Palavras Domesticadas

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quarta-feira, 19 de outubro de 2016

Simone - O Globo (1977) - 2ª Parte

"Baiana de Salvador, 27 anos, oito irmãos, família classe média, signo de  Capricórnio, Simone começou a cantar 'vinda da rua, pega na rua, como uma pessoa qualquer.' Já é bastante conhecida essa iniciação - o encontro com um diretor da gravadora Odeon numa festa, o teste, a aprovação, o LP de estreia, 'Simone', vendendo o bom número de cinco mil cópias.
- E tem aquela história de ser jogadora de basquete. Pelo amor de Deus, nem fala mais nisso, se não vou ser conhecida a vida toda como a jogadora de basquete que canta.
Feito o primeiro disco, Simone foi viajar.: Europa, Olympia inclusive, Canadá, Estados Unidos ('lá tinha um cara, um dos diretores do Madison Square Garden, que queria fazer de mim uma estrela. Me dava tudo, todas as condições. E assim que eles te compram, sabe? Mas eu não topei, não'). Depois, América Latina com Vinícius e Toquinho.
Mais dois discos no Brasil: 'Quatro Paredes', de uma beleza amarga, claustrofóbica (venda: dez mil cópias) e 'Gotas D'Água', de piques e fundos, trabalho de transição (venda: 15 mil cópias). E o sucesso de 'O que Será,que Será', tema do filme 'Dona Flor', gravação tumultuada e tão por acaso quanto o começo de sua carreira.
- Eu nunca pensei em mim como uma artista, sabe? - ela diz devagar enquanto come às pressas um almoço tardio. - Não foi assim como Bethania, que sempre quis ser cantora, sempre se imaginou no palco, essas coisas. Eu gostava de cantar, mas não pensava muito nisso. Foi uma coisa que pintou. Talvez por isso eu não me afobe tanto.
Ao seu lado Glorinha, misto de amiga, confidente ('há sete anos, viu, há sete anos') e assistente de produção, exclama, exaltada, entre um e outro pedaço de frango na chapa:
- A Simone é muito gente, viu, mas é gente demais. Por isso é que não admite que é uma estrela. Mas é sim, viu? Só que é simples, viu, é muito gente mesmo.
Simone não retruca, sorri, os ombros soltos num breve momento de descontração. Clarinha, amiga e repórter da 'Tribuna da Bahia' - autora da matéria mais festejada da tarde, 'Surge uma superestrela' - começa a empacotar roupas e maquiagem. Simone vai trocar as botas pelas azuis, que usa em cena, e escovar os dentes. Monica Lisboa continua no sofá, serena:
- É engraçado como o artista não aceita a ideia de ser manipulado. Mas eu já vi isso acontecer antes. Eu sei como transar a cabecinha deles, quando a pauleira mesmo começa.
- Pelo amor de Deu, deixa eu pegar na Simone. Se eu não pegar eu morro. Só um pouquinho, pelo amor de Deus!
A voz de mulher vinha de longe - de onde? - no meio da massa humana densa, imensa, compacta. Mãos, rostos, gritos - 'diz que sou seu sobrinho, deixa eu entrar, aí, a Simone, meu Deus, deixa eu olhar de perto.'
Simone abre caminho na multidão. com os cotovelos, jogadora experiente e astuta no caminho da cesta. Desde que o carro se pusera a caminho, não dissera uma palavra. Só na saída do hotel -  teria sido ali? - para confidenciar;
- Eu sei que muita gente vai para ver o Belchior. Não tenho ilusões não.
No camarim pequeno, pobre, abafado, repleto de corbeilles - é a primeira vez que isso acontece no Seis e Meia', comenta Judy, sócia de Mônica na empresagem - ela se despe diante do espelho, em silêncio. De longe chegavam uivos, urros, sons surdos. O clima é apocaliptico. Seu único comentário vem depois de longo silêncio meditativo.
- Eu não lhe falei que o problema é a desorganização? Ouve só. É um absurdo. Por que deixar essa gente toda esperando aí fora? Abre as portas, deixa entrar. Quem não couber, vai embora e pronto. O pessoal é ótimo, não dá problema nenhum. Não tive nenhum problema esses dias todos.
Glorinha e Clarinha passam a roupa de cetim azul claro - calça tipo jeans, colete, camisa branca salpicada de paetês - no chão mesmo, sobre uma toalha. Monica e Judy se agitam, entram e saem, imprecam. Só Simone está impassível diante do espelho, o rosto denso, muda. Pinta-se devagar, com gestos precisos - base sombra escura, kajal, batom bem vermelho ('é uma pena, na segunda música já está tudo borrado'). Faz exercícios para as cordas vocais - 'estou rouquinha, o que será?'. Veste-se com lentidão ritual. Corda de violino inteiramente retesada, quando mais aumenta o tumulto, lá fora, mais silenciosa e imóvel é sua atitude. Tensão absoluta.
