Palavras Domesticadas

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quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

Gil-Scott Heron Lança o Disco Spirits (1994)

Gil-Scot Heron foi um músico inovador, considerado precursor do rap, por já usar na década de 70 letras longas, com mensagens de conscientização, num canto quase falado em muitas de suas músicas. Gil foi um expoente do movimento negro pelos direitos civis ao lado de tantos outros que lutavam através de sua arte contra o apertheid social da América segregacionista. Gil nunca chegou na ser um artista de grande popularidade, e um grande vendedor de discos, mas deixou sua marca no mundo da música negra. Além de compositor e músico também era escritor. Em 1994 Gill lançava mais um disco, Spirits, e ganhou uma resenha assinada pelo jornalista e fotógrafo Carlos Albuquerque em O Globo. Gil faleceu em 27/05/11, aos 45 anos. Abaixo a matéria, intitulada "A Volta do Poeta da Meia-Noite":
"Ice Cub, Snoopy Doggy, Ice-T e todos os mal-encarados 'militantes' do gangsta rap parecem crianças desbocadas perto de Gil Scott-Heron.  De volta às ruas com o disco Spirits , depois de longa e sentida ausência, o poeta número um da música negra americana faz rimas ricas em um meio que anda pobre de sutilezas.
- Eu já perdi a conta de quantas vezes me perguntaram como eu definiria minha música. Em princípio eu chamaria de 'minha'. Mas poderia dizer também 'midnight music', 'third world music' ou 'bluesology'. Minha definição preferida, contudo é 'black music' - diz ele no encarte do disco, lançado pela mindependente TVT Records.
Sua fina ironia em relação aos rótulos  faz sentido. Desde que foi visto e ouvido pela primeira vez em ação, em 1970 com o disco 'Small talk at 125th and Lenox', Gil-Scott Heron tem sido um artista duro de enquadrar, graças da Deus.
Nascido em Chicago em um dia consagrado à mentira - 1º de abril de 1949 - Heron cresceu vendo a verdade de perto. Transplantado para o meio da selva do Bronx nova-iorquino, ele tinha tudo para ser mais um rebelde sem causa.
Felizmente, nosso heroi preferiu fazer outro tipo de arte. Contaminado pela escrita de LeRoi Jones e Langston Highes, pelo lamento sofrido de do blues, e pelo jazz de miles Davis e John Coltrane, Heron passou a enxergar mais longe que os garotos da sua rua.
Deu no que deu. Seus primeiros textos, suas primeiras poesias, tinham tamanha qualidade que o levaram de uma escola pública a uma particular, e de lá a uma universidade.
Seu primeiro disco nasceu da necessidade de juntar duas grandes paixões: poesia e música. Como havia fumaça no ar, com  a luta pelos direitos civis queimando a América, Heron debutou com um clássico que atravessaria décadas: 'The revolution will not be televised'. A letra: "A revolução não vai ter sex-appeal/ A televisão não vai poder dizer o vencedor no jornal das oito/ As mulheres não vão se preocupar se Dick vai ficar com Jane na novela/ Porque os negros estarão na rua lutando por um dia melhor/ A revolução não será televisionada/ A revolução não terá replay/ a revolução será ao vivo, brother'.
Não só isso. Ao longo dos anos em escassos lançamentos, Heron antecipou a chegada do rap (na música 'No knock'), rechaçou o apartheid antes que ele fosse pauta da ONU (em 'Johannesburg') e mostrou que o canto falado combinadva com com a roupagem jazzística. Jazz-rap, como se diz hoje.
'Spirits' é, portanto, um acontecimento que deve ser saudado com fogos de artifício. Porque Gil-Scott Heron continua o mesmo. Cool, elegante e multíssimo bem acompanhado por um comboio jazzístico (incluindo o inseparável parceiro, o pinista Brian Jackson) e com a participação especial de Ali Shaheed Muhammed, do A Tribe Called Quest.
De novo, as letras: 'Isso é música negra, e é poesia/ Mas não é antibranco ou anticoisa alguma/ Eu sou antiguerra e antiódio/ Antirealidade de vidas sacrificadas por aqueles que não têm alma e espírito'. Pode ter certeza: Snoopy Doggy, Ice-T e Ice Cube vão ouvir esse disco em casa com muita atenção. E respeito também."

