando fazer uma excursão pelo sul do país, pois o nosso disco está sendo muito bem aceito por lá. Agora, estamos pensando seriamente em nos mandar para os Estados Unidos e desenvolver nosso trabalho naquelas plagas. Mas isso ainda não é concreto, pode ser que não aconteça."

segunda-feira, 12 de fevereiro de 2018

1974 O Ano do Rock - Revista Pop (1975) - 2ª Parte

"Outra saudável tendência que pintou desde o início do ano foi o aparecimento de novos grupos, injetando energias e vibrações originais na escorregadia estrada do rock brasileiro. Cheios de garra e disposição, grupos como Os Piratas, Apokalypsis, Veludo, Vímana, A Chave, Jazzco e Vaso Sanitário, entre muitos outros, ficam ainda confinados a uma certa marginalidade. Mas não se assustam com isso. Pelo contrário: extraem daí uma energia incrível e fazem dela sua verdadeira linguagem, despejando muito sentimento em seus shows. Fora do eixo Rio-São Paulo esta tendência pintou com o mesmo vigor. Só em Porto Alegre apareceram três novos grupos, formados por músicos do primeiro time que andavam meio aposentados: Bixo da Seda, Toque e Almôndegas. Em Belo Horizonte surgiu o Banquete 93 de Cogumelos e a Sopa de Minhocas. E em todas as outras cidades do Brasil os jovens passaram a se juntar para fazer som nas capitais e pelos toques precisos do consciente Gilberto Gil.
Odair Cabeça de Poeta e Grupo Capote
É claro que as gravadoras não podiam ficar alheias a esse movimento todo. 'Depois dos Secos & Molhados, sentimos que o rock é a grande aspiração do jovem brasileiro', diz Geraldo Lowenberg, gerente do Departamento Industrial da Continental, gravadora que se encarregou de levar os grandes grupos novos para as prateleiras das lojas e daí para os toca-discos dos jovens de todo o país. Assim, Odair Cabeça de Poeta e o Grupo Capote, Som Nosso de Cada Dia, Grupo Raízes, Ave Sangria, Paulo Bagunça e a Tropa Maldita, Barca do Sol e o novíssimo Moto Perpétuo tiveram seus discos lançados. E já estão na fila Sé & Guarabyra (que saíram da Odeon), Piratas e outros.
Erasmo Carlos
Antônio Vasco, do Departamento de Publicidade da Phonogram, acha que 'o grande problema para a abertura do mercado do rock no Brasil é a falta de crédito dos lojistas: eles simplesmente não acreditam no rock nacional. Se compram, são sempre poucos discos; e muita gente deixa de ser atraída para comprar um disco de rock nacional apenas porque não o vê nas vitrines'. Mesmo assim, a Phonogram investe muito nos artistas nacionais e  procura dar toda a cobertura possível - até financia a compra de equipamentos. Assim, os discos de Rita Lee, Raul Seixas, Jorge Mautner, Erasmo Carlos e Gal Costa foram produzidos com muito cuidado.
Zé Rodrix
A Odeon lançou um LP de Sá & Guarabyra, um de Zé Rodrix e um álbum com a gravação ao vivo do concerto de Milton Nascimento no Teatro Municipal de São Paulo. E além de relançar toda coleção dos Beatles, lançou os primeiros discos gravados pelo Pink Floyd. Sérgio Leopoldo Rodrigues, divulgador da gravadora, garante: 'Nós vamos dar o maior apoio ao rock nacional em 75. Como incentivo, abrimos as portas da Harvest, selo onde gravam Deep Purple, Ron Wood e outros cobras. E já está tudo certo para o lançamento do novo LP do Terço.
Raul Seixas
Para que tudo isso pudesse acontecer, era preciso montar uma infra-estrutura capaz de enfrentar a concorrência dos produtos já consagrados do show-bizz. Por isso, o conjunto Made in Brazil recorreu aos serviços do veterano Mario Buonfiglio, o Moto Perpétuo aceitou a tutela de Moracy do Val, e foram criadas empresas dinâmicas para fazer qualquer tipo de assessoria aos conjuntos e concertos de rock.
Em São Paulo, nasceu a Rocka Rolla, de um grupo de técnicos de som liderados pelo competente Peninha Schmidt. E a Público, agência que fazia assessoria de imprensa para equipes automobilísticas, passou a dedicar-se ao rock, através do baterista Dinho (ex-Mutantes), um de seus diretores. Em Porto Alegre, foi criada a Arco-Iris Produções, que promoveu vários espetáculos de rock no sul e participou de um festival ao ar livre em Santa Catarina. No Rio de Janeiro, a Toca encarregou-se de dar um grande empurrão nos rockeiros da cidade.
Em outubro, a garotada de São Paulo foi de novo ao Ibirapuera, desta vez debaixo de chuva, e fez nova vigília de  louvação ao rock. Quando o concerto terminou, o promotor e apresentador Magnólio, um cara inquieto e imprevisível, anunciou a criação da Tenda do Calvário, um teatro que trabalharia exclusivamente com rock, desde o mais marginal até o mais industrializado. Com sua equipe de trinta jovens e o cadastro de mais de trezentos colaboradores, Magnólio transformou um velho teatro de igreja em templo do rock. Teve problemas externos muito sérios para botar a Tenda em funcionamento, mas superou-os através do trabalho incansável e despojado de sua apaixonada equipe de rockeiros.
Made in Brazil
Assim, nosso rock chegou, no fim do ano, aos últimos degraus da profissionalização definitiva, digerindo com paixão os grandes acontecimentos internacionais (excursão de Bob Dylan, volta de Eric Clapton, etc) e ouvindo frases otimistas como esta, do Oswaldo, baixista do Made in Brazil: 'O rock está se firmando cada vez mais. O apoio que faltava aconteceu em 74. Programas de TV, rádios e espaços que se abriram em jornais foram os responsáveis pelo grande sucesso do rock em 74'. Ou, como diz Guilherme Arantes, líder do Moto Perpétuo: '1975 será o ano da maturidade dos grupos de rock e da solidificação dos empresários. Será também o ano do alicerçamento completo do rock tupiniquim'.
Mas o mais importante de tudo é que, enquanto alguns de nossos músicos tentavam seguir os moldes ditados pelo rock internacional, Cat Stevens, Nick Taylor (dos Stones), Jim Capaldi e Chris Wood (do ex-Traffic) vieram a passeio e descobriram aqui a energia pura que já está faltando no rock industrializado dos EUA e Inglaterra. Capaldi chegou a ficar deslumbrado e fez uma profecia, que precisa vingar: 'Nas raízes da música brasileira está o sangue da música do futuro. Por isso, vocês não devem ficar só nos imitando' "

domingo, 11 de fevereiro de 2018

1974 O Ano do Rock - Revista Pop (1975) - 1ª Parte

No início de 1975 a revista Pop trazia uma matéria fazendo um balanço sobre o ano anterior em termos de rock no Brasil. Intitulada "1974 - O ano do rock", a matéria destaca vários aspectos relativos ao crescimento do mercado de rock no país. É um texto bastante interessante para se conhecer o panorama musical brasileiro, em especial o rock, que experimentou um impulso no país. Fala de shows internacionais acontecidos no país, como os de Alice Cooper, e outros artistas e bandas. Uma frase, colocada na página inicial da matéria resume bem o que o ano de 1974 representou para o nosso rock: "O ano passado marcou a entrada definitiva do rock na vida do público brasileiro. Foi uma grande festa!". Abaixo, a primeira das duas partes da matéria::
"A 25 de janeiro do ano passado, mais de cinco mil abnegados rockeiros de São Paulo passaram uma noite inteira no bosque do parque Ibirapuera, curtindo o som dos conjuntos Made in Brazil, Som Nosso de Cada Dia, Mutantes e outros. E só foram embora quando o sol do dia 26 já estava alto e os músicos quase caíam de cansaço. Duas semanas mais tarde, a 10 de fevereiro, um espetáculo fabuloso acontecia no Rio: o conjunto Secos & Molhados conseguia no Maracanãzinho um clima de delírio nunca alcançado por um artista ou grupo brasileiro. Pela manhã, os 20.000 ingressos postos a venda estavam esgotados. Às 7 da noite, o ginásio estava abarrotado de gente. Do lado de fora, os mais de 15.000 jovens que não puderam entrar depredavam carros, saltavam muros, brigavam com os porteiros e entre si. Os cambistas vendiam por 40 cruzeiros ingressos que valiam 10. No dia seguinte, o grupo estava consagrado e o empresário Moracy do Val juntava 250.000 cruzeiros aos polpudos lucros que o primeiro LP dos Secos & Molhados estava rendendo.
Secos & Molhados no Maracanãzinho
Talvez entusiasmado por esses sintomáticos acontecimentos, o veterano empresário Marcos Lázaro entrou em cena com uma bomba de altíssimo poder: trouxe ao Brasil, em março, o discutido Alice Cooper, um dos mais controvertidos e assustadores astros da galáxias do rock.  Em seu primeiro concerto, no parque Anhembi (SP), 70.000 jovens de várias partes do Brasil se espremiam para chegar o mais perto possível do palco. E criaram um tumulto tão grande que a própria 'Tia' Alice ficou com medo e chegou a interromper o show, temendo pela sua segurança. No fim, muita gente acordou no hospital. E Marcos Lázaro chegou a dizer que nunca mais se meteria com rock.
A verdade é que, bem ou mal, este foi o terceiro, talvez, o mais importante dos acontecimentos que deflagraram a explosão do rock em 1974 no Brasil. A partir daí, as coisas começaram a acontecer e nunca mais foram como antes. A começar pelos grandes empresários brasileiros, que trocaram o medo de perder dinheiro pela certeza do bom investimento, arregaçaram as mangas de suas camisas de colarinho duro e começaram a trabalhar. Enquanto Marcos Lázaro andava às voltas com Alice Cooper, Manoel Poladian tinha menos preocupações e muito lucro com o romântico Billy Paul e já transava a vinda do gordo Demis Roussos para maio. No Rio, os praticamente desconhecidos George Kosky e Alberto Ellis juntam seus capitais, fundam a KEP e anunciam a vinda dos afinados Jackson Five, que acaba acontecendo em setembro.
Alice Cooper
A essa altura, a especulação é tão grande que quase ninguém se entende mais: quem vai trazer quem, quem vem mesmo, quem não vem nunca? Guilherme Araújo, como quem não quer nada, vai a Londres e procura o Rolling Stone Mick Jagger, um cara que não esconde de ninguém que está louco para cantar na América do Sul. Kosky e Ellis, sempre combatidos pelos concorrentes, anunciam a vinda do conjunto inglês Traffic para novembro. Em cima da hora, o grupo cancela a excursão, provocando grande prejuízo para a gravadora Phonogram e decretando a morte da KEP, que estava com o prestígio abalado desde sua fundação. Com isso, disseram alguns empresários: 'Os aventureiros se assustaram, a euforia passou e o mercado tende a se profissionalizar de vez'.
E o ano acaba com um saldo favorável para os empresários, que ganharam um bocado de prestígio e muito mais dinheiro, trazendo atrações internacionais de sucesso comercial garantido: Stylistics, Supremes, Dione Warwick e George McRae, além dos já citados Jackson Five, Demis Roussos e Billy Paul. Além de Alice Cooper, só houve uma surpresa considerada realmente boa: a passagem atordoante do genial Miles Davis pelo Brasil, dando um verdadeiro banho de música em seus perplexos ouvintes.
Miles Davis
Tradicionalmente à margem dessa efervescência comercial, o rock brasileiro decidiu entrar também na festa. E, ajudado pela euforia geral em torno dos Secos & Molhados começou a se infiltrar no cenário. Enquanto os músicos se juntavam e ensaiavam a pleno vapor, com muito mais garra do que com aparatos técnicos, começaram a pintar os jovens empresários, cheios de ideias e de esperança. Caras tão jovens e pirados como os próprios músicos, muniram-se de pastinhas quadradas, contratos e passagens de avião e saíram para a briga.
Mônica Lisboa dedicou-se exclusivamente a Rita Lee e seu Tutti-Frutti, revelando a ótima guitarrista de óculos Lucia Turnbull. E chegou a comprar parte do equipamento de Alice Cooper para montar um espetáculo profissional: Atrás do Porto Tem Uma Cidade - um show muito bem produzido, com cenário belíssimo e som perfeito, que estreou em agosto em São Paulo e logo correu o Brasil, fazendo a garotada de Belo Horizonte, Curitiba e Porto Alegre dançar como não fazia há muito tempo.
Mutantes


