Palavras Domesticadas

Palavras Domesticadas

sábado, 19 de janeiro de 2013

Entrevista de Belchior ao jornal O Pasquim - 1982

O compositor Belchior anda recluso ultimamente. Mais do que recluso, está desaparecido mesmo. Após um sumiço recente, quando num trabalho jornalístico quase detetivesco, foi encontrado numa cidade do Uruguai, Belchior sumiu novamente. Mas anos atrás, ao contrário, ele era uma figura fácil na mídia, e com uma agenda lotada, desde que estourou em 1976, após a gravação de "Como Nossos Pais" e "Velha Roupa Colorida" por Elis Regina em seu disco "Falso Brilhante", e depois, quando ele gravou seu segundo disco, "Alucinação", que fez um sucesso enorme Brasil afora.
Em junho de1982, ainda no auge do sucesso Belchior concedeu uma longa entrevista ao jornal O Pasquim, que se notabilizava por suas boas entrevistas. Participaram da conversa Jaguar, Ricky, Haroldo Zager e Mara Tereza. Como se trata de uma entrevista longa, reproduzirei abaixo alguns trechos:
" Jaguar - Belchior, a primeira vez que te vi foi em 72, 73, batendo papo na casa de Sérgio Ricardo (cantor e compositor), você bem tipo retirante. Tomamos uma cachacinha e armamos o negócio do Disco de Bolso, que foi o teu lançamento como autor.
Belchior - Bom, eu tinha vindo pro Rio de Janeiro em 70-71. Sou do norte do Ceará, do Sobral. Família nordestina típica de 23 filhos. Nordestino trabalha de dia e de noite: de dia no arado e de noite na aranha. Sou o 13, o galo. Vivo de canto e beleza. Meu pai pretendia fazer os 25 bichos (se referindo ao jogo do bicho), mas parou no 23, o urso, porque não queria viado nem vaca. Mas é interessante isso de ter muitos irmãos. No meu caso, destinado à vida artística, já tinha plateia em casa.
Ricky - Quantos ficavam do lado do palco?
Belchior - Ninguém se dedicou profissionalmente à arte. Meu avô, um coronel do sertão, tocava sax e flauta. Minha mãe cantava no coro de igreja. Foi ouvindo eles, as músicas de violeiros, o serviço de alto-falante, que comecei a gostar de música. O alto-falante era uma maravilha, sonorizava toda a amplidão do sertão.
Ricky - De onde vem esse nome 'Belchior'?
Belchior -  Meu nome é Antonio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes, portanto, um dos grandes nomes da música popular brasileira. Carlos Gomes foi em homenagem ao compositor campineiro, e Belchior é um nome tradicional no Nordeste. No meu caso italianizei um pouco, porque normalmente você pronuncia Belshió, mas quando cheguei na universidade o pessoal começou a a me chamar de Belquiôr, e aí achei interessante.
Ricky - Vamos falar do lado religioso de sua vida.
Belchior -  Estudei muito tempo em colégio de padre, em Fortaleza, no Sobral, e, dois anos como noviço franciscano, num mosteiro no interior do Ceará. Nesse tempo completei o curso de Filosofia, o que foi muito importante, tendo aprendido latim, pois podendo ler os textos no original me desvencilhei de todo o entulho religioso que até ali tinha atravancado minha cabeça. Ainda hoje leio os textos religiosos tradicionais - Bíblia, São Tomás de Aquino, Santo Agostinho - em latim.
Ricky - Você participou do movimnto estudantil de 68?
