Palavras Domesticadas

Palavras Domesticadas

terça-feira, 30 de maio de 2017

Gilberto Gil Fala do Disco Expresso 2222 (2012)

No ano em que completou 70 anos, Gilberto Gil foi homenageado com uma coleção de fascículos, onde sua obra era comentada, sempre destacando um de seus discos, que vinha encartado em CD. A publicação se chamava "Coleção Gil 70 Anos", e o volume 2 destacava um de seus melhores discos, Expresso 2222, que marcou sua volta ao Brasil, após o exílio londrino. Gil fala sobre o disco e sua concepção, em um depoimento exclusivo. Segue abaixo o texto do fascículo, assinado por Marcelo Fróes:
"Após alguns anos iniciais em Salvador, Gilberto Gil trilhou rápida carreira ao chegar no Sudeste - gravando um compacto ao chegar a São Paulo em 1965 e finalmente alcançando o primeiro LP já em 1967, antes mesmo de abafar no Festival da MPB daquele ano com 'Domingo no Parque'. Um dos mentores  - ao lado de Caetano Veloso - do movimento tropicalista, que tomou conta do país em 1968, Gil acabou sendo preso em São Paulo em 27 de dezembro daquele ano, em decorrência da caça às bruxas promovida pela ditadura militar após o AI-5.
Presos até a quarta-feira de cinzas de 1969, Gil e Caetano ainda enfrentaram prisão domiciliar em Salvador até serem finalmente exilados em Londres. Na capital inglesa, Gil familiarizou-se mais rapidamente e gravou dois álbuns durante aquela fase - até surgir oportunidade de retorno ao Brasil em janeiro de 1972. Gil realizou então uma excursão nacional e em seguida tratou de entrar no moderno estúdio de 16 canais da Eldorado, no prédio do grupo Estadão em São Paulo, para, sob a produção de Roberto Menescal, então diretor artístico da Philips (atual Universal Music), gravar um novo álbum - o primeiro trabalho no Brasil em três anos.
O disco contou com a adição do tecladista Antônio Perna e ainda teve Gal Costa fazendo dueto em 'Sai do Sereno'.
'Primeiramente eu fiz um compacto de voz e violão, durante uma entrevista para a revista O Bondinho, gravado num quarto de hotel enquanto eu mostrava para o repórter as novas canções', lembra Gil. 'Aí, em abril começou a gravação em estúdio, já com a banda. Em algumas faixas, como 'Chiclete com Banana', o Bruce teve uma certa dificuldade... porque ele é inglês, teve dificuldade de pegar o sentido do samba, mas o Lanny pegou o baixo e criou - porque ele tinha muito treino, tocava muito na boate do pai dele - a Stardust, em São Paulo. Ele tocava com todo mundo, então tinha uma grande prática e na hora pegou o baixo e saiu tocando. Tutty já era da banda, ele voltou na mesma época que a gente e aqui eu reuni os demais. Perna era pianista da Bahia, tinha feito shows com a gente nos anos 60; e o Lanny já tinha gravado num disco meu, fazendo a finalização do disco que eu havia deixado gravado antes de ir embora pra Londres'.
'Ele e Eu' foi feita em Londres, sobre as diferenças de personalidade entre Caetano e eu. Caetano racionalista, eu místico. 'Expresso 2222' também foi feita lá, refere-se à locomotiva que passava na rua na minha infância mas também à cultura psicodélica da época - cuja forma de representação mais comum desse campo de experiências humanas era 'a viagem', metáfora dos estados alterados de consciência'.
Depois do barato do 'Expresso', 'O Sonho Acabou'. 'Essa eu fiz já no final de minha temporada em Londres - no festival de Glastonbury. Na época tinha saído aquele LP de John Lennon que tinha uma canção chamada 'God', com  a expressão 'the dream is over (o sonho acabou)'. 'Oriente' também foi feita inteiramente lá, mas durante um passeio na Espanha - quando alugamos uma casa em Formentera, ao lado de Ibiza. Eu ficava com o violão o dia todo e me lembro que num final de tarde uma estrela cadente passou no céu, depois de um longo dia claro de verão. Uma colagem de impressões e lembranças, referências a vários momentos da vida, família e de amigos. 'Back in Bahia' eu compus entre Salvador e Santo Amaro, tão logo cheguei de volta. Foi a única composta aqui', lembra.
Capa interna do disco, após aberta - tinha formato redondo
'Expresso 2222' saiu em julho de 1972, com o filho Pedro Gil na capa por ideia do próprio artista, e aberto por uma gravação de 'Pipoca Moderna' com a Banda de Pífanos de Caruaru - canção que  Gil conhecia desde os anos 60, em gravação feita por Carlos Fernando anos antes. 'É o prólogo', traduz Gil.
O disco tinha também 'O Canto da Ema', que o artista já conhecia de uma gravação de Jackson do Pandeiro. O álbum foi puxado pelo sucesso do compacto 'Chiclete com Banana' (versão de Gil para o clássico de Gordurinha que Jackson do Pandeiro também sempre cantara). No lado B, uma faixa não incluída no LP: 'Cada Macaco no Seu Galho', de Riachão, com a participação de Caetano Veloso.
Gilberto Gil animou-se com a banda que montara com Tutty Moreno (bateria), Bruce Henry (baixo) e Lanny Gordin (guitarra), e iniciou, já a partir do segundo semestre de 1972, uma série de excursões - inclusive shows com amigos, ora Caetano, ora Gal - que sucederam-se até 1974. Nesse meio tempo, entre uma apresentação em Cannes com Gal e Jorge Ben e uma participação no evento Phono 73, ocasião em que cantou com Chico Buarque e com Elis Regina, Gil acabou entrando em estúdio para gravar um novo álbum. Mas isso já é outra história!"

domingo, 28 de maio de 2017

Pelas Ruas Musicais de Alceu Valença (1996)