Antes disso, em abril, os Mutantes já haviam dado um concerto quentíssimo no cinema Super Bruni 70 (2.500 pessoas!), no Rio. A partir daí, com contrato assinado com o jovem empresário Samuca Wainer, começaram a dar shows isolados até a consagradora temporada no Teatro Bandeirantes de São Paulo, em outubro. Outro cara, Gabriel Neto, depois de investir em alguns concertos passou a cuidar exclusivamente do grupo O Terço, um conjunto de pés no chão e cabeça no lugar. Em setembro, depois de exaustivos ensaios, o grupo pôde comprovar a qualidade de seu som: na abertura da temporada carioca de rock, oportuna promoção da Toca (firma de Samuca e Gil), o público levantou e só parou de dançar depois que O Terço bisou várias vezes seus rocks. O entusiasmo foi incrível, e o grupo partiu imediatamente para a produção independente de um LP, que acabou tendo todos os seus direitos vendidos para a Odeon.

(continua)

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018

Jards Macalé: Desafinando Coros em Tempos Sombrios - 2ª Parte

A penúltima faixa do LP, com as composições 'Farrapo Humano', de Luiz Melodia, e 'Morte', de Gilberto Gil, fala de paixão, suicídio e morte. A primeira, um rock-blues apoiado em riffs de violão, baixo e bateria, característicos do gênero, contém versos memoráveis como: 'Estou tão acabado/ Tão abatido/ Minha companheira que venha comigo (...)/ Eu choro tanto, me escondo, não digo/ Viro um farrapo/ Tento suicídio/ Com caco de telha ou caco de vidro/ Da melhor maneira possível'. Em seguida, o samba-canção 'Morte', de Gil, interpretado de forma pausada e com arranjo discreto, compõe um clima lúgubre com versos 'A morte é a rainha que reina sozinha/ Não precisa do nosso chamado/ Recado (Medo)/ Pra chegar'. Por fim, a balada soul de Macalé e Duda, 'Hotel das Estrelas', que fora consagrada no show Gal a Todo Vapor, encerra o álbum. Macalé entoa apenas a primeira estrofe, acompanhado ao violão: 'Dessa janela sozinha/ Olhar a cidade me acalma/ Estrela vulgar a vagar/ Rio e também posso chorar...' Esses versos parecem traduzir a atmosfera de solidão, isolamento e incerteza que pairava sobre muitos brasileiros naqueles tempos sombrios.
O disco, como muitos outros produzidos numa época em que o formato LP era dominante, possui certa unidade refletida na interação entre músicas, arranjos e interpretações. Porém, as gravações apresentam características que destoavam dos padrões técnicos e estéticos estabelecidos pela indústria a partir de 1970. Vale lembrar que o álbum foi produzido no mesmo ano em que a indústria da música no Brasil deu um importante salto tecnológico com a construção do Estúdio Eldorado em São Paulo, o primeiro com dezesseis canais da América Latina, montado com equipamentos de última geração. Essa iniciativa, seguida de imediato por outras gravadoras, praticamente superou a defasagem tecnológica existente até então entre a indústria fonográfica brasileira e a dos países desenvolvidos. Porém as transformações não ocorreram apenas no âmbito dos equipamentos. Inserido num processo mais amplo de desenvolvimento da indústria cultural, o setor fonográfico brasileiro passou por mudanças em suas formas de organização, aprofundando a divisão do trabalho e adotando novos procedimentos de gestão das empresas. Profissionais com qualificações específicas foram incorporados aos processos de produção e distribuição da mercadoria musical como o diretor artístico, o produtor, o diretor de marketing, entre outros.
Emerge nesse momento a figura do 'homem de estúdio', personagem dotado de habilidades para operar equipamentos destinados a interferir no material sonoro visando a equilibrar timbres, pulso, alturas, intensidade, nitidez, etc. Cabe a essa nova competência promover o controle da 'tensividade' da canção, seja ela de natureza somática (quando associada ao ritmo, como é o caso das  músicas que sugerem a dança) ou passional (quando o artista, em canções românticas, expõe ao ouvinte a sua dor, seu estado de alma).
A obra musical, nesse novo patamar de racionalização da produção, acabou dominada 'pelo detalhe técnico, pelo efeito, substituída pela fórmula' (Márcia T. Dias - Os Donos da Voz: Indústria  Fonográfica Brasileira e a Mundialização da Cultura). No LP aqui estudado, a leve desafinação dos instrumentos, notável em alguns fonogramas, a instabilidade do andamento e o canto solto de Macalé, em meio à rouquidão, à respiração ofegante e soluços, compuseram uma sonoridade peculiar. Tais características não devem ser associadas ao descuido, à inabilidade ou à desatenção dos artistas. Mais preocupados com espontaneidade, a emoção e o sentimento no momento da criação, eles fizeram com que esses elementos se tornassem constitutivos do estilo. Desse modo, produziram uma sonoridade crua e áspera que, de certa forma, refletiu a postura marginal e underground da época. Porém, tal sonoridade conflitava com os novos parâmetros técnicos e estéticos da produção fonográfica. Aqui talvez resida um dos aspectos mais contundentes da obra de Macalé, esse artista que optou por nadar quase sempre contra a corrente: a rebelião contra o que Adorno, usando uma expressão de Steuermann, chamou de 'barbárie da perfeição', uma das faces do fetichismo na música que se aprofundava no meio fonográfico do Brasil naqueles anos. Mesmo eleito por alguns críticos como o melhor lançamento de 1972, o LP Jards Macalé não obteve da gravadora o suporte necessário para divulgação. Devido ao fraco desempenho comercial, foi retirado de catálogo e o artista teve seu contrato rescindido com a empresa (*). Provavelmente, essa tenha sido mais uma razão para que Macalé fosse agraciado com a alcunha de maldito. Maldito?! Maldito é a..."

(*) Essa informação não é correta. Macalé lançou seu segundo disco, "Aprender a Nadar" pela mesma gravadora

terça-feira, 6 de fevereiro de 2018

Jards Macalé: Desafinando Coros em Tempos Sombrios - 1ª Parte

Na Revista USP nº 87 (setembro/novembro - 2010) foi publicado um artigo acadêmico sobre Jards Macalé, escrito por José Roberto Zan e intitulado "Jards Macalé: Desafinando Coros em Tempos Sombrios". Como se trata de um texto extenso, resolvi transcrever apenas uma análise de seu primeiro disco, Jards Macalé, lançado em 1972: 
"Em 1972, Macalé gravou o LP Jards Macalé, lançado pela Philips, contendo composições suas em parceria com Capinam, Torquato Neto, Waly Salomão e Duda. Produzido com orçamento pequeno, o disco teve a participação de Lanny Gordin, no violão e no contrabaixo elétrico, ao lado de Tutti Moreno na bateria. O repertório eclético, contendo blues, rock, jazz, xote, samba-canção e bolero, recebeu um tratamento pop que se expressa principalmente nos arranjos e na instrumentação. Os riffs de bateria, baixo e violão dão uma sonoridade compacta e, ao mesmo tempo, flutuante aos arranjos, com acentos e contratempos abrindo espaços para improvisações. Macalé, que também foi responsável pela base harmônica e rítmica ao violão, entoa as canções oscilando entre o sussurrado e o gutural, ora seccionando palavras para acentuar a marcação rítmica, ora se desmanchando em cantos derramados e melancólicos em momentos de profunda tristeza.
A primeira faixa, o híbrido samba-pop-rock-blues 'Farinha do Desprezo', composto em parceria com Capinam, aborda o tema do desenlace amoroso. Nos versos 'Só vou comer agora da farinha do desprezo/ Alimentar minha fome pra que nunca mais me esqueça/ Ah como é forte o gosto da farinha do desprezo/ Só vou comer agora da farinha do desejo', entoados numa performance articulada à instrumentação roqueira, o narrador expressa o seu sofrimento com  a separação e, ao mesmo tempo, sua disposição de assumir o rompimento e se recompor. Porém, é uma canção cheia de metáforas que abriga múltiplos significados. Esses mesmos versos podem conter alusão à droga, o que cria uma atmosfera marginal e existencial compartilhadas por segmentos de jovens e artistas no contexto pós AI-5.
A faixa seguinte é a balada 'Vapor Barato' que, cantarolada à capella, sob a forma de uma breve vinheta, cria um ambiente soturno que antecede à vigorosa composição 'Revendo Amigos', um xote-rock cujos primeiros versos dizem: 'Se me der na veneta eu vou/ Se me der na veneta eu mato/ Se me der na veneta eu morro/ E volto pra curtir'. Macalé estabelece um diálogo entre essas duas músicas: enquanto a primeira trata de um personagem em fuga, na segunda o narrador assume sua condição de sujeito que decide ir, voltar, matar ou morrer. Esse gesto rebelde  e de resistência fez com que o compositor enfrentasse dificuldades perante a censura, que o obrigou a modificar a letra diversas vezes.  Em seguida, a balada blues 'Mal Secreto' contém versos belíssimos de Waly Salomão como 'Mascaro meu medo/ Mascaro minha dor/ Já sei sofrer/ (...) Não fico parado/ Não fico calado/ Não fico quieto/ Eu choro, converso/ E tudo mais jogo num verso/ Intitulado Mal Secreto'. É uma canção que nos remete ao clima de incerteza e insegurança daqueles anos sombrios. O canto suave e contido de Macalé cria, em interação com os riffs de baixo elétrico que prevalecem na instrumentação, efeitos peculiares de passionalização.
Em  '78 Rotações', Macalé e Salomão tematizam a condição do cancionista que grava em disco sua criação. 'Com as mãos frias/ Mas com o coração queimando/ Estou amando/ Estou passando/ Estou gravando/ (...) Em 78 Rotações por segundo rotações'. Fazem menção indireta ao caráter de produto do disco nos versos 'Vou seguindo.../Vou servindo.../ Vou sorrindo por segundo/ Devagar/ Grave um disco devagar/ (...) Um long-Play.../ Um Long-Day.../ Um Long-Love devagar quase parando'. Musicalmente, é a composição mais elaborada do LP. Modulações harmônicas incomuns e os riffs de samba-jazz conduzem a melodia por caminhos distantes das redundâncias da canção de massa.
As faixas 'Movimento dos Barcos' e 'Meu Amor Me Agarra & Geme & Treme & Chora & Mata', ambas com letras de Capinam, dão ao álbum um clima profundamente melancólico. A primeira acentua a atmosfera de fossa que perpassa todo o LP. Macalé, explorando as tensões dos intervalos de sétima e nona do acorde menor ao violão, entoa de forma contida e passional os versos que fazem alusão ao desamor e  ao tédio de um cotidiano monótono e opressivo. 'Estou cansado/ E você também/ Vou sair sem abrir a porta/ E não voltar nunca mais/ (...) É impossível levar um barco sem temporais/ E suportar a vida/ Como um momento além do cais'. Segundo o próprio letrista, essa música representava o seu rompimento com o movimento tropicalista cuja radicalidade lhe rendera ameaças, insegurança e isolamento. Maria Bethânia já havia popularizado essa música no seu show Rosa dos Ventos, de 1971, que resultou no LP homônimo lançado pela Philips no mesmo ano. Mas o clima sombrio do disco atinge seu ápice com a composição 'Meu Amor Me Agarra & Geme...'. O poeta Capinam parafraseando uma expressão de Mao Tsé Tung ('o imperialismo norte-americano é um tigre de papel'), compõe uma letra que trata de conflitos, contradições e ambiguidades de uma intensa relação amorosa. A canção contém imagens surrealistas sobre a aparência de força, poder e agressividade do sujeito, o que acaba por ocultar a sua condição de fragilidade e a submissão.
 'Meu amor é um Tigre de Papel/ Range, ruge, morde/ Mas não passa de um Tigre de Papel/ Numa sala ausente/ Meu amor presente/ Me esconde entre os dentes/ Depois me abandona e vai definitivamente/ Definitivamente volta, ilude, desilude/ Range, ruge, rosna/ Velho tigre de virtudes/ Nas selvas de seu quarto entre flores, cartas/ Frases desesperadas, lençóis / Onde me ama/ Furiosas garras/ Meu amor me agarra & geme & treme & chora & mata/ Um tigre de papel perdido nos lençóis da casa'.
Macalé entoa esses versos de modo extremamente dramático e passional incorporando a voz rouca, soluços e respiração ofegante a uma performance que ressalta ambivalência da relação entre amor e dor, prazer e sofrimento.
'Let's Play That', última letra musicada de Torquato Neto tem características de manifesto. Numa paráfrase ao 'Poema de Sete Faces', de Carlos Drummond de Andrade, Torquato recria a figura do anjo torto, mas que agora é também solto, louco, muito doido.
'Quando eu nasci/ Um anjo torto/ Um anjo solto/ Um anjo louco/ Veio ler a minha mão/ Não era um anjo barroco/ Era um anjo muito solto/ Louco, muito doido/ Com asas de avião/ E eis que o anjo me disse/ Apertando a minha mão/ Entre sorriso de dentes/ Vai, bicho/ Desafinar o coro dos contentes'.
Nota-se que não é um anjo que vive na sombra como o de Drummond, nem é barroco; é um anjo metálico, cibernético, moderno. Além disso, é vidente e fala gíria. A canção radicaliza a melancolia presente no poema de Drummond e constrói uma atmosfera irônica que se expressa principalmente na sina indicada ('desafinar o coro dos contentes') e no procedimento do anjo ('apertando a minha mão entre sorriso de dentes'). O lema central da composição, 'desafinar o coro', pode ter sido inspirado em conversas de Torquato com Augusto de Campos sobre Sousândrade. Para o escritor e poeta maranhense, 'coro dos contentes' era uma alusão às pessoas que cantavam em exaltação aos poderosos esperando obter facilidades e benefícios. Isso dá à composição um caráter de manifesto compatível, de certo modo, com a postura contracultural e marginal que buscava, através da subversão da linguagem e do comportamento, empreender a crítica e a resistência à ordem estabelecida. "

(continua)


domingo, 4 de fevereiro de 2018

Aldir Blanc - Entrevista Revista Música Brasileira (1996)

Em dezembro de 1996, no apagar das luzes do ano em que Aldir Blanc completou 50 anos, saía o primeiro número de uma revista  chamada Música Brasileira. Nada mais apropriado para se iniciar a publicação de uma revista que fala de nossa música do que trazer na capa a figura de Aldir. Nessa edição de estreia da revista Aldir deu uma entrevista em que fala de vários assuntos, como parceiros, as homenagens pelos seus 50 anos, completados em setembro daquele ano, e tantas outras coisas do universo desse grande mestre de nossas letras escritas e cantadas. Segue abaixo a entrevista:
"MB- O disco Aldir - 50 Anos é um inventário?
Aldir - Pode-se dizer que sim. Foi uma maneira que encontramos de juntar um enorme material que estava por aí, disperso, ao qual juntei a música 50 Anos, feita em parceria com Cristóvão Bastos e que foi divinamente gravada pelo Paulinho da Viola.
MB - Esse inventário acusa mais ou menos quantas músicas gravadas?
Aldir - Mais ou menos 400 músicas gravadas.
MB - E inéditas?
Aldir - Mais de 100, tranquilamente. Só com o Guinga, são mais de 50. Com o Moacyr Luz, outra quantidade enorme. E tem até coisas feitas com o João Bosco e com outros parceiros que ficaram por aí. Algumas, inclusive, como é o caso de Mar de Rosas, sobre a obra do Guimarães Rosa, parceria com o Guinga, são incompreensíveis que permaneçam inéditas.
MB - De Sílvio Silva Júnior a Moacyr Luz, passando por João Bosco, Edu Lobo, Maurício Tapajós, Guinga... são quantos parceiros?
Aldir - Muitos, inúmeros. Tem muita coisa com muita gente.
MB - Em termos de quantidade, a produção maior continua sendo aquela com o João Bosco?
Aldir - Hoje, acredito que o número de parcerias com o Moacyr Luz e com o Guinga, contando as inéditas e as gravadas, já superem a produção com o João.
MB - Você é um sujeito reconhecidamente avesso a badalações. Agora, por conta dos 50 anos, está envolvido com disco novo, livro novo, festas, homenagens, um festival de pedidos de entrevistas, matérias em jornais todos os dias. Como você se sente, diante de tanto agito: feliz e orgulhoso ou tímido e desajeitado?
Aldir - Algumas matérias me sensibilizaram quase à loucura. Algumas coisas publicadas recentemente me comoveram bastante. O desenho do Lan na capa da Revista de Domingo, por exemplo, onde apareço com a camisa do Vasco, foi do cacete. Devo reconhecer que têm vários textos que saem que eu sequer chego perto, mas algumas coisas me tocam profundamente. Ouvir Paulinho da Viola cantando 50 Anos, com aquele arranjo fabuloso do Cristóvão Bastos, que vai além de tudo o que sonhei para a música, realmente me derruba. Também sonhei com uma interpretação moleque para Mastruço e Catuaba, a ser feita pelo trio Nei Lopes, Wilson Moreira e Walter Alfaiate. Aí eles foram lá e fizeram melhor do que imaginei. Essas coisas realmente emocionam.
Capa da Revista de Domingo, desenho de Lan
MB - E o cantor Aldir Blanc, como é que fica? No disco Ruas e Risos, feito na década de 80 com o Maurício Tapajós, você canta algumas músicas. Agora volta à carga neste álbum, soltando a voz em algumas faixas. Você aprova o cantor?
Aldir - O cantor, sinceramente, é uma bosta. Embora eu ache que o cantor se saiu bem na primeira parte do Negão  e em Retrato Cantado. O que acontece é o seguinte: eu tenho dificuldades com essas coisas de ir ao estúdio de ter que botar a voz... sou um cara profundamente grilado. Basta o sujeito olhar pra mim lá de dentro o dizer 'vamos fazer de novo' que já me dá um pânico terrível, 'errei tudo', essas coisas. Realmente, não é uma coisa que eu faça com tranquilidade e, para ser sincero, nem com prazer.
MB - Mas já ouvimos vários elogios ao Aldir cantor nesse disco.
Aldir - Por incrível que pareça, eu também. É que algumas coisas era mesmo preciso fazer. Era preciso que eu cantasse Maia Lacerda, que eu cantasse Negão nas Parada, que eu não estava conseguindo passar para outras pessoas. Eu tinha que cantar. A música com o Márcio Proença, Retrato Cantado, da qual o nosso amigo Paulo Emílio gostava muito, eu tinha que cantar. A música do Salgueiro (Lua Sobre Sangue), eu queria cantar e assim foi.
MB - Em épocas passadas, você foi um grande boêmio, presença obrigatória em certos bares, certas  rodas etílicas, em volta de uma honesta roda de sinuca. De um tempo pra cá, parou com isso. Sumiu da noite. Mudou o Rio de Janeiro ou mudou o Aldir?
Aldir -  Os dois. Mas, principalmente, o Aldir. Eu tive sérios problemas hepáticos, houve um momento que eu tinha que escolher entre beber ou ficar vivo - pelo menos beber naquelas quantidades diárias. Para piorar, em 1991 dá-se uma grande transformação em minha vida: sofro um acidente grave e tenho que ficar recolhido, de muletas e bengalas. A decepção com  a recuperação demorada, que deixou minha perna dura, me deu uma grande tristeza que foi compensada imediatamente com o nascimento do primeiro neto, e que agora já são quatro. Naquele momento, senti que a vida mudava. Não há barato igual a ser avô. E como eu tive avós importantíssimos em minha vida, talvez esteja agora repetindo o Vô Aguiar e a Vó Noêmia, hoje me sinto extremamente feliz de levantar um neto para mostrar o canário, de brincar no chão. Com certeza, é a hora em que sou mais feliz em minha vida, quando estou brincando com eles.
MB - Aldir é sempre sinônimo de Tijuca, Muda, Vila Isabel. Já pensou em morar na Zona Sul, pelo menos para ver como é que é? Trata-se de uma opção ou faltou oportunidade?
Aldir - Oportunidades pintaram, várias, mas jamais me interessei por elas. Eu gosto daqui, eu quis ficar, e vou ficando. O que não me impede de sonhar com uma casa na beira da praia, qualquer praia, em quaquer verão. Mas eu adoro essa área, sou profundamente tijucano. Mas essa moeda sempre tem dois lados: é uma bênção e uma maldição.
MB - E o Aldir escritor, o cronista que já está no quinto livro e mantém colunas semanais em dois jornais de grande circulação, como é que divide o tempo e a inspiração com o compositor?
Aldir - Produzindo, cumprindo os prazos. Não me permito justificativa alguma com relação ao prazo de entrega das matérias. Na minha formação as pessoas importantes, meus ídolos (Antonio Maria, Ary Barroso, Stanislaw, Haroldo Barbosa) tinham vidas onde as atividades de compositor corriam junto com o trabalho de cronista, jornalista etc. Desde muito cedo, era isso o que eu queria ser: escritor e compositor. E ainda acalentava sonhos absurdos, do tipo 'vou ser cronista, letrista, baterista e vou tocar contrabaixo'. Baterista ainda cheguei a tocar, mas o o sonho do contrabaixo foi pro espaço. Também já ataquei de cronista esportivo, uma certa época na Tribuna da Imprensa.
MB- Na canção-título do disco, você diz: 'Aos 50 anos/ Insisto na juventude'. É pra valer?
Aldir - Pode ter certeza."


sexta-feira, 2 de fevereiro de 2018

Bob Dylan - Revista Top (2005)

Em 2005 a editora Planeta lançava Crônicas Volume Um, um livro de memórias de Bob Dylan. Na ocasião a revista Top, em sua edição de outubro, lançou uma matéria de capa falando da publicação. Crônicas Volume Um faz parte de uma trilogia autobiográfica de Dylan (os dois volumes seguintes  não foram lançados). No livro, Dylan fala dos primeiros anos de sua carreira, numa narrativa confessional, iniciando  por sua viagem em 1961 para o bairro boêmio Greenwich Village, que veio a influenciar seus estilo de compor.
A revista comenta o livro, e transcreve o longo prefácio da edição brasileira, escrito por Eduardo Bueno, segundo a revista "um dylanista de longa data e certamente a voz mais adequada no Brasil para louvar o mito". Segue abaixo um trecho do prefácio da edição brasileira:
"Enquanto os Rolling Stones flertavam com o diabo, numa macumba para turista, Dylan, o demiurgo, o exorcista, tentava conjurar demônios interiores - os deles e os nossos. Quando Jimi Hendrix eletrificou All Along the Watctower ao limite do tolerável e tornou-se um deus, Dylan tocava a mesma música ao violão, sozinho no porão, como Robert Johnson revivido. Ele nunca cantou iê-iê-iê, já que sempre preferiu 'no, no, no'. E assim, enquanto os outros estavam indo (e enriquecendo, ou sumindo, ou morrendo, de pico ou de bala) Bob Dylan estava voltando - embora isso eventualmente o tenha feito andar em círculos.
Bob Dylan sempre foi um sujeito com um violão e um ponto de vista. Ou com uma guitarra e um ponto de vista. Ou com uma banda (a única boa o bastante para chamar-se simplesmente, The Band) e um novo e indecifrável ponto de vista. Os pontos de vista de Bob Dylan acabaram se tornando um mapa - tortuoso e áspero, labiríntico e sem saída, mas, ainda assim, um mapa - para toda a história da música pop pós 1962. Um roteiro sem porto seguro para uma, duas, três gerações. A trilha - não apenas sonora - que se abriu, e ao longo da qual percorreu todas as estações, manteve seus seguidores permanentemente à beira do abismo. Bob Dylan queimou as pontes que o levaram até aonde está, and he didn't look back - não tem vocação para virar estátua de sal.
Bob Dylan sempre fingiu que é dor a dor que deveras sente.
Dylan chegou a Nova York no gélido janeiro de 1961. O momento-chave já foi descrito por inúmeros biógrafos, mas nunca ganhou as cores, os sobretons e a singeleza da narrativa em primeira pessoa registrada nestas Crônicas. Em 20 de novembro, ele entrava no estúdio da Columbia Records para gravar seu primeiro disco, e o completou no dia seguinte, ao custo de US$ 402. São 13 canções, das quais apenas duas - Song to Woody e Talking New York - eram dele. As demais, clássicos do folk, mais ou menos obscuros, interpretados ao modo de Dave Van Ronk, como o próprio Dylan revela.
Mas, apenas cinco meses depois, em 24 de abril de 1962, ele estava de volta ao mesmo estúdio para gravar The Freeweelin' Bob Dylan, trazendo no bolso da jaqueta surrada um punhado de canções, entre as quais Blowin' in the Wind, Don't Think Twice, It's All Right, Girl From the North Country, Masters of War, A Hard Rain's A-Gonna Fall - e o resto é história.  Dylan, sabe-se lá como, abrira caminho para uma torrente de arrogância e sabedoria, simbolismo, ambição e graça que explodiu em um turbilhão de inovação, sofrimento e dissonância. Ao fazê-lo, completou sua maior obra: a invenção de Bob Dylan. Que ele tenha se revelado capaz de se reinventar pelo menos cinco vezes, é algo assombroso.
Entre Freewhellin' (lançado em novembro de 1963, uma semana antes do assassinato de John Kennedy) e New Morning (que chegou às lojas em outubro de 1970), Dylan gravou nove discos, entre eles cinco dos mais importantes da história do rock (Bringing It All Back Home, de maio de 1965, Highway 61 Revisited, de agosto do mesmo ano, Blonde on Blonde, de julho de 1966, The Basement Tapes, de julho de 1967 e John Wesley Harding, de fevereiro de 1968) sobre os quais não escreveu uma só linha neste livro: ainda bem que restam mais três volumes. New Morning foi lançado apenas três meses após aquele que muitos consideram o pior disco da carreira de Dylan, o álbum Self Portrait, no qual ele tentou se desinventar, mesmo que fosse tarde demais.
Entre New Morning e Oh Mercy, lançado em outubro de 1989, Dylan gravou outros 18 discos, entre os quais aquele que tem sido considerado seu melhor (Blood  on the Tracks, de janeiro de 1975) e compôs pelo menos cinco obras-primas (Blind Willie McTell, Angelina, Up To Me, Dignity e Series Of Dreams) que permaneceriam inéditas anos a fio. Oh Mercy marcou, conforme os críticos, um novo renascimento de Dylan, talvez o quinto. E a partir dele, se iniciou a Never Ending Tour, a turnê sem fim, que o trouxe três vezes ao Brasil, em uma delas para um dos mais surpreendentes shows de sua carreira, no pequeno Bar Opinião, em Porto Alegre, cidade que adora.
Como sua vertiginosa carreira, essa autobiografia - cujos estilhaços de ideias deixam imagens crepusculares silhuetadas no coração e na mente dos leitores - é uma obra tortuosa e fragmentária. Justamente por isso, não apenas é uma criação coerente com a criatura que a forjou como faz todo o sentido. Sentido similar ao que Bob Dylan conseguiu dar a um mundo progressivamente fora de si.
O livro que você acaba de ler revela que Bob Dylan tem fôlego para mais alguns renascimentos. Que o mundo moribundo pós -11 de setembro possa renascer desta era de trevas junto com o artista que tantas vezes ajudou a definir esses tempos sempre cambiantes. "

quinta-feira, 1 de fevereiro de 2018

Livro "Rock O Ritmo do Século"

Em meados dos anos 90 era comum encontrar nas livrarias livros sobre música, importados de Portugal. Numa época em que nossa moeda estava forte, e os produtos importados não saíam tão caros, e também com a facilidade de não necessitar de tradução, os livros portugueses eram facilmente encontrados por aqui. Embora algumas palavras soassem estranhas, pelo fato do português de Portugal e o do Brasil terem suas diferenças, a leitura era fácil, e algumas expressões e palavras estranhas ao idioma falado em nosso país eram facilmente compreendidas pelo sentido do texto.
Possuo vários desses livros importados, dentre eles "Rock, O Ritmo do Século", tradução de um livro americano, com um ótimo acabamento em capa dura e muitas boas ilustrações em formato de colagem, ilustrações, por sinal, que ilustram essa postagem. Escolhi um tópico do livro, que fala do rock inglês, que invadiu os Estados Unidos e o mundo nos anos 60, trazendo sua maior influência: o blues, e o renascimento do rock americano com Bob Dylan e as protest songs. Nem todas as ilustrações que acompanham essa postagem foram extraídas desse tópico, mas mesmo assim resolvi colocá-las para mostrar o trabalho gráfico do livro como um todo. Segue abaixo o trecho destacado:
"Os anos sessenta viram a idade de ouro do rock. Depois de uma época de melosas canções sobre os problemas dos jovens, o rock regressou às origens - aos blues. Para surpresa de toda a gente, foram os grupos britânicos que a ofereceram.
O ritmo britânico nos anos cinquenta era tremendamente pobre. Os rockers ingleses não valiam nada, eram pálidas imitações dos americanos, com menos energia e menos dinamismo. Logo que alcançavam algum êxito, os melhores (Tommy Steele, Cliff Richard) como os que se despiam do seu estilo de rock'm roll, e iam direitinhos para os corais do tipo Knees up Mother Brown - o velho estilo da distração familiar.
Mas esta não é a história completa. A partir da guerra, muitos jovens ingleses enamoraram-se da América, terra da Coca-cola e dos disc-jockeys. Admiravam as revistas de histórias de quadrinhos, os arranha-céus, os filmes, a música. Alguns músicos jovens formaram os seus próprios grupos, e tentaram imitar o som dos discos americanos. Por volta dos anos sessenta, estes grupos tocavam para audiências locais, em pequenas boates, por toda a Inglaterra. Era o ambiente clássico propiciador de uma revolução musical: os grupos locais tocando uma música bem específica nos clubes; a indústria do disco é a opinião pública ignorando-os e procurando coisas diferentes.
O primeiro destes grupos que conseguiu um contrato para gravar um disco foram os Beatles. Love Me Do saiu em 1962. A beatlemania, uma espécie de histeria nacional, varreu a Inglaterra, em 1963. Em 1964, os Beatles conquistaram a América, colocando os seus discos nos cinco primeiros lugares das lista dos top. Nunca pretenderam ser originais - o seu som era uma mistura do rock primitivo e de rythm'n blues, de grupos harmônicos como os Drifters ou as Shirelles. Muitos críticos afirmaram que os Beatles não tiveram influência musical no rock. Isto talvez seja verdadeiro, mas está fora de questão. Eles foram os primeiros a usar cabelos compridos, a comportar-se descontraidamente, a fazer turnês e a tocar em grandes estádios, a escrever as suas próprias canções, a tentar complicadas técnicas de gravação (com o produtor George Martin), a escrever letras adultas (seguindo Bob Dylan), a atingir uma audiência mais adulta para o rock, a fazer álbuns que se vendiam tão bem como os singles, a exaltar e a reviver o interesse por artistas como Chuck Berry. Na altura em que os 'Quatro Fabulosos' se separaram (1969), o rock tinha atingido um nível técnico e econômico inteiramente novo.
Os grandes rivais dos Beatles eram os Rolling Stones; os Stones eram mais duros, mais violentos, mais ligados a problemas sexuais do que os Beatles, e tocavam rythm'n blues mais clássicos. Quando o seu primeiro álbum foi posto à venda em Nova Iorque, os anúncios diziam: 'Os criadores dos últimos sucessos na Inglaterra. Terão eles ido longe demais?' Na televisão americana, Ed Sullivan dizia piadas sobre os seus trajes e  o seu cheiro. Hoje, que são o único supergrupo sobrevivente da década de sessenta e que continua a fazer turnês, os Rolling Stones fazem jus ao título de 'O maior grupo de rock'n roll do mundo'.
Os Beatles e os Stones representam os dois grandes extremos do rock. Preferir um deles é como dizer quase tudo sobre o que pensa que o rock deve ser. Deverá ser melódico, inventivo, até mesmo artístico? Ou deverá continuar em bruto, básico, arrebatador? Música para o espírito ou música para o corpo? Havia muitos outros grupos ingleses. Durante um tempo, as editoras inglesas de discos contratavam qualquer jovem de Liverpool que soubesse tocar guitarra. O Mersey Sound não durou. The Animals, The Kinks, The Who, The Yardbirds (com Eric Clapton), The Halleys sobreviveram-lhe, pelo menos algum tempo. Haviam também alguns conjuntos mais velhos, grupos de rythm' blues que atuavam como rampa de lançamento dos jovens como John Mayall, Alexis Korner, Grahan Bond.
Quando os grupos ingleses invadiram a América, nos princípios da década de sessenta, nada acontecia por lá de especial. Os rapazes iam para a escola, andavam atrás das meninas e, na costa oeste, faziam surf. Isso era alguma coisa. Isso eram os Beach Boys.
Os Beach Boys eram um grupo que se formou da maneira clássica, entre amigos, parentes e colegas de escola; mas em vez de se basear em instrumentos, os Beach eram cantores; a versão  em rock de The Four Freshmen. Brian Wilson era para eles um bom compositor/harmonizador/produtor. Wilson é um daqueles faz-tudo do rock que o continente americano parece criar de vez em quando - o tipo que sabe de tudo no rock desde os quinze anos, ao mesmo tempo trabalhador e criador.
Beach Boys
À parte os Beach Boys, o que primeiro apareceu depois dos Beatles foi o folk. O folk era bonito e tinha conteúdo social, e agradava à juventude estudantil demasiado idosa para o rock'n roll mas muito nova para o tango. O jovem astro dos clubes de folk de Greenwich Village era Bob Dylan (Zimmerman). Tinha vindo de Minnesota, e falava da sua solidão e da sua reserva. Como alcançou sucesso, fez duas coisas que os seus admiradores de folk não podem esquecer: começou a tocar canções pessoais, canções de amor, e ao mesmo tempo, suas canções de protesto, e depois passou à guitarra elétrica. Realmente ele conduziu o folk à corrente principal do rock, como mais numa influência musical, mais um ingrediente musical, juntamente com o country'n western e rythm'blues. Os Beatles e todos seguiram Dylan nas letras adultas e nas canções de expressão pessoal. Dylan seguiu os Beatles (ele e John Lennon eram muito amigos) no uso da guitarra elétrica.
Bob Dylan
Depois de Dylan, houve uma série de bons cantores, vagamente adeptos do folk, e apareceram na cena americana alguns autores de rock - James Taylor, Joni Mitchell, Juddy Collins, Melanie, Tim Buckley, até Neil Young e outros que continuavam a tradição dos trovadores. Nos outros países há grupos de rock mas só a América tem esses menestréis nômades (que hoje vagueiam de Cadillac).
À parte Dylan, o princípio da década de sessenta foram os anos da 'caça aos Beatles'. Deixaram de se formar grupos harmoniosos de jovens, e em seu lugar apareceram inúmeros grupo de de rock com guedelhudos (*). Os primeiros que tentaram foram os Birds, que tinham a vantagem de o encarregado da publicidade ser o mesmo dos Beatles (Dereck Taylor) e de cantarem as canções de Dylan (Mr. Tambourine Man); tentaram... mas rebentaram. O mesmo se passou com o Buffalo Springfield, cujos membros foram para os grupos CSN e Poco. Protesto contra a Guerra do Vietnã, arte avant-garde e drogas, misturavam-se no underground, que talvez não fosse mais nada, mas era pelo menos uma tentativa de usar a energia bruta do rock como combustível para impulsionar no sentido de uma sociedade totalmente diferente. Nunca conseguiu mudar a sociedade, mas conseguiu mudar o rock. Fez aparecer novos grupos, como o Jefferson Airplane e o Greteful Dead,e, o que é mais importante, a audiência mudou. O público sentava-se e  ouvia a música, em vez de gritar e deitar tudo abaixo. Depende do ponto de vista de cada um afirmar que isto é progresso ou que é o fim do verdadeiro rock' n roll.
Depois, havia a Tamla Motown. Fundada por Berry Gordy em 1960, foi  a primeira editora de discos exclusivamente formada por negros que prosperou. Com a Motown, a música negra dissolveu-se completamente no mercado branco. Assim, evoluiu desde os básicos rythm' blues, música evangélica (sempre a mais respeitável música negra, devido à sua ligação com a Igreja), melodias brancas de pop e técnicas de gravação sofisticadas. "

(*) palavra usada pelos portugueses, que não consegui descobrir o significado