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

David Nasser Fala de Caetano - 1971 (2ª Parte)

"Já imaginaram, então, quando for ma vez do Gilberto Gil, outro valor da música popular que tem no velho e imortal Luiz Gonzaga o seu folclore vivo? Vai chegar aqui e pedir ao Walter Clark a estação da Bahia como cachê. Se o Geraldo Vandré, outro da pesada, conseguir luz verde para entrar no Brasil, haverá a maior briga de foice no escuro. Haverá até pool financiado com dinheiro americano. O negócio é vender sabonetes, visando ao seu patrocínio. Ora, esses fatores interligados, num sistema de vasos comunicantes, expulsam do Brasil, tacitamente, aqueles que deles não participam, que honestamente o repelem. O próprio Tom Jobim (de quem trataremos outro dia) compõe no Brasil e vai gravar nos Estados Unidos. Não tem lugar aqui. Mas a estagiária rosa-choque, assim que desembarca um crioulo que o Augusto Marzagão descobriu no W.C. Astoria e contrata para o festival, mal o xexéu pisa o último degrau da escada da Varig, a moça de jornal que também é da pesada quer saber se Frank Sinatra ouviu o último lançamento de Tony Tornado.
Meu povo, fora do Brasil, musicalmente, só se conhecem Tom Jobim, João Gilberto, Chico Buarque, e ainda se lavam as águas de rosas quando soa a música verdadeira do velho Ary ou do Herivelto. Estoura um sucesso de quando em quando de Edu Lobo na voz de Elis Regina, pipoca, por acaso, um Carlos Imperial que a Brigitte Bardot aprendeu entre duas queimadas na praia de Cabo Frio - mas a verdade é que toda essa história de consagração lá fora, sucesso lá fora, Paris caiu aos pés de beltrano, Londres chorou ao ouvir sicrano, não passa daquela tapeação de a Europa se curvou ante o  Brasil. Perguntei a um francês de Montmartre se ele conhecia algum brasileiro e ele respondeu que conhecia Santos Dumont. Contei essa história ao Blecaute e ele estranhou que o homem tivesse descido no Galeão.
Autores de quatro ou cinco sucessos, apesar de bons autores, Caetano Veloso, Gilberto Gil e  outros estão a uma distância de Ary, Noel, Tom Jobim Vinícius, Lamartine, Herivelto, João de Barro, Haroldo Lobo e do próprio Chico Buarque de Hollanda - como estamos da Lua. Pode ser que cheguem lá. Acedesse a Antonio Carlos Jobim em perder a dignidade profissional, a pureza de sua criação, a barganhá-la pelos slogans - e seria o Cole Porter brasileiro. Ele sabe, mas, bom colega, não admite em público que, em verdade, em verdade, a maioria desses valores não são falsos, mas se dirige a um público falso, bebe uísque e fabrica cerveja. Fazem música de inseminação artificial.
Exilados não são os compositores brasileiros que vão e vêm quando bem entendem. Exilados são são aqueles, como o  próprio Dorival Caymmi, o já citado Jobim e alguns outros, monstros populares, que não querem misturar política e arte - e se tornam estrangeiros dentro de sua própria pátria. É por isso que um inglês de gênio, numa febre de justiça, num ímpeto de revolta contra a pirâmide esmagadora dos falsos valores, pedia uma arte para o povo. O que ele devia reclamar no Brasil era um povo para a arte. Vem um português e diz que educar um povo não é impor-lhe opiniões, não é declarar-lhe que tal frase está em ré. É lhe dar o direito de opção, o que, musicalmente, não existe no Brasil. De reflexos condicionados, somos aquele cachorro de Alagoas que chora qiando ouve a "Minha Vida" cantado pelo Altemar Dutra. E eu não desejo tanto.
É preciso denunciar que há neste país em plena ação um movimento para nivelar todas as idades, todos os gostos, todas as idades, todos os gostos, todas as tendências, todos os valores, na música, no teatro, na pintura, em todas as artes. Quem não gostar de Caetano Veloso tem de comer Gilberto Gil ou almoçar Maria Bethânia ou jantar Gal Costa ou Ivan Lins ou alguém de mesmo cardápio. Pode ser bom, mas há quem goste de feijoada. Vatapá todo dia dá enjoo até em baiano. E o baiano não esquece que até hoje ninguém cantou a Bahia melhor do que Ary Barroso ou Dorival Caymmi.
Se eu gosto de Caetano Veloso? Gosto sim. Só espero que você, leitor do ano 2000, ao abrir por acaso esta revista numa biblioteca qualquer, não pergunte à memória, num comercial gratuito:
- Caetano Veloso? Mas era um dos donos da Casa da Banha?"