Belchior - Participava, mas de de forma alternativa, achando que devia seguir outro rumo, pois era voltado à própria instituição, quando cabia ao universitário repensar todo o ato político brasileiro naquele momento. Por exemplo: eu achava que cabia aos estudantes pensar as alternativas para uma mobilização política que não fosse capitalista ou socialista. Queria uma experiência anarquista, no sentido mais rígido da palavra, uma experiência desordenadora. Imaginava que podíamos aproveitar a oportunidade do movimento estudantil pra ser algo mais que caudatário do movimento político institucional. Pretendia uma coisa mais concreta e inovadora que fazer passeatas de 'abaixo o imperialismo'. Mas ao ultrapassar o movimento retórico fui vencido.
Ricky - O pessoal de 68 continuava agindo como nossos pais?
Belchior - Ah, minha música colocou isso de modo mais nítido e possível. Acho o seguinte: sem prática anarquista, não dá pra reformar ou transformar as sociedades. Mesmo nas democracias, existe excesso de poder. O Governo deve ser um organismo de serviço e não de autoridade. O critério de manutenção do poder deve ser a competência em prestar esse serviço. Devemos lançar fora esse negócio de carisma, de visão mística da autoridade, ligada a preconceitos religiosos antigos. A visão contemporânea do poder hoje é a visão contemporânea do poder hoje é a Pax Mercatoria, a paz dos interesses.
 Ricky - Como foi sua chegada no Rio?
Belchior - Passei dez dias em Fortaleza esperando oportunidade de viajar pelo Correio Aéreo Nacional. Como tava muito cabeludo, o comandante disse que eu não podia viajar em avião que comandava, e tive que descer em Salvador e cortar o cabelo. Não conhecia ninguém no Rio de Janeiro, sequer a cidade.
Ricky - Você continua apenas um rapaz latino-americano?
Belchior -  Claro, sou um brasileiro comum.
Ricky - Só que agora com dinheiro no banco.
Belchior -  Não é bem isso. Eu não confiaria nos bancos a esse ponto., né. Ainda tenho uma formação brechtiana.
Ricky - Cearense é como mineiro, quer guarda dinheiro no colchão?
Belchior - As pessoas que falam em guardar dinheiro não sabem ou se esquecem de que existem os charutos perfumados, as mulheres bonitas, os bons vinhos, de que é importante a gente ver o Oriente, a Europa, e de que a acumulação do dinheiro, além de ser chato, não tem mais significado numa sociedade contemporânea de serviços e de comunicação eletrônica veloz.
Jaguar - Queria que você desse sua opinião sobre aquele crítico que tem nome de planta venenosa, o Tinhorão?
Belchior - É um arqueólogo da música. Gosta de coisas que já passaram, do lado histórico. Gosta de visitar os museus da MPB. Isso é importante. Agora, pessoalmente, não estou a fim de morrer ou de envelhecer pra ser querido pelo Tinhorão.
Jaguar - Quem é o melhor letrista da MPB?
Belchior - Caetano Veloso, o autor da modernidade musical do Brasil. Junto com Chico Buarque, Gilberto Gil e Jorge Ben.
Jaguar - E Vinícius? 
Belchior - É a figura mais fantástica da MPB: abandonou a diplomacia e a poesia institucional para ser o grande trovador do cancioneiro popular. Está ao lado de Newton Mendonça, Tom Jobim e Toquinho. Ele amou o que fez. As pessoas tem se esquecido de que a Arte é um exarcebamento do Amor. A Arte é uma forma de exuberância. A gente faz cartum, música, letra, quadros, porque nosso amor é demais. A minha participação também na estética do Brasil é porque amo muito. E é incrível agente ganhar muito dinheiro com aquilo que ama."

quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

Toninho Horta e Ronaldo Bastos em Los Angeles - 1976

Em 1976 Toninho Horta e Ronaldo Bastos, dois representantes de peso do Clube da Esquina passaram uma temporada nos Estados Unidos, o guitarrista e o letrista. Toninho foi participar de gravações e Ronaldo para compor. O Jornal de Música publicou uma matéria em outubro daquele ano, assinada por Vera Silva, que morava em Los Angeles. Eis a matéria, intitulada "Um Trem Doido em Los Angeles":
"Eu gostaria de ter acompanhado mais de perto as andanças de Toninho Horta e Ronaldo Bastos aqui nos States, mas não deu. Os dois estão num ritmo de trabalho que não é brincadeira, desde que chegaram aqui, em abril.
Agora, sabendo que eles estão de malas prontas para o retorno ao Brasil, tentei cercá-los para um papo sobre os últimos acontecimentos. Por sorte, encontei Toninho em seu apartamento de Hollywood, no momento em que ele chegava de São Francisco, onde tinha assistido a gravação de sua música 'Beijo Partido', com Flora Purim e McCoy Tiner. Só assim consegui marcar dia e hora para a entrevista, e aqui vai o resumo das aventuras de Toninho e Ronaldo na terra do Tio Sam.
Pra início de conversa, os dois vieram a Los Angeles para gravar com Milton Nascimento, que também trouxe Robertinho e Novelli. Durante o período de gravação do LP 'Milton'. Toninho já havia iniciado a produção do seu álbum-solo. Nesse mesmo período, Ronaldo compôs com Milton a música 'Circo Marimbondo', para o LP de Airto Moreira, que seria gravado dois meses mais tarde, e escreveu a letra para a composição de Novelli, 'Minas', que vai aparecer no próximo LP de Milton no Brasil com novo arranjo. Como se não bastasse, Ronaldo ainda trabalhou em conjunto com René Vincent, na versão de 'Nada Será Como Antes' para o inglês.
Toninho e Ronaldo garantem que só foi possível realizar todo esse trabalho ao mesmo tempo porque os estúdios Shangri-la, instalados com seus confortáveis apartamentos, entre as montanhas e as praias de Zuma, ofereciam a paz e o isolamento necessários para enfrentar esse ritmo.
Quando a produção do 'Milton' foi transferida para o Vilage, em West Los Angeles, Toninho também foi transferido para lá, mas a produção de seu álbum foi interrompida por um convite: ele estava sendo convocado para uma participação especial no LP de Flora Purim, que também teria a colaboração de Ronaldo Bastos.
Logo depois, Airto começou a gravar, e lá se foram os dois, adiando mais uma vez a conclusão do álbum de Toninho. Novelli ainda estava em Los Angeles e também participou das gravações, cantando sua composição 'Pelas Ruas do Recife'. Milton também entrou na jogada, cantando e tocando a sua 'Promessas do Sol', que acabou virando o título do LP.
Quando a produção do disco de Toninho foi retomada, no Vilage, novos músicos já haviam sido arregimentados e a banda ficou formada por Airto Moreira, Laudir, Hugo Fattoruso (tecladista), Ringo Thielman (baixo) e George Fattoruso (bateria). Toninho Horta completou as gravações no último dia 6, tendo como resultado final as fitas de base para dois LPs. Um deles será lançado nos Estados Unidos e o outro será concluído e editado no Brasil. A decisão da dupla Toninho/Ronaldo, de deixar só as bases gravadas, foi motivada pelo início das gravações do LP 'Geraes', que Milton vai fazer no Brasil a partir de novembro. Nenhum dos dois quer ficar de fora desse novo álbum, onde será incluída uma composição da dupla - 'Viver de Amor'.
No Brasil, Toninho e Ronaldo pretendem ainda participar dos discos de Nana Caymmi (para quem estão levando uma nova composição) e Beto Guedes - 'A Página do Relâmpago Elétrico' - que o Ronaldo vai produzir e escrever as letras. Antes de voltar para completar o disco inacabado, eles pretendem matar todas as saudades e rever todos os amigos, descansando do trem doido que enfrentaram durante esses meses de permanência nos Estados Unidos."

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

O Rock Performático de Fausto Fawcett e os Robôs Efêmeros

Nos anos 80 o rock brasileiro vivia seu período de maior presença na mídia, e uma série de bandas, movidas pelo espaço que se abria e o interesse das gravadoras em investir em novos produtos, surgiam a cada dia. Com isso, o panorama do rock começava a se tornar repetitivo, com muitas bandas imitando umas às outras, e os executivos das gravadoras cada vez mais ávidos para encontrar produtos rentáveis para embrulhar e distribuir para seu público-alvo. Mas nem tudo que surgia era descartável e imitação. O mercado musical sempre se renova, e algo de novo e criativo sempre há de aparecer, pois a renovação também faz parte da engrenagem que move a máquina da indústria cultural.
E foi assim, que em meados da década de 80 surgiu uma banda que trouxe um toque de criatividade e renovação no cenário do rock brasileiro: Fausto Fawcett e os Robôs Efêmeros. De uma hora pra outra, o hit Kátia Flávia invadiria as rádios, e traria a linguagem caótica e visual, quase cinematográfica, usada por Fausto Fawcett, que na ocasião já era um assíduo frequentador do circuito alternativo do Rio. Já na época, a cantora Fernanda Abreu, ainda uma das vocalistas da Blitz, participava de algumas performances dos Robôs Efêmeros pelo circuito de bares por onde se apresentavam. Mais tarde, já em carreira-solo, Fernanda não dispensaria a parceria musical com seu velho companheiro dos velhos tempos, e seu hit Rio 40 Graus é um exemplo do acerto em trabalhar com Fausto. Mais tarde, Fernanda regravaria Kátia Flávia. Considerada como um hip-hop, por causa de sua enorme letra e uma melodia minimalista, essa música se tornou um sucesso estantantâneo, impuloionado por ser tema da novela global O Outro. Na época uma matéria na revista Roll diria:
"Kátia Flávia é um grande sucesso nas rádios cariocas. Acompanhado por uma batida monótona, que qualquer tecladista poderia ter concebido sem nenhuma ajuda humana, Fawcett declama um interminável e 'bem-humorado' rap onde a única coisa compreensível é a repetição da palavra 'calcinha'. Lingeries à parte, a única explicação possível para o sucesso da canção reside no fato de que ninguém entende o que canta Fawcett, já que a qualidade musical está ausente desse sub-produto pop."
Como se vê, a crítica não entendeu bem a proposta do trabalho de Fawcett e sua banda. Seu primeiro disco, lançado pela multinacional WEA, não se baseava somente no sucesso de Kátia Flávia. O disco, como um todo, trazia uma unidade, são crônicas urbanas e futurísticas, tendo como pano de fundo o bairro de Copacabana e sua multiplicidade de personagens e histórias que a  vida noturna do bairro oferece, e que o autor tão bem conhece, e sabe explorar em seu texto.
A crítica, que se espanta com tudo que não é óbvio, muitas vezes não sabe distinguir aquilo que é criativo e novo e meras tentativas de parecer diferente, porém sem demonstrar talento. A mesma crítica da revista diz em outro trecho: "Essa análise conceitual de Fawcett e seus autômatos se explica no seu próprio trabalho.Fausto Fawcett e os Robôs Efêmeros não merecem uma análise musical, pois não fazem música. Transformados em grupo musical na onda do 'tudo é rock', conseguiram gravar seu elepê. Talvez essa seja a solução para o mercado fonográfico: eliminar os grupos musicais. O próximo a gravar poderia ser um time de futebol ou uma companhia de dança."
Como se vê, a crítica burra e surda para o que é anti-convecional e foge de certos padrões é algo que vem de longe. Não sei se o crítico parou para analisar o trabalho, entendeu a proposta e assimilou o conteúdo da obra, a ponto de afirmar que "não fazem música". O que sei é que Fausto Fawcett deu uma chacoalhada que o mercado do rock precisava naquele momento, independente de ser compreendido ou não.

domingo, 13 de janeiro de 2013

Ednardo Denuncia Esquemas Mercadológicos - 1981

Em 1981 o compositor cearense Ednardo já havia deixado sua marca no cenário musical brasileiro. Na época o mercado de música no Brasil era mais flexível. Havia espaço e credibilidade para a boa música que se produzia no país. Os músicos podiam mostrar seu trabalho, divulgar sua obra e assim ir ampliando seu público sem precisar cair em esquemas comerciais tão massificadores como nos dias de hoje. Jogadas comerciais e de marketing para impor músicas de baixa qualidade sempre existiram, e naqueles tempos não era diferente, porém havia um maior espaço para a música de qualidade e para músicos com uma proposta de trabalho fora dos padrões comerciais impostos. O trabalho de Ednardo é um exemplo. Naquele ano, a revista Música fez uma matéria com o músico cearense, com o título "Venho de coração aberto, sangrando minha música por todo esse Brasil", assinado por Marina C.M. Teixeira de Mello, e nela Ednardo já se queixava de manobras comerciais:
"Ednardo não gosta que digam que sua música é regionalista. 'O som, o sotaque, o ritmo podem parecer de uma região, mas há em toda música um feed-back, a própria vivência do autor e do seu momento'. Embora o seu 'lar existencial' seja Fortaleza (onde tem mulher, dois filhos - e mais um pra nascer) ele comenta que  vive viajando, e 'mora no Brasil'. Já viveu sete anos em São Paulo, três no Rio, e acho que o próprio fato de não ficar muito termpo em cada lugar dá uma riqueza maior às suas composições e ao seu modo de enxergar as coisas.
'De repente o Brasil está em outra época. Essa nova geração pós-Beatles já cresceu codificada, dentro de um antropofagismo, de uma mesmice brasileira. A cultura alienígena tem que chegar a todos os lugares, mas a sua codificação é diferente'. Dentro desse ponto de vista ele contesta os que querem rotular a música - e afirma que sua linguagem é  'brasiliana', sem a preocupação em ser 'a voz do nordeste'. 'A música é o espelho do momento. Quem tiver a sensibilidade para sacar os dados, pode historiografar na música popular brasileira a própria história do país...'
Ednardo observa que o momento brasileiro passou muito tempo estagnado. Nos últimos 15 anos tudo foi manipulado - e o próprio gosto e aceitação popular funcionavam dentro de esquemas mercadológicos. Os problemas se refletiam na arte e era 'conveniente' que um autor durasse o maior tempo possível, para não ter que se investir em gente nova. 'Mesmo assim já estávamos num movimento underground - fora dos esquemas e debaixo do chão - que agora começa a tomar impulso, com possibilidade de se usar a palavra pensamento.'
O empresário chileno Fito mostra um portfólio onde está documentada toda a excursão musical de Ednardo. 'Ainda não há uma coisa sólida em termos de data, mas estamos fazendo fotos, filmes, registros e gravações'. O trabalho de um novo disco está sendo feito em função dessas gravações, feitas ao vivo. Ednardo se entusiasma: 'Está acontecendo uma coisa maravilhosa. Apresento músicas de meu LP de 72, de 76, ou mesmo músicas novas (muitas ainda sem título) - e de repente as pessoas estão cantando. As coisas não correm mais de acordo com um calendário discográfico. Não solicitam só o 'Pavão Misterioso' (massificado desde que se tornou trilha da novela 'Saramandaia'), mas também 'Terral', 'Ímã', 'Manga-Rosa', 'Artigo 26' e muitas outras.
Em matéria de gravadoras, ele prefere manter uma política de 'boa-vizinhança'. reconhece que a parte comercial também é importante, mas prefere não ficar muito tempo preso a uma determinada gravadora. Ainda em abril, a RCA lançou um 'disco de ouro' com uma seleção de de músicas de seus LPs - mas atualmente está tabalhando de uma forma 'semi-independente'. 'A música é o sincretismo total, compreende todo o meio onde se desenvolve - inclusive o comercial. Quem não a vê nessa totalidade, só enxerga uma coisa manca, capenga'.
Ednardo acredita no seu trabalho. Sente cada vez maior a receptividade do público em suas apresentações - e pretende, nesse disco que está preparando, transmitir toda essa vibração. 'A música é a antena que capta a sensibilidade e o momento das pessoas. E o momento é Brasil: aqui e agora'."

sábado, 12 de janeiro de 2013

Show dos Mutantes- Teatro Tereza Raquel - Rio (1973)

Em 1973 os Mutantes passavam por mudanças. Após a saída de Rita Lee, a banda trazia em sua formação os remanescentes Sérgio, Arnaldo, Liminha e Dinho. A nova proposta da banda era apresentada para seu público e na ocasião a revista Pop trazia uma resenha de um show da banda realizado no Teatro Tereza Raquel, no Rio, escrito pelo crítico Wladimir Tavares de Lima:
" - Não queremos mais só encher a barriga do público com som. Nossa jogada agora é fazer as pessoas pensarem um pouco depois do show terminado, é fazer elas irem para casa perguntando para elas mesmas: será isso mesmo?
Pra quem viu a recente e curta temporada dos Mutantes no Teatro Tereza Raquel (Rio), foi exatamente isso que aconteceu. Quem vem acompanhando toda a carreira do conjunto, desde Caminhante Noturno, o primeiro sucesso, pôde sentir toda a transformação e a evolução da estrutura musical, começando pelos instrumentos. Além das tradicionais guitarras, baterias, baixo e piano, o grupo acrescentou ao som a tabla e a cítara, instrumentos indianos, mais celo elétrico e um melotron, formando um equipamento da pesada. São 2.600 watts de potência, jogados ao público através de dez amplificadores transistorizados, uma verdadeira loucura de som. No repertório, quase tudo é coisa nova: Ae Z, Você Sabe o Quanto Andei, Louco, Uma Pessoa Só, Jesus Come Back, e aquele tremendo rock que Elvis gravou há uns quinze anos, Jailhouse Rock (quase tudo foi gravado para entrar no próximo LP do grupo, um álbum duplo que vai pintar no começo de maio).
Sem Rita Lee, os Mutantes agora são quatro: os irmãos Arnaldo e Sérgio, mais dois caras que acompanham o trabalho do conjunto desde a formação: Liminha (baixo) e Dinho (bateria).  Em meio a um clima quase fantástico, criado em grande parte com o efeito da projeção de luzes e bolhas coloridas que correm pelo palco durante todo o show, os quatro estraçalham os intrumentos e conseguem aquele poder mágico de ir deixando a plateia cada vez mais ligada, todo mundo vibrando e exigindo mais som, mesmo depois de uma violenta e agitada sessão de rock de quase duas horas.
Partindo de uma total suavidade, tirando na introdução um som muito parecido aos prelúdios de Bach ou às sonatinas de Mozart, Arnaldo distorce a sua Fender e num segundo vira uma fera, atacando rocks dos mais alucinados, fazendo solos incríveis com uma guitarra que às vezes parece até que fala com o público. E com a cítara - quem viu tá sabendo - ele também está demais, descola um som dos mais incríveis. Sérgio dá banho no melotron e no piano, às vezes até tocando os dois ao mesmo tempo, além do celo elétrico e da viola. Dinho, além da bateria, está tocando tabla incrivelmente bem, e Liminha, no baixo, faz toda a cozinha do som com o maior talento e bom gosto. Sem  querer soltar longos papos em cima do seu trabalho atual ('é muito melhor fazer do que explicar o nosso som'), os Mutantes estão interessados é em ligar a garotada no som puro do rock, muito mais do que na autopromoção."

segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

Cazuza - O Poeta de Palavras Vivas

Em julho de 1990 o Brasil perderia um de seus artistas mais representativos, um ícone do rock nacional dos anos 80. Cazuza nos deixaria, após um longo martírio em sua luta contra a aids. O país acompanhou a enorme luta e a irreverência de Cazuza diante da iminente morte, numa época em que os recursos da medicina no combate à sua doença ainda eram precários. Lembro de receber a notícia de sua morte no Jornal Nacional, e foi impossível segurar a emoção, mesmo sabendo que sua partida era certa, esperada e fatal. Na ocasião o jornal O Pasquim trazia uma matéria sobre Cazuza, escrita pelo crítico Roberto Moura, também morto prematuramente. O texto que segue abaixo é intitulado "O poeta de palavras vivas":
"Difícil aceitar que uma luz como Cazuza possa se apagar, assim, como uma vela. E necrológio de amigo, nem pensar. Quieto, no escritório, ouvindo suas músicas, folheio algumas das frases que escrevi sobre ele, nos últimos meses. Frases que davam conta da gravidade do seu estado, mas ainda eram carregadas de esperança. E que eram mais sinceras justamente por isso, pela possibilidade de nos encontrarmos outra vez na noite, que é uma criança, e derrubarmos mais uma dose de uísque.
Socorro-me nessas frases, sem nenhuma pretensão de que elas tenham o dom de sintetizar a obra de Cazuza ou delimitar o seu verdadeiro espaço neste espectro tão vago e variado a que chamamos música popular brasileira. Não é tarefa tão simples, nem para dias penosos. É para quem estiver distanciado no tempo, no espaço e na emoção. Para quem for capaz da precisão cirúrgica, do desvelo científico. Estou fora dessa. Vale o escrito:
Vítima de doença grave, Cazuza acordou, de repente, de uma adolescência quase superficial para uma maturidade a fórceps. Pouco antes de fazer trinta anos, viu-se obrigado a conviver com a dura realidade de que seu corpo é frágil demais para uma cabeça tão viva. O Cazuza de Pro Dia Nascer Feliz  não existe mais. Em seu lugar está um homem que viu a morte de perto e não se avexa de escrever no encarte do disco: 'quando eu queria mudar o mundo, meu carro vivia cheio de gente." (O Dia, 25/04/88, quando do lançamento do álbum Ideologia).
Se há um nome da música popular capaz de sintetizar o que foi o ano da Constituição, da morte de Chico Mendes e dos operários de Volta Redonda, da ascensão do PT, do recorde inflacionário e da tragédia do Bateau Mouche, este nome é Agenor de Miranda Araújo Neto. Numa palavra: Cazuza. O artista imolado quase diariamente frente às câmeras e microfones, o mártir a ser oferecido em holocausto as agruras de toda uma geração, fecha a folhinha e dá um recado: vai bem obrigado. (O Dia, 01/89, a respeito do especial de fim de ano da Rede Globo).
Cazuza não tem jeito nem vocação para burocrata da canção. Nasceu inquieto, buliçoso, instigado e com uma forma toda própria de transar o mundo, a pátria, a família, a liberdade e a sua geração. O Tempo Não Para não é só uma reflexão social, nem aceita o perfil do poeta romântico criando em meio a crises de hemoptise. O Tempo Não Para não é divagação metafísica , metereológica, fatalista. É uma explosão poética de amplo alcance, que permite a Cazuza falar de mim e de você, do Brasil e do mundo, enquanto fala dele próprio apenas. Há Mallarmé: 'mas se você acha que estou derrotado/saiba que ainda estão rolando os dados'. E há, mais que tudo, um sincero desapontamento com todas as vanguardas: 'eu vejo o futuro repetir o passado/ eu vejo um museu de grandes novidades'. (...) Nilo Romero - que fez a direção musical do show - e Ezequiel Neves, que o rock roubou ao jornalismo, assinam a produção. Assinam a rigor, um momento de história. (O Dia, 23/01/98, sobre o álbum ao vivo O Tempo Não Para)
Tchau, Cazuza."

domingo, 6 de janeiro de 2013

Revista Violão Guitarra Especial Beatles (1977)

Em setembro de 1977 a revista Violão Guitarra publicou uma edição especial sobre os Beatles. Na capa trouxe uma reprodução adaptada da antológica capa do disco Sgt Peppers, com fotos de astros do rock, como Led Zeppelin, Santana, Stevie Wonder, Robin Trower, Eric Clapton, John Mclauglin, Jimi Hendrix, The Who, dentre outros. São 66 páginas de um excelente material, fartamente ilustrado com ótimas fotos, e muito texto, além de um poster especial. No ano de sua publicação, e pode-se dizer até o fatídico dia 8 de dezembro de 1980, quando John Lennon foi assassinado, havia no ar uma esperança, próxima ou distante, dependendo de evidências ou da crença de cada um, que a banda voltasse a se reagrupar, mesmo que só pra fazer alguns shows. Por isso é interessante ver um anúncio que aparece na primeira contracapa, do sabonete Sândalus, onde se lê: "John, Paul, George, Ringo. Façam com Sândalus: voltem". O sabonete após sair do mercado voltava a ser fabricado, e aproveitava o tema da revista para fazer seu anúncio. Infelizmente, a banda não seguiu o exemplo.
O texto, pesquisas, concepção da capa, diagramação e pesquisa fotográfica ficou a cargo de Peninha Smith, que fez um excelente trabalho. A história da banda é contada desde seu início, em Liverpool, com muitas citações, e trazendo sua trejetória, desde seus primeiros shows, com a formação original, as apresentações no Cavern Club, as primeiras viagens, como a excursão a Hamburgo, na Alemanha, etc. O início do fenômeno que ficou conhecido como Beatlemania é assim descrito:
"Quem não esteve presente dificilmente pode imaginar o que foi um concerto dos Beatles. Um jornalista americano infiltrou-se na multidão de garotas histéricas ou rapazes excitados: desde os tempos de Rodolfo Valentino, todos os astros criados pelos meios de comunicação tiveram sua corte de adoradores.Garotas chorando ou multidões rasgando a roupa do ídolo sempre fizeram parte do estrelato. Mas a beatlemania foi bem mais longe que isto (...)"
Cada disco lançado pela banda é descrito e analisado, com faixas comentadas, repercussão, polêmicas, importância, e tudo referente ao álbum, além de alguns comentários dos próprios integrantes da banda. Algumas letras são destacadas e traduzidas.
Dentre os comentários sobre determinadas músicas, alguns destaques, como por exemplo, Lennon, sobre Day Tripper  : "Esta foi uma música a respeito de drogas. Gostei da expressão (day tripper: viajante diurna). Help: "É uma das músicas de que mais gosto porque eu queria dizer exatamente aquilo. A melodia é tão boa agora quanto na época. Não ficou diferente e isso me faz ficar seguro quando vejo que eu era tão sensível, ou até mesmo insensível, mas que era consciente de mim mesmo. Era eu cantando 'Help' e eu falava a verdade. Eu não gosto tanto da gravação quanto da música. A gente a fez muito correndo, tentando ser comercial. Também gosto de I Want To Hold Your Hand. Nós, Paul e eu, escrevemos juntos, é uma melodia muito bonita. Eu poderia fazer I Want To Hold Your Hand e Help de novo, porque gosto delas. Eu as canto, são o tipo de música que eu canto".
Sobre o álbum Sgt Pepper's Lonely Hearts Club Band, a revista destaca:
"Sem sombra de dúvida, este foi a maior conquista técnica dos Beatles, à qual dedicaram nove agonizantes meses e muito, muito dinheiro. O disco foi gravado em 4 canais, o que pode ser considerado uma façanha incrível, quando se faz uma colagem de música, palavras, vozes de fundo, expressões místicas, efeitos orquestrais, sinos alucinógenos, sons de animais domésticos, observações sociais e visões apocalíticas (...)".
A morte do empresário da banda, Brian Epstein, em 67, também ganhou um destaque na revista: 
"Em agosto de 67, foi publicado em vários jornais que o Maharish (guru indiano) estava em Londres e faria conferências públicas. George entrou em contato com os outros e todos compareceram à palestra. Mais tarde, o Maharish convidou-os para a conferência de seu movimento a ser realizada em Bangor (País de Gales). Eles aceitaram o convite. Falaram a Brian  e este se mostrou interessado. Disse que se juntaria a eles mais tarde, que queria descansar um pouco antes disso.
A imprensa divulgou esta viagem dos Beatles e o alarma foi enorme. O que eles pensaram ser uma experiência espiritual acabou se transformando num carnaval, a estação ficou lotada de fãs, a ponto de Cinthia, mulher de John, não ter conseguido tomar o trem, por ter sido confundida pelos policiais, como mais uma admiradora. No trem, estavam John, George, Patty (esposa de George), Ringo, Mick Jagger e a irmã de Patty.
Aparentemente, dependiam muito de Brian, mas, na realidade, era o contrário. Brian dependia deles. Foi durante esta viagem que Brian morreu. Foi encontrado morto em seu quarto. O resultado do exame realizado em seu corpo mostrou que a morte havia sido causada por excesso de calmantes, não uma dose excessiva, mas de grandes doses tomadas sem o devido cuidado. A morte de Brian foi declarada como acidental por um juiz após as investigações, mas atualmente todos referem-se a ela como suicídio".
Vários outros fatos e personagens ligados à banda (além de Brian Epstein) também ganham destaque especial, como o produtor e arranjador George Martin, considerado com justiça como "o quinto beatle". A carreira solo dos quatro ex-integrantes da banda também é destacada, tornando a revista bastante informativa. Creio que essa foi a primeira grande revista especial sobre os Beatles publicada no Brasil. Muito material sobre a banda foi publicado depois; revistas, livros, revistas-poster, etc, mas essa edição de 77 da revista Violão Guitarra deixou sua marca.