Miles Davis foi sem dúvida, um gênio musical. Seu estilo de tocar criou escola e influenciou uma geração de músicos. Mudou a história do jazz mais de uma vez, ao ajudar a criar o be-bop, e mais tarde o jazz-rock. Tocar com Miles era um aprendizado, e quem teve esse privilégio sabe o quanto a experiência foi enriquecedora. Dois músicos brasileiros viveram essa experiência - o percussionista Airto Moreira (de quem falei recentemente nesse blog) e o multiinstrumentista Hermeto Pascoal, outro gênio da música.
Quando Miles morreu, em setembro de 91, os dois músicos deram depoimentos sobre o que foi tocar e conviver com Miles Davis, um músico genial, mas uma personalidade difícil. Segue abaixo os dois depoimentos:
Hermeto Pascoal: "Eu o conheci em 1970. Foi Airto que falou de mim a ele. Um dia, Miles ligou para a casa do Airto, onde eu estava, nos EUA, e disse: 'Leva esse albino lá em casa'; fui e toquei umas dez músicas. Rapaz, ele chorou, disse que era uma pena não poder gravar todas. Há nele - pois não posso dizer que morreu - uma enorme espiritualidade, uma energia muito grande. Em sua casa, depois que lhe mostrei as músicas, ficamos brincando, lutando boxe, eu que enxergo muito mal acertando socos nele. Miles praticamente não escreve, é um compositor de poucas músicas, os arranjos dele são escritos por outras pessoas. Mas também não lia as músicas, ia tocando. De repente ele tocava com uma orquestra, mas não lia a partitura, ia criando. As duas músicas que gravei com ele (Nem Um Talvez e Igrejinha, no disco Live Evil, 1970, Columbia/CBS), foi muito bonito aquilo. Eu assoviava e tocava órgão, e ele, em milésimos de segundo, ia atrás, em cima do tema, criando ali mesmo no estúdio. Houve entre nós algo muito forte. Há uns três meses, eu estava tocando no Blue Note, em Nova York, e ele estava atrás de mim, me telefonando. Sei que queria que fizesse alguns arranjos para algumas músicas; mas ele teve uma recaída e não pôde falar comigo. Seu carisma era divino, bonito. O cara realmente musical que tocasse com ele sentia isso, essa força."
Airto Moreira: "Trabalhei com Miles quase três anos, de 1970 a 1972. Gravamos Bitches Brew, At The Fillmore, Miles At The Island of Wight, On The Corner e outros. Naquela época estávamos sempre com Janis Joplin, Jimi Hendrix. O Jimi apresentou a ele o pedal Wha-Wha ( que introduz distorções no som produzido pela guitarra elétrica); ele gostou e começou a usar.
Digo a você, nas três primeiras vezes em que toquei com ele, eu não sabia o que estava fazendo. Tocava por intuição, não sabia sequer o tempo forte da música, o um da música. Boa parte das vezes aquilo soava para mim como uma grande confusão. Porque era uma música livre, com três, ou quatro, e às vezes, apenas um acorde. Como cada um tocava o seu lance, eu ficava perdido no meio. Mas, intuitivamente, tocava certo, ele me olhava e sorria para mim. E, quando ele fazia isso, olhava aprovando, a energia que vinha em seu olhar era desbundante, melhor, muito melhor que dinheiro. Agora, quando olhava desaprovando, seu olhar era pior que um tapa na cara! Com ele não se lidava facilmente. Eu tinha de ser um lobo num covil de lobos, e ele era o lobo-mor. Na época, sua música era um tema corrente nos EUA. E ele estava envolvido com a Máfia. Tocamos muitas vezes em clubes de mafiosos, todos aqueles italianos, com as armas pressentidas sob os paletós. Contraditoriamente, também andava com os Black Panters. E suas raízes não eram de gente pobre, vinha de uma família de classe média alta.
Mas odiava os brancos. Virava para a gente e dizia: 'O que é que você sabe? Não sabe nada, é um branco filho da puta!' Respondíamos que ele era um negro filho da puta, e ele ria, se divertia. Não podia haver vacilo com ele.
Quando comecei a trabalhar com ele, usava drogas, mas depois parou. Tinha uma grande preocupação com o físico, a aparência. Malhava em academias, treinava boxe, fazia massagens e sempre levava seu cabeleireiro nas turnês. Era o mesmo que havia trabalhado com Jimi Hendrix. Nós tocávamos cores, não sons. Se fechar os olhos, você poderá ver as cores da música. O blues é algo escuro, as tonalidades bem graves, que se arrastam, quase sinistras. Se se está tocando em cima, nas notas mais altas, num ritmo mais vivo, com sons matálicos, a música fica mais iluminada, clara. E Miles estava mais para Van Gogh que para Goya.
Miles Davis nunca ficou nas bordas da própria loucura. Mergulhou fundo. Foi o único superstar do jazz que jamais existiu."
Assim era trabalhar com Miles, nos depoimentos dos dois músicos. A troca de experiências, musicais e pessoais, eles levarão para sempre, assim como para sempre ficará a música de Miles.
sábado, 10 de novembro de 2012
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