Em sua edição de 21/07/96, o jornal O Globo trazia uma matéria com Alceu Valença. Um dos grandes representantes da geração de compositores e músicos nordestinos que nos anos 70 invadiram o cenário da MPB com um trabalho renovador e de alta qualidade, Alceu já era um nome respeitado em nosso cenário musical, e vinha de uma recente união com Zé Ramalho, Elba Ramalho e Geraldo Azevedo no show "O Grande Encontro", que teve uma ótima repercussão, e posteriormente virou um disco também de sucesso. A matéria, assinada por Milton Calmon Filho, é reproduzida abaixo:
"Quem encontrar Alceu Valença pelo Leblon, andando nas ruas ou tomando café e comendo sanduíche com queijo-de-minas, feito na chapa, na Padaria Lisboa, corre o risco de estar presenciando o surgimento de mais uma música do cantor e compositor pernambucano. Ele diz que gosta de compor enquanto caminha e dá exemplos de canções geradas na área do Baixo Leblon, onde mora numa cobertura: 'Andar, Andar', 'A Moça e o Povo' e 'Tesoura do Destino'. O processo se repete em Olinda, em Recife, onde também mora.
E a lista de músicas que ele chama de cinematográficas é bem maior. Basta constatar nos quatro discos de Alceu que a BMG está lançando em CD: 'Estação da Luz' (1985), 'Rubi' (1986), 'Leque Moleque' (1987) e 'Oropa, França, Bahia' (1989). Outro álbum seu recém-lançado em CD, este pela PolyGram, é 'Cavalo de Pau' (1982), considerado um clássico por público e crítica. Alceu curte ainda o sucesso do show 'O Grande Encontro', ao lado de Elba Ramalho, Zé Ramalho e Geraldo Azevedo, apresentado nas últimas terças e quartas-feiras num Canecão lotado por adolescentes enlouquecidos. O concerto, inclusive, vai virar disco, previsto para ser lançado em novembro.
- É um show despojado, como se fosse na varanda de nossa  casa - diz. - Serve para mostrar que viemos de rios de uma mesma região, mas com águas de diversas temperaturas. Cada qual tem seu estilo.
Alceu informa que tem quatro álbuns solo planejados ('Um acústico, um pesado, um só ao violão e um de carnaval.'), mas não sabe qual vai sair primeiro. Aos 50 anos, feitos no último dia 1º, depois de quatro casamentos, dois filhos, namora Milena, porém evita falar sobre ela. 
- Mas não sou ciumento - assegura.
Claro que nem tudo que passa pela cabeça de Alceu na padaria ou nas ruas é música. Ele diz que é do tipo que vive pensando em projetos que nem sempre consegue executar: fotos, arte, arquitetura, literatura. Um dos planos que está entrando no papel é 'Olinda, Patrimônio da Alegria', livro de arte que sairá em setembro, com fotos (a maioria do carnaval da cidade), poemas de Alceu e de outros autores e depoimentos de personalidades.
- Não é um livro para falar de mim. É  sobre o imaginário olindense - explica.
Outra ideia do Alceu editor: um livro com ele, Zé, Geraldo e Elba, reunindo fotos da excursão, letras e textos dos quatro.
- Os baús de Alceu pouco param em suas casas no Rio e em Olinda. Ele vive fazendo shows pelo Brasil e exterior. Ontem estava na Bahia, segunda-feira estará no Pará. Foram 20 apresentações nos últimos 15 dias, mostrando uma energia que afirma ser herança de família. A mala nem saiu da sala durante a sua passagem pelo Rio. Por causa do corre-corre, diz que nem tem tempo de ouvir música: só assiste a shows e concertos. Comprou uma bicicleta ergométrica, mas quase não a usa. Prefere andar.
- Não gosto de casa, gosto é de tomar café no bar da esquina.
Ou na padaria."

sexta-feira, 26 de maio de 2017

Manacéa - Um Bamba da Portela (1995)

Manacéa foi um grande compositor de belos sambas. Portelense, e componente da Velha Guarda de sua escola, Manacéa fazia parte de um trio de irmãos, ao lado de Mijinha e Aniceto, cujo talento para compor sambas antológicos mostra que muitas vezes a veia musical vem de família. No dia 10 de novembro de 1995 Manacéa, o último remanescente da família talentosa, nos deixou e o Jornal do Brasil publicou uma pequena homenagem ao grande compositor em uma matéria assinada pelo jornalista e crítico Tárik de Souza, intitulada "Corte na Raiz do Samba", em que ele fala um pouco da vida e trajetória desse grande compositor, que segundo o jornalista, "trabalhava com minúcia de ourives". Abaixo a matéria:
"Lá se foi Manacéa, o terceiro dos irmãos bambas da Portela. Mijinha e Aniceto cantaram pra subir antes e agora o trio está completo lá em cima. Sob a batuta de Paulo Benjamim de Oliveira, o Paulo da Portela, o embaixador das escolas de samba junto às autoridades do asfalto, deve estar rolando um pagode daqueles muitos a que assistiu no quintal da casa apinhada e generosa de Manacéa, em Madureira. D. Doca, D. Surica, o lendário Chico Sant'Ana (autor do emblemático Saco de Feijão), Casquinha ( o que levou o Recado, com Paulinho da viola), Argemiro, seu Alberto Lonato, o estilista Monarco com sua voz de barítono, quase baixo (parceiro póstumo de Paulo da Portela), o pessoal da Velha Guarda da escola, meia dúzia de instrumentos e vozes crestadas pela labuta.
Nascido em Pedra de Guaratiba, filho de um ferroviário que trabalhava na soca (bater os dormentes do trem), Manacé José de Andrade não compunha em série. Autor de sambas enredo campeões na Portela, em 1949 (A Descoberta do Brasil) e 1953 (Brasil de Ontem), ele não se empenhou em fazer carreira. Trabalhava com a minúcia de ourives sambas, duplamente, sem pressa para serem degustados no canto coletivo. Só ficou mais conhecido (e foi mais gravado) no revival do samba de raiz nos anos 70, depois que Paulinho da Viola, o Paulo da Portela dos tempos modernos, produziu um histórico disco com a Velha Guarda. Por fatalidade, Manacéa morreu na véspera da concessão, pela Assembleia Legislativa, da  Medalha Tiradentes ao sócio número um da Portela, Claudio Bernardo da Costa, de 90 anos, na sexta-feira passada.
A Velha Guarda da Portela se transformou numa reserva sonora do samba de raiz. Sua participação de destaque mais recente foi na faixa Esta Melodia, que encerra como um épico Cor de Rosa e Carvão, de Marisa Monte. Beth Carvalho embarcou em seu Carro de Boi, Zezé Motta celebrou a Manhã Brasileira, Luis Carlos da Vila exaltou Natureza, três sambas belíssimos. Mas o estouro se deu na gravação de Cristina Buarque de Quantas Lágrimas (1975). Obra-prima que deve ser derramada à passagem deste nobre cultor do samba sob a forma de arte."