Faltando meia hora para o espetáculo, pede para ficar sozinha. E tranca a porta do camarim.
A lente do fotógrafo perscruta a multidão: o João Caetano está literalmente superlotado (1.713 pagantes, se saberia depois). E um público notável: rostos brancos, pretos, louros parafinados, bleques, comportados, de óculos, mas todos, todos mesmo, com, no máximo 20 e poucos anos de idade. Todos. E uma sensação estranha. Semelhante só em shows de rock e nos idos festivais universitários, naquele mesmo teatro, internacional da Record. E, em nenhum, com aquela diversidade de origem e comportamento. Simone tinha razão: esperam o espetáculo com alegria e sem tumulto, acompanhando o som de fita que vem das caixas com palmas e arremedos de dança. Na coxia, Monica Lisboa, mais calma da agitação pré-show, comenta:
- Alguma coisa está acontecendo, eu tenho certeza. Veja isso (aponta para a plateia), foi assim todos os dias. E um novo público, um novo movimento, uma nova coisa. O rock está se esvaziando mesmo e as pessoas estão querendo outras coisas. Sacaram que aquilo tudo, aqueles quilos de aparelhagem e tudo mais, era mesmo uma coisa inteiramente fora da nossa realidade.
 Monica não diz - ainda - com clareza, mas é evidente que ela está preparando Simone para essa coisa, para os braços e ouvidos da imensa plateia da qual esses 1.700 são apenas uma pálida amostra.
Seis e meia em ponto os músicos - Paulinho nos teclados, Pigmeu no baixo, Duda na bateria, Otávio no sax e flauta - atacam o tema de abertura. E, sob a massa de assobios, palmas e gritos de 'linda', 'gostosa', Simone entra no palco com o 'O que será, que Será'. Sob as luzes, na roupa de cetim, parece menor e mais jovem: uma garota, como tantas na plateia. Tensão ainda há: nas mãos grandes, ossudas, ainda crispadas. Mas com duas ou três músicas já é senhora do palco. O público canta junto com ela, conhece as letras e aplaude determinados versos. Simone agradece a paciência e força de vontade de sua plateia, explica que a linda 'Jura Secreta', de Sueli Costa e Abel Silva, é seu auto-retrato. E dá a 'Sangue e Pudins', de Fagner e Abel, uma interpretação inesquecível, veemente, grito parado no ar. 'Talvez se eu arrancasse da minha língua o sinal/ talvez se eu inventasse o juízo final'. O público aplaude em delírio. O público entende.
Atrás de sua lente, o fotógrafo comenta, observando as reações da plateia:
- É impressionante a imagem que a Simone projeta. É a figura de uma nova mulher forte, agressiva, jovem. Por isso as meninas se identificam com ela.
Há mais  flores no camarim. Todas com cartões assinados por mulheres.
- Até eu ganhei - Monica Lisboa ri, divertida. Simone está saindo correndo para Niterói, tirando os restos borrados de pintura do rosto. Não parece cansada. Nem tensa. O ciclo todo recomeçará, daqui a pouco, mas agora ela sorri o primeiro sorriso da tarde e da noite, e me estende uma das caixas de flores.
Não é minha, mas é como se fosse. Queria que ficasse pra você.
E depois;
- Viu como foi tudo bem? Viu como eles são maravilhosos?
- Você é que é maravilhosa, Simone - Glorinha grita, empolgadíssima.
Monica Lisboa fecha o cortejo, pensativa, a caminho do carro e da ponte. Comento como Simone amadurecera no palco e se tornou capaz de até controlar a plateia com um gesto - como fizera no meio de uma música, quando uma falha no som despertara um princípio de vaia transformado em aplausos com um aceno - e como ela negava com veemência sua posição de ídolo. Mônica tem um meio sorriso na sua resposta:
- Mas ela é. Só que se recusa a ver isso, ainda está assustada, acredita que pode viver como uma pessoa qualquer, daqui pra frente. No fundo, acho que ela sabe que não. Mas por enquanto não quer encarar essa barra.
Uma pausa- É. Eu sei bem como é isso.