Nota: A referência às Casas da Banha, a maior rede de supermercados do Rio de Janeiro na época, é porque seus proprietários tinham sobrenome Veloso. Hoje, esse supermercado não mais existe.

domingo, 15 de fevereiro de 2015

David Nasser Fala de Caetano - 1971 (1ª Parte)

David Nasser era jornalista, cronista e compositor. Porém tinha posições políticas reacionárias, sendo um apoiador do Golpe de 64, e costumava em suas crônicas denunciar personalidades e artistas de esquerda, e exaltar o governo militar. Por isso é um personagem que à principio, eu jamais incluiria nesse blog. Mas uma crônica escrita sobre Caetano Veloso (que ainda vivia no exílio londrino) e publicada na revista O Cruzeiro em fevereiro de 1971, me surpreendeu pelos elogios ao compositor baiano, que em tese seria mais um artista a ser criticado por suas posições esquerdistas. Talvez, por ser também um compositor (teve várias de suas músicas gravadas por Nelson Gonçalves e outros intérpretes), Nasser tenha tido a sensibilidade de reconhecer o grande artista que Caetano já era na ocasião. Isso é uma prova que o pensamento direitista daquela época era menos burro e sectário do que nos dias atuais. Caetano, inclusive gravaria uma música de David Nasser, Baião da Penha, no disco Circuladô. Segue abaixo a primeira parte da crônica, que teve por título "Inseminação Artificial":
"A menina do lado quer saber se gosto de Caetano Veloso. Claro que gosto. E das suas músicas? Claro, claro, menina. E da sua cabeleira? Claro, claro, claro. Gosto do arzinho celestial com que ele nos olha com aqueles olhos de Maria Bethânia, sua irmã de berço trocado. Gosto do andaime novo de harmonia que ele pôs em suas canções, usando a madeira velha de Xavier Cugat. Há juventude, alegria, otimismo na música desse bom baiano. A gente se lembra de como apareceu, naqueles programas de Blota junior, na TV Record, eta baianinho anêmico e cabeludo deixando meio mundo bestificado com sua prodigiosa memória de letras e músicas do passado. Num instante, como foguete, Caetano se projetou ao infinito de uma glória falsa e legítima. Falsa pela pressa. Legítima pelo talento.
O prestígio que a televisão dá ao artista brasileiro (não sei se no resto do mundo é assim) é rápido como gozo de galo. Vem depressa, vai depressa. Aqueles que têm cabeça (como Agnaldo Timóteo, Altemar Dutra0 usam o vídeo em doses homeopáticas, cortam o monstro em fatias. Caetano Veloso, poeta vivo, excelente musicista, demonstrou bom senso em parar (ou, antes, em dar uma parada) quando sentiu que o mito estava oco de cupim.
Por estranho que pareça, a Revolução foi o pretexto utilizado por vários artistas que emigraram num falso exílio. O exílio promocional(*). Entre eles, estava Caetano Veloso. Sim, e possível que tenha havido excesso na repressão, que algumas cabeleiras tenham sido cortadas, injustamente, que esta ou aquela autoridade tenha se zangado com uma linguagem que, de tão simbólica, de tão oculta, estava na cara - e a zanga do coronel ou do delegado, sei lá, terminasse o festival de um socialismo promocional, inautêntico, regado a bom uísque escocês. Daí para justificar o autodesterro vai um oceano de boa vontade.
A maioria dos compositores brasileiros - de comunistas ou, usando expressão mais doce, de socialistas, só tem a barba, a cebeleira, o rótulo. Fazem boa música, trabalham sobre boas letras, porque vêm de uma geração lítero-musical universitária bem melhor que as anteriores, mas sabem que o povo gosta dos canários que cantam nas gaiolas. Por isso se apresentam como vítimas. Houve uma excessão: Geraldo Vandré. Mas este, também, foi longe demais. Cabra-da-peste.
A música é a pátria. A primeira base que depois da língua se procura destruir é a maneira de cantar de um povo. Todas as fronteiras, então, desaparecem e aí começa aquela história de operários de todo o mundo, uni-vos.
O brasileiro tem horror ao ridículo. Virou moda ser tachado de quadrado ou de ufanista brasileiro que falasse de Brasil. O próprio ritmo do samba, vindo nos terreiros da Bahia, virou antiguidade, museu de cera, velharia. Numa época em que todo o mundo cultua seus valores definitivos e eternos em todos os campos, mantendo-os vivos e sagrados juntos aos valores novos e sagrados juntos aos valores novos, o Brasil enterra antes da morte seus maiores. Ary Barroso, Noel Rosa, Lamartine Babo - nunca lutaram tanto para sobreviver como depois da morte.
 A televisão cria mitos e os fulmina. Daí essa estratégia inteligente do exílio voluntário. Não posso imaginar que , numa terra em que se lhe ofereça 50 milhões antigos por apresentação, o sr. Caetano Veloso se considere um banido. Um banido que pega o avião tranquilamente no Aeroporto do Galeão, vai até a Bahia, assiste à missa da mãe com os bentinhos no pescoço e fica à espera de que os convites lhe entrem pela casa aos borbotões, subindo, subindo sempre na cotação do mercado musical."

(*) Revolução é como era chamado o Golpe de 64. Nesse trecho de sua crônica, e em alguns outros, Nasser deixa aflorar sua veia reacionária, ao afirmar que alguns artistas se autoexilaram como uma forma de promoção, embora reconheça uma rigidez exagerada no caso de Caetano.

(continua)

sábado, 14 de fevereiro de 2015

O Pasquim Entrevista os Novos Baianos - 1969 (3ª Parte)

Glauber - O cara não deixou você entrar na porta?
Galvão - É. Ele levou uma garrafada no clube de noite e eu nem soube, só fui saber no outro dia. Pra você ver como é que são as coisas. Eu nem me preocupei e nem queria que ele levasse a garrafada. Mas foi legal porque ele nunca mais vai levar garrafada, porque acredito que ele vá saber como é a vida mesmo. É por isso que eu sou assim.
Paulinho - Essa briga mesmo foi porque sempre que a gente sai de casa, entra num lugar, chega assim num lance, a gente bota a língua pra fora, sacumé? Porque aí espanta mesmo, não tem grilo mais com  a gente. Quem não tá legal pra ficar no lugar sai, cão de fila sai, zombeteiro não fica, zanzador também não fica, sacumé? Nesse dia a gente foi comer num restaurante, um lugar pesadíssimo. Chegamos lá, a maior zonzeira, todo mundo de bebum, sacumé? Nós esquecemos de botar a língua pra fora, pronto.
Maciel - E pra Gutemberg vocês fizeram alguma feitiçaria pra ele se dar  mal?
Paulinho - Que nada, bicho. Nós agora mesmo tivemos na Bahia, nem procuramos saber mais de Gutemberg. A gente se esquece mesmo. A gente está vivendo mesmo é pra cada minuto. A gente não faz mal a ninguém. Quem tá fazendo mal não é ele? Ele tá fazendo mal a ele mesmo, nós não temos nada com isso. O pessoal que está fazendo mal a si mesmo só tem que se danar, né, bicho?
Sérgio - Depois que vocês fazem a música como é que vocês fazem pra saber que vai cantar e tal?
Moraes - Aí, a gente resolve. Pela música a gente sabe quem é que vai cantar. Se sou eu, se é Paulinho ou se é Baby.
Baby - A gente vê qual é a cara de quem. A gente sente pra quem foi feita a música.
Moraes - No disco a gente faz arranjo, eu e Pepeu, que é um guitarrista que trabalha comigo. Tudo que tem no disco, no show, os arranjos, tudo é nosso.
Glauber - Como é que tem sido o Midani, da Philips, com vocês?
Paulinho -  Até agora tá maravilhoso. Vai gravar o nosso show ao vivo. O disco vai ter um lado ao vivo, um lado ao morto.
Sérgio - Baby, depois do festival de Guarapari, o que você tem feito?
Baby - Eu tenho feito muito som, muito swing com a moçada. Agora a gente vai fazer o show da gente, graças a Deus. E  agente, sempre que pode, está indo pros interiores, lá pra aqueles lados da Gruta de Mangabeira.
Maciel - Eu soube que vocês estavam viajando muito.
Baby - Ah, a gente anda viajando por aí e muito.
Maciel - Vocês foram pra Bahia agora, não é?
Baby - Ih,a Bahia está maravilhosa. Fomos pra uma fazenda, tomávamos leite tirado na hora, fomos em casa de mil gentes pobres. maravilhosas, que acreditam em Deus adoidado, igualzinho a gente. Uma loucura. A gente só tá aqui no Rio porque tem que fazer show, tem que ter um lugar assim. Porque a gente não gosta de ficar parado, não. Nós vamos por aí.
Sérgio - Galvão é de Juazeiro, Paulinho é de onde?
Paulinho - Eu sou de Santa Inês.
Moraes - Eu sou de Ituaçu.
Baby - Eu sou do outro lado da baía, de Niterói.
Sérgio - Ninguém é de Salvador, é?
Moraes - Nós nos encontramos em Salvador.
Sérgio -  Como é que foi o encontro de vocês?
Moraes - Nós fizemos um show na Bahia. Eu, Paulinho e Galvão. Naquele tempo éramos só nós três. O show era uma loucura, a gente vendia os ingressos pra comprar tinta, não tinha roupa. Aí Baby pintou na última hora no show. Aí nós tiramos uma menina que estava com  a gente e colocamos Baby no lugar. Depois disso nós ficamos juntos, fazendo som juntos e resolvemos vir pra cá. E estamos aí, até hoje juntos.
Baby - Amém.
Sérgio - Vocês querem falar alguma coisa ainda?
Baby - Eu queria falar uma coisa de Deus, Jesus Cristo e tal. O que entra pela boca do homem não faz mal ao homem. O que faz mal ao homem é o que sai da boca do homem. E quem não nascer de novo já era no reino dos céus. Fernando Pessoa, outro dia eu abri o livro e ele me disse: "coma chocolate, menina, coma chocolate".
Paulinho - Eu queria falar de Buchinho. Buchinho é mais um enviado de Deus. Buchinho não vai pra escola. A gente só vao soltar ele com oito anos mais ou menos, pra ele não aprender nada e já sair dando dentada, sacumé? Eu e Marininha fomos fotografados nus com Buchinho também. Tá maravilhosa a foto, cada foto incrível, mil lances. Baby vai ser a madrinha, Moraes vai ser o padrinho, isso no batismo, porque Joãozinho é quem vai vai segurar, vai ser o da apresentação. Mas tem o maior grilo porque Marininha diz que na hora ele vai estar segurando o menino e vai largar. Joãozinho é incrível, bicho.
Galvão - Hoje mesmo briguei com Paulinho porque eu joguei talco no banheiro. Mas aí eu lavei a segunda vez e o banheiro ficou mais limpo ainda. Sempre eu me esqueço das coisas.
Maciel - Galvão, dá uma mensagem pra moçada.
Galvão - Cantem e dancem, porque vocês não sabem o que vai suceder. De quem canta e dança é o reino dos céus.

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

O Pasquim Entrevista os Novos Baianos - 1969 (2ª Parte)

Maciel - Eu não sabia desse lance. Houve até ameaça de prisão pra vocês cantarem?
Baby - Foi porque o pessoal do festival não tinha dinheiro pra pagar os artistas. Então, eles iam ser presos porque ninguém ia fazer e tinha milhões de pessoas na plateia esperando. A polícia queria prender os caras que estavam produzindo. Eles não pagaram a ninguém e iam sujar o nome de Guarapari que está aí, né? Negócio de turismo e tal...
Galvão - Outro negócio legal paca é que a gente dizendo que ia fazer o show sem grana, botou muita gente na parede. Muita gente que estava a fim de fazer o som com grana na frente, no outro dia queria fazer de qualquer maneira. Foi a maior loucura.
Baby - Aí começou a maior loucura mesmo, nego a querer fazer, hippie paca. A maior loucura.
Maciel - Apesar do grande aparato repressivo que cercou esse festival, depois eu encontrei com as pessoas e elas me dissertam que tinham gostado muito, que tinham curtido demais lá. Não parecia que ia ser bom um dia antes de começar o festival.
Baby - Mas foi bom justamente porque aconteceu o seguinte: sóm ia entrar todo mundo pagando. No fim, só uma minoria pagou e entraram milhões e milhões de hippies, que o prefeito mandava entrar, e o festival foi um sucesso por isso. Foi a maior festa mesmo, todo mundo dando a maior quebra, dançando, foi maravilhoso. As praias incríveis, gente como que na rua, muita moqueca. Deus me livre! Nunca vi.
Glauber - Paulinho, pro pessoal que está conhecendo vocês: podia explicar como é que vocês trabalham, quem faz as músicas, as letras?
Paulinho - Ah, isso aí é muito maneiro, é o seguinte: as letras Joãozinho é que faz, mas eu acredito que ele já recebe prontas, sacumé? Quando ele sai pra um lugar e olha pro céu, já chega tudo tinindo, trincando. Depois, ele parte pra cima de mim e diz: "olha, acabei de fazer um lance aqui e tal'. Depois, ele chega e diz: "Se lembra daquele papo que a gente bateu ontem de tarde? Eu vou botar botar esse pedaço aqui na letra também.' Então, fica sendo também minha  a letra. Gato é que se invocava com isso: "pô, bicho, você bota uma vírgula na música e bota a parceria também com o cara?" Mas acontece o seguinte: tem uma música que se chama Antes de A e o que esse bicho faz é a minha cara, eu sei que é. A única palavra, por exemplo, que tinha na minha música e que não passou na censura foi a única palavra que eu botei na música, sacumé? Ele me perguntou dentro do ônibus, viajando pra Bahia: 'diga uma palavra assim parecida com debochado". Aí não passou, sacumé? Agora ficou; "deixe de estar me azucrinando só porque eu estou tão apaixonado". Agora, Moreira é o seguinte: eu gosto muito de batucar, inclusive toco paca tumbadora. Tem gente que só toca tumbadora, eu quase nunca toco, mas sei que eu toco paca, legal mesmo. Então, a gente faz muito swing junto, mas Moreira é uma pessoa pura, é um santo. O Samaritano pegou na mão dele e disse: "esse homem é santo".
Baby - Aí pegou na sua e disse: "é o Deus do amor".
Paulinho - É. E disse assim pra Joãozinho; "olha, você se cubra, não ande sozinho não, porque você bota muita gente pra derreter e nego lhe apaga". É um barato.
Maciel - Quer dizer que Joãozinho á barra mais pesada de vocês?
Paulinho - Eu acho o seguinte: Deus entra pelos sete buracos da nossa cabeça mesmo, sacumé? A gente saca as barras todas, porque senão não pode ficar junto. É aquele papo que a gente estava batendo lá fora. Se não tiver todo mundo ligado numa, como é que pode ficar junto? Se não tiver todo mundo sacando os lances, como é que pode ficar junto? Não é por causa da gente não, porque eu não tenho nada a ver com  as pessoas, elas podem ficar junto de mim, mas é porque elas não aguentam ficar junto de mim. Eu sou doido mesmo, as pessoas não aguentam ficar junto de nós, tá sabendo? É isso.
Galvão - Esse negócio de ser a barra mais pesada, não é nada disso. Sabe o que é? Outro dia eu levei Paulinho e Baby pra passarem o carnaval em Juazeiro. A gente estava jantando num barzinho, um rapaz chegou e deu um beijo em Baby e nós rimos paca. O cara chegou e deu outro beijo em Baby. O cara tava meio bêbado. Aí, Baby chegou e disse: "que beijação é essa, você está doente de beijação?" O cara falou: "dei um, dei dois e dou quantos eu quiser". Eu falei: 'bicho, se pique daqui senão eu vou lhe quebrar todo". Aí eu dei um murro no cara. Ele ficou lá zangado e saiu. Quando eu fui embora, ele me chamou: "eu queria falar com você". Eu disse: "pois não". Ele puxou uma faca e quis me matar. Eu saí correndo, procurando uma pedra e não achava. Aí eu vi um buraco aberto, era uma porta. Aí, eu vi um pau e disse: "tou salvo". Mas um cara apareceu, botou, botou a mão no meu peito e disse: "aqui você não entra não". Aí eu me esqueci e falei: "tá legal, qual é a sua, rapaz?" Quando eu me toquei que tinha um cara correndo atrás de mim, eu olhei pra frente e vi um paralelepípedo. Só na hora que eu não preocupei é que eu achei. Aí eu voltei com o paralelepípedo. Mas o cara tinha e esquecido e estava atrás de Baby e Paulinho com  a faca. No outro dia eu cheguei no clube e e me encontrei com o rapaz. O rapaz me disse; 'me desculpe e tal". Eu disse: "tá legal. Agora você está puro, pode me dar um tapa, não tem problema. Eu vou lhe mostrar que lutador toma murro e não se zanga. Pode me dar um murro que agora não é nada.". Aí, o cara falou: "não, nós somos amigos". E ficamos amigos. Agora, aquele cara que não deixou eu entrar na porta, não deixou que eu me salvasse, na hora em que eu ia morrendo, podia me salvar ou me matar, no entanto ele não tinha raiva de mim, nem me conhecia direito, aquele cara vai se campar. Vai se campar não porque eu deseje nada a ele, porque eu nem tou me lembrando dele, mas porque ele não tá legal. Qualquer hora dessas ele se campa com uma brincadeira que vai fazer. Eu disse isso de tarde. De noite esse cara levou uma garrafada no rosto e foi para o hospital.

(continua)

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

O Pasquim Entrevista os Novos Baianos - (1969) - 1ª Parte

Em 1969 o jornal carioca O Pasquim realizou uma entrevista com os Novos Baianos, uma banda que havia gravado um disco no ano anterior (Ferro na Boneca), e que já chamava a atenção do pessoal mais ligado num novo som. A banda ainda não havia feito a revolucionária fusão samba-rock-chorinho, deflagrada a partir do disco Acabou Chorare (1972), mas seu primeiro disco já havia causado um alvoroço suficiente para merecer uma boa entrevista, que contou com Glauber Rocha e Luiz Carlos Maciel e Sérgio Cabral com Galvão, Moraes, Paulinho e Baby. Segue abaixo a entrevista:

Glauber Rocha - Os Novos Baianos e Baby Consuelo lançaram um disco, no ano passado, que o pessoal ligado em música ouviu, mas parece que o disco não aconteceu por causa das transas da música popular brasileira. Agora lançaram um show, Os Novos Baianos no Final do Juízo, e eu acho que é legal. Eles estão aqui: Baby, Paulinho Boca de Cantor, Moraes e Galvão. Eles passaram um período lá na Bahia e estão pintando aqui no Rio.

Glauber - Como é que foi o negócio do Delegado Gutemberg com você lá na Bahia, Paulinho?
Paulinho - Olha, bicho, eu não me lembro direito não. Eu tava sentado na balaustrada e o pessoal tava todo ligado em nós. A gente tinha chegado lá na Bahia, sacumé, né? Os Novos Baianos botando pra quebrar aqui no sul e tal. Tava todo mundo lá na porta do hotel: quando eu vi, foi o cara dizendo; 'se não entrar, leva bolacha". Mas aí eu me esqueci disso também na hora, eu acho que não sabia o que estava acontecendo, não. Eu sei que eu fui até lá, fiquei pouco tempo, mas nem me lembro de perguntar nada, não.
Glauber - Foi uma transa incrível, né? Mas o Gutemberg já caiu. O negócio do show como é que é?
Galvão - O show é meio mágico, sacumé? Com as coisas bonitas assim, e loucura, que é coisa bonita mesmo. Não tem nada demais não. Tudo bem simples mesmo. Coisas assim bem bestas: chuva, sol nascendo, fogo saindo das pernas de Paulinho, arco-iris, relâmpago. Essas coisas que a gente não vê toda hora, sacumé?
Sérgio Cabral - A Baby uma vez me disse que ia fazer um show com  aquele negócio que nasce pelo no braço e fica igual um macaco. Você vai fazer esse troço?
Baby Consuelo - Não, aquilo já passou. Era naquele tempo, agora é outro. Agora o negócio é No Final do Juízo, tá sabendo?
Luiz Carlos Maciel - Baby, esse show é aquele que você me falou que queria fazer ou é outro?
Baby - Esse é o que eu qyero fazer mesmo. Só tem esse aí e os próximos.
Maciel - Como é que estão as músicas?
Paulinho - O som tá todo em cima. Agora mesmo nós fizemos um conjunto novo aí, que é A Cor do Som e o som tá em cima mesmo. Vai ser da pesada.
Maciel - Tem muita coisa nova?
Paulinho - Tem. Só tem quatro músicas gravadas no show, o resto é tudo novo.
Sérgio - Quantas músicas tem no show?
Paulinho - 21.
Maciel - Galvão, você não acha que um show assim meio0 mágico, com muita luz, pode prejudicar o som?
Galvão - Eu acho que não. O show, como eu estava falando, é mágico, mas tem som por detrás, aliás, na frente. O som tá na frente, uma hora bem forte e outra bem mole. O som é a vida mesmo. Por exemplo, o figurino nosso é a Bíblia, sacumé? Nós pegamos aquelas roupas da Bíblia. Nós vimos aqueles pintores legais. Os santos tinham umas roupas bem bacanas e eram pobres, não tinham dinheiro, mas tinham uma roupa legal. Então nós achamos que a gente também podia ter essas roupas. E aí, com uma roupa legal, com um som legal, a iluminação só vai dar mais vida. Ao mesmo tempo, não vai parar nada pra acontecer, as coisas tão acontecendo todas ao mesmo tempo. O sujeito vai ver hoje e vai ver amanhã, porque ele vê, porque ele vê e não viu direito. Nós queremos que ele sinta vontade de ver novamente. Eu acredito e tenho certeza, aliás, que o cara vai gostar de várias coisas. Tem um cara que gosta de som, mas tem um cara que vai assistir ao show e diz: "ah, só tinha um cara cantando lá, não teve nada'. Esse cara não vai ter o que dizer depois, ele vai ter que dizer outras coisas novas, outras falhas novas, mas as velhas ele não vai encontrar.
Maciel - Baby, eu soube que você foi a grande estrela de Guarapari. Como eu não fui lá, eu queria que você contasse como é que foi?
Baby- Foi o seguinte: um dia eu tava no escritório do Chacrinha e ele estava sendo contratado pro festival de Guarapari. Aí, ele pegou, forçou uma barras pros caras me contratarem também e conseguiu. Aí, chamei os meninos e encontramos com o cara para ir todo mundo, mas ele disse que não ia contratar os meninos, porque nós tínhamos sido presos e íamos marginalizar o festival. Mas no dia do festival nós fomos assim mesmo, estávamos a fim  de ir, o negócio da gente é som. Onde tem som que tá um, tão os outros. Não tem essa. Quando nós chegamos lá, aconteceu que o festival começou a cair, sacumequié? A grana começou a sumir, todo mundo louco, a polícia na porta: 'vou prender, vou prender". Como é que fica? E nós, cabeludos, como quê, umas figuras incríveis, dentro do hotel. Na última hora ninguém queria mesmo fazer por causa da grana, todo mundo amarrado em som, sacumequié? Aí chegaram pra gente e falaram assim: "cumequié, vocês vão ou não vão fazer? Se vocês não forem fazer nós miremos prender os caras." Aí, nós fizemos. Primeiro, porque o negócio da gente é fazer um som e depois porque eu jamais vou deixar um cara ser preso por minha causa. Nós não termos nada com isso, o cara não ia ser preso por causa da gente. Então nós dissemos; "é claro, amigo, estamos aí, o negócio é esse mesmo." Aí, estava cantando um monte de gente, até Ângela Maria, que disse que eu fiquei mostrando as pernas pra tirar o público dela, mil lances. Quando nós entramos no palco e a Cor do Som atacou uma música lá de Santana, nego começou a ficar louco, mandando abrir os portões pra descerem os hippies, aí desceu todo mundo e a moçada desbundou mesmo, sacumé? No outro dia de manhã, nós estávamos lá num quarto de hotel conversando, todo mundo rindo paca, daqui a pouco batem na porta e entram dois caras: "Baby Consuelo e os Novos Baianos, cadê a moçada? O prefeito quer falar com vocês." Aí chegou o prefeito: "Vocês são maravilhosos, são incríveis, paz! (fez um "v" da vitória, logo). Vocês salvaram o festival, Guarapari agradece a vocês' - maior loucura.
Abriu mais um hotel pra gente, comida, pagou tudo, carro. Nós podíamos até andar de cabeça  pra baixo na cidade que não tinha grilo, sacumé? Maior limpeza. Maravilhoso. Eu só sei que no último dia, ninguém tinha ganhado um tostão. Só os artistas mais famosos, que iam botar alguma coisa na Justiça, ganharam. Onde tinha grana, deram. Nós fizemos o negócio pra salvar o pessoal, pra não deixar ninguém  ir preso. Os caras que iam presos eram os que tinham dito que a gente era marginal, sacumequié? Eu só sei que o prefeito de Guarapari deu um terreno pra mim, um terreno pra Paulinho, duas casas na praia, grana, passagem, e ainda ficou dizendo que eu era a dama, a noiva dele. Maravilhoso, maior limpeza. Foi incrível.

(continua)