quinta-feira, 25 de maio de 2017

Caetano Fala Sobre o Início de Carreira de Bethânia

A revista MPB Especial, que circulou no fim dos anos 70 e início dos 80 publicou um número especial com Maria Bethânia, contando sua vida e carreira. A revista, que foi às bancas em 1980, trazia um depoimento de Caetano, falando do início da carreira da irmã, e sua vinda para o Rio de Janeiro para substituir Nara Leão no espetáculo Opinião. Caetano fala de uma época em que Bethânia era ainda muito menina, e já estava envolvida com música, assim como o próprio Caetano e um grupo de amigos, que mais tarde iriam criar o Tropicalismo, e ganhar o Brasil. Eis o depoimento de Caetano:
"Aconteceu uma coisa impressionante comigo em 1964. É uma história que talvez revele muito do que são as verdadeiras relações entre minha grande irmã Maria Bethânia e eu. Nesse ano de 64 nós ainda éramos estudantes e tínhamos feito alguns espetáculos semi-profissionais no Teatro Vila Velha, em Salvador. No final daquela ano, um amigo meu, Pedrinho Nóvis, me convidou pra passar as férias de verão numa fazenda que os pais dele têm no recôncavo da Bahia, e eu fui com ele. A fazenda era linda, era um lugar lindo, a gente andava a cavalo... Pedrinho era lindo, eu não tinha nenhuma razão para querer sair de lá. Mas dez dias depois de quando eu tinha chegado, senti como que uma necessidade muito forte dentro de mim de voltar pra Salvador. Primeiro por causa de Maria Bethânia. Contei pra Pedrinho e ele falou que eu estava ficando louco, mas eu sentia como se Bethânia estivesse me chamando.
Mas pra eu sair daquele lugar eu ia precisar de uma condução e não havia. Quer dizer, a condução que havia ali, que era dos pais de Pedrinho, apenas tinha chegado. Ninguém estava com planos de voltar pra Salvador. A estrada ficava longe da fazenda e a fazenda também ficava longe de Salvador. Eu não tinha um meio de sair dali. De repente apareceu um pessoal, uns parentes do pai de Pedrinho, vindos não sei de onde, para pernoitar ali e ir para Salvador no dia seguinte pela manhã. Eles estavam numa caminhonete. Aí eu falei pra Pedrinho; 'Eu vou nessa caminhonete', e Pedrinho disse: 'Eu fico de mal com você se você for'. Ele achava que eu estava inventando um pretexto, mas não era. Eu sentia aquilo muito forte. O fato é que ele era muito cético, me convenceu, e eu não fui.
No dia seguinte, de manhã bem cedo, a caminhonete partiu, ficou aquela poeira, e eu fiquei angustiado e com a certeza absoluta de que Bethânia precisava de mim. Mas a única condução que tinha pintado, eu tinha deixado dançar, não via perspectiva de ir a Salvador. Quando de noite na hora do jantar o pai de Pedrinho chegou e disse assim: 'Estou me sentindo febril, não sei a razão, e vou precisar ir pra Salvador amanhã cedo para consultar um médico', eu nem passei pelo filtro de Pedrinho, já fui direto ao pai: 'Dr. Renato, eu vou com o senhor'. Ele estranhou porque a princípio eu havia dito que ficaria um mês. Pedrinho me olhou assim meio com raiva do outro lado da mesa, mas eu fui com o pai dele.
capa de revista
A gente saiu de carro pela manhã. E pra ir dessa fazenda pra Salvador, passa-se por Santo Amaro da Purificação, nossa cidade, e quando o carro passou por lá, minha cabeça virou. Eu disse pra mim mesmo: 'Pô, Pedrinho tem razão. Como é que eu estou saindo de um lugar que eu estou adorando e indo pra Salvador, quando não tem nada de concreto me chamando lá? É tudo dentro da minha cabeça... isso é loucura mesmo. Sabe o que eu vou fazer? Vou saltar aqui mesmo em Santo Amaro, vou pra casa de Mabel (Mabel é nossa irmã mais velha, que ainda morava em Santo Amaro a essa altura) fico lá uns dias, depois eu vou pra Salvador.
Aí falei com o pai de Pedrinho, ele ficou um pouco surpreso, mas parou, eu saltei e fui andando pra casa de Mabel. Quando eu cheguei na porta de sua casa, minha cabeça virou de novo. Eu pensei, 'não pode ser loucura, só uma razão me faria saltar em Santo Amaro, na casa de Mabel'. Bati na porta, Mabel me atendeu alegre, surpresa, e eu fui logo perguntando por Bethânia. Ela disse que não, que Bethânia não havia combinado nada de ir pra Santo Amaro. Estava em Salvador mesmo. Foi quando achei que era loucura; que tinha de tirar aquilo da cabeça, mas não conseguia.
Perto da hora do almoço, alguém bateu na porta, Mabel abriu, era Bethânia! Aí eu olhei pra ela assim com os olhos cheios de interrogação e ela 'Oi? que é que há?', normal, me deu um beijo. Achei impossível que tudo coincidisse e não fosse nada. Mas durante o almoço, o telefone tocou. Era uma chamada de Salvador, de Nilda Spencer, trazendo um recado dos produtores do espetáculo Opinião, do Rio de Janeiro, convidando Bethânia para substituir Nara Leão naquele show. É engraçado a força que as coisas parecem ter, quando elas precisam acontecer. "

quarta-feira, 24 de maio de 2017

Moraes Moreira - Revista Música (1980)

Em 1980 Moraes Moreira seguia sua carreira com grande sucesso. O ex-componente dos Novos Baianos havia lançado no ano anterior um álbum de grande sucesso, "Lá Vem o Brasil Descendo a Ladeira", e vinha fazendo muitos shows pelo Brasil. Na ocasião a revista Música, em matéria  assinada por Cleide Nascimento, falava de Moraes e sua mistura de chorinhos, frevos e rocks:
"Antonio Carlos Moraes Pires, o Moraes Moreira, já não é mais o músico de Ituaçu, do interior da Bahia. Também não pertence ao grupo Novos Baianos, com quem conviveu durante 7 anos e que se tornou figura nacional. Pós-tropicalistas, como eles mesmos se definiam, chegaram a São Paulo numa época pouco fácil aos cabeludos e às irreverências.
Hoje, Moraes Moreira é o músico universal, o poeta que em versos intuitivos fala de seu novo tempo. Pombo Correio, uma espécie de hino carnavalesco deste ano, que o diga.
O pique de Trio Elétrico, aliás, está em tudo o que Moraes faz: 'o Trio pintou quando eu era menino. Totalmente original, desde o caminhão até a música'. Mas, só em 74 que Moraes partiu para a carreira solo, onde participou com duas músicas do LP Trio Elétrico de Dodô e Osmar, e de lá para cá gravou quatro discos só dele: 'Moraes Moreira', 'Cara e Coração' (com o sucesso de Pombo Correio), 'Alto Falante' (lembrando das audições musicais de fim de tarde na sua cidadezinha).
Moraes, no limite entre o popular e o popularesco, não perde o equilíbrio. Suas melodias, simples e diretas, saem sem querer, quando a gente começa a assobiar. E, ao mesmo tempo, são complicadas e trabalhadas, mistura de Jimi Hendrix - dizem - com um pouco do carnaval da Bahia.
Rock, xote, baião, xaxado, frevo, samba... Tudo é válido. Essa sonoridade Moraes Moreira colocou também em 'Lá Vem o Brasil Descendo a Ladeira', nome de seu último LP e do show que apresentou no Teatro Procópio Ferreira.
Neste show, sempre cabeludo e ainda misturando chorinhos com rock, Moraes se apresentou maravilhosamente bem, acompanhado de Oswaldinho (acordeon), Aroldo (guitarra baiana), Tony Costa (guitarra), Guilherme (baixo), Inácio (bateria), Baixinho (percussão), André (bumbo) e Zeca Barreto (vocal e cavaco elétrico).
'Sou da geração dos cabeludos, a geração da cabeça desfeita, que escuta tanto João Gilberto como Jimi Hendrix'. É assim que o baiano Moraes Moreira, 32 anos, costuma se definir.
'Eu e o João Gilberto vimos uma mulata descendo umas ladeiras do Rio de madrugada, mas na maior energia, no  maior swing. Aí, o João disse: 'lá vem o Brasil descendo a ladeira'. Eu guardei essa visão poética e, só no verão do ano passado, é que virou música. O João acabou batizando o meu disco e eu acabei dando o nome deste show, que venho apresentando por todos os estados e cidades brasileiras'.

quinta-feira, 18 de maio de 2017

A MPB Que O Brasil Não Ouve - O Globo (2000)

Em sua edição de 20/02/2000, o jornal O Globo trazia uma interessante matéria sobre discos raros e até esquecidos de nossa música, que só poderiam ser encontrados no exterior. Hoje, passados mais de 17 anos da publicação da matéria, muita coisa mudou, alguns dos álbuns citados na matéria foram relançados por aqui, em CD ou vinil, mas a situação destacada ainda ocorre muito. Ainda hoje, muitos discos de música brasileira somente são encontrados no exterior. Em 2000, por exemplo, o vinil era considerado um item fora de cogitação no mercado da música em termos de relançamentos, numa época em que o CD imperava absoluto.
A matéria, assinada por Hugo Sukman, destacava vários álbuns básicos de um período distante, muitos deles esquecidos e até desconhecidos por uma grande parte de consumidores de música. A internet ainda não era popular e a ferramenta de pesquisa tão ampla como é hoje, por isso muitos álbuns de enorme valor artístico e considerados raros eram ainda desconhecidos. As capas de discos que ilustram essa postagem foram todos extraídos da matéria. É interessante ler o texto hoje:
"A história começou de forma charmosa, no célebre concerto de bossa nova no Carneggie Hall, em 1962. Prosseguiu enchendo o Brasil de orgulho quando ninguém menos do que 'the voice' Frank Sinatra gravou um disco inteiro ao lado de Tom Jobim. E continuou com notícias esparsas do reconhecimento deste ou daquele artista brasileiro mundo afora. A saga da música popular brasileira no exterior chega no ano 2000 a um paroxismo: de exportadores de música passamos a importadores. Da nossa música.
Dependendo do tipo de música brasileira que o consumidor queira ouvir, é mais fácil encontrar discos na Tower Records de Nova York, Londres ou Tóquio do que numa lojinha da rua Uruguaiana. 
- Entro em lojas no Japão, nos Estados Unidos ou na Europa e acho oito ou nove discos meus em catálogo. Aqui, entrei outro dia e não achei nenhum - exemplifica a cantora e compositora Joyce, um exemplo dos mais radicais de presença no exterior em contraponto à quase ausência por aqui.
Joyce, que lançou no final do ano o CD 'Hard Bossa' pelo selo inglês Far Out, sabe o que está falando. Gravou o disco num estúdio da Barra, todo com canções suas ou em parceria com Paulo César Pinheiro e Maurício Maestro, cantadas em português e tocadas  por músicos brasileiros. É um disco de MPB radical, tem até samba de roda. Vendeu cerca de 40 mil cópias no exterior, mas aqui não achou gravadora interessada.
Os discos que ilustram esta página, novos ou velhos LPs relançados em CD, todos comprados no exterior, são uma pequena amostra da situação: do sambista Wilson Moreira, que teve seu 'Okolofé' lançado só no Japão, à bossa nova de João Donato ('Quem É Quem'), Marcos Valle ('Samba 68'), Wanda Sá ('Vagamente') e Carlos Lyra ('Preciso Cantar' e 'Eu e Elas'), passando pelo melhor instrumental brasileiro de Eumir Deodato (os cinco discos gravados por sua orquestra Os Catedráticos) e Hermeto Pascoal ('Brazilian Adventure'), todos só estão disponíveis no Brasil nos escaninhos de importados das lojas especializadas.
- Da maneira como a indústria do disco está funcionando no Brasil, com o investimento pesado num tipo de música de sucesso imediato, realmente faz sentido que essas coisas não encontrem espaço - diz Marcos Valle, que também lançou seu último disco, 'Nova Bossa Nova,' pelo  inglês Far Out, quase um ano antes de conseguir distribuição brasileira pela independente  Natasha. - Hoje em dia, pelo menos 50% do volume do meu trabalho acontecem no exterior. Foi por causa da repercussão deste trabalho na Europa e no Japão, inclusive, que a minha carreira no Brasil tomou impulso de novo nos últimos dois anos.
Hoje, Marcos, assim como Joyce, prepara novo disco exclusivamente para o mercado externo. E, de novo, cantando em português, gravado no Rio, com músicos daqui. Brasileiríssimo, enfim.
Mas há casos ainda mais eloquentes da pobreza da nossa situação fonográfica em comparação às de Japão, Estados Unidos e Europa (que também têm o Só Pra Contrariar e o Padre Marcelo Rossi, mas não ficam só nisso). Cantora e compositora japonesa criada no Brasil, Lisa Ono não tem apenas um, mas 11 CDs dedicados à música brasileira, gravados nos anos 90. O penúltimo, 'Bossa Carioca', produzido por Paulo Jobim, já vendeu mais de 200 mil cópias no Japão.  Aqui, como toda a sua obra, que abrange bossa, samba e ritmos nordestinos, permanece inédito: a EMI brasileira não se interessou em lançar o original da EMI japonesa.
- Ela fica triste com isso - diz Mônica Ramos, produtora de Lisa no Brasil. - Seu sonho era ser lançada no país que a inspira e para o qual faz sua música.
Lisa está em Nova York gravando seu 13º disco, com arranjos de Eumir Deodato. O 12º, produzido por Oscar Castro Neves, traz standards americanos com levada de bossa.
- É raro, mesmo no Brasil, um trabalho de música brasileira tão denso como o de Lisa. Ela tinha que ser mais conhecida aqui - diz Joyce.
Não são somente os nomes consagrados que vivem mais fora do que dentro do país. Cantoras iniciantes tiveram que optar pelo mesmo caminho. O primeiro disco da celebrada cantora carioca Arícia Mess, 'Cabeça Coração', sai em março no Japão.  No Brasil, só no mês seguinte, e mesmo assim em tiragem independente, já que não houve interesse de gravadoras, mesmo em se tratando de um trabalho elogiado pela crítica, pop, eletrônico, contemporâneo.
- O Brasil tem um problema de auto-estima com as coisas dele, com os filhos dele - avalia Arícia. - Mas os filhos dele têm auto-estima. É um problema também econômico, de mercado. Com uma economia instável, o mercado fica doido. O artista tem, então, que criar o seu mercado.
As filhas de Joyce que também são cantoras, Clara Moreno e Ana Martins, também só conseguem gravar no Japão, mesmo em estilos distintos. A primeira faz música brasileira eletrônica e já está no terceiro CD. Ana vai estrear este ano com 'Futuros Amantes', numa linha pós-bossanovista.
Mercado parece ser mesmo a palavra-chave para entender o problema. O presidente da gravadora Universal, e também da Associação Brasileira dos Produtores de Discos (ABPD), Marcelo Castelo Branco, atribui a situação à crise dos canais de distribuição e ao crescente interesse dos mercados externos pela música brasileira.
- Desde 1992 a Universal, quando ainda era Polygram, iniciou um processo de exportação da música brasileira. Desde então, nossos royalties aumentaram cinco vezes. Estamos falando de um mercado muito interessado em música brasileira, como o Japão, o segundo do mundo, onde um nicho desse mercado é equivalente ao total de países inteiros - diz.
 Para ele, contudo, é hora de a indústria brasileira de disco recuperar o tempo perdido e corrigir os erros do passado.
- Reconheço que não foi uma boa estratégia o relançamento que a Polygram fez, por exemplo, de alguns discos da Elenco (selo de Aloysio de Oliveira, o principal da bossa  nova nos anos 60). Tentamos modernizar as capas, colorizando-as. Mas percebemos que a sedução está no original.
Isso é fácil de perceber, bastando ver as reedições japonesas dos discos da Elenco: em 'Billy Blanco na Voz do Próprio', recém-lançado, a capa é rigorosamente a mesma, o elegante desenho em preto e branco com detalhes vermelhos que caracterizava a gravadora, e até os textos em português são mantidos - as informações em japonês vêm em encarte à parte. Esse padrão é repetido em qualquer disco brasileiro lançado no exterior.
- A Universal tem esse patrimônio todo e tem o dever de botá-lo à disposição do mercado - reconhece o executivo, que já anuncia pra julho a reedição (respeitando os originais) de preciosidades como a trilha sonora do filme 'Garota de Ipanema', de Eumir Deodato sobre canções de Tom, Vinícius e do Chico Buarque iniciante, da vanguardista série de 'Afro-sambas, de Baden Powell e Vinícius, e mais originais de Maysa e Tamba Trio e o 'Samba 68' de Marcos Valle - coisas que o Japão e o mundo já vem ouvindo há muito tempo.
Se a maior gravadora parece querer acordar dentro do subdesenvolvimento do mercado, os artistas contemporâneos ainda estão descrentes.
- O pop, a partir de minha geração, virou a situação. Faço música de oposição - brinca Joyce, que vem ganhando fãs variados pelo mundo, dos tradicionais cultores das riquezas harmônicas da música brasileira a radicais roqueiros americanos e os eletrônicos ingleses, que vivem elogiando a cantora pela Internet por sua postura musical livre. "

domingo, 7 de maio de 2017

Caetano Num Show Integral e Natural (1978)

Em janeiro de 1978, o Jornal de Música trazia uma resenha de um show de Caetano Veloso no Teatro Clara Nunes, no fim de 1977. O show tinha a participação especial de Sérgio Dias na guitarra, e foi o show que sucedeu a temporada do Bicho Baile Show, em que Caetano se apresentava ao lado da Banda Black Rio. A matéria é assinada por Antônio Carlos Miguel:
"Eu tinha gostado do Bicho Baile Show, de Caetano com a Banda Black Rio, mas este show atual é bem superior. Tem mais a ver com toda transação caetânica. Se em Bicho a atmosfera parecia um pouco forçada, apesar do repertório e dos últimos músicos da Banda - o melhor grupo instrumental de 1977 - neste novo show Caetano está bem natural, com todo pique e toda suavidade peculiar.
Bicho foi em parte um trabalho conceitual que demonstrava a vontade de Caetano em fazer uma música mais próxima à dança e origens afro-brasileiras. Talvez por isso mesmo o destaque maior foi para a Banda. Havia por parte de Caetano interesse em dar força à música instrumental. Para todas essas ideias se completarem integralmente faltou um melhor entrosamento entre os dois trabalhos. A música de Caetano soava um pouco estranha, não se adaptando aos arranjos 'Black Rios'.
Este é um problema que não existe neste novo show, a impressão é de que estamos em casa. Tecnologia integral e natural. Mesmo voltando ao esquema 'banquinho-violão' temos um espetáculo solto e descontraído. Caetano está tranquilo, conversando bastante com o público, transmitindo toda sua segurança frágil. O show utiliza poucos recursos, nenhum cenário e uma iluminação discreta. Os músicos que o acompanham se integram neste clima todo. Alguns deles têm um contato bastante intenso com Caetano, Arnaldo Brandão (baixo e violão de 7 cordas) e Vinícius Cantuária (bateria e guitarra acústica) participaram do disco Bicho e tocam em 'jam sessions' caseiras; este também é o caso de Tomás Improta (piano acústico e elétrico). Na percussão está Marcos Amma. Nesta apresentação no Teatro Clara Nunes - este show já tinha sido apresentado no Teatro do Instituto de Educação e na Concha Verde - há ainda a participação superespecial de Sérgio Dias Baptista (guitarrista dos Mutantes).
O show começa com uma série de músicas acústicas, 'Leãozinho' é a primeira, na segunda música são apresentados os músicos e entra em cena dando 'uma supercanja', Sérgio. Enquanto Caetano canta Sérgio preenche todos os espaços e voa alto com seus solos mutantes. São apresentadas algumas composições novas, inclusive 'Sampa', o samba que Caetano fez para São Paulo... 'o samba é hoje em dia uma música típica de São Paulo'. Em seguida vem 'Rio'. Estas duas músicas já bastam para mostrar que ele continua sendo o mais instigante poeta/letrista na música brasileira. Algo como a loucura da lucidez. Antes do intervalo uma homenagem a Dylan, todos cantando 'Don't think twice, it's all right'.
Na segunda parte, só ao violão, Caetano interpreta alguns 'standards' da MPB: 'Quem Vem da Beira do Mar' (Dorival Caymmi), 'Eu Sei Que Vou Te Amar' (Tom Jobim- Vinícius de Moraes) e 'De Você Eu Gosto' (Tom Jobim- Aloysio de Oliveira).
No final, com o grupo novamente, são apresentados, entre outras, 'Tigresa', 'Um Índio' e a incrível 'Muito Romântico' - gravada por Roberto Carlos em seu último disco. A interpretação de Caetano tem muita garra, superando a gravação de Roberto. Sérgio contribui com um lindo solo, que desta vez o obriga a se levantar da cadeira - até então ele tinha tocado sentado, com um painel de pedais.
O trabalho do grupo está perfeito. Arnaldo segura no baixo, Vinícius, além da bateria, dando uma boa ajuda nos 'backing vocals' e na guitarra acústica. Outro destaque  para o trabalho de Tomás Improta no piano, com solos saborosos em contraponto ao canto de Caetano - por exemplo a música 'Love, Love, Love' - e a guitarra de Sérgio.
Fechando o show, não podia faltar, 'Odara'. "

sexta-feira, 5 de maio de 2017

Sérgio Dias - Jornal Rock Press (1984) - 2ª Parte

"Não acredito em fronteiras, não acredito em países, não acredito em nada disso e acho que este é o grande câncer da raça humana. A situação atual do mundo, tantas guerras em nome da raça humana. A situação, tantas guerras em nome de fronteiras... Eu acho que a Terra é de todos, se as coisas fossem feitas de uma maneira mais racional seria bem melhor. Haver fome no mundo é um absurdo, o desemprego é outro absurdo. Acho que a consciência que faz um país deveria existir no nível terrestre. Mas eu vivo muito longe disso tudo; minha cabeça não funciona nesse sentido. É a minha visão musical: acredito na união dos sons, sem, é claro, perder seus próprios tesouros. O Brasil é o Brasil porque sofreu influência de todas as pessoas e culturas que vieram para cá. O samba ou o rock feitos aqui são diferentes dos de outras partes do mundo. Um judeu é um judeu em qualquer parte do mundo; um brasileiro é um brasileiro seja na Europa, na Ásia ou nos Estados Unidos.
Meu lado místico, atualmente, está bem realista. Ando voltado para mim mesmo, voltado para o meu auto crescimento. Não estou preocupado em divulgar as maravilhas do conhecimento, estou guardando comigo mesmo. Eu sei que a evolução é de cada um; não adianta ficar dizendo que Coca-Cola é gostoso até você experimentar, gostar ou não. Acho que era um pouco infantil de minha parte ficar falando a respeito dessa coisa mística. Era um desbunde, mas acho que na época foi válido. Hoje provavelmente eu falaria de política em minhas músicas. Não uma coisa de partido, dirigida, porque eu não sou politizado. Caetano é político, eu entendo de guitarras. Tenho vontade de falar da fome, da tristeza que isso me dá e de como vocês aguentam isso, como eu, sendo brasileiro, sou capaz de ficar assim... Talvez minhas letras não sejam letras para as massas, mas eu gosto de escrever, de falar das coisas. Na música Incredible Selfish Machine eu digo: 'Time to be by yourself, time to do all by yourself, while the incredible selfish machine goes on the road'. Quer dizer: tempo de você ficar sozinho, de fazer as coisas por si mesmo, enquanto essa incrível máquina egoísta continua pelo mundo. Isto no final é uma incongruência porque pra conseguir sobreviver dentro do egoísmo você tem que ser egoísta também, senão desmancha. Se o Brasil não for mais egoísta ele vai dançar brabo de verde e amarelo.
Sou careta. No momento eu sou caretíssimo. Mas já viajei muito, já ganhei meu brevê. Isso faz parte daquele papo místico: você descobre caminhos e você vai subindo devagar. Não adianta subir de elevador se não corre o risco de chegar lá em cima e descobrir que não tem estrutura para segurar a barra. Realmente a droga é uma coisa perigosa, te engana muito, pode fazer chegar a conclusões que depois, quando você volta não se enquadram na realidade. O próprio Castañeda fala dos antigos videntes que dançaram porque classificavam as coisas em dois níveis: o conhecido e o desconhecido. Isso provocava um aumento no ego porque eles se sentiam capazes de  chegar ao domínio total do desconhecido. Agora, os novos videntes dizem que existe um conhecido, o desconhecido e o que você nunca vai conhecer. Isso é mais real. Muita gente que se aventurou além do próprio desconhecido dançou brabo. As pessoas chegam a um nível de consciência o desconhecido que distorce totalmente a realidade do nível conhecido. Portanto é uma coisa muito perigosa se não for transada com muito know how.
Basicamente toda a raça humana é iluminada pelo mesmo espírito: Deus. Com ácido você pode chegar ao nível consciente disso e é fantástico. É o caminho para a telepatia, porque se todos nós somos um, você é a outra pessoa. Aquilo que Cristo dizia: Ama o próximo como a ti mesmo. Como Lennon dizia: I am you as you are me and we are all together. É basicamente o que o Zen Budismo ensina, enfim o que todas as religiões ensinam. Com ácido vc vive tudo isso numa situação real mas é difícil porque se de repente você, por exemplo, vira uma pessoa só com o mundo; você sofre todas as influências negativas que estiveram acontecendo e para isso é preciso ter um ego suficientemente forte para segurar a peteca. É muito de cada um, eu vejo uma coisa muito kármica nisso tudo. O Arnaldo, por exemplo, teve as mesmas experiências que eu mas foi pior para ele do que para mim.
No início tudo era uma festa. Na época eu tinha uns 14 anos. Comecei tocando no Six Sides Rockers, que era uma fusão dos conjuntos da Rita Lee e do Arnaldo. Eles me convidaram para ser o solista da banda e eu aceitei. Com a saída do batera, o Arnaldo veio com a ideia de fazermos um trio... o que eu achei péssimo. Imagina um guitarrista tocando sozinho com um baixista, sem bateria... Eu não acreditava, mas aí a gente fez os Mutantes. Mais tarde entrariam o Dinho na bateria e o Liminha no baixo. O primeiro disco dos Mutantes foi gravado em 67. A gente sentava e compunha juntos, mas muitas coisas eram influenciadas por outras que a gente ouvia. Daí fazíamos uma coisa purista, não tinha essa de dizer: ah, vamos copiar. Tem citações de músicas dos Mutantes que são basicamente isso. Se for para pensar em termos de plágio são totalmente roubadas até, mas era o que a gente sentia em relação àquilo. Passou a ser uma linguagem.
Atualmente não gosto do que a Rita anda fazendo. Acho muito chato. A Rita é bem melhor que isso. Sei que ela está ganhando dinheiro mas eu não me sacrificaria a esse ponto, de tocar bolero, para sobreviver. Prefiro comer pão mais barato e tocar o que gosto. Talvez ela nunca tenha sido rock and roll, mas ela fala coisas boas; é uma excelente letrista, é muito forte... de qualquer maneira estou muito envolvido para falar sobre isso. Basicamente o que importa é se ela está feliz. O Arnaldo é gênio, é fantástico. Foi ele quem fez tudo isso que vocês sabem. É uma pena ver o que aconteceu.
Eu não acho que o rock progressivo esteja morto como muitos dizem. O que aconteceu foi uma volta às origens com o punk e o new wave. Uma aproximação ao grito interior, uma coisa de raça. Mas tudo está tendo novamente a mesma evolução de dez anos atrás. Ninguém aguenta a mesma coisa durante muito tempo e logicamente ela terá de evoluir. Vejam, por exemplo, os primeiros discos do Police e comparem com os últimos, que são bem mais progressive. Vejam que o Yes  está voltando e que é progressive total. O Rush também é bem progressivo... Eu acho que agora o progressivo vai voltar mais forte, sem aquele caráter clássico de antes. A roupagem vai ser uma coisa dos anos 80: muita máquina, muita tecnologia, mais ainda com a espacialidade que o progressivo dá... e que é bom. Acho que sou essencialmente progressivo, as cores dessa música me fascinam muito. O espaço que você tem dentro do progressivo é uma coisa bem interior e eu sou uma pessoa muito interiorizada; minha música é algo bem a esse nível. Gosto de traduzir esse mundo musicalmente e o progressivo, com certeza é a melhor maneira para isso. No tempo dos Mutantes eu era responsável pelo progressivo, os sons, os solos, essas coisas era basicamente eu que transava. Sempre  foi minha função maior dentro dos Mutantes a inovação sonora.

Primavera de 1984 - Rio e Janeiro "

quarta-feira, 3 de maio de 2017

Sérgio Dias - Jornal Rock Press (1984) - 1ª Parte

Em 1984, o guitarrista Sérgio Dias, o eterno Mutante, havia chegado de pouco ao Brasil, depois de viver durante alguns anos nos Estados Unidos. O jornal musical Rock Press  nº 1, de outubro daquele ano, trazia uma matéria com Sérgio, apenas com depoimentos do músico sobre sua experiência nos EUA, e como ele encontrou o Brasil em sua volta:
"O Brasil está um caos. É terrível, ridículo tudo isto que está acontecendo aqui. Você vê; esta mentira toda da política é uma coisa ridícula. Quando eu estava em Nova York saiu nos jornais sobre as manifestações pelas diretas; um milhão e meio de pessoas no Rio, um milhão em São Paulo. De repente não acontece nada. O governo fala: 'não, não pode ter' e todo mundo cala a boca e vai pra praia. Me entristece muito ver a fraqueza do povo, a falta de patriotismo do brasileiro, porque eles honram muito pouco a terra em que nasceram. É uma pena ver o medo do brasileiro até em assumir o próprio Brasil. É muito fácil dizer: 'Ah, nós somos dominados'. São dominados pelos próprios brasileiros. Há os que lucram com isso. Só 2 por cento da população é rica, enquanto o resto morre de fome. Será que esse pessoal não sabe que está morrendo de fome? Não acredito que alguém possa ser tão burro assim. Penso que é quase uma coisa genética. Tem aquela piada popular que diz que quando Deus estava fazendo o Brasil seu auxiliar perguntou: Mestre, você vai colocar furacão na Flórida, terremoto no Japão, maremoto não sei onde, e no Brasil este paraíso? Ao que Deus respondeu: 'Espera até ver o povo que Eu vou botar lá.' E é verdade; você vê no trânsito, o brasileiro é muito egoísta. Cada um por si e foda-se o resto. É aquela transa do malandro, te esfaqueia pelas costas. O americano não, ele te esfaqueia pela frente; diz que vai te fuder e te fode mesmo. Já o brasileiro é por trás de muitos sorrisos e isto já não cabe mais na atualidade porque transando com o mundo dessa forma ele é visto com clareza tão grande pelos povos mais desenvolvidos que termina sendo tomado por índio mesmo.
Foram vários os motivos que me levaram para os Estados Unidos. Tinha terminado aquele disco solo aqui, mas a CBS estava muito devagar e eu não estava com paciência. Ao mesmo tempo L. Shankar estava fazendo coisas por lá e tinha me chamado para participar de uma tour com ele. Também havia a possibilidade de gravarmos um LP juntos. Depois pintou a Susan, minha ex-mulher norte-americana e o convite do Eddy Offord para gravar um LP. O disco foi feito há 3 anos e atualmente o manager está tratando de seu lançamento no mercado norte-americano. Lá nos Estados Unidos essa demora no lançamento é normal quando se trata da venda de um produto independente. Mas a experiência com o Eddy Offord foi muito importante inclusive tudo o que sabia sobre a gravação eu tive que jogar fora. Lá você tira o som com o ouvido e não com a eletrônica e funciona dez vezes melhor. Você chega no estúdio, põe um microfone no bumbo, vai pra sala sem equalizar e o som que está lá é o som do bumbo. Você não tem que ficar mexendo em todos os botões para tirar um som parecido com o do bumbo como acontece aqui.
Musicalmente falando o nível é estupendo. Toquei com pessoas de um nível que jamais encontraria aqui; aprendi demais
Pessoalmente não sou muito chegado ao rock norte-americano, sempre fui mais influenciado pelo rock inglês, mas o jazz, por exemplo, está lá nos Estados Unidos. Tocar com Airto Moreira, L. Shankar, esse nível de gente te enriquece muito. O engraçado é que para eles sou uma pessoa sui generis porque em geral os guitarristas de lá são especializados; este toca rock, aquele toca jazz, aquele outro toca sei lá o que, mas eu toco tudo. Isso era bom porque sempre me dava bem em todas as situações. Outra coisa boa é que meu som, por incrível que pareça, é melhor que o som deles inclusive tecnologicamente.
Minha guitarra é tecnologia brasileira, foi meu irmão Cláudio quem fez e aí toda vez que eu ia gravar era um choque porque nunca tinham visto um som tão limpo.
O que me dá muita saudade é a MTV (Canal de televisão por cabo que só transmite vídeo-clips). Mas televisão lá não é muito boa não. Em termos de programação normal tem o Thirteen, que é um canal feito pelo povo. Você diz o que quer ver e eles programam. Totalmente democrático. Tem também os cables (Tvs por cabo) mas enchem o saco porque apesar de programarem excelentes filmes repetem o mesmo filme dezenas de vezes por mês. Agora rádio, pelo menos em Nova York é muito chato. É uma coisa muito igual, sem muita inventividade e totalmente dominada pelas companhias de discos. As rádios perdem muito sua função: um disk jockey não tem a menor flexibilidade ou liberdade; tem que tocar o que está programado pelas companhias e pronto. A rádio lá não tem mais função social como a Fluminense FM tem aqui no Rio, com os grupos mandando fitas para serem tocadas, indo à rádio, transando concertos, etc. É fantástico porque assim a rádio passa a fazer parte do povo e este é o grande barato da rádio. O que deve acontecer nos Estados Unidos provavelmente é uma nova revolução em termos de rádio. Atualmente a música lá está muito estéril; eles são muito elitistas: uma rádio é de funk, outra de rap music, outra de country. Mas eu espero que aconteça alguma coisa nova, nem que seja influenciado por alguém de fora, porque eles não têm muitas ideias não."

(continua)

segunda-feira, 1 de maio de 2017

Belchior - O Que Me Interessa É Amar e Mudar (1976)