terça-feira, 18 de outubro de 2016

Simone - O Globo (1977) - 1ª Parte

Em 1977, a cantora Simone começava a se firmar como um grande nome da MPB. Em agosto daquele ano, o jornal O Globo trazia uma matéria sobre a cantora, falando sobre um show do Projeto Seis e Meia, que acontecia no Teatro João Caetano, no centro do Rio, sempre reunindo uma dupla de artistas, por preços populares. No caso do show de Simone, o seu parceiro de palco era o consagrado cantor e compositor Belchior. A matéria é assinada pela jornalista Ana Maria Bahiana, e tem como título "Maravilhosa! Linda! Ótima! etc, - exclamou o delirante público":
"Pelo que os jornais contam, a Praça Tiradentes nunca mais será a mesma. Durante cinco dias, de 22 a 26 de agosto de 1977, ela foi tomada de assalto por uma brigada estranha, nova: cinco, seis, oito mil jovens de idades nunca superiores a 25 anos, vindos de todos os cantos e ocupações do Rio de Janeiro. Jovens pacientes, jovens inflamados, jovens capazes de suportar três, quatro e até seis horas de fila e tumulto e atritos rudes com a polícia. Tudo para entrar no Teatro João Caetano, pagar CR$ 12 e desfrutar hora e meia com Belchior e Simone. Belchior? Simone? Aí, o osso da questão. Como? Por quê? Certamente o Seis e Meia já atraiu multidões, mas não essas multidões, que a música brasileira toda vê desde os áureos tempos dos festivais. Muito menos para ver dois artistas de recente exposição ao público, para não usar o batidíssimo termo 'novos'. De Belchior, que é articulado e falante, a imprensa tem se ocupado com regularidade. Mas, e essa Simone que o público de TV recorda apenas como uma morena de voz rouca cantando 'O que será, que será' no Globo de Ouro? E essa Simone de quem o que se diz, comumente, é que é ex-jogadora de basquete, e só? E essa Simone que, com certeza, atrai pelo menos metade - e depois cativa o restante - dessa multidão inusitada?
Simone está chegando de Itaipu com o rosto ainda vincado de cansaço e uma certa tensão. Foi descansar algumas horas entre um espetáculo e  outro - além do Seis e Meia ela fazia temporada em Niterói, com seu trabalho "Face a Face' - na companhia de um personagem misterioso que chama apenas de 'meu guru'.
- É uma transa de meditação, sabe? - confidencia a empresária Monica Lisboa. - Aquele lado mais espiritual que todo artista precisa ter. Nem sei direito o que é, mas parece uma coisa não muito mística, sabe, mais na terra, mesmo.
Se há matéria que Monica conhece a fundo é essa estranha raça de artistas. Durante cinco anos ela foi a mentora e articuladora do sucesso nacional de Rita Lee. Portanto, nada mais significativo que seu interesse por Simone. Um novo ídolo estaria em gestação?
- A verdade é que o público precisa de ídolos - diz ela depois de longa meditação. - Disso não há meios de escapar. Principalmente agora, numa época de tanto sufoco, as pessoas querem extravasar tudo em figuras catalisadoras. E não aceitam mais os ídolos do passado, que, inclusive, não querem mais esse papel. O público cansou daquelas mesmas caras, quer gente nova.
Simone não gosta de falar em ídolos. Gosta de falar de música. E  de amor.
-Não gosto de mentiras. Isso de ídolo é uma mentira, uma coisa fabricada. Pra que esse invólucro, por que eu não posso ser no palco o que sou em casa, o que sou aqui? Quero sempre a verdade. O que é verdadeiro pra mim, agora, tem de ser verdadeiro no palco.
Estica as pernas compridas - botas, calças jeans - sobre a mesa, fuma, pensa. Tem claramente dois lados acentuados: um, incisivo, inflamado, sempre próximo da raiva pela veemência; outro, doce, introspectivo, muito perto do assustado pela contenção. Está obviamente tensa - mãos quase sempre crispadas, os ombros erguidos, sem ceder a relaxamento algum - embora aparente serenidade. Nas horas seguintes eu descobriria que, quanto mais angustiada, mais impassível é seu rosto.
Levar a conversa para o lado da idolatria, dos riscos e armadilhas do sucesso, e ver Simone se agitar e se encrespar, felina, tom de voz alterado, gestos rápidos.
- Esse papo de ídolo é todo muito estranho, é muita mentira que tem nisso.
E sucesso?
- Tinha que vir algum dia, não é? Eu estava esperando. Afinal, são quatro anos de trabalho, eu não apareci assim de um dia para o outro. Eu sempre acreditei no que fiz, sempre procurei fazer o melhor. Eu não tinha pressa, sabia onde ia chegar. Todo mundo que tem sucesso muito rápido acaba logo. Não conheço ninguém que dure. Diziam que eu era elitista, que era para um circuito fechado, e tal. Mas eu sempre queria fazer o melhor.
Eu sei que o público quer qualidade, um trabalho de qualidade. E isso eu sabia que estava fazendo. Esse meu último disco já saiu vendendo 25 mil cópias na primeira semana. Quero ver alguém dizer que isso é ser elitista.
Pergunto se ela não tem medo daquela multidão que se aglomera diariamente às portas do João Caetano. Ela responde imediatamente que não, claro que não, que só teme pela desorganização do espetáculo, pelo modo como as pessoas são tratadas. Evidentemente, não percebe o alcance todo da pergunta - queria saber, mais, se ela tinha medo do fato em si de trair tamanha multidão - ou, se percebe, foge dele. Volto ao assunto, mais especificamente: Não tenho medo da força, em você, que está chamando toda aquela gente? Não tem medo do que elas estão projetando em você, do papel para o qual a estão empurrando? Simone baixa a cabeça, baixa a voz.
- Não. Quatro anos de trabalho fazem a gente saber muito bem onde está nossa cabeça. "

