Palavras Domesticadas

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quarta-feira, 30 de junho de 2021

Arnaldo Batista Fala Sobre os Mutantes - Revista Bizz (2000)

Dando continuidade à entrevista concedida à revista Bizz em novembro de 2000 (nº 184), trago hoje a segunda parte da postagem, dessa vez com as respostas de Arnaldo Batista. Ontem publiquei as de Rita Lee, e amanhã a terceira parte, com Sérgio Dias: “O A e o Z refletia uma paixão que nascera em 1971, quando conheceram o Yes Album. Alegando que o álbum não tinha apelo comercial, a Philips optou por não editá-lo e ainda dispensou a banda. O trabalho foi lançado 19 anos depois, já em CD. Arnaldo, já apresentando sinais de que algo não estava em ordem em sua cabeça, sai do grupo.
A partir daí, os Mutantes nunca mais se fixariam numa mesma formação. Dos integrantes originais, apenas Serginho restara para gravar Tudo Foi Feito Pelo Sol, de 1974. Em 1976, lançam Ao Vivo e, em 1978, fazem sua última apresentação, em Ribeirão Preto (SP). No primeiro dia de 1982, o baque: Arnaldo se atira do terceiro andar do Hospital do Servidor Público, em São Paulo. ‘Quando aconteceu, eu estava em Nova York e encontrei Serginho, que morava lá. A gente não teve coragem de tocar no nome de Arnaldo. Eu pensava: ‘Será que ele não sabe?. Saímos junto, conversamos, mas não falamos no assunto. Foi uma coisa estranhíssima’, conta Liminha.
Recuperado, Arnaldo foi morar em Juiz de Fora (MG), onde vive até hoje com sua esposa, Lúcia. Rita Lee seguiu seu destino e se transformou em um dos maiores nomes do rock brasileiro. Liminha tornou-se um produtor de sucesso, trabalhando com Ultraje a Rigor, Titãs e Kid Abelha, entre outros. Serginho radicou-se nos Estados Unidos, gravou discos com jazzistas e voltou ao Brasil recentemente. Prepara um álbum para este ano. Somente Dinho afastou-se da música, abrindo uma assessoria de imprensa ligada ao automobilismo. - Os Mutantes tinham consciência da profundidade do que estavam fazendo, de seu papel revolucionário? Arnaldo – O fato de a gente ser mais cosmopolita influenciou bastante. A primeira vez que ouvi Sgt. Peppers foi com Gilberto Gil, na época em que ele namorava Nana Caymmi. Curtíamos muito música estrangeira. E Gil tinha uma coisa romântica, poética no violão. Mas nunca pensamos que estávamos revolucionando totalmente. Eu sempre achava que faltava algo. Foi isso que fez a gente crescer musicalmente. - O que seriam os Mutantes, não fosse terem cruzado com Rogério Duprat e com os tropicalistas? Arnaldo – Duprat foi importantíssimo. A gente encontrava com Gil, Caetano, Jorge Ben, aquela coisa de violão e vocal, era bonito. Duprat complementou, abriu nossa cabeça, com ele comecei a tocar piano, a desenvolver meu lado clássico. Entramos com guitarra e contrabaixo na MPB.
- Qual era o papel de Dinho e Liminha? Arnaldo – A gente era bem Peter, Paul & Mary: eu, Serginho e Rita. Ensaiávamos com um violão e três vozes. Com Dinho e Liminha, até os ensaios mudaram, ficou aquela coisa poderosa. - Quando as drogas entraram no grupo? Como elas expandiram o som? Arnaldo – Acho que comecei com maconha ainda nos tempos do (colégio) Mackenzie... Mas a expansão de verdade se deu em Paris, quando tomamos LSD pela primeira vez. Não uso o termo ‘drogas’, chamo de ‘expansores da musculatura mental’. Isso pode ir do cafezinho ao LSD. A gente passou a ter uma visão mais ampla da música. Por exemplo: eu tinha um órgão, passei a usar pedal. Era uma coisa meio assim: ‘Está tudo muito bom, vamos adiante’.
- O que os Mutantes perderam com a saída de Rita? Arnaldo – Perdemos o lado circense, pop. Mas a gente podia buscar um lado mais circense no estilo ‘globo da morte’, mais pesado. Tentei e não consegui. Não foi nem bom nem ruim para os Mutantes: foi evolutivo. - Por que os Mutantes adotaram o som progressivo? Arnaldo – O marco foi o Yes Album. Nos Beatles, havia a hora em que George improvisava, que Ringo improvisava. Ali, não: parecia que os caras estavam improvisando direto. Tudo o que a gente quis fazer, fez: rock, sertanejo, psicodélico, tropicalismo. Aí quiseram ser progressivos. Foi a última viagem dos Mutantes. - O que você pretendia ao deixar o grupo? Arnaldo – Queria fazer a música que eu tinha em mente, que eu sonhava: com continuidade, sem final. Fiquei meio perdido, mas a música continuou meu sonho. E Rita estava fora dele.”

terça-feira, 29 de junho de 2021

Rita Lee Fala Sobre Os Mutantes (Revista Bizz -2000)