O Brasil perdeu ontem um de seus grandes cantores e compositores. Belchior foi porta-voz de uma geração, com suas letras reflexivas, repletas de poesia e questionamentos. Sua música atravessou gerações, e nem com seu sumiço e reclusão ficou esquecido. Fica aqui minha homenagem a essa grande personalidade, que marcou profundamente a mim e a todos de minha geração, com a reprodução dessa entrevista que Belchior concedeu a Eduardo Athayde, publicada no jornal Hit Pop, em 1976, ocasião em que lançou um de seus discos mais marcantes, Alucinação:
"A cara larga de vaqueiro. A fome insaciável pelo novo. A rebeldia. A provocação. O indiscutível talento. Tudo isso somado, resulta em Belchior, nascido Antonio Carlos Gomes Belchior Fontenelli Fernandes, cearense de 29 anos.
Ele afirma, apenas, que é um 'rapaz latino-americano'. E eu digo que isso quer significar três coisas: não cede, não concede, se impõe.
O seu novo LP, intitulado 'Alucinação', vai fazer a cabeça de todos os que estiverem atentos, à música e principalmente à letra. É o LP do ano, não tenho a menor dúvida. Quem não se tocar, dançou. Reparem no repertório selecionado, todo de lavra sua: Apenas um Rapaz Latino-Americano, Velha Roupa Colorida, Como Nossos Pais, Sujeito de Sorte, Como o Diabo Gosta, Alucinação, Não Leve Flores, A Palo Seco, Fotografia 3x4, Antes do Fim
Vou pecar pela repetição, mas acho que o trabalho de Belchior se resume no verso: quero que meu canto torto feito faca, corte a carne de vocês. O torto, no caso, talvez se reflita na simplicidade do fraseado musical. Mas o afiado da faca pinta em cada um dos versos que faz, ele que é um letrista da pesada.
É esse Belchior que vem com tudo - seu torto canto e sua lâmina afiada - nesta entrevista concedida com exclusividade para Hit-Pop. É um papo comprido, do geral ao particular, sempre denso de ideias e ideias. Eu dou fé. 
Hit-Pop - É possível rotular sua música?
Belchior - Olha. Fundamentalmente, eu faço música nordestina, contemporânea. Transo de xaxado, xote, baião. Mas não dispenso o elemento eletrônico, e tampouco as influências que recebi. E foram várias, variadas: Luiz Gonzaga, Beatles, cantadores de feira, ciganos nas estradas do Ceará, música de igreja. Some esses elementos todos, e você terá, digamos, uma arte mestiça...
Hit-Pop - E a latinidade? Qual é, de fato, a dimensão desse (novo) elemento musical chamado som latino-americano, ou influenciado por ele?
Belchior - O que me impressiona é a possibilidade de nós, latino-americanos, podermos nos comunicar com uma linguagem nova, comovente, revolucionária. Aliás, o tango argentino é a autêntica linguagem das minorias latino-americanas. É claro que não sou contra o blues, forma de expressão dos negros americanos. Nem sou contra o samba, ou contra o rock - um grito da juventude. O que eu não gosto - de música e letras apenas contemplativas, passivas. Eu falo - e devo falar - dos enganos que nós, os jovens, sofremos por ver as nossas esperanças caírem por terra. Assim, não abro mão da agressão. Acho que é preciso fazer um trabalho irreverente e insolente. Caso contrário, vira aquele negócio de música de fundo de restaurante, sabe como é? As pessoas estão comendo e, e a arte serve apenas de relaxante, entretenimento. Facilitador a digestão.
Se o meu canto vai chegar a todas as pessoas, eu não sei. O que sei é que mantenho meu trabalho sob absoluto controle. Eu digo: 'sou apenas um rapaz latino-americano, sem dinheiro no banco. Por favor, não saque a arma no saloon, eu sou apenas o cantor...'
Hit-Pop - Você imagina ter sua obra imortalizada, assim como os clássicos da música popular brasileira?
Belchior - Não me interessa, como artista, produzir e criar pensando na eternidade da obra. Eu quero dar toques, e isso é fundamental pra mim, pois o homem é o fim e  o objetivo de si mesmo. Eternidade não é um dado humano, comum. Aliás, em qualquer nível é uma farsa, uma mentira. Sou contra. Eternidade é o tédio dos deuses, que gostariam de ser simples mortais. Minha ligação é com a terra, ouça: "Eu não estou interessado em nenhuma teoria, em nenhuma fantasia, nem no algo mais. Longe o profeta do terror que a Laranja Mecânica anuncia. Amar e mudar as coisas me interessa mais!' Essa é a minha proposta. Isto é, suportar o dia-a-dia e a experiência com coisas reais.
Hit-Pop - Seu novo LP está na praça, seu talento é reconhecido, a crítica o elogia. Como você encara o sucesso?
Belchior - O sucesso me interessa, porque me dá possibilidade de dizer e cantar até chegar às pessoas. O disco é a chance que o artista tem, em se oferecer integralmente, com suas ideias, mensagens, reflexões. Neste  momento, estou montando uma banda, para correr todo o Brasil. Já estou com o Liminha, o Áureo de Souza, o Rick, e só busco um tecladista.
O meu disco tem um título que eu gosto, 'Alucinação'. Sabe, viver é mais importante que pensar sobre a vida. É uma forma de delírio absoluto, entende? A alegria, a ironia, a provocação, são tão importantes quanto sorrir, brincar, amar. Acho importante provocar. Um trabalho novo só aparece através da agressividade. Eu estou tranquilo quanto às consequências do meu trabalho. Acho importante que ele cause polêmica. É para desafinar mesmo! Desafinar sempre, que esse é o desafio. Hoje em dia, já não se pode criar mais sem correr riscos. E eu quero enfrentá-los. Minha expectativa é para os jovens compositores. Sobre eles recaem todas as dificuldades pra fazer qualquer coisa. E, também, costumo tomar o trabalho de compositores mais velhos como marco para começar tudo de novo. Artista reconhecido é importante, claro, mas no momento, eu quero dar as mãos a Fagner, Alceu Valença, Luiz Melodia, Ednardo, Marcos Vinícius... A todo o pessoal desta geração violentada. Temos que encontrar uma forma de mostrar que estamos vivos. E isso só se consegue fugindo do convencional, optando definitivamente pela juventude. A cultura precisa rejuvenescer sempre voltada para a nossa realidade. O que é velho tem, realmente que morrer. Até agora, com raras exceções, a música tem sido uma forma artística com tendências à fuga, à evasão. Meu trabalho é uma colocação no real, pois nada muda por si mesmo.
Hit-Pop - E essas transas de misticismo, ioga, oriente... Elas têm significado pra você?
Belchior - Fui criado comendo boi com abóbora, no interior do Ceará. Por isso, tenho a mente aberta para ver se existe algo, nisso tudo de que você fala. Mas sou completamente desinteressado. Não acredito, não quero nenhuma nova teoria que me decepcione depois. Sou um cara mais preocupado com toques imediatos, do presente. A arte não pode viver de ilusões. Sinto necessidade de falar das aspirações imediatas: dormir, comer, sentir alegria, dor, prazer, tristeza, coisas claras, entende? Não sou, de fato, místico. Sou mal comportado por opção: 'Não me peça que eu lhe faça uma canção como se deve: correta, branca, suave, muito limpa, muito leve. Sons, palavras são navalhas, e eu não posso cantar como convém, sem querer ferir ninguém.'
Hit-Pop -  Como é que foi sua vinda para o sul, a barra que você encarou?
Belchior - Minha família é nordestina , patriarcal. Somos 23 irmãos, vendo com grandeza e honradez o trabalho que fazíamos com as mãos. Aos 16 anos, eu não aguentei a barra, saí de casa, tentando buscar uma alternativa... Não vejo mal nenhum em sair por aí, botar o pé na estrada. O nordestino tem a alma de emigrante, é uma ave de arribação, como diz o Luiz Gonzaga em 'Asa Branca'. O jovem nordestino quer, um dia, voltar pra lá, mas sempre tem necessidade de sair. Agora, quem põe o pé na estrada precisa estar preparado para aguentar a barra. De 71 até hoje, o negócio não foi fácil. Dormi em muita calçada. segurei de perto a barra da Lapa (RJ). Senti fome e frio. Fiquei de pires na mão, nas salas de espera das gravadoras. Hoje, comparando, digo que fazer beicinho porque o papai não deu grana pro cinema é a mais completa infantilidade. Não passa disso. As soluções estão dentro da gente, é lá que a gente deve ir buscá-la. É como digo em 'Fotografia 3x4': 'Em cada esquina que eu passava, um guarda me parava, pedia meus documentos e depois sorria, examinando os 3x4 da fotografia, e estranhando o nome do lugar de onde eu vinha'.
Hot-Pop - Qual a alternativa que você sugere?
Belchior - Cada um tem a sua. Pelo amor, sexo, conhecimento, experiência de vida, o jovem, isolado, terá tempo de refletir e encontrar o seu próprio caminho. É o toque que eu dou, por exemplo, na música 'Como o Diabo Gosta'... "