domingo, 16 de outubro de 2016

Os 50 anos de Aldir Blanc - Jornal do Brasil (1996)

Em 1996 o letrista e cronista Aldir Blanc completava 50 anos. A data foi marcada pelo lançamento do CD "Aldir Blanc 50 anos". Em sua edição de 17 de novembro daquele ano, mais de dois meses após o aniversário do homenageado, o Jornal do Brasil trazia uma matéria sobre o lançamento do CD, além do livro "Um Cara Legal na 19ª", de crônicas. A matéria é intitulada "Ourives do palavreado faz 50 anos". O texto sobre o CD é assinado pelo crítico Tárik de Souza, e o sobre o livro, por Moacyr Andrade:
"Logo na faixa de abertura do generoso disco auto-homenagem Aldir Blanc 50 anos (Alma), com 21 faixas do mais refinado lavor lítero-musical, o poeta, letrista, cronista e baterista recebe o aval do baiano-mor Dorival Caymmi. O buda nagô, que brigou até com o dono de seu estado pelo direito à dupla cidadania carioca, elogia o 'ourives do palavreado' numa sentença definitiva. 'Todo mundo é carioca, mas Aldir Blanc é carioca mesmo', bate o martelo. Além da voz de Caymmi e do pernil de Monique Evans, em relevo na foto da capa, ('ficou frontal e eu suava diante daquela calcinha azul', brinca o poeta), o disco de Aldir é uma festa de de adesões estelares. Participam Edu lobo, Paulinho da Viola, MPB-4, Leila Pinheiro, Ed Motta, Ivan Lins, Nana e Danilo Caymmi, Emílio Santiago, Fátima Guedes e mais  Carol Saboya, Clarice Gova, Arranco de Varsóvia, além de uma roda de samba campeã com Ney Lopes, Wilson Moreira e Walter Alfaiate, debulhando com o astro principal as finas grossuras de Mastruço e Catuaba, um glossário sobre a impotência sexual masculina. O disco fecha com um coral de amigos liderado por Betinho no épico O Bêbado e a Equilibrista, um hino do exílio que coloca o irmão do Henfil como personagem símbolo.
O decantado carioquismo de Aldir Blanc Mendes (lançado num remoto festival universitário via Amigo é pra essas coisas, com Silvio Silva Jr.) (*) conservado em formol suburbano, na zona do agrião entre a Tijuca (onde mora) e a Vila Isabel (onde foi criado), descende da linhagem dos cronistas da cidade ao lado de João do Rio, Manuel Antônio de Almeida, Lima  Barreto e Marques Rebelo. Reconhece influências na poesia de Manuel Bandeira (´pela falsa noção de facilidade de seus versos', destila), no seresteiro urbano Orestes Barbosa e na picardia de Noel Rosa, um de seus maiores ídolos na música ao lado do 'padrinho' Caymmi. A lupa psicanalítica de quem já serviu no manicômio do Engenho de Dentro ('tinha sempre 40 roupas para 80 internos, a metade andava nua', deplora) tem reflexos do épico burlesco de Nélson Rodrigues e do minimalismo perverso de Dalton Trevisan. A biblioteca onde ele se abriga para compor e ler no amplo apartamento tijucano, tem de Freud a mitologia grega, do poeta colaboracionista Ezra Pound a revolucionária Rosa de Luxemburgo. E não falta jazz contemporâneo na discoteca, destaques para o guitarrista Kevin Eubanks e o sax alto Antonio Hart. 'Essa história de que tudo parou em Miles Davis é furada', demole o insuspeitado jazzófilo Aldir.