Em novembro de 2000 a revista Bizz publicou uma grande entrevista com Rita Lee, Arnaldo Batista e Sérgio Dias sobre a trajetória dos Mutantes. Como se trata de uma matéria extensa, optei por dividir a publicação em três partes, trazendo separadamente as respostas de cada um dos membros, separadamente. Para começar a série de três postagens, destacarei as respostas de Rita Lee: “ - O que você acha da banda ser mais respeitada e reconhecida hoje do que quando estava em atividade? Rita – Acho totalmente coerente com os Mutantes esse reconhecimento au grand complet só agora no terceiro milênio. Os gringos realmente chegaram às Índias Tropicalistas com 30 anos de atraso, o que me dá motivos mais para fazer piada do que para ficar deslumbrada. O futurismo sonoro que rolava solto enquanto participei da banda acontecia de uma maneira natural e espontânea, nada era planejado. Havia uma busca por um som ‘não-popular’, nunca tivemos intenção de fazer música para o consumo daquela época. Talvez tenha sido esta estética do ‘scape from planet Earth’ ou do ‘hay gobierno soy contra’ que fez com que os Mutantes se sentissem mais em casa no terceiro milênio do que na época em que existíamos. - Os Mutantes tinham consciência da profundidade do que estavam fazendo, de seu papel revolucionário? Rita – Agimos sem qualquer consciência da revolução que posteriormente nos creditaram. Rock era nosso estilo predileto e não nos sentíamos peixes fora d’água nesse panorama. Tentar compensar a defasagem tecnológica com a criatividade caseira virou um dos motivos pelos quais os Mutantes sempre estiveram anos-luz à frente de seu tempo.
- O que seriam os Mutantes, não fosse terem cruzado com Rogério Duprat e com os tropicalistas? Rita - Não tenho o menor constrangimento de admitir que, sem os tropicalistas, jamais os Mutantes teriam chance de se projetar com a mesma atenção que despertaram. O futuro de grupos daquela época que só se interessavam por cantar em inglês ou faziam covers de sucessos estrangeiros não era lá tão amplo... - Como, detestando MPB, deu-se a mistura que, no fim das contas, teve forte presença de sonoridades nacionais? Rita – Havia esse rótulo de ‘antinacionalista’, mas era puramente por sermos do contra. Nem sabíamos direito contra o quê (risos). Era uma maneira nossa de esnobar quem nos esnobava, ou seja, a MPB, a Jovem Guarda... Criamos fama de ‘estrangeirados’ no meio, e assim ficaríamos eternamente se um belo dia não tivéssemos encontrado Gil, que de MPB radical e de Jovem Guarda não tinha nada. Foi a fome com a vontade de comer da gente. - Qual era o papel de Dinho e Liminha? Rita – Nos Mutantes havia uma lei preestabelecida: independente de quem escrevesse letras e músicas, os ‘três patetas’ assinariam, aprendemos isso com Roberto e Erasmo Carlos (risos). Liminha entrou e começou a apresentar composições da autoria dele, mas a lei continuou, apesar de eu achar isso meio tirânico e injusto. Passou-se a creditar a Liminha apenas a co-autoria de certas músicas e letras que, na verdade, eram só dele, como ‘Top-Top’, ‘Portugal de Navio’... Dinho era uma figura muito engraçada, o apelido dele era ‘professor de pau duro’, porque tinha um jeito de velhão, mas só gostava de namorar menininhas muuuito jovens (risos). Praticamente não participava do processo criativo, era uma pessoa muito amiga e sempre tentava resolver os problemas de ego que volta e meia surgiam, usando da diplomacia elegante.
- Quando as drogas entraram no grupo? Como elas expandiram o som? Rita – Até o exílio dos mestres, os Mutantes só usavam maconha, uma vez experimentamos ayahuasca e em outra ocasião meia pedrinha de mescalina. Quando fomos nos apresentar no Olympia de Paris, encontramos com Peticov e aí, sim, é que a festa começou. Apenas Serginho se recusou a experimentar LSD, mas o resto da banda entrou de sola. Ficávamos horas e horas, dias e dias, semanas e semanas tocando. Nada de muito objetivo musicalmente, mas grandes viagens em grupo. Nessas é que o som da banda começou a tomar os tais rumos progressivos. Não foi da noite para o dia, mas a ideia de ser ‘uma pessoa só’ passou a assombrar Arnaldo, que praticamente obrigou Serginho a tomar uma única pedrinha, senão ele estava fora do grupo (risos).
-Até que ponto o início da carreira-solo incomodou os Mutantes? Rita – Barenbein era um produtor mais atento, foi ele quem me conectou com Nara Leão, que tinha acabado de fazer a versão de ‘Joseph’, de George Moustaki, mas não pretendia gravar e estava procurando alguém com ‘voz de anjo’ para fazê-lo. Isso aconteceu enquanto os Mutantes estavam brigados. ‘José’ foi um sucesso estrondoso, algo lamentável para a imagem de ‘anti-comerciais’ dos Mutantes, que, claro, ficaram putos comigo porque o público exigia a porra da música que tocava pra cacete em todas as rádios do país. Enfim, acho que cantei uma única vez e nunca mais. Talvez Barenbein tenha razão, deve ter pintado um ciúme danado depois disso. - Hoje É O Primeiro Dia do Resto de Sua Vida é o segundo disco-solo de Rita Lee ou o último da banda? Rita – Na época estávamos brigados, então o Midani me convidou para um projeto-solo ligado à Rhodia, que já havia me contratado para fazer shows nos seus desfiles. A ideia de gravar discos desses eventos era sempre planejada. Como os Mutantes ‘voltaram’, achei conveniente convidá-los para participar. Aliás, passei a vida toda considerando esses trabalhos como sendo da banda. - O fim do seu romance com Arnaldo influiu em sua saída?
Rita – Eles estavam pretendendo fazer música progressiva, tipo Yes e Emerson, Lake & Pamer, portanto não haveria mais espaço para o deboche musical que coroou a existência do grupo até então. Virei persona non grata na nova proposta e, como fui contra essa estratégia furreca, escolheram me despachar na marra. Levei um bom tempo para curar a mágoa. Hoje, percebo que minha retirada foi fundamental para fazer os gols que fiz no Tutti Frutti e até agradeço aos céus por não ser responsável por aquele negócio de uma pessoa só... - Você continuou acompanhando os Mutantes? Rita – Quando deixei os Mutantes fechei a porteira, passei muito tempo não querendo papo com eles e até desejando no fundo do coração que se fodessem. Fiquei profundamente magoada, meus amigos do peito me deram uma facada nas costas para me matar... Acontece que aquele som explicitamente clonado foi, para mim, um exemplo de decadência criativa. Eu gostava de Yes e Emerson, Lake & Palmer, mas daí a copiar os caras era uma grande falta de imaginação. Hoje, quando os gringos mencionam Mutantes, referem-se exatamente à fase do meu tempo, o som ‘progressivo’ passou batido.
- Como é que você foi fazer abrir um show dos Mutantes em 1973 e, mais tarde, acabou cantando no disco-solo de Arnaldo? Rita – Ué... fiquei semanas sem falar com os bofes, para quem convivia todos os dias isso é um tempão, não acha? Nessas semanas em que fiquei exilada, compus ‘Mamãe Natureza’ e ensaiei com Lúcia Turnbull umas gracinhas musicais, formando a dupla Cilibrinas do Éden. O empresário dos Mutantes soube disso e foi gentil me convidando para abrir um show deles no Phono 73, entendeu? No caso do Lóky?, eu já estava bem mais segura de que havia sido muito bom para mim ter saído dos Mutantes e, como sempre gostei das loucuras do Arnaldo, fui na boa. Aliás, o material gravado no Lóky? continha umas reminiscências da minha época, então ele achou justo me convidar para participar do disco.

segunda-feira, 28 de junho de 2021

Geraldo Azevedo Lança Bicho de Sete Cabeças - 1979

Em 1979 Geraldo Azevedo lançava seu segundo disco-solo, Bicho de Sete Cabeças. Naquele período a música nordestina vivia um período de alta, com algumas gravadoras investindo em artistas desse segmento, e as rádios executando bastante a música com assento regional. Foi nessa época que Geraldo Azevedo, um das grandes promessas da música nordestina lançava um ótimo trabalho, dois anos após o seu primeiro trabalho solo pela Som Livre (antes havia dividido um álbum com Alceu Valença em 1972). Por ocasião do lançamento, foi feita uma matéria de divulgação publicada em O Globo: “No sertão pernambucano, em Petrolina, onde nasceu, Geraldo Azevedo, compositor, cantor e violonista, recebeu as primeiras influências de sua música. O canto dos problemas existenciais, hoje influenciado por melodias e ritmos de outros países, é mostrado em seu terceiro LP, ‘Bicho de Sete Cabeças’, que vai ser lançado nessa semana. Agora com 34 anos, Geraldo Azevedo começou como profissional aos 18, influenciado por João Gilberto e Tom Jobim e, mais tarde, por Caetano Veloso, Gilberto Gil e os Beatles. A saudade de Pernambuco, dos pais e irmãos, que tocavam violão, vai ser revivida no próximo LP, ‘Asas da América – Frevo’, ao ser lançado próximo ao carnaval. Ele não se lembra de quantas músicas já compôs, mas sabe que, em todas, usou elementos da música brasileira e da música universal. - Minhas raízes fundamentais estão no Nordeste, onde nasci e vivi boa parte da minha vida. Dessa infância difícil em Pernambuco, em contato com a terra e a cultura regional, surgiu uma música positiva. , que não esqueceu o canto do sofrimento do homem do sertão e o da angústia dos centros urbanos. Suas composições vão até o social e refletem o momento que o Brasil está vivendo e que, segundo Geraldo, ‘é de muitas expectativas sociais, o que influencia o trabalho artístico, que tem sido muito reprimido’. Seu primeiro disco, ‘Alceu Valença e Geraldo Azevedo’ foi gravado em 1972. Mais tarde, lançou pela Som Livre o segundo LP, ‘Geraldo Azevedo’, com músicas suas em parceria com Alceu Valença e Carlos Fernando. A esses dois parceiros se uniram Zé Ramalho e Renato Rocha, para comporem o repertório de ‘Bicho de Sete Cabeças’.
- No início, eu queria apenas ser músico, mas a necessidade me levou a aprender outras artes, inclusive a do palco. Para teatro, foi autor da trilha sonora e diretor musical da peça ‘Lampião no Inferno’, de Luiz Marinho, e diretor de ‘Capeta em Caruaru’, de Alomar Conrado. - Ser compositor, no Brasil, é uma batalha, porque o mercado tem uma infiltração muito grande da música estrangeira. A situação está mudando, mas ainda não sabemos até que ponto vai ser favorável. Estamos vivendo uma época de muita ansiedade. Depois de gravar discos e compor as trilhas sonoras de quatro curtas-metragens e dos longas-metragens, ‘Crueldade Mortal’, de Luiz Paulino e ‘Deliciosas Traições de Amor’, de Tereza Trauttman, Geraldo Azevedo se sente como estreante na música brasileira. Tocando violão, que aprendeu na infância, com os pais lavradores – ‘minha família toda tocava e minha mãe também cantava’ – ele gravou o disco de Zé Ramalho, ‘A Peleja do Diabo com o Dono do Céu’, e está participando da gravação dos LPs de Chico Buarque de Hollanda e também da peça ‘Ópera do Malandro’, que serão lançados até o final deste ano.
- Meu objetivo é compor uma música bonita, com sentido otimista, que faça bem aos homens. Não canto o negativo, porque já vivi muitas coisas ruins, embora não deixe de denunciá-lo.
Nas suas composições, Geraldo Azevedo mistura os ritmos brasileiros – coco, maracatu, baião, ciranda e a música de viola – aos estrangeiros, inclusive americanos: - Muitas vezes ouço Luiz Gonzaga, seguido de um folclore americano, e sinto que há semelhança. Para o carnaval, ele vai lançar o primeiro disco de frevo gravado no Rio, ‘Asas da América’, com participação de Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Elba Ramalho, Alceu Valença e Marco Polo. Algumas composições são de sua autoria, entre elas ‘Asas da América’, ‘Aquela Rosa’ e ‘Ator Folião’. Quando fala de discos, ele lembra que, entre as dificuldades de ser compositor no Brasil, uma das principais é a que se refere a direitos autorais: - O problema ainda não foi resolvido. O dinheiro passa por todos os lugares e, no fim, chega às nossas mãos um mínimo daquilo a que temos direito. Quando faço shows cantando músicas minhas, pago os dez por cento exigidos e não consigo receber de volta.”

domingo, 27 de junho de 2021

A Noite em que Jimi Hendrix Ficou Imortal (JB - 1986)

Em 1986 o mercado fonográfico ainda recebia trabalhos inéditos de Jimi Hendrix. O vasto material ao vivo, principalmente, deixado pelo mago da guitarra ainda trazia um facho de luz e criatividade, mesmo passados mais de 15 anos de sua passagem, para devaneio de seus fãs. No Brasil dois álbuns de Hendrix chegavam às lojas simultaneamente: Jimi Plays Monterey e Johnny B. Goode, um mini-LP, que traz as últimas apresentações do guitarrista, em shows gravados entre maio e junho de 1970, meses antes sua morte. O Jornal do Brasil de 25/07/86 trazia uma resenha dos dois álbuns, em matéria assinada por Luís Antônio Mello, e intitulada “A noite em que Jimi Hendrix ficou imortal’, numa referência a seu incendiário show em Monterey, em 67: “Dezesseis anos após sua morte, o guitarrista Jimi Hendrix ressurge no mercado brasileiro com dois discos inéditos. Jimi Hendrix Plays Monterey, da Polygram, mostra a íntegra da participação do músico no Monterey Pop Festival, que o lançou mundialmente. Johnny B. Good, da EMI-Odeon, é um mini-LP com 5 músicas gravadas no final de vida de Hendrix.
Jimi Hendrix foi imortalizado numa noite de domingo, 18 de junho de 1967, quando subiu no palco do Monterey Pop Festival, na Califórnia. A guitarra canhota de Hendrix, distribuindo rajadas de trovões, não alarmou somente a plateia. Nos bastidores Brian Jones, Eric Clapton, Janis Joplin e Pete Townshend pararam de fazer o que estavam fazendo para assistir a ascensão do novo deus, que transformou a guitarra elétrica num fio-terra, numa confidente, num raio. Anos mais tarde, Townshend chegou a comentar: - Eu estava nos camarins e cutuquei o Eric (Clapton)... Olha lá aquele sujeito. Ele está fazendo o diabo. Decididamente nunca ouvi coisa igual. Inquieto, ansioso, revolucionário, Jimi Hendrix morreu por excesso de drogas aos 27 anos, com três de vida artística consagrada. Seu batismo foi Monterey, que finalmente virou disco, lançado esta semana no Brasil. O nome dispensa comentários: Jimi Plays Monterey. Na capa, uma fotomontagem com uma Fender Stratocaster (guitarra que virou logotipo do músico) em chamas, uma réplica da original que Hendrix tocou, transou, incendiou, e espatifou no palco de Monterey logo após a literal execução de Wild Thing. O disco traz, também, Killing Floor, Foxey Lady, Like A Rolling Stone, Rock Me Baby, Hey Joe, Can You See Me, The Wind Cries Mary e Purple Haze. Jimi Hendrix Plays Monterey foi produzido por Alan Douglas e mixado (em sistema digital) por Mark Linett.
Mais uma vez Hendrix deixa a impressão de que estamos 16 anos atrás de seu som e não à frente de sua morte. Nesse disco, todos os sons produzidos por sua guitarra são aproveitados, dos riffs de blues até a mais mundana microfonia. Jimi era um mestre em brincar com o improviso e gostava de travar diálogos. Mesmo ásperos, com sua Fender. Jimi Plays Monterey é o certificado de eternidade que James Marshall Hendrix deixou impresso em vinil, na testa do mundo.
Já o mini-LP chega ao mercado pela Emi-Odeon mostra o final da vida física de Hendrix e consagra a eternidade de sua obra. O nome do disco é Johnny B. Goode e traz as últimas apresentações do guitarrista, tocando ao vivo em Berkeley (Califórnia) em 4 de maio de 1970 e em Atlanta em 4 de julho. Quem quiser fazer uma comparação com o LP lançado pela Polygram vai sentir que a fome de som e o vigor em palco foram as marcas registradas do músico. Johnny B. Goode traz The Star Spangled Banner, Machine Gun, Voodoo Child, All Along The Watchtower e a faixa-título. Dois discos para serem guardados no armário da eternidade.”

sábado, 26 de junho de 2021

Novos Baianos - Show no Teatro Tereza Raquel/RJ (1977)

Em 1976 os Novos Baianos lançavam mais um disco, Caia na Estrada e Perigas Ver. Como normalmente acontecia, os discos lançados viravam um show de divulgação, em que se cantavam as novas músicas, e, logicamente, os grandes sucessos de discos anteriormente lançados, afinal, a plateia acabava pedindo. No caso, o show levava o nome de seu último disco, mas não era de lançamento, e aconteceu em uma curta temporada no Teatro Teresa Raquel, no Rio em 1977. Na edição de 09/06/77 o jornal o Globo trazia uma matéria sobre o show, assinada por Marcia Villela, e trazia no título “O novo show dos Novos Bahianos (sic) termina hoje no Teresa Raquel”. Uma introdução ao texto dizia: “Hoje é o último dia do show dos Novos Baianos ‘Caia na Estrada e Perigas Ver’, no Teatro Teresa Raquel, às 21:30m. Atualmente, o repertório dos Novos Baianos reflete uma constante preocupação com as músicas bem brasileiras, com especial destaque para o chorinho, cuja retomada teve no regional um dos precursores. Depois de um estrondoso sucesso e um período de recesso, o conjunto foi morar em São Paulo, onde o trabalho cresceu em ritmo e organização, culminando com um show que levou quatro mil pessoas ao Teatro Municipal de São Paulo. Nesta sua estada carioca, os Novos Baianos aproveitaram para rever os amigos, jogar peladas, relembrar Jacarepaguá e reencontrar o público fiel que provaram ter, com o recente sucesso de um show feito na Concha Verde.” Abaixo, a matéria: “Em um hotel em Santa Tereza, onde estão hospedados, Paulinho Boca, Galvão e Baby Consuelo falam sobre o rumo e os desejos do grupo, enquanto ‘riroca (com apóstrofo e inicial minúscula mesmo), filha de Baby, tenta, brincando, pegar a caneta da repórter. Com o linguajar pausado, característica do baiano, Paulinho conta que a experiência paulista foi muito importante quanto à estruturação do grupo, já que lá é necessário trabalhar junto com pessoas que já têm um grau de organização bem mais adiantado que no Rio. - São Paulo, por si só, já absorve tudo. Por isso, parece que estamos parados. Mas é justamente o contrário: trabalhamos mais. A parte econômica é mais movimentada. Nós ainda não conseguimos uma estabilidade, e talvez não consigamos nunca, mas estamos nos ‘olhando’ mais, nos preocupando com documentos, etc. Na verdade, ainda continuamos desorganizados e ‘peladeiros’.
O show, apesar de ter o nome do disco que foi lançado ano passado, apresenta muitas músicas novas, dando um especial destaque à parte acústica, como explica Paulinho, no que toca a chorinhos instrumentais, não só porque é a onda do momento, mas porque o regional, desde 1971, se dedica ao gênero, usando inclusive um violão de sete cordas. Baby Consuelo, apesar dos dois nomes estrangeiros que diz ser a sua cara, define-se como ‘brasileiríssima’. E, justamente por isso, destaca p choro ‘Brasileirinho’ como a interpretação que mais reflete seu temperamento, seu pique. - Além de tocar vários instrumentos de percussão, canto diversas músicas, entre eas ‘A Lágrima’, de Pepeu e Galvão, e ‘Ziriguidum’, que são bem balançadas. Sempre danço muito enquanto canto, porque a minha dança é o meu momento, é a minha expressão corporal, totalmente criativa. Eu danço conforme a música.
Galvão, que é o letrista das músicas, mostra que o conjunto sofreu modificações durante a carreira, procurando cada vez mais aproximar-se das coisas brasileiras. - Fomos influenciados por Jimi Hendrix e Janis Joplin, vultos dessa geração. Mas, aos poucos, fomos acrescentando outras coisas, como o choro, o trio elétrico, o samba. As coisas brasileiras estavam escondidas, naquela época, e foi necessária esta influência. No nosso primeiro LP, ‘Ferro na Boneca’, tínhamos um samba, apesar de sermos contra. Mas ele nos venceu. Não somos nacionalistas, mas em algum ponto somos verde e amarelo. - Sempre procuramos responder ao momento, com o grau de consciência relativo a esse momento. Somos vivos e estamos sempre mudando. Mas essas mudanças não quebram a característica Novos Baianos, em qualquer sentido. Recentemente, os Novos Baianos mantiveram um íntimo contato com Art Blakey e seus músicos, para os quais tocaram quatro horas de chorinho. O conjunto pretende tocar nos Estados Unidos, o que é um sonho antigo, embora não haja nada de concreto. O grupo já tem acertada uma participação em televisão, provavelmente no ‘Fantástico’, e está planejando a gravação de um novo disco, embora , como explica Paulinho, sem saber como, quando e onde:
- LP é uma coisa muito trabalhosa, e só queremos gravar outro depois de mostrar bem o último. É muito difícil gravar um disco, principalmente quando somos nós que fazemos toda a divulgação. Nesta parte, o Brasil é muito devagar.” A matéria ainda traz um box, complementando o texto: “Segundo o manager do conjunto, Carlos Eduardo Caramez, os Novos Baianos constituíram uma firma para poder reivindicar uma série de direitos que estão irregulares, principalmente quanto ao direito autoral que, além de irrisório, não é recebido desde o carnaval. Neste show, além de várias composições de Jorginho, Pepeu e Galvão, como ‘Praga de Baiano’, ‘Vai ter que Calçar a Calça e Vai Ter que Sapatear’ e ‘Tico-Tico Mapiou’, o grupo canta também músicas de outros compositores, como Ari Barroso e Chico Buarque. O regional continua com a mesma formação: Baby Consuelo (vocal e ritmo), Pepeu (direção musical, guitarra e bandolim), Jorginho (cavaquinho e bateria), Baixinho (tumba e bateria), Charles (prato, percussão e dança), Bola (bongô e ritmo), Galvão (direção artística e letras), Gato Félix (coreografia e produção) e Salomão (engenheiro de som).”

sexta-feira, 25 de junho de 2021

Arrigo Barnabé - Revista Veja (1980)

Arrigo Barnabé representou uma renovação vanguardística na MPB em fins dos anos 70 e início dos 80. Seu álbum de 1980, Clara Crocodilo, lançado em 1980, trazia elementos musicais da escola dodecafônica, junto a elementos multimídia, como a linguagem dos quadrinhos e a locução típica de programas policiais sensacionalistas de emissoras de rádio AM, tudo embalado num grande liquidificador musical concebido por sua criatividade, lembrando a estética caótica utilizada em alguns trabalhos de Frank Zappa. Arrigo acabou sendo um dos artífices de um movimento musical surgido nos anos 80 em São Paulo, a Vanguarda Paulista, que abarcaria outros grupos e artistas, como Itamar Assumpção, Grupo Rumo, Premeditando o Breque, Eliete Negreiros, Língua de Trapo e outros. Em dezembro de 1980, a revista Veja trazia a resenha de um show de Arrigo em São Paulo, em matéria assinada por Marília Pacheco Fiorillo e intitulada Sabor Sem Igual: “No Festival 79 da TV Tupi sua música ‘Sabor de Veneno’ foi recordista das vaias – mas já uma das classificadas. As gravadoras fingem ignorá-lo, enquanto figuras como o concretista Augusto de Campos e o maestro Júlio Medaglia começam a saudá-lo como a única boa nova musical dos anos 70. E neste show que estreou na quarta-feira no Auditório Augusta, em São Paulo, uma plateia entre 15 e 30 anos de idade exige bis, delirante: Arrigo Barnabé, 29 anos, nascido em Londrina, no Paraná, ex-estudante de arquitetura e música, compositor e líder da banda Sabor de Veneno, começa a ter seu eleitorado para a vaga deixada com o esmorecimento do tropicalismo. E isso acontece em boa hora: maldita, e engraçada, insólita e rigorosa, a música de Arrigo é uma combinação até então inédita – e feliz – das lições dos eruditos de vanguarda com aquelas da tradição popular. Algo como um virado de Cartola e Stockhausen, temperado ao molho cáustico e enxuto do pop e da linguagem das histórias em quadrinhos.
As composições de Arrigo aliam a dissonância musical, chegando ao atonal, a uma vocalização das letras que faz cada sílaba inseparável do seu acorde. Impossíveis de assobiar, mas extraordinárias para serem ouvidas, a maioria de suas criações está presente no show. Desde as mais antigas, como ‘Clara Crocodilo’, de 1972 – em ritmo de noticiário policial de rádio, contando a saga de Clara, um monstro underground – até a mais recente ‘A Europa se Curvou Diante do Brasil’, glosando o aventureiro Santos Dumont. Irreverentes no conteúdo, na linha melódica e na movimentação em cena, com seus sustos no momento exato, as músicas de Arrigo são às vezes cheias de citações. É o caso de ‘Diversões Eletrônicas’, na qual ele homenageia a um tempo Paulinho da Viola e a dupla Silvio Caldas e Orestes Barbosa, comentando trechos da seresta ‘Arranha-Céu’.
O espetáculo é inteligente o bastante para que o despojamento da produção passe despercebido. Os figurinos das vocalistas são de última hora, mas o desempenho delas é impagável. De toda esta subversão competente, os melhores momentos ficam com ‘Orgasmo Total’ e a sequência ‘Office-Boy’/’Clara Crocodilo’. No primeiro, uma corrosiva investida contra o marketing do sexo. Não passe ridículo/Você também pode ser feliz como eles./Basta pedir hoje mesmo, pela caixa-postal 6969, seu exemplar de ‘O Orgasmo ao Alcance de Todos’, diz a letra, ferina. Nos outros dois, a melhor crônica do urbano brasileiro dos anos 70 já feita em verso musicado. As três músicas, com mais cinco, estão gravadas num disco independente, que leva o nome do anti-herói, ‘Clara Crocodilo’. Que está para os anos 80 como a ‘Garota de Ipanema’ esteve em outras épocas – com a vantagem de ter seu balanço na cabeça, e não nos quadris.”

quinta-feira, 24 de junho de 2021

O Impasse do Novo Samba (Jornal do Disco - 1980)

O samba, ritmo tradicional brasileiro, sempre sofreu transformações, e seria alvo de questionamentos e análises. Já nos anos 50, por exemplo, a bossa nova mudou a cara do samba de raiz. Logo em seguida o chamado sambalanço também trazia mudanças significativas em termos de andamento, ritmo e harmonia, e que anos mais tarde, daria origem ao samba-rock. Já nos anos 70 surgiu uma nova corrente, muito criticada, que ganhou a denominação pejorativa de "sambão jóia". Ainda no fim dos anos 70, o samba-rock sofreria mutações, originando o samba-funk, que trazia uma batida mais calcada no movimento black de origem americana. Logicamente o setor mais purista da crítica não era de aceitar bem essas mudanças, e por outro lado, os menos radicais viam com bons olhos e ouvidos atentos essas desdobrações rítmicas. Em sua edição de fevereiro de 1980, o Jornal do Disco, suplemento da revista Som Três trazia uma matéria sobre o assunto, assinada por Antônio Carlos Miguel. Numa introdução ao texto propriamente dito, ele analisa: "De um lado, o sambão-jóia rola pelas churrascarias: de outro, a vanguarda black propõe soluções, mas é crucificada pelos puristas. No meio, só os nomes da antiga obtém reconhecimento. Afinal, quando é que o samba brasileiro vai reconhecer que a hora é de união?". A ilustração usada nessa postagem é a mesma que aparece na matéria, mostrando um representante da comunidade black com uma indumentária americanizada, em meio a instrumentos elétricos e de samba. Segue a matéria: Fala-se muito em explosão do samba, diz-se que ele foi o produto de maior sucesso da MPB nos anos 70. Mas, mesmo uma análise superficial desse fenômeno mostra que, na área do samba, surgiu pouca gente nova. No fundo, a 'explosão' teve contornos e características um pouco diversas das pretendidas pelos puristas da MPB. Excluindo-se os sambeiros diluidores - os benitos, tons e ditos e jocafis da vida - o pessoal da ativa ou veio da década de 60, caso de Paulinho da viola, por exemplo, ou era bem mais antigo. Da mesma forma que nos EUA foram redescobertos bluesmen como Howllin' Wolf e Muddy Waters, aqui, veteranos sambistas esquecidos voltaram a ter espaço. Cartola, Moreira da Silva, Nelson Cavaquinho, Clementina, Carlos Cachaça, Nelson Sargento e outros coroas da pesada estão aí, espalhando vitalidade, apesar de todo o gangsterismo nas escolas de samba, do sambão-jóia pasteurizado e da caretice do carnaval burocratizado. Enquanto isso, a garotada black do Rio, que nunca deixou de curtir sua batucada, descobriu que também estava próxima, culturalmente, de seus brothers do norte. Afinal, no início era a África. Assim, a rapaziada preferiu curtir bailes regados a funk e soul do que aturar um sambão de churrascaria ou uma quadra de ensaios cheia de turistas. Na verdade, foram estas novas/velhas sonoridades negras que, misturadas à eterna percussão do coração brasileiro, comandaram a explosão da nova música popular brasileira, a MPB de sucesso e qualidade, o 'novo samba' que nada tem a ver com a pasteurização imposta pelas máquinas de hits inconsistentes. Por mais que os puristas e parte da crítica tentem arrasar o fenômeno, incluindo o sambão-jóia na renovação de nossa música e negando o trabalho revolucionário da nova geração, os frutos do novo movimento já surgiram com toda força nos anos 70, prometendo colheitas ainda melhores nos anos que nos esperam. A melhor prova disso está no trabalho (e no sucesso) de muita gente com as antenas abertas.
Um dos primeiros que percebeu o lance e trabalhou em cima dele foi Gilberto Gil que, em 'Refavela', cantou: 'A Refavela/revela a escola de samba paradoxal/Brasileirinho/pelo sotaque/mas de língua internacional...' De lá para cá, Gil tem se aprofundado nesse caminho e a versão de 'No Woman No Cry' (Não Chore Mais), que o Brasil inteiro cantou, é uma bandeira de sua ligação com os ritmos negros de todo o mundo, uma prova de que a vanguarda da música negra brasileira não está nas churrascarias, mas na unidade cultural entre os povos de linguagem black. Já o Jorge Ben, com seu samba eletrificado, ultrapassou as fronteiras previsíveis. Surgido nos anos 60, influenciado pela Bossa-Nova, Ben recebeu guarida da Jovem Guarda, militou com o tropicalismo, para vir brilhar intensamente nos anos 70, cercado de jovens músicos do circuito rock e de companheiros do samba, ao mesmo tempo! Resistindo à incompreensão de boa parte da crítica, que ainda não conseguiu decodificá-lo, Jorge Ben distribui energia e espirituosidade com seu swing.
Outros artistas como Tim Maia e Cassiano fazem escola com seus soul-samba-canções. Macalé tem sido importante por suas conexões, cantando Ismael Silva e se apresentando com Moreira da Silva, que, do alto de seus 70 anos, é mais jovem que muitas cabeças que habitam o samba. Injetando renovação no samba e, ao mesmo tempo, bebendo de seu ritmo e malícia. Baby Consuelo não nega as influências de Elza Soares e Ademilde Fonseca. De Elza, a voz rouca – uma característica também das cantoras de blues - e a irreverência, a descontração total. De Ademilde - que deu uma canja no segundo disco de Baby - o pique do chorinho. Essas mixagens, que foram lançadas pelos Novos Baianos (grandes sambistas), não esquecem a pauleira do rock e as sonoridades do Caribe. Na versão que fez para 'Is This Love', de Bob Marley, Baby dá a receita com precisão: 'É amor!'
Na área específica da fusão funk/samba, há o trabalho da Banda Black Rio, que, com sua alquimia sonora, redimensiona ‘Na Baixa do Sapateiro’ de Ary Barroso ou cria hits como ‘Maria Fumaça’. Em seu segundo disco, Gafieira Universal, a banda aprofunda-se nessas misturas que trazem toda a vitalidade da música negra de norte a sul da América. Da mesma forma, Carlos Dafé, vindo do samba, tem feito a ponte com a funk music. O resultado é um som rejuvenescido, que soma os aspectos positivos das duas correntes.
Todas essas funções e influências explodem com mais vigor ainda no trabalho do artista mais importante de todo o movimento do novo samba: Luiz Melodia. Melô representa o que de mais novo tem o samba, informação regional e universal numa combinação perfeita de ritmos e maravilhas contemporâneas. Em seus três LPs lançados está presente essa síntese feliz e, em seus últimos espetáculos ao vivo, sente-se a maturidade de Melodia, hoje um cantor, compositor e performer no ponto. A fusão proposta por sua música pode ser exemplificada na versão para o antigo sucesso do veterano Zé Keti, ‘A Voz do Morro’. A interpretação de Melô, com arranjo de outro veterano, o maestro Severino Araújo, é impecável. Sem estar preso a raízes imóveis, Melodia é também o reggae, o xaxado, o blues. Com os anos 80, mais espaço será aberto. Que se preparem os radicais, os comerciantes de sambão-jóia e os revolucionários de churrascaria, porque o novo samba está explodindo no xote, no baião, no frevo, no maracatu, no reggae, no blues e no soul. Quem não aceitar as evidências, não dançará...”

quarta-feira, 23 de junho de 2021

Sá & Guarabyra - Volta a Dupla do Rock Rural (1977)


 Em 1977 a dupla Sá & Guarabyra andava meio sumida de cena. Seu último disco, Cadernos de Viagem, havia sido lançado em 1974, e nesse período de três anos, sem lançar discos, e provavelmente praticamente sem se apresentar ao vivo, a dupla fazia uma espécie de reciclagem de seu trabalho artístico. Até projetos solo haviam sido levados em conta, mas na verdade, naquele período os dois já estavam concebendo aos poucos o seu disco de maior sucesso: Pirão de Peixe com Pimenta, que seria lançado ainda naquele ano. O Hit Pop, suplemento em formato jornal que acompanhava a revista Pop trazia uma matéria co a dupla, que falava de seus planos para um futuro próximo, como o lançamento de um compacto pela Som Livre, e futuramente o LP citado. Na matéria eles ainda falam da saída de Zé Rodrix do trio que formavam com o músico, e deixam claro que a saída de Rodrix não foi amigável e tranquila. As referências ao antigo parceiro não são nada amistosas, porém, quem continuou a acompanhar a carreira da dupla sabe que muitos anos depois, pouco antes da morte de Zé Rodrix, o trio foi reativado, fizeram shows pelo Brasil (eu cheguei a vê-los em minha cidade) e chegaram a gravar um CD. Nada como o tempo para apagar qualquer mágoa ou mal entendido. Segue abaixo a matéria:

"O lançamento do mais novo compacto de Sá & Guarabyra - o primeiro na gravadora Som Livre - marca a volta de uma das duplas mais importantes que a música jovem brasileira já conheceu. Criadores da música rural amplificada (logo rotulada de rock rural), elaborada a partir de suas próprias vivências, Luis Carlos Sá e Gutemberg Guarabyra formam uma dupla cheia de histórias  para contar. E o que é melhor: após uma parada de dois anos - quando seguiram seus próprios caminhos na publicidade - eles estão dispostos a contá-las. 'Na verdade' - comenta Sá - 'a dupla nunca chegou a se desfazer. Apenas estávamos envolvidos em projetos de LPs solo, projetos que foram adiados quando a gravadora Som Livre nos fez a oferta para o compacto.'
A dupla acaba de voltar de uma longa viagem pelo interior da Bahia, terra natal de Guarabyra. Passando por Marimbondo, Água Corrente, Sobradinho, Bom Jesus da Lapa e muitas outras, eles encontraram um público imenso e até desconhecido. 'É impressionante a nossa penetração no interior do país - observa Guarabyra. Todo mundo tem nossos LPs Nunca e Cadernos de Viagem, e perguntam por que não gravamos outros. Nessas viagens, nós aproveitamos para fazer também um trabalho de pesquisa, mas sem aquele espírito de pegar um gravador, mandar o ceguinho cantar e mais tarde usar tudo nos arranjos. Sem essa, né...
 
Guarabyra
Apesar de parceiros há mais de dez anos, só em 1972 Sá e Guarabyra se uniram profissionalmente, no trio que contava ainda com Zé Rodrix. Este último, no entanto, nunca chegou a se adaptar, e deixou os companheiros após a gravação do primeiro LP*. Segundo a dupla, a saída de Rodrix foi 'um verdadeiro alívio, pois nosso trabalho esbarrava no apelo meramente comercial que ele pretendia para o grupo'. Além dessas críticas, Guarabyra ainda faz acusações mais sérias a Rodrix, estando disposto a contar 'para quem quiser  e estiver interessado em ouvir'.
Morando no bairro paulistano do Brooklin, entre os violões e os filhos, Sá e Guarabyra sentem que estão num momento importante de suas carreiras. Afinal, a música foi a opção definitiva da dupla de parceiros que, anteriormente, já haviam trilhado os caminhos da diplomacia (no caso de Sá) e do trabalho burocrático bancário (no caso de Guarabyra).
Depois do lançamento do compacto, que está chegando às lojas, o próximo passo é a gravação do LP, para o qual a dupla já conta com algumas músicas escolhidas. Entre elas, segundo Luis Carlos Sá, Flor do Sol, que seria 'o último dos rocks rurais'. "
* Na verdade o trio Sá, Rodrix & Guarabyra lançaram dois discos
 


terça-feira, 22 de junho de 2021

Balanço Musical de 1977 - Soul e Disco Music Tomam Impulso (Jornal de Música)


 Em sua edição nº 37, de janeiro de 1978, o Jornal de Música fazia um balanço do que foi o ano de 1977 na área musical. Várias vertentes da música foram analisadas, sendo feitas previsões para o ano de 1978, que se iniciava. Destacarei aqui a vertente do soul e da black music no plano nacional e internacional. A disco music já ganhava força, e previa-se que o ritmo iria prevalecer nos próximos anos, o que ocorreu. Em termos de Brasil, o movimento Black Rio viveu seu apogeu em 77, além do crescimento da música negra brasileira, sendo destacados nomes como Banda Black Rio, Carlos Da Fé, Cassiano (foto), Gerson King Combo, e outros nomes. A matéria é assinada por Gabriel O'Meara:

"Em matéria de soul, o ano de 1977 foi repleto e farto. Tantos foram os lançamentos que um bom soul-maníaco precisaria de uma grande conta bancária para comprar tudo, e ainda, necessitaria de um 'banco-de-memória', comparável aos dos computadores mais sofisticados para guardar os nomes de grupos novos como High Energy, The Controllers, Keele Patterson, Brick, Rose Royce, Cameo, The Originals e dezenas de outros mais que passearam pelos primeiros lugares das paradas de soul durante o mês de dezembro.

Misturados aos novatos, Earth, Wind and Fire, Barry White, Emotions, The Jacksons, Telma Houston e Memphis Horns também marcaram presença. É interessante notar que pelo menos a metade desses artistas trabalha dentro da linha discotèque, às vezes disfarçadamente (vide Jacksons e Rose Royce) ou assumindo completamente o gênero. As revelações do ano também se dividiram entre as duas categorias. Do lado do soul puro, Commodores, EWEF, Tower of Power, Natalie Cole, Emotions, Average White Band, Candi Staton, Al Green e War, saíram ótimos LPs, todos editados no Brasil. Falando do EWEF, que lançou um excelente álbum duplo ao vivo, o Gratitude, o grupo acaba de lançar um tremendo disco nos Estados Unidos com um pout-pourri de duas músicas de Milton Nascimento, resultado da visita do guitarrista Johnny Grahan ao Brasil há seis meses atrás. Eumir Deodato também está presente nesse novo disco.

Al Green

No terreno da discotèque, o melhor lançamento foi da Top-Tape - 'The Originals', um conjunto norte-americano de estúdio. Completamente desconhecido na 'terrinha', esse grupo gravou verdadeiras joias-discos. Os outros artistas do gênero que merecem atenção são G.C. Cameron, T. Connection, Trammps (é claro), Johnny Taylor, Harold Melvin e Boz Scaggs. Depois dos Originals. Seus discos preferidos foram lançados pelo  Trammps e pelo T. Connection.

No Brasil as coisas iam bem no começo do ano, mas pelo fim de 77 parece que houve uma desaceleração do embalo. Em janeiro, Cassiano lançou o LP 'Cuban Soul' que, na minha opinião, é longe o melhor soul já feito no Brasil. Teve também o lançamento quase simultâneo de Gerson King Combo e o último álbum de Tim Maia pela Philips. Gerson é aquilo mesmo, quase uma paródia do que ele próprio diz ser - O Rei dos Blacks! Houve também lançamentos 'soulizados' da WEA (eu acho que o deslumbramento de André Midani com um possível mercado black se estabilizou pois Dom Charles, que seria o maestro soul residente e o Dom Filó, da Equipe Soul Gran Prix são, no mais, acionistas da casa).

A Banda Black Rio lançou seu 'Brasoul' e, apesar de não obter muito sucesso dentro do chamado Black Rio (que prefere James Brown) provou ser a mistura perfeita de raízes brasileiras e soul. Viva eles! O Luís Carlos Dafé fez um trabalho paralelo ao da Banda Black Rio, tanto que a usou na gravadora do seu LP. Outro dia mesmo ouvi um disc-jockey da Rádio Globo falar que 'Cassiano morreu e Dafé assumiu'. Não é bem assim. Cassiano não faz shows e devido a seu estranho comportamento esquizofrênico, pouco se vê de meu camarada Dom Cassio. Por sua vez, Dafé se apresenta ao vivo com frequência e cuida de sua carreira, emplacando várias músicas nas paradas no decorrer do ano. Dafé é mais calcado em suas raízes do que Cassiano, mas é notável a influência da voz desse último em sua voz. Outros dizem que a semelhança é com Fagner (prestem atenção em 'Era Lindo').

Tim Maia gravou outro disco, só que dessa vez na Som Livre, bem superior ao lançado no começo do ano pela Phonogram. Como diz o meu amigo Nelson Motta, 'precisamos urgentemente tomar consciência de que estamos diante de um dos maiores cantores de nossa música'. Right On! Ainda precisamos de tempo para ver no que dá o último passo do disco da Phonogram, a recentíssima Lady Zu. A CBS também cuidou de aprontar artistas soul, como Robson Jorge, que lançou um bom álbum que só foi prejudicado pela linearidade de arranjos.

Tony Bizarro também foi prejudicado em seu disco pela falta de imaginação, salvo a linda faixa 'Nesse Inverno'. Tony faz o gênero Tim Maia, sendo semelhante ao veterano tanto artística como fisicamente. Cláudia Telles também sapecou seu 'soul-pop' pela CBS, emplacando 'Preciso Te Esquecer' em primeiro lugar. O Mita gravou um bom disco, perdido no grande abismo da má divulgação da Continental (sorry, Coutinho).

É isso aí. Se faltou coisa tentarei me lembrar. Até o fim de 78, que deve ser um tremendo 'soul year' para todos nós."



segunda-feira, 21 de junho de 2021

John Lee Hooker - Um Bluesman de Muita Sorte (O Globo -1991)


 John Lee Hooker foi um grande bluesman, e reverenciado por vários nomes de peso do rock e do blues. Essa admiração ficou registrada em um álbum que o mestre lançou em 1991, chamado Mr. Lucky, em que um time estelar de convidados de peso fazem significativas participações. A coluna Rio Fanzine de O Globo em sua edição de 10/11/91 traz uma matéria assinada por Carlos Albuquerque sobre o lançamento:

"Sujeito de sorte, o John Lee Hooker. Poderia estar numa casa de repouso, em um asilo de luxo ou mesmo encostado numa cama por causa de uma enfermidade qualquer, cantando o blues para enfermeiras e médicos. Vários artistas do gênero acabaram nestas situações: alguns em outras ainda piores. Mas não ele. É que, além de talento, Hooker tem bons amigos. E tem sorte. Quem duvidar disso que ouça seu novo trabalho, com participações especiais de Albert Collins, Robert Cray, Ry Cooder, Van Morrison, Keith Richards, Carlos Santana e Johnny Winter, entre outros. O nome do disco, claro, não poderia ser outro: 'Mr. Luchy'.

Lançado recentemente no exterior pela Silvertone e breve no Brasil via EMI-Odeon, 'Mr. Lucky' é um digno sucessor de 'The Healer', disco que deu a Hooker um Grammy e que contava também com um time de craques: Bonnie Raitt, George Thorogood, Los Lobos e o 'repetente' Carlos Santana. Empurrado por essa turma - todos fãs de caderninho do seu trabalho -, Hooker mostrou o quanto é jovem aos 73 anos e rejuvenesceu o para lá de ancestral som do Delta Mississipi.

E o que era intenção em 'The Healer' - analisar as várias possibilidades do blues, e seus desdobramentos -, é fato em 'Mr. Lucky'. Sem histerias, sem muito alarde. John Lee Hooker faz quase brincando o que meio mundo tenta fazer sofrendo: mostrar que o blues é o fio condutor de várias correntes musicais e que pode, ainda hoje, soar moderno e atual. Chocante isso, mas apenas para quem acha que blues é 'sempre a mesma coisa'.

'I Want To Hug', que abre os trabalhos, simboliza bem isso, colocando a voz gutural de Hooker à frente de um furioso boogie-woogie, cortesia do piano do convidado Johnnie Johnson. 'Mr. Lucky', faixa-título, pula etapas e traz ao disco o som sofisticado e elegante de Robert Cray e toda sua banda, num discurso rhythm and blues de dar gosto. No final, o agradecimento do mestre: 'Thank you, Robert'.

Produzido por Roy Rogers (que esteve tocando no Brasil recentemente) e dedicado à memória de Stevie Ray Vaughan, 'Mr. Lucky' tem a felicidade de extrair o melhor de cada convidado, sem nunca comprometer o conjunto. Para quem andava com saudades dele, o albino Johnyy  Winter reaparece solando furiosamente em 'Susie'. Albert Collins é outro que aparece no disco em plena forma, nervosíssimo com sua Fender Telecaster no blues 'Backstabbers'. Carlos Santana e banda surgem em 'Stripped Me Naked' e dão toques latinos e jazzísticos ao disco, repetindo a performance do disco anterior, no qual interpretavam a faixa-título.

Ry Cooder, o herói da trilha sonora de 'Paris Texas', traz de presente para Hooker não apenas sua magistral guitarra mas também seu inseparável trio vocal (Willie Greene, Bobby King e Terry Evans), o que faz de 'This Is Rip' uma evocativa viagem às esquinas de Nova Orleans. Com John Hammond (outro que tocou este ano no Brasil), Hooker faz um duelo assombroso em 'Highway 13'; algo quase tão sombrio quanto o de um outro embate, com o voodoo-man Keith Richards e o superbaixista Larry Taylor, na faixa 'Crawlin'Kingsnake'.

E há por fim o solene encontro de Hooker com o supremo Van Morrison, 'I Cover The Waterfront' é uma dessas obras-primas que só uma conjunção especial dos astros pode tornar possível. A Caledônia unindo-se ao Mississipi, a Irlanda passeando pelo sul dos Estados Unidos, numa canção celestial, um diálogo de vozes sublime, valorizado pelo órgão de ninguém menos do que Booker T. Jones. Seis minutos e trinta e oito segundos de pura emoção. 'Mr. Lucky' é assim: um por todos e todos por john Lee Hooker. Que Sortudo!"


sexta-feira, 18 de junho de 2021

Os Dez Anos da Morte de Peter Tosh (1997)


 O dia 11 de setembro é marcado por fatos negativos. O mais lembrado é o ataque terrorista das Torres Gêmeas nos Estados Unidos em 2001. Também houve o golpe de estado que atingiu a democracia chilena em 73, culminando com a morte do presidente Salvador Allende, e o que muita gente não sabe, é que foi num 11 de setembro de 1987 que aconteceu outra tragédia, o assassinato de Peter Tosh, um dos nomes mais representativos do reggae. Para quebrar um pouco a negatividade da data, é bom lembrar que foi num 11 de setembro de 1962 que os Beatles entraram pela primeira vez em um estúdio como contratados de uma gravadora, iniciando uma história de sucesso. Mas voltando a Peter Tosh, pode-se dizer que ele é uma espécie de vice-rei do reggae, já que a figura, a liderança e a importância de Bob Marley na difusão do reggae são incontestáveis. Em setembro de 1997 o fanzine Dread Times, especializado em reggae, lembrou da data, e publicou uma matéria sobre Tosh, assinada por Mauro França, e adaptada do livro Catch a Fire - The Life of Bob Marley, de Timothy White:

"Há exatos dez anos o reggae perdia uma de suas maiores expressões. Na noite de 11  de setembro de 1987, Peter Tosh foi brutalmente assassinado na sua própria casa em Kingston. Por isso abrimos esta edição com um relato sobre os acontecimentos desta fatídica data, uma história pouco conhecida dos regueiros brasileiros.

Depois de um longo período de estagnação criativa e disputas judiciais, Peter Tosh tentava em meados de 1987 retomar  o pique da sua carreira. Em julho ele lançou o álbum No Nuclear War, depois de um hiato de quatro anos desde Mamma Africa, e planejava fazer uma turnê para promovê-lo. O objetivo também era melhorar sua situação financeira, que era precária, em boa parte devido aos custos dos vários processos em que havia se metido. As negociações  com a gravadora visando obter um adiantamento para o projeto fracassaram, e Peter e seu empresário decidiram levantar alguns empréstimos. Quando pegou o avião de volta para a Jamaica, com a esposa Marlene Brown, no dia 06 de setembro, Peter dizia aos amigos mais próximos que a principal razão para a turnê era que ele estava quebrado.

Ele também estava isolado. Seu último show na Jamaica havia sido em 83, suas músicas raramente tocavam nas rádios e os amigos músicos mantinham uma certa distância. Muitos não gostavam de sua mulher, que não gozava de uma boa reputação. Peter havia cortado relações até com Bunny Wailer, a quem acusou de depreciar os valores morais do reggae com suas músicas para dancehall. E denunciava todos os deejays, novos e veteranos, chamando-os de  corvos. No último ano, ele ainda perdera uma longa batalha pela posse do mais jovem dos seus oito filhos com várias mulheres e ainda teve sua casa incendiada.

Peter e Marlene moravam na época numa grande casa de dois andares num bairro de classe média alta. Poucos amigos frequentavam o casal, sua minguada comitiva sendo formada pelo artesão Michael Robinson, o especialista em ervas Doc 'Bush Doctor' Brown, o radialista Jeff 'Free-I' Dixon e sua esposa Joy e o baterista Santa Davis. Mas sua casa também era frequentada por tipos comuns nos guetos, misto de mendigos e pequenos criminosos que perseguiam todas as personalidades do Reggae que haviam escapado, mas não se distanciado, dos bairros de lata de Kingston. Logo na manhã seguinte à volta, eles foram visitados por uma dessas figuras, o vendedor ambulante Denis 'Leppo' Lobban, que tinha na sua ficha várias passagens pela prisão. A relação entre eles vinha desde o início dos anos 70, na qual Leppo buscava sempre suporte e dinheiro. Nos últimos dois anos Peter havia lhe dado dinheiro para manter um abrigo no gueto e criar um filho. Naquele dia Lobban veio se queixar que o irmão de Marlene não havia cumprido alguns compromissos, o que a deixou irritada. Possessa, ela disse que não queria que Peter, ela ou qualquer outra pessoa terminassem mortos, em referência à morte de um comparsa dele pela polícia, devido às suas atividades criminosas. Aparentemente, a coisa ficou nisso. 
Quatro dias depois, na noite de 11 de setembro, Dennis Lobban retornou à casa de Peter. Além do casal, estavam lá Michael Robinson, Doc Brown e Santa Davis, e todos esperavam o casal Dixon. Ao atender a porta, Michael ficou surpreso ao ver Leppo mas logo ficou ansioso quando notou a presença de dois homens com ele. Um dos estranhos, o mais alto, sacou uma pistola automática e ele foi empurrado escada acima, advertido para não fazer nenhum barulho. Na sala, Leppo mandou todos se ajoelharem, parando em frente à tv. Por segundos todos ficaram boquiabertos até ele repetir a ordem com um grito histérico. Os homens obedeceram mas Marlene ficou como estava. 'Onde está o dinheiro?', perguntou Leppo, dirigindo-se a Peter, mas foi ela que respondeu dizendo que não havia dinheiro na casa lembrando que seu irmão os havia procurado naquele dia e eles pediram que voltasse depois do fim de semana, quando uma ida ao banco resolveria o problema. Furioso, ele disse que sua feitiçaria havia causado aquela situação - feitiço que forçara Peter a parar com suas costumeiras contribuições. 'Você morrerá por isto esta noite', ameaçou. O mais alto dos estranhos, impaciente, começou a recolher os pertences pessoais de todos. Ao aproximar-se de Peter, tomou-lhe uma corrente de ouro, atingindo-o com a arma. Treinado em karatê, automaticamente Peter respondeu o golpe, a rápida luta derrubando com estrondo um ventilador. Nesse momento, Free-I e sua esposa Joy bateram a porta. Enquanto os outros dois mandaram Peter se ajoelhar, o mais alto afirmou que ele estava 'morto por aquele movimento'. Indo à cozinha, pegou um facão e ameaçou cortar a sua cabeça se não dissesse onde estava o dinheiro. Marlene interveio pedindo que os pistoleiros não respondessem às batidas.
Lá fora, o casal já estava ficando confuso com a falta de resposta e ainda mais com o barulho vindo do interior da casa. O estranho mais alto escoltou-os para dentro e já foi logo tomando uma corrente e  a carteira de Free-I. Leppo começou a entrar e sair dos quartos gritando 'Onde está o dinheiro?', certo de que Peter não poderia ter voltado da América sem nada. Peter e Marlene tentavam argumentar com ele, propondo várias possibilidades para quando o banco abrisse. Ouvindo aquilo o pistoleiro alto vociferou para Leppo, 'Faça o que você veio fazer!' Com isto, Leppo atirou ao acaso em Marlene, que estava próxima a Joy. A bala atingiu-a de raspão na cabeça e entrou pela boca de Joy Dixon, deslocando seus dentes e saindo pela bochecha. As duas caíram em meio ao choque e horror, parecendo mortas. Agitado, os olhos de Leppo rapidamente passaram das mulheres para a cabeça de Peter e ele colocou a pistola na sua testa e atirou  duas vezes, as balas atravessando o crânio. O corpo de Peter tremeu com a força dos tiros e então caiu flacidamente.

Aquilo pareceu levar os pistoleiros à loucura e eles começaram a atirar em uníssono enquanto iam saindo, oito ou nove tiros cruzando a sala. Uma bala atingiu o fêmur de Michael Robinson, fazendo-o cair debaixo de uma mesa. Houve uma pausa e então o tiroteio recomeçou. Doc Brown recebeu uma bala na cabeça, morrendo instantaneamente. Free-I recebeu dois tiros atrás de sua orelha. Outro tiro foi dirigido a Michael, atravessando seu chapéu e atingindo sua testa; ele estava caído pensando quanto tempo um homem leva para morrer quando sentiu outra bala penetrando nas costas. Houve uma última rajada do caótico tiroteio, seis ou sete balas cruzando todas as direções. Santa Davis recuou quando uma bala atingiu seu ombro. Joy tremeu quando uma outra furou sua perna direita. Então veio um silêncio terrível, só quebrado pelo pelo barulho de pés se afastando, o abafado ruído de um motor e de pneus cantando. Quando tudo voltou ao silêncio, dentro e fora da casa, Marlene saiu à rua com dificuldade, gritando por socorro. Alguns vizinhos, alertados pelo tiroteio, estavam aturdidos e mudos. Ninguém se moveu em direção à casa até que um procurador que morava no lado oposto tomou a iniciativa e rapidamente atravessou a rua. Ele subiu as escadas correndo e parou no topo atingido pela visão da carnificina, o cheiro de pólvora confundindo seus sentidos. Voltando apressadamente, o advogado gritou para Marlene que ia buscar o carro para levar os feridos para o hospital. Joy e Marlene entraram e voltaram com Peter, semi-consciente. Free-I também foi amparado e Michael Robinson e Santa Davis cambalearam até o carro.

No hospital foi possível fazer um balanço do massacre. Marlene Brown e Joy Dixon foram medicadas e liberadas. Santa Davis deu entrada com seu ferimento no ombro mas estava bem. O estado de Michael Robinson era estável, mesmo com seus três ferimentos. Free-I estava em coma e os médicos consideraram seu estado frágil para uma cirurgia para retirada das balas do seu crânio. Três dias depois ele acabou falecendo. Peter foi oficialmente declarado morto naquela mesma noite.

Nos dias seguintes ao massacre seguiu-se uma disputa entre Marlene Brown e Alvera Coke, a mãe que Peter não via há mais de vinte anos, pelo direito de enterrar o corpo. A briga só foi resolvida com a intervenção do escritório do primeiro-ministro, que garantiu à Sra. Coke a guarda do corpo do filho. O funeral de Peter Tosh começou no dia 25 de setembro, no Estádio Nacional de Kingston, com a presença de mais de doze mil pessoas na fila de despedida. No dia seguinte aconteceu uma cerimônia com a presença de milhares de pessoas, parentes e o público em geral, presidida por um reverendo da Igreja Etíope Ortodoxa de Jamaica. Horace McIntosh, o filho mais velho de Peter, então com vinte anos, fez uma leitura e seu irmão Andrew, de dezenove anos, cantou algumas músicas do pai. O caixão foi conduzido até o o carro funerário por três filhos de Tosh, Horace, Andrew e Steve e pelos músicos Sly Dunbar, Robbie Lyn e Carlton Smith. Depois viajou para Belmont, no estado de Westmoreland, onde repousa num túmulo de frente para o mar do Caribe.

Dennis 'Lepo' Lobban foi preso no dia 17 de setembro, alegando inocência. Seu julgamento começou em junho de 88, junto com o do motorista que conduziu o carro que levou os pistoleiros à casa de Peter. Este alegou não saber do que se tratava e que depois do massacre deu fuga aos homens sob a mira de armas, sendo considerado inocente e solto. Leppo negou ter matado Tosh e chegou a apresentar uma testemunha que deu suporte ao seu álibi, mas não convenceu o júri de oito mulheres e quatro homens, que levou seis minutos para chegar ao veredito, sentenciando-o à morte por triplo assassinato. Leppo ainda está na cadeia, aguardando a execução. Seus dois cúmplices nunca foram identificados e muito menos presos."






sexta-feira, 11 de junho de 2021

Secos & Molhados - Revista Bizz (1993)


 O fenômeno Secos & Molhados nunca foi esquecido. Volta e meia o grupo é lembrado, não só em matérias de jornais e revistas como em livros, que até hoje são publicados, e tentam explicar o que eles significaram não só em termos musicais, como em análises sobre o fenômeno de massas que o grupo significou. Muito se fala ainda sobre a possível cópia de seu visual de rostos pintados, por parte da banda Kiss, levantando diversas teorias, embora nada tenha sido comprovado. Enfim, os Secos & Molhados sempre será referência musical dos anos 70 no Brasil, embora só tenha lançado dois discos em sua curta, mas altamente significativa carreira. Em 1993, vinte anos após o seu surgimento, a revista Bizz, em sua edição nº 94 trazia uma análise sobre os S&M, em matéria assinada por Rogério de Campos:

"Era 73 e a imprensa anunciava: o rei foi deposto. Roberto Carlos tinha sido superado em vendas pelos Secos & Molhados.

Bastava ligar o rádio para confirmar. O público, principalmente as crianças, adorou aqueles esquisitões vestidos de vespas marcianas rebolando feito uns alucinados e cantando músicas estranhas a respeito de sacis e fadas.

A febre Secos & Molhados durou pouco mais de um ano. Durante esse período eles lançaram seu primeiro disco, causaram escândalo, lotaram todos os lugares onde tocaram, gravaram o segundo álbum e acabaram com o grupo.

Foi a trajetória mais surpreendente da história do rock no Brasil. RPM perde de longe.

A banda surgiu do nada, lançou seu disco com uma tiragem inicial de mil e quinhentas cópias e depois de seis meses chegaram à marca das quinhentas mil. Falava-se até em venda de oitocentos mil discos. Segundo a gravadora Continental, quando o segundo disco foi lançado, trezentas mil cópias foram vendidas antecipadamente. A banda era responsável por  90% das vendas da Continental, que colocou 21 das 24 prensas de sua fábrica trabalhando exclusivamente para eles.

E a banda sonhava com o sucesso internacional. 'Eu visualizei que eles poderiam ser tão famosos, ou mais, do que os Beatles', viajava o empresário da banda Moracy do Val na revista Veja. Pelas suas contas, os Secos & Molhados seriam 'um dos dez grupos de música pop mais importantes do mundo em 74'.

O líder da banda, João Ricardo, tinha sua teoria: 'Houve um grande estouro nos EUA, com Elvis Presley. Depois, outro na Europa, com os Beatles. O próximo teria que vir daqui, porque lá fora ninguém tem mais nada a dar'. Ainda que uma legião de imitadores tenha aparecido na sequência, a banda tinha pouca ligação com o que se fazia no Brasil na época.

Estavam sincronizados com o glitter rock do Roxy Music, do T. Rex e outros. Mas nem eles próprios pareciam se dar conta disso (também ignoravam que ao mesmo tempo estava surgindo nos EUA uma banda com o mesmo conceito de maquiagem: o Kiss). Aparentemente ninguém do grupo conhecia muito mais coisas, além dos Beatles.
Para o baixista Willie Verdaguer (autor do arranjo de 'Alegria, Alegria'), da banda de apoio, o que eles faziam era 'rock progressivo'. Mesmo assim, Willie acha que o som não era o mais importante: 'O lance era o Ney Matogrosso'. Perto dele, os outros integrantes da banda eram apenas parte do cenário. João Ricardo e Gerson Conrad podiam parecer andróginos, Ney Matogrosso era outra coisa, um bicho esquisito sem sexo ou origem definida. Seus gestos exagerados - herança talvez de sua experiência como ator de teatro infantil - lembravam feiticeiros africanos de filmes holywoodianos, ou um pássaro assustado defendendo seu território.
A banda acabou quando o segundo disco chegou nas lojas, em agosto de 74. Brigas por causa de dinheiro e  ciúmes. Ney Matogrosso se lançou como cantor de MPB.
Gerson Conrad tentou uma carreira ao lado de Zezé Motta e depois abandonou a música. As últimas notícias são que teria se tornado industrial e estaria fabricando latas decorativas. João Ricardo, dono da 'marca' Secos & Molhados, tentou três vezes (em 78, 87 e 91) a volta da banda com outras formações, mas sempre quebrou a cara. Tem um disco inédito pronto para ser lançado. E vinte anos depois, o Brasil ainda continua esperando alguém tentar ultrapassar o fenômeno Secos & Molhados."