Palavras Domesticadas

Palavras Domesticadas

domingo, 30 de junho de 2013

Celso Blues Boy - Jornal Rock Press (1984)

O cantor, compositor e guitarrista Celso Blues Boy, falecido no ano passado, deixou sua marca no rock brasileiro. Surgido em plena safra de artistas e bandas que se destacaram nos anos 80, Celso fazia um trabalho diferenciado, mais voltado ao blues - uma vertente em que poucos se destacaram naquele período,  Celso acabou se tornando um de nossos maiores representantes desse gênero. Abaixo transcrevo uma matéria com Celso, publicada no jornal musical Rock Press nº 2 - novembro de 1984, assinada por Silvia Camargo:
"Celso Blues Boy é um cara comum. Celso Ricardo Furtado de Carvalho é que é um cara especial. Alguém que já nasceu com as antenas ligadíssimas no mundo, que aos 6 anos já ouvia e gostava de Ray Charles e que aos 15 pediu; 'uma guitarra ou a morte'. Alguém que próximo aos 13 anos de carreira (Celso tem 28), nunca abriu mão de tocar entre amigos: 'Sou afetivo', costuma dizer, 'todos tem que ter muito sentimento pela música e pelos que estão em volta para ficarem comigo'. Um cara místico, leitor de textos sobre 'seres elementares', algo cujo princípio é crer 'que todos os seres têm vida', cujos segredos estão contidos na obra fundamental de sua vida: O Senhor dos Aneis, do inglês Tolkien. Isto além de vascaíno e corintiano doente, fissurado por Fórmula Um. Desquitado, sem filhos, casado uma três vezes, Celso é capricórnio com ascendente em capricórnio, e isso o torna - como no símbolo do carneiro que não olha em frente, mas que sempre segue com seus chifres em riste - um completo obstinado.
Celso Ricardo se uniu definitivamente ao Celso Blues Boy quando, desistindo 'do clima frio que era tocar na banda dos outros', abriu mão de tudo (inclusive da grana) para brigar por sua carreira solo estourando agora com seu primeiro Lp solo (Som na Guitarra- Polygram).
'Conheço Celso Blues Boy, meu lado profissional, melhor do que conheço o Celso Ricardo. Pouco sei de mim. O único momento em que me sinto eu mesmo é quando componho ou ouço uma coisa de que gosto muito. A música é nosso ponto de de intercessão. Por isso é que se eu não for guitarrista, não sou nada...'
Celso Blues Boy está do jeito que gosta: sentado num bar, bem vazio e tranquilo, bebendo cerveja. Os amigos o cumprimentam, ou param para uma conversa mole. O telefone - apesar de público - já é praticamente seu. Uma extensão de sua casa:
- Aqui é o melhor lugar para se fazer entrevistas, explica.
Não que ele tenha medo, ou deteste. Só fica apreensivo diante de tantas perguntas:
'Acho esquisito alguém sentar aqui e, em pouco tempo, querer saber de minha vida'.
Mas pior do que isto, para ele, são as fotos: verdadeiras sessões de tortura.
- Este negócio de fotos fala muito do lance de ídolo, estrela. E eu não sou isto. Sabe, muita gente não toca bem, mas opta por ser estrela. Daí a produção, os climas. O cara veste uma camisa do que não é. No dia em que eu me tornar uma estrela, prefiro sofrer uma morte rápida...'
Neste ponto o Celso Ricardo cuida do Celso Blues Boy. Não deixa que ele ganhe ares estranhos ou saia por aí fazendo caras e bocas. 'O público sabe o que eu tenho para dar e eu também sei o que eles querem de mim'. Diante de qualquer tentativa de mistificação, cuidado, poranto: certa vez Blues Boy foi assediado por um garoto nos camarins, que pediu para ficar com a guimba de seu cigarro e uma lata de cerveja. Blues Boy ficou impressionado. Abraçou-o, tirou uma corda de sua guitarra, que deu junto com a palheta e o conselho:
'Não faça isso, cara, não é bom pra mim, nem pra você...' O mesmo quando vieram lhe pedir um botão de sua camisa.
A comunicação entre eles, público e Blues Boy, é sempre feita diante das músicas: 'No meio do som eu sempre os sinto próximos, ali, me admirando', explica Celso. Um público que tem de tudo: new wavers, rock'n rollers, heavy metals. Mas, principalmente, amantes da guitarra. Gente que sempre para diante do solo de Blues. Isto num país em que, dizem: 'O instrumento é desconsiderado'. Mas, no que Celso pensa mesmo, quando está compondo?
- Ou estou completamente depressivo, ou muito bem-humorado. Aliás, eu sou mesmo assim. Ninguém entende melhor a minha dor do que eu mesmo. Às vezes quando componho um heavy estou triste, às vezes irado, indignado, rancoroso. A única coisa que exige de mim um clima não depressivo é o rock'nroll, porque rock com letra de blues não existe...'
Como seu próprio nome diz, tudo em Celso Blues boy é um estado de alma. Blues é um estado de alma. Por isto Blues Boy detesta demarcações, rótulos, limites, províncias:
- Nunca me considerei um brasileiro ou um estrangeiro. Nasci na Terra, e isto basta. Interiormente sempre fui um cidadão do mundo. Por isto dizer que samba ou blues são brasileiros não existe. Música é arte, e, se apropriar de arte como regionalismo, é pobre. O bairrismo geográfico atrasa tudo, sabia? É causador até de muita tristeza...'
Porque então o blues ou o rock foram pouco ouvidos em certas épocas, e só agora ganham mais atenção? Numa visão mais estreita, para Celso, simplesmente 'porque a tribo errada de colonizadores veio pra cá'. Num sentido mais amplo, no entanto, ele vê tudo 'explosões de música'. Flashes periódicos que acontecem aqui e ali e que, agora, estão recebendo melhor atenção.
- A coisa acontece de tempos em tempos. Em 1977, por exemplo, no meio da discotéque e de todos aqueles patins, existiu o Apaloosa, um reduto de público compatível e fiel, onde criamos o Aero Blues e onde caras como Marcelo Sussekind e Renato Ladeira se apresentavam. Hoje, vemos uma explosão maior talvez, mas apenas em termos numéricos. Tudo ainda está se criando, para daqui a duas gerações, os novos ouviram realmente, a essência do rock..."

sexta-feira, 28 de junho de 2013

A Grande Surpresa de João Gilberto

O cantor João Gilberto, além de seu inegável talento, é também conhecido por seu jeito recluso, e por não dar entrevistas e pouco sair de casa. Porém para surpresa de muita gente, um dia João resolveu aparecer de surpresa nos estúdios da extinta Rádio Jornal do Brasil AM na madrugada do dia 12/12/90 para homenagear Noel Rosa, que no dia anterior completaria 80 anos, se estivesse vivo. Na foto acima, João aparece diante do microfone da rádio. Não ouvi ao vivo a rápida entrevista dada por ele, embora fosse ouvinte da rádio, porém pude ouvir a gravação na noite seguinte. Abaixo, o relato da grande surpresa, noticiada pelo Jornal do Brasil do dia 13/12/90:
"A última ação-relâmpago do cantor João Gilberto atravessou a madrugada de ontem com uma doce e inacreditável surpresa: pouco depois da meia-noite, João Gilberto apareceu de repente no estúdio da Rádio Jornal do Brasil AM, para homenagear os 80 anos de Noel Rosa com o melhor estilo joãogilbertiano de ser insólito: 'Sou João Gilberto e vim aqui apresentar em primeira mão uma gravação de Palpite Infeliz porque hoje é aniversário de Noel', disse João aos primeiros minutos do dia 12 na portaria do Jornal do Brasil, para estupefação total do produtor David Trompowski.
É a primeira gravação de uma música de Noel Rosa feita pelo lendário João Gilberto, incluída no próximo LP do cantor, com lançamento previsto para março pela PolyGram. E, à 1h02 de ontem, o cantor-símbolo da Bossa Nova entrava no ar, ao vivo, no programa Noturno, apresentado por Maurício Figueiredo que, perplexo, não cansava de repetir aos ouvintes: 'É incrível! João Gilberto está aqui. Que presente especial! Estou emocionado! Eu mesmo não estou acreditando'.
Na noite de terça-feira, quando Noel Rosa faria 80 anos, João Gilberto exaltava o gênio do poeta da Vila com três amigos: o maestro Henrique Gandelman, seu empresário, Gil Lopes, e seu advogado, Roberto Algranti. Ele aprovou a ideia de uma homenagem a Noel Rosa e decidiu fazê-lo naquele instante.
'Vamos então para a Rádio Jornal do Brasil', disse. Chegaram no primeiro instante do dia 12, quando o diretor do Sistema JB de Rádio, Geraldo Leite, estava em sua casa no Leblon já de pijama. Quase caiu da cama ao ouvir na Rádio Jornal do Brasil que João acabava de chegar aos estúdios para apresentar uma gravação inédita. 'Eu levei o maior susto. Liguei para a rádio para saber que história era aquela. Ninguém entendia nada, mas ele estava mesmo lá.'
Geraldo Leite vestiu-se às pressas e, em questão de minutos, chegava à Avenida Brasil para se despedir do cantor. 'Ele já estava de saída. Quis saber se a rádio à noite pegava outros estados para que a homenagem fosse nacional. Eu expliquei que de noite a transmissão de fato atinge a muitos estados e ele gostou. João Gilberto estava no maior astral', diz Geraldo Leite. O apresentador do Noturno, de 0h30 às 2h da madrugada, chegou a entrevistar João Gilberto, mas o cantor respondeu com um minimalista 'pois é' à maioria das perguntas.
O andamento de Palpite Infeliz é alterado para adaptar-se ao violão de João, os tons são graves e o arranjo - 'pois é, muito bonito' - com muitos instrumentos, também é praticamente inédito nas últimas gravações do cantor. Foi escrito pelo americano Clare Fisher. A cessão de uma música que só em março chegará às lojas surpreendeu também a divulgação da gravadora PolyGram, que deveria enviar o disco para todas as rádios e jornais ao mesmo tempo, sem favorecimentos a nenhuma empresa. Oficialmente, porém, a gravadora deu a volta por cima: a cessão da fita para as rádios (João foi depois à Rádio Globo) seria uma homenagem a Noel Rosa.
O diretor artístico da gravadora, Mayrton Bahia, explicou que houve uma 'autorização especial', feita, segundo ele, verbalmente a João Gilberto, para a execução da música 'apenas nesta semana para valorizar as homenagens a Noel Rosa'. No entanto, Mayrton Bahia disse esperar 'muito' que as rádios não fiquem tocando a fita o verão inteiro, 'para não prejudicar o próprio João Gilberto e o lançamento mundial de seu próximo disco' ."

quarta-feira, 26 de junho de 2013

Gilberto Gil - Revista Ele Ela (1974) - 3ª Parte

"Ao mesmo tempo, Gil vai muito pouco ao mundo. Ele gosta da casa, da cozinha, gosta de ver de manhã se o seu chá está pronto. E diz: " Eu não gosto de viver o conflito entre duas coisas estando numa só."
Quando era garoto ouvia rádio:
- Eu tinha dois anos, sentava do lado do rádio. Quando tocavam Bach, Vivaldi, eu falava pra minha mãe: essa música vem do céu. Lá tem uma sala grande onde os anjos tocam. E de lá liga tudo aqui, não é? Minha mãe respondia; - É. Quando Dircinha Batista cantava, aí eu achava que a música vinha do mundo, aqui do Rio, onde havia outra sala que também ligava lá pra casa.
Era a fantasia do menino entre o preto e o branco, o bem e o mal, o europeu e  o brasileiro. A herança estrutural da coisa cultural que você tem. Mas além da fantasia, também era verdade: Bach e Vivaldi são voltados para Deus.E as outras coisas são as pessoas falando do coração, da mulher amada, do mundo. Aos 6, 7 anos, comecei a ter a informação verdadeira. Fiquei chocado a primeira vez que vi um disco de música clássica e quando vi um violino ao vivo tocando. E passei a desfazer a fantasia, com um pouco de medo de ter de deixar de acreditar naquilo.
Quando fala da música popular brasileira, Gil se empolga.
- Quem acha que a música brasileira está em descenso agora está surdo, como diria Caetano. A Pedra das Esmeraldas *- o último disco de Jorge Ben - é uma coisa de anjos, veio lá do lugar de onde os alquimistas vieram. O Milton Nascimento eu acho chocante. Como é que as pessoas podem reclamar diante de um trabalho como o dele? O negócio do Chico é deslumbrante e o Raul Seixas fez um primeiro disco do maior nível. Pra quem tem uma atitude contemplativa, pra quem sabe ver, pra quem vai ao jardim ver a flor como ela está hoje, tem muita coisa interessante na música brasileira.
 E ele se empolga mais ainda quando fala do saudosismo de algumas pessoas em relação ao seu trabalho, que as leva a dizer: 'Eu gostava mais dele antes.'
 - É como o cometa: vai passar e fica todo mundo amedrontado. As pessoas se sentem mal diante do que não é comum. Quanto mais você escapa do compromisso com a condição tradicional do artista, mais despojado fica, mais você amedronta. Na verdade as pessoas devem ficar um pouco envergonhadas com o que faço. porque o que eu faço é muito semvergonha. Elas queriam lantejoulas e a distância estabelecida pro palco. E as pessoas vêm e dizem: 'Eu não vim aqui pra ver ensaio.' elas não entendem que estou ensaiando a vida inteira.
Gil não tem nenhum problema de falar da vida pessoal. Casado com Sandra, tem um filho, Pedrinho, nascido em Londres e a essas alturas já deve ser pai de um terceiro, pois tem outro filho, João Gilberto, com Nana Caymmi.
- Casei a primeira vez, não era ali. Casei a segunda, também não era. Agora, acertei. Sempre tive vontade do exercício livre da vida, fora do compromisso da minha criação rígida de não poder jogar bola na rua com os garotos.
No show, ele cantava:
- O herói tem uma capa de estrelas
E um cinto de cometas .
Gilberto Gil não é herói, não tem capa de estrelas e nem cinto de planetas. Mas poderia ter. Fácil."

* O nome correto do disco de Jorge Ben é "A Tábua de Esmeraldas"


terça-feira, 25 de junho de 2013

Gilberto Gil - Revista Ele Ela (1974) - 2ª Parte

"Há algum tempo, o nome de Gil andou muito ligado ao fenômeno da aparição de discos-voadores em nosso país. Mas ele desmente que tenha visto um, embora tenha feito muitas músicas que se referem a eles.
- Se creio nos discos? Sim, e não. Sim, quanto à sua explicação científica. Se o homem já atinge outros planetas, porque uma civilização mais adiantada não poderia manter contato pessoal conosco? Não creio é em baboseiras e relatos sensacionalistas que só servem para para tumultuar e desinformar a realidade dos fatos, desacreditando a gente perante a opinião pública. Fizeram uma onda na imprensa, mas nunca vi um disco. Estive realmente em Brasília com um pessoal muito sério e vi experiências de materealizações de corpos em campo aberto, no mato. Brasília é uma cidade muito conotada com limites de transcendência entre o material e o imaterial.
E ele, embora não pertença a nenhum culto definido, confessa tranquilamente a sua intensa religiosidade:
- É  a essência da minha natureza a fé, a crença na transcendência, no caráter da existência de uma vida superior como reflexo dessa vida terrena e vice-versa. Acredito no céu e na terra, e então tenho de ser mística, já que essa é a classificação dada às pessoas que vivem no mundo da lua, como eu.
A macrobiótica é outra face das curtições de Gil, que, praticando-a, perdeu mais de 20 quilos. Mas em nenhum momento se tornou um fanático.
- A macrobiótica se transformou numa religionete, em mais um desses códigos, dessas leis, quando devia ser exatamente a procura da liberdade. Faço macrobiótica a anos, mas não de uma maneira rígida. E sinto que ela me transformou muito, inclusive em termos metabólicos, na própria maneira de meu corpo reagir aos alimentos. Tem uma música que fiz agora que diz assim:
Quando a gente tá contente, gato é gato, gente é gente, barata pode ser um barato total. Tudo que você fizer deve fazer bem. Nada do que você comer deve fazer mal.
'A barata é uma brincadeira com Caetano, que tem medo de barata', diz ele, brincando. E continua: - 'Porque eu acho que quem está bem, está bem, e não olha uma porta e diz:
- Estou bem olhando a porta.'
Durante os tempos em que viveu em Londres, Gil começou seriamente a tocar guitarra. Sua música enriqueceu, abriu caminhos, perdeu as amarras e deu prosseguimento à grande viagem.
Na volta, o Nordeste e as cirandas. Agora ela é tudo; jazz, Nordeste, música eletrônica, influência de antigos mitos, como Luiz Gonzaga, Chico Alves, Bob Nelson, Caymmi, João Gilberto e dos mitos posteriores, como os Beatles, Miles Davis, Janis Joplin, Herbie Hancock. Deixei de ser o compositor comprometido com o processo urbano, e que vai rever o folclore apenas como estudioso.
 Ele disse isso em 72, quando voltou de Londres. E agora, Gil, você é comprometido com o que?
- Com nada. Eu sou apartidário, apolítico. E cada vez as coisas brotam de mim mais puras, descompromissadas de quaisquer interesses. Porque os interesses são escolhas políticas que o intelecto faz.
A minha música perde isso cada vez mais. E o amor passa a ser como o de mãe, irracional.
Mas o processo de transformação que Gilberto Gil, como pessoa e como artista sofreu não foi mole. E o levou a dizer coisas assim.
- Quando as coisas se transportam para o consciente, já são quase um fantasma do movimento real que provocou tudo. As mudanças de comportamento são quase sempre provenientes de momentos dolorosos que, numa pessoa que procura a saúde, o equilíbrio, não se fixam na mente. Então a gente sofre as transformações e não sabe como.
Mas o baiano não gosta de dar a impressão de que sabe de tudo. É um cara simples, esse Gil, sem afetação, acessível para as coisas, as pessoas e o mundo. O riso brilha sempre, e os olhos.
- Eu sou muito acessível, muito envolvido. Mas isso não me prejudica. Se o reflexo das minhas atitudes com as pessoas e das pessoas comigo não me fizessem bem, eu não manteria isso. Ser a facilidade de acesso a mim e de mim com relação ao mundo existe, isso é a forma da natureza manter seu fluxo."
(continua)

segunda-feira, 24 de junho de 2013

Gilberto Gil - Revista Ele Ela (1974) - 1ª Parte

Em 1974 a revista Ele Ela trouxe uma boa matéria/entrevista com Gilberto Gil, feita pelo jornalista Ernesto Fernandez, chamada "Gil, o cantador". Reproduzo abaixo:
"Ele vive procurando. Na vida e na música. Às vezes se engana, dá meia-volta e começa de novo. Em muitas, acerta. O tempo suficiente para encontrar um novo caminho. Um homem alerta para tudo - da ecologia à parapsicologia e as transas do astral - simples como o Vale do Ituaçu, onde passou a infância, complexo como Lunik 9, que compôs e cantou. Gilberto Gil: um homem do planeta Terra e do século vinte.
Gilberto Gil é um sujeito muito entrevistável. Fala muito, e sem problemas, fala bonito. E o papo começado nos camarins do Teatro Teresa Raquel, onde fez um show, pode ter todos os cenários por onde andaram os seus pés e sua música. Astros, estrelas, galáxias, Londres ou simplesmente  a Bahia.
Nos olhos dele brilham umas luzes que não são exatamente as do flash do fotógrafo. E ele fala:
- A música é hoje a minha grande mãe. Já fiz e faço muitas coisas na vida. Mas hoje, fazer música só me basta. Me dá a satisfação do eu agente, da ambição do intelectual, do saber, da transmissão. A música me oferece toda a nutrição necessária. É como se ela costurasse tudo na minha vida. É o fator de equilíbrio entre as coisas que faço. É como se me oferecesse um espelho de mim mesmo. E cada vez esse processo se intensifica e aflora mais no nível da consciência tranquila. Tem momentos na vida de um cara classe média como eu (que teve acesso a informações e formações) em que ele acha que pode fazer uma porção de coisas.
Hoje sei que, fazendo música, estou trabalhando, pintando, escrevendo. É como se fosse a arte total.
Gil é mulato, de ginga bem brasileira, mas seus dedos sabem dedilhar uma guitarra com a mesma presteza com que seus irmãos americanos tocam blues. Ou com o mesmo sentido de ritmo com que os irmãos africanos tocam atabaques.
- Quando digo que minha música é preta, falo basicamente do problema rítmico, aquela sonoridade onde o ritmo é, ao mesmo tempo, harmonia e melodia. Aquela coisa negra que vem do próprio modo negro de linguagem. E talvez exista aí também um elemento índio. O negro é que tem a responsabilidade na música americana e, de certa forma, na brasileira também.
Gil é bonito, mas diz que não é.
- Sempre fui menos aceito mesmo. E aí entra uma porção de coisas. Eu não sou tão relaxado como Caetano. Eu não sou tão bonito. Eu olho de uma forma mais dura e tudo isso vai do meu corpo. Desse veículo que Deus me deu. Deus me deu essa aparência menos saudável.. E é por isso que eu tenho de fazer com a minha alma um trabalho mais difícil. Tenho de ser uma coisa mansa, dentro dos padrões da beleza.
Quem já viu Gil tocar e cantar deve ter percebido que, quando toca, ele parece tomado por qualquer coisa, em transe. Como se tivesse sido possuído por um enlevo poético, diria parte de seu público. Ou como se tivesse se esquecido do mundo, diria outra. E ele mesmo explica o processo.
- A sensação de que sou um instrumento da natureza vem do sentido de uma totalidade da música.
De repente, você perde a divisão de sentimento e pensamento  com relação ao que está fazendo. Ao ser tocado, impulsionado, eu soo, viro música, me interpreto. Como se eu fosse a manifestação do som que passasse por ali naquele momento. Como se eu fosse um para-raio ou uma antena. Como se uma manifestação musical tomasse conta de mim. Não penso muito no que estou fazendo. Viro um pensamento vivo. É muito parecido com os fenômenos dos cultos, dos transes mediúnicos. E vem junto todas as minhas coisas, e também toda a história do homem. Sou tomado por algo e me dissolvo nele, meu ego se esvai. E vem o choro, o grito, o lamento, a alegria, tudo. É um barato total. A música, como eu a encaro, é uma coisa do campo da mediunidade. O próprio Ezra Pound diz que os artistas são antenas do sistema. E  a gente vai começar a viver tempos muito incríveis a respeito disso.
Quanto a mim, quero estar informado, quero saber de tudo, porque os tempos são difíceis no país e no mundo e quanto mais a gente souber mais vai poder fazer pelo homem."
(continua)

domingo, 23 de junho de 2013

Movimento Black Rio

Na segunda metade dos anos 70, um movimento de black music nacional ganhava força, e tomava conta do cenário musical - o movimento Black Rio. Por ter nascido em bailes no subúrbio carioca, o movimento ganhou o nome da sua cidade de origem. Na época, criou-se muita polêmica com relação à validade de um movimento que trazia influências internacionais, e determinadas alas mais conservadoras viam o movimento como algo sem valor. Lembro que os principais ataques vinham de sambistas revoltados pelo fato de determinadas escolas de samba alugarem suas quadras para equipes de som tocarem aquele tipo de música, pelo fato dos "templos do samba" servirem àquele movimento. Muitos críticos também caíam de pau no Black Rio, mas é verdade que alguns astros da MPB, como Gil e Caetano, por exemplo, aderiram ao movimento. Caetano lançou em 77 o disco Bicho, um álbum bem dançante, como pregava o movimento, e fez shows acompanhado pela Banda Black Rio, um dos principais porta-vozes dos blacks brasileiros. Gil lançava no mesmo ano o disco Refavela, que também trazia elementos da música dançante do movimento black.
Em sua edição nº 30 (fev 77), o Jornal de Música trazia uma longa matéria sobre o assunto, e trazia o depoimento de um dos líderes do movimento Black Rio, Dom Filó:
"Bom, o negócio começou em 72, 73, lá no Clube Renascença, onde eu e o grupo cultural - a direção cultural do Renascença - estávamos fazendo um trabalho de cultura para os jovens, mesmo. O lance era Orfeu Negro, de Vinícius, então a gente montou o Orfeu, aí, tudo bem, um espetáculo maravilhoso, um sucesso, mas jovem negro nenhum. Ninguém tava ligado nesse negócio de cultura. Eu com aquilo compreendi e entrei numa de fazer som. Com o som o pessoal se dividiu e nós começamos a fazer um som lá nos domingos às 8 e meia.
Foi um sucesso. Escolhi o nome e fiz uma programação com slides, filmes, uma programação cultural com muito som variado. O nosso repertório, no início, era o refugo do repertório das boates da Zona Sul. Lá, o discotecário era obrigado a tocar a música que estivesse na moda, assim eles cediam pra nós uma pá de músicas inéditas e que ninguém possuía.. Quem escolhe a música é o discotecário, ninguém da equipe dá palpite.
Soul Grand Prix é som em alta velocidade, então esse nome foi bolado assim porque não tem nada de político e não trazia nenhum problema. Nós apresentávamos slides de cantores negros, nacionais e internacionais, mas colocávamos também pilotos de Fórmula Um, fazíamos uma mesclagem, um trabalho bonito. Aí fomos fazendo sucesso, nos bares também porque em termos de roupas nós éramos muito loucos, sabe? Pintávamos cheios de transa, e o pessoal ficou assim. e sacou em nós um novo caminho.
Dom Filó
Nós fomos os primeiros no campo áudio-visual. Nós começamos projetando slides de Shaft, Wattsax e outros filmes. Depois ficamos a fim de conscientizar o público, projetando slides de Duke Ellington, Dizzy Gillespie, fazendo uma espécie de introdução à cultura negra por fontes que o pessoal já conhece, como música e os esportes.
A Soul Grand Prix foi a primeira equipe, ela foi além de equipe, fez um lance diferente. Depois surgiram outras, mas na maioria não são um som diferente, com outra concepção, não sacaram nada de novo.
O fato do pessoal ter deixado o samba pelo soul foi uma coisa incrível. Foi porque o samba saturou Não pela forma social, não, mas pelo próprio sabor do samba. Nessa época de 72, estava-se curtindo a nostalgia do samba de 66, daquelas noites de partido alto, daqueles sambas-enredo. Quando chegou essa época de 72/73, o samba tava no auge, mas um auge deturpado, Antonio Carlos e Jocafi, a rapaziada não tava nem aí. Era uma malhação, também, era uma grana violenta. E a rapaziada concluiu que não dava mais. Vamos curtir outro som. E o soul tem raízes. Uma mistura de soul com samba tem mais energia, é uma mistura incrível.
Hoje a coisa já está mudando. Hoje, por lá, você já encontra discotecas. O Black Rio não vai ficar fazendo aquele som só visual. Está mudando mais para Herbie Hankock, Avarege White Band. Até Bee Gees lá é um sucesso com aquela música  It Should Be Dance. É bem discoteca. Há um ano atrás, o pessoal não aceitava nada que tivesse guitarra, jogavam coisas nos discotecários. Hoje já aceitam"

sábado, 22 de junho de 2013

Um Enigma Chamado Yoko

Ainda sob o forte impacto do assassinato de John Lennon, ocorrido em 8 de dezembro de 1980, a revista Fotos e Fotos Gente, de 29/12/80, trazia uma matéria sobre John, e dedicou a Yoko o texto abaixo, intitulado "Um Enigma Chamado Yoko":
"Depois de viver 12 anos com Yoko Ono, numa das últimas declarações de sua vida, John Lennon afirmava; 'Quero morrer antes de minha mulher; eu não saberia viver sem ela.' É... só por essa frase, mesmo aos que jamais chegaram a gostar dessa japonesa, mais uma vez ficava comprovado: Yoko Ono é uma mulher, no mínimo, diferente. Nascida há 47 anos em Tóquio, ela é filha de um dos mais importantes banqueiros do Japão. No início dos anos 40, foi morar em São Francisco, Estados Unidos. Mas a Segunda Grande Guerra eclodiu e ela voltou a Tóquio. No começo dos anos 50, entretanto, partiu de novo para a América, indo estudar no Sarah Lawrence College. Logo depois, desafiando sua família, Yoko casou com um anônimo músico japonês - e enquanto essa relação durou sua mãe jamais voltou a falar com ela.
Irreverente, enigmática e sempre adiante de sua própria época, Yoko envolveu-se com profundas pesquisas sobre arte de vanguarda, passando a viver cercada por artistas. Separou-se do primeiro marido, tornou-se artista plástica e, em seguida, casou-se pela segunda vez - dessa feita com um conceituado artista americano de nome Tony Cox, de quem também logo se separou. No entanto, mesmo já tumultuada, a vida de Yoko Ono só passou a interessar ao mundo após 1967, ou seja: após o seu primeiro encontro com John Lennon, numa exposição de arte de vanguarda, em Londres. Ele -  então casado com Cynthia, sua namorada desde a infância - interessou-se pelos quadros que vira, chamando Yoko para uma conversa mais detalhada sobre aquela arte. Desde então, e a despeito de tudo, o amor os uniu. Pouco tempo após, Lennon e Yoko casavam-se em Gibraltar e, para espanto de meio mundo, em plena lua-de-mel deixavam-se fotografar de pijamas e na cama. Foi quando a própria Yoko explicou: 'Num mundo tão violento, nosso amor tão pleno e declarado deve servir de exemplo.'
Com a chegada  de Yoko, tudo mudou na vida de Lennon. Os Beatles, que já não andavam bem, logo após se desfizeram. E como muitos responsabilizavam as atitudes - 'prepotentes e intrometidas' - da japonesa por esse fim, um ódio mortal de todos os trilhares de fãs do conjunto voltou-se contra ela. Foi uma fase terrível, mas John e Yoko a atravessaram, esfregando no mundo a força de sua ligação. Vivendo praticamente para eles mesmos, trabalhando juntos e, muitas vezes, chocando o mundo com a originalidade de suas ideias e comportamentos, há cinco anos, John e Yoko tornaram-se pai e mãe de Sean. Foi por essa época que, mais uma vez, Yoko mudou tudo na vida do marido: dizendo para ele que já cuidara do bebê durante os 9 meses que o desenvolvera dentro de sua barriga, a japonesa passou ao ex-Beatle a responsabilidade de cuidar do filho e foi para a rua, cuidar dos negócios do casal. Muitos acusavam Yoko de ser mais mãe do que mulher de John, mas ela, como sempre, assumindo o que fazia, a esses respondia; 'Entre nós há uma relação do tipo educador. Eu sou a professora, ele o aluno.'  Evidentemente, esse seu jeito de estou na minha, aceite quem quiser, nunca chegou a ser muito simpático à maioria. E, como Yoko raramente sorri, tudo se agravava ainda mais. Quis a fatalidade entretanto que, após o brutal assassinato de John Lennon, Yoko Ono se transformasse numa espécie de herdeira universal do carisma de seu marido. Desde o momento em que ele morreu e que ela, ainda no hospital, pediu que todos rezassem por ele, 'já que John amava e orava pela humanidade', toda a revolta que ainda resistisse contra ela desapareceu. Hoje, finalmente, Yoko Ono é amada - mais outra consequência de sua passagem pela vida de John Lennon."

quarta-feira, 12 de junho de 2013

Revista Bizz Especial Reggae - 1991

A revista musical  Bizz era de circulação mensal, e vez por outra trazia uma edição especial. Em junho de 1991, lançou um número destacando o reggae. Trata-se de um ótimo documento sobre o ritmo jamaicano, e trazia na capa, como não poderia deixar de ser, seu maior representante - Bob Marley.
Com um ótimo trabalho de pesquisa, a revista fala sobre a Jamaica e sua história, destacando o surgimento do reggae e seu desenvolvimento, até ganhar o mundo. Fala também sobre o rastafarianismo e seu líder espiritual Hailé Selassié: "O rastafarianismo combina crenças milenares de origem africana com influências do cristianismo fundamentalista norte-americano, em especial da  Igraja Batista. Não se trata de uma religião: não há organização, não existe 'diretoria'. Os rastafaris não acreditam no poder organizado, que consideram intrinsecamente mau. Rastafari é uma atitude, um jeito de enfrentar a vida. É anarquia."
Alguns dos astros mais representativos do reggae são biografados, como Bob Marley (chamado de O Messias), Jimmy Cliff e Peter Tosh - esses três astros são chamados de "santíssima trindade do reggae".
Peter Tosh
Outros nomes importantes do reggae também ganham destaque, e são chamados de "asseclas, discípulos e outros mestres": Lee "Scratch" Perry (principal expoente da estética dub), Toots & The Maytals, Desmond Dekker (primeiro jamaicano a emplacar um hit internacionalmente), Black Uhuru, Sly & Robbie ( baterista e baixista que se notabilizaram por formarem a cozinha mais requisitada da música pop de influência negra), Eddie Grant, Bunny Linvingstone (também conhecido como Bunny Wailer) e Junior Murvin, que escreveu o primeiro hit jamaicano a ser gravado por uma banda punk - Police and Thieves, gravada pelo The Clash. A banda inglesa, por sinal, também é destacada na revista, num capítulo dedicado ao reggae que era feito na Inglaterra, ao lado de outros nomes, como Don Letts, UB 40, The Police, Steel Pulse, Aswad e The Specials, que tocavam ska, uma das variações do reggae.
 A revista também traz entrevistas exclusivas com Yellowman, Black Uhuru e Aswad. O reggae produzido no Brasil é também destacado e mostrado através da cena de algumas capitais, como São Paulo (Nomad, Walking Lions, Jai Mahal e Pacíficos da Ilha, Radical Hoots, Luis Vagner e Amigos Leais, Cacau Ganb e Otrabanda, Nova Jóya, TC, Banda Luanda, Lumumba, Sinsemilla), Salvador (Lazzo, Édson Gomes, Tonho de Onorina), São Luís (Tribo de Jah) e Rio de Janeiro (Cidade Negra, Kmd-5, Ubandu Du Reggae, Dom Luiz Rasta, Alberto Santos,Guiné Bissau).
Algumas subdivisões do reggae também são analisadas, como o dub, o dancehall e o reggamufin, e alguns representantes destacados, como Soul II Soul, Massive, Shabba Ranks, Steely And Clevie, Shineahead, etc. Ao final, uma discoteca básica é apresentada, e dividida em vários estilos, como Clássicos, Dub Poets, Dub, DJs, White Reggae, Românticos, Dancehall, etc. Trata-se, sem dúvida, de um excelente material para se entender melhor o reggae e sua filosofia espiritual e musical.

segunda-feira, 10 de junho de 2013

Marina Lima É Rock'n Roll

Nos anos 80 a Editora Três lançou uma revista em edição especial destacando as mulheres no rock. A revista, intitulada Rockeiras, trazia em destaque várias mulheres que faziam parte do mundo do rock, como Janis Joplin, Chrissie Hinde, Carole King, Carly Simon, Joan Baez, Joan Jett, Nina Hagen, etc. Também trazia mulheres que faziam rock no Brasil, desde as pioneiras Cely Campelo e Wanderléia, até Rita Lee, Frenéticas a artistas mais recentes até então, como Marina Lima. Trazendo como título "Marina Morena, Simples como Fogo", a matéria dizia:
"Marina rockeira? Sim, por que não? É verdade que ela faz arranjos blues, baladas... Mas também, rock como ninguém. Um rock travesso, suave, gostoso. Tanto que com sua voz rouca consegue ser tão atraente e devasatadora quanto as grandes estrelas do show-bizz com suas toneladas de sons e berros monumentais. Quem já viu Marina no palco sabe disso.
Marina Lima, carioca, 30 anos, cantora e instrumentista. Com guitarra ou violão em punho, cria, transforma e reinventa músicas, muitas das quais já consagradas, como 'Mesmo que Seja Eu', na boca de Erasmo Carlos, e que se transformou num dos maiores sucessos de Fullgás, LP lançado em 84.
Pra mostrar seu verdadeiro trabalho, Marina, inicialmente, veio travestida de gata super sexy, rótulo usado pela gravadora para divulgar seu primeiro LP Simples como Fogo. Lançado em 78, o disco vinha recheado de blues e, ela, com sua voz quente recriava e cantava maravilhosamente Dolores Duran, Caetano Veloso, Moraes Moreira...
Marina sentia que era hora de colocar as coisas em seus devidos lugares, pois seu potencial não cabia apenas nesse ou em qualquer outro rótulo: afinal tinha uma proposta de trabalho bem definida. Por isso, quem quisesse falar com ela, deveria tratá-la como qualquer outro compositor, devendo perguntar sobre sua música, seu processo de criação nas composições e sua atuação no estúdio.
 Assim, ela mudou de gravadora, fez Olhos Felizes, seu segundo LP, que ainda foi lançado com resquícios da onda da gata sensual, mas que, aos olhos de quem sabe ver, deixava definitivamente claro qual era a dela.
Para fazer o terceiro disco do seu jeito, resolveu dar um xeque-mate: 'Ou vocês deixam fazer o que quero ou então largo a música e vou estudar.' Resultado: com o irmão Antonio Cícero, seu parceiro de sempre - ele faz e letra da maioria das músicas que ela canta - produziu Certos Acordes, um trabalho consistente, com cara, corpo e alma de Marina, e que acabou sendo um dos mais elogiados pela crítica em 81...
Deu certo, não deu? Mas Marina, na sua essência, segue a máquina das rockeiras de verdade: a vida é um tiro no escuro porque não existem modelos a serem copiados. No disco seguinte, Desta Vida, Desta Arte, voa mais alto e arrisca:
'Meu tempo (estou aprendendo)
... E nem quero mais a chave do mundo
Eu sempre mudo, nada é igual
Mas o fundamental
Pra mim é saber achar
O que esse tempo tem pra dar...'
Quanto aos shows, sua postura no palco seguiu o mesmo caminho a cada espetáculo surgia uma Marina mais mais forte, mais segura, que aos poucos tinha aprendido a conviver com uma plateia sempre muito ouriçada. Desfilando canções modernas, urbanas, tecnopop e tudo mais a que tem direito. Marina conseguiu um lugar definitivo entre as melhores da Música popular Brasileira."

sexta-feira, 7 de junho de 2013

Sergio Dias Fala Sobre o Flower Power (Parte 3)

"Contudo, o sonho também foi uma grande utopia. Você não pode buscar um sonho em LSD, por exemplo. Ou ele vem concreto ou é apenas um sonho. Todos tiveram de cair na real quando começaram a ver os amigos se perdendo e a potencialidade negativa do LSD, que na verdade era uma grande farsa. A gente não foi feita para viver naquele universo lisérgico. Tudo parece muito bonito, lindo, mas quando você vê o Hendrix morrer percebe que grande idiotice é isso. Não posso compactuar e dizer: 'Nossa, que gênio, morreu quando estava no auge' O cacete, meu! Queria que ele estivesse vivo, arrebentando a minha cabeça com sua música. Outra enorme babaquice foi a Janis Joplin ter se destruído daquela maneira. São egos que foram completamente devastados. Brian Wilson, Syd Barret... Quanta dor e desperdício. Esse foi o lado triste da coisa.  Meu irmão (Arnaldo Batista) com toda a problemática, que foi estupidamente terrível para todos nós. Foi uma das maiores dores da minha vida. O Timothy Leary estava certo quando foi ao Senado americano pedir que só fosse distribuído LSD puro, de empresa Sandors, que não fosse misturado com outras substâncias ou feito sem nenhum controle. O uso de LSD deveria ter sido regularizado e analisado com mais cuidado.  Mas, com toda aquela busca pela liberdade, ninguém queria saber de controle, ainda mais sobre os efeitos do ácido lisérgico.
Cartela de LSD (Liserge Saure Diethylamid)
Além disso, havia a inexperiência, a falta de conhecimento, que é comum entre pessoas tão jovens. Para tudo você precisa de alguém mais experiente. No México, se você for tomar peiote, vai achar um guia para te acompanhar. Com a ayahuasca é a mesma coisa, tem sempre um mestre te acompanhando. Mas o LSD era dez vezes mais potente e não tinha ninguém pra te guiar. É a mesma coisa que pegar um garoto de 15 anos e lhe dar um Ferrari de Fórmula 1. Ou ele é muito bom e não passa da segunda marcha ou ele simplesmente morre.
A maior problemática que aconteceu com essa postura radical da juventude, com a quebra das estruturas tradicionais, foi não colocar nada em troca depois dessa devastação cultural. O sonho dançou por questões práticas e técnicas. O americano não é comunista, como ele iria realmente dividir as coisas? Acho que a vida comunitária não é muito praticável em lugar nenhum. A humanidade é individualista e necessita de altos e baixos, líderes e povo, índio e cacique. Senão não tem essa beleza. O que seria da gema sem a clara?
Mas a herança daquele tempo é positiva e incalculável. O mundo sofreu uma reviravolta da qual não vai se recuperar tão cedo. O final dos anos 60 veio para ficar, mesmo que o John Lennon tenha dito que o sonho acabou.
Os Mutantes, por exemplo, têm uma projeção mundial hoje com a qual jamais sonhou. Não houve tantas coisa simultâneas acontecendo nas outras décadas. Quando os Beatles lançavam um disco, o mundo parava para ouvir. Quem viveu o crescimento musical de todas essas bandas, ano a ano, disco a disco, é privilegiado. O rock era extremamente forte na época. Miles Davis e John McLaughlin foram ouvir rock porque era impossível ignorá-lo. Como o McLaughlin poderia ouvir Jimi Hendrix e deixar passar em branco?
A profundidade do rock era imensa, absurda. 'Eleanor Rigby', dos Beatles, por mais pop que seja, faz você cair de costas. Um músico de jazz que escutar essa música vai pensar muito antes de julgar como uma coisa de garoto. Nada disso. A harmonia de 'Julia', do Lennon, é incrível. Os gêneros musicais não tinham outra opção a não ser olhar para o rock'n roll. Sou um enorme privilegiado por ter vivido esse período. Sou resultante disso tudo."

quinta-feira, 6 de junho de 2013

Sergio Dias Fala Sobre o Flower Power (Parte 2)

"A cena musical era completamente diversificada nos anos 60. Yardbirds, Jefferson Airplane, Grateful Dead, Pink Floyd. Até os grupos que tinham ligação com os ritmos tradicionais americanos, como o Creedence Clearwater Revival, Crosby, Stills, Nash & Young, Steppenwolf, tinham harmonias vocais maravilhosas. Ninguém estava brincando naquela época. 'Yes It This', dos Beatles, é uma porrada.
Aqueles vocais nasceram do coração dos caras. É genial. Se você pedir para eu dizer do que gostava mais ou em que prestei mais atenção, vai depender do mês, do ano, do dia. Seria impossível manter um diário sobre isso. Lembro de Manfred Mann, por exemplo, dos Beatles, de ouvir Hendrix pela primeira vez, do Gentle Giant, do King Crimson. Não sou bom com datas. Só comprei um relógio em 1980 e depois joguei na parede. Vi todos os shows que você puder imaginar. Mas, naquele período, a apresentação em si não importava, mas sim o que estava acontecendo em volta dela e na plateia. Hoje é raro um momento em que você sente a plateia mais forte do que a banda. Isso era uma constante na época. As bandas estavam ali como meras coadjuvantes. Elas estavam lá refletindo o que a plateia era. Se tirasse a banda de lá não faria a menor diferença.
A gente viveu completamente o sonho hippie no Brasil apesar da ditadura militar. Não existiam barreiras entre América e Brasil nesse sentido. Era algo que acontecia ali e aqui ao mesmo tempo. Por isso digo que foi um enorme vórtex, um cataclismo universal que atacou o mundo quando ele não estava preparado. Antes de os Mutantes se mudarem para a Serra da Cantareira, em São Paulo, já vivíamos um pouco da vida comunitária na Pompeia. Ficávamos todos na casa do meu pai, coitado. Era um fato, aquilo tudo estava acontecendo lá, na minha casa.
Sempre havia de sete a dez pessoas circulando por lá. Havia uma fábrica de guitarras embaixo, gente ensaiando o tempo todo, minha mãe tocando, meu pai lendo poemas. Era inacreditável. Nesse aspecto, nasci pra lua, malandro.
A tropicália não foi uma jogada do tipo: 'Vamos juntar música brasileira com o rock de São Paulo'. Se você tirar nossas guitarras e baixo do tropicalismo, o que sobra? Tudo era muito bem amarrado, havia uma concepção de alto nível. A influência que tivemos foi extremamente importante. Não tinha como o Gil não ouvir a gente, porque ele era um cara inteligente.
Os Mutantes nunca foram uma brincadeira, mesmo que fôssemos bem-humorados. Nós escutávamos de Wild Side Story, Wes Montgomery, Adoniram Barbosa e Stravinsky. Quando os Beatles lançaram Help! no Brasil, tocamos no mesmo dia na televisão. A gente tinha ouvido antes, na BBC de Londres, em rádio de ondas curtas. Íamos à luta para conseguir informação. Era uma vida muito rica, não só musicalmente Eu vivia dentro do Teatro Municipal. Quando ouvi as orquestrações nas canções dos Beatles, imediatamente mostrei a minha mãe, 'olha, progressões de tom em tom'. Para ela era algo familiar, mas a concepção era muito boa. O arranjo de cello feito para 'Yesterday' é impecável. Adoraria conhecer o George Martin."
(Continua)

quarta-feira, 5 de junho de 2013

Sergio Dias Fala Sobre o Flower Power (Parte 1)

O guitarrista Sergio Dias, dos Mutantes, deu um depoimento à edição especial da revista Bizz "A História do Rock" vol. 2, falando sobre a cena psicodélica dos anos 60 nos Estados Unidos, quando lá esteve com sua banda nos anos 60. É um interessante testemunho de quem esteve na meca da contracultura, no apogeu do Flower Power:
"Estive em Los Angeles e São Francisco em 1968 depois de participar com os Mutantes da feira de música Miden, na França. Fomos para Nova York e depois decidimos passar pela Califórnia. Era inacreditável.Você andava nas ruas de Los Angeles - que hoje só tem automóveis e mais parece um deserto com aquelas calçadas imensas e vazias - e o clima era de uma festa constante.
Você via pessoas extremamente felizes e amigáveis, que vinham conversar com você abertamente, faziam o sinal de paz e amor. Lembro que a primeira vez que fizeram o sinal para mim foi um casal que estava num Jaguar conversível. Era muito legal, algo maravilhoso. O american dreams havia surgido logo após a Segunda Guerra Mundial. Para a juventude, ele também se manifestou com a surf music, no começo dos anos 60. Mas nada se compara ao que a Califórnia representava no imaginário jovem no final daquela década.
Depois de Los Angeles, fui para São Francisco, onde no Fillmore Auditorium, estava tocando o Ten Years After. Grande coincidência. Parecia até que eu estava seguindo a turnê da banda, porque já os tinha visto em Londres e Nova York. Lembro de estar sentado num parque da cidade, quando um cara se aproximou e perguntou se eu queria um joint. Eu nem sabia o que era aquilo na época! Agradeci a oferta, mas disse que não queria. No cruzamento das ruas Haight e Ashbury tinha toda aquela tribo dos Hell's Angels. Lá a barra era mais pesada. Também havia tensão no flower power. Apesar de falar pouco inglês na época, entendia o suficiente para sentir uma animosidade no ar. Não existe a positividade completa, o paraíso perfeito. Tem de haver um inferninho, senão fica chato. Mas no geral, 90% do tempo era um grande barato. O sentimento entre os jovens era mais o de criar outro mundo, com outras regras - o flower power já era este outro mundo. Era o nosso mundo.
Acid Test - ônibus que oferecia experiência com LSD


 Eu tinha 17 anos quando estive lá. O que é o mundo para um garoto nessa idade? Até os 15 anos, seu universo se resume praticamente a sua família. Então, tudo aquilo era o meu mundo. E não era uma possiblidade futura, era completamente concreto e real. Havia o lado sombrio do Vietnã, mas ele não me afetava diretamente. Na época namorei por dois anos a filha do cônsul americano no Rio de Janeiro. Acho que estávamos fazendo o Planeta dos Mutantes. Então recebi uma carta, falsa, é claro, dizendo que eu estava convocado para o Vietnã. E durante uns dois minutos eu acreditei naquilo! Senti o que era esse outro lado dos anos 60 apenas numa brincadeira. Mas, nos Estados Unidos, por todos os lados havia formas diferentes de engajamento político.
O flower power foi um imenso vórtex mundial. Como é que pode ter acontecido em tantos lugares simultaneamente? As coisas que explodiram no Brasil, os Beatles na Inglaterra, todo o movimento americano... Foi muito forte e englobou diversas áreas além da música. Atacou na política, no teatro, na literatura, nas artes plásticas. Havia uma comunhão de forças, tudo estava acontecendo ao mesmo tempo. É como se todo mundo tivesse programado para que tudo explodisse naquele momento nas mais variadas áreas. Foi muito forte. Nunca mais vi nada próximo acontecer. A emoção estava extremamente alta, à flor da pele. É difícil descrever isso. Você encontrava 20 pessoas na rua e, depois de dez minutos, elas viravam suas amigas para sempre.
Não havia barreiras entre as pessoas, o que é mais impressionante em se tratando de de americanos, que hoje são superfechados, doentes e malucos. A América está muito doente, o que é uma pena.  Desde a morte de Kennedy, algo veio crescendo, um grande golpe mundial aconteceu e o pau começou a comer no mundo, inclusive no Brasil com o golpe militar.
Uma parte importante desse período foram os festivais. O Monterey Pop Festival foi avassalador. Só para você imaginar, até aquele momento ninguém tinha visto o Ravi Shankar. O que ele fez lá é algo até hoje inacreditável. Além disso, no festival também apareceu Janis Joplin e toda a sua magia. Era de enlouquecer qualquer um. E não foi só isso: o Jimi Hendrix entrou em cena ali também. Não sobrou pedra sobre pedra em termos musicais, de atitude, de emoção. Em qualquer nível que você queira buscar uma resultante do Monterey, você encontra algo do maior quilate. O maior guitarrista do mundo nasceu lá. A maior cantora de blues-rock, também, assim como o maior citarista e influência da música indiana de todos os tempos. É impressionante. Considero Woodstock uma consequência disso. Monterey sim, foi o grande barato."
(Continua)


domingo, 2 de junho de 2013

O Fim dos Secos & Molhados (1974)

Já tratei aqui neste espaço sobre o conturbado fim do grupo Secos & Molhados. A notícia surpreendeu pelo fato dos Secos & Molhados resolverem se separar no auge do sucesso, pouco depois de lançarem seu segundo disco. Na verdade, a situação passou a ficar insustentável, por questões de grana. João
Ricardo, segundo seus companheiros de grupo, Ney Matogrosso e Gerson Conrad, vinha tentando obter vantagens financeiras sobre os dois. A revista Pop nº 23, de setembro de 74, trazia em destaque a notícia da separação. Com chamadas como "A bomba estourou junto com o lançamento do segundo (e último!) LP do grupo e surpreendeu todo mundo" e "O sonho acabou mesmo. Ney e Gerson cansaram de ser explorados", a matéria dizia:
"Já estava tudo pronto para a grande festa do dia 13 de agosto: banda de música e balões gigantescos esperariam a multidão que iria superlotar o Teatro Aquarius , em São Paulo, para assistir ao show de lançamento nacional do novo disco dos Secos & Molhados. Sem falar nos milhões gastos na promoção do LP. Mas poucos dias antes, a bomba estourou e a notícia correu com a mesma velocidade com que as músicas do grupo atingiram os primeiros lugares das paradas de sucesso: 'Ney Matogrosso brigou com João Ricardo e não é mais um dos Secos & Molhados'. E, em meio a confirmações e desmentidos, outra bomba estourava, dando contornos ainda mais dramáticos ao caso: 'Gerson Conrad também deixou o grupo'. POP encontrou Ney de malas prontas de partida para a fazenda dos avós, na fronteira do Mato Grosso com o Paraguai. 'Preciso descansar e me desligar de tudo  Estou livre, e isso é maravilhoso. Pela primeira vez em um ano, posso dormir tranquilo e até sonhar. A exploração acabou, finalmente. O nosso primeiro LP vendeu 800 mil cópias e a gente faturou horrores em  shows, mas eu mesmo recebi muito pouco. Dá pra entender um negócio desses?'
E Gerson, o mais discreto do grupo, por que se mandou? 'Estava cansado de tanta exploração e do boicote que vinha sofrendo como compositor. O último LP tem onze músicas do João Ricardo e apenas uma que eu fiz. E as minhas composições não são piores que as dele. Rosa de Hiroshima, por exemplo, um dos nossos maiores sucessos, é minha. E isso deixou João com raiva. Ele não admite que alguém apareça mais do que ele'. João Ricardo e seu pai, o jornalista João Apolinário, atual empresário do grupo (ele tomou o lugar de Moracy do Val, provocando as primeiras brigas entre os meninos), estão sendo apontados como os responsáveis pelo fim do conjunto. O sonho acabou e João Ricardo está sozinho. Mas sua mãe, dona Fernanda, falando por ele, garante: 'O grupo Secos & Molhados é o meu filho. Por isso o conjunto vai continuar!' "
A matéria ainda trazia um box, falando sobre o segundo disco do grupo, que estava sendo lançado, e tinha previsão de uma carreira internacional, com lançamento na Europa e States:
"O segundo disco foi preparado para ser o passo mais importante dos Secos & Molhados rumo à conquista das Américas e da Europa. Além da faixa toda cantada em espanhol (Tercer Mundo, poema de Julio Cortázar, musicado por João Ricardo), o LP inteiro tem um sabor latino, com arranjos de viola, sanfona e castanholas. Mas o esquema montado para garantir o sucesso no mercado internacional foi mais longe: Ney, João Ricardo e Gerson tiveram aulas de dança e Ney aprendeu também a tocar castanholas. O que ninguém esperava era o fim dos Secos & Molhados..."