O refinamento de quem venera de Bud Powell a John Coltrane desfila etéreo nas harmonias complexas de Crescente Fértil, parceria surpreendente  com Ed Motta. Também cintila nos recortes e dissonâncias do choro Pianinho, com Edu Lobo. Sonho de Válvulas, uma ode ao trombone de gafieira, prefacia a versão de Aldir (um cantor inclinado aos graves) para o clássico de Glenn Miller Moonlight Serenade. Desconhecido no Brasil, o Rolando que ginga no samba Na Orelha do Pandeiro é o da dupla Les Étoiles, de sucesso na França nos 70, e ex-integrante do MAU (Movimento Artístico Universitário), onde Aldir começou ao lado de Gonzaguinha e Ivan Lins. Da experiente Nana Caymmi (cortante no bolero Siameses, auto-retrato da dupla com João Bosco) à noviça Carol Saboya, filha do pianista Antonio Adolfo (sublime em Carta de Pedra), as bodas de ouro colhem um Aldir em plena forma & conteúdo. 'Aos 50 anos insisto na juventude', ensina o poeta na voz de Paulinho da Viola, na faixa título. "
A matéria traz ainda uma resenha do livro "Um Cara Bacana na 19ª", de contos, crônicas e poemas de Aldir, assinada por Moacyr Andrade, com o título 'Vida como é no Rio:
"Numa mesa do Acrópole, bar do início da Rua Barata Ribeiro onde os boêmios, no raiar dos anos 60 tomavam ao amanhecer uma sopa russa - ou grega - que em 100% dos casos prevenia a ressaca, o cronista Antônio Maria contou certa vez que escrevia as quatro laudas e tanto do JAM, Jornal de Antônio Maria, a coluna que então publicava num dos diários associados de Assis Chateaubriand, em menos de meia hora. É provável que Aldir Blanc não tenha - nem queira - esse pique.  Mas, tal como Maria, já trabalha sob a pressão (êpa!: quando se fala de Aldir o dialeto dos botequins aflora com  a maior naturalidade) das encomendas. Blanc, como o tratam com solenidade brincalhona os mais próximos, é colunista de dois jornais, um no Rio e outro em São Paulo, e para os dois escreve crônicas diferentes, nada de cópias xerográficas. E este Um Cara Bacana na 19ª foi concluído quase em simultaneidade com as memórias de Vila Isabel que Aldir lançou há pouco mais de um mês.

O livro reúne crônicas, poemas, contos e uma antologia de letras de canções. Em quatro formas de expressão, salta das páginas antes de mais nada o pulsar da cidade, o recalcitrante modo carioca de celebrar a vida, tantas vezes declarado morto e enterrado por um suposto cosmopolitismo compulsório. Do ponto de vista da criação literária, impressiona sobretudo a capacidade do autor de esculpir com uma só frase, uma bagatela de palavras, situações e personagens perfeitamente definidos. Está nesse caso, por exemplo, um tipo da letra de canção Negão nas parada (assim msmo, no singular), um certo Dunga, 'bandido joia e cana dura', o agente duplo destes tempos nos quais a separação proclamada por Lúcio Flávio Vilar Lírio, 'bandido é bandido e polícia é polícia', parece, essa sim, definitivamente enterrada.
Noutra letra de canção, agora um choro, Pianinho, Aldir registra uma advertência de Radamés Gnatalli contra a 'falta de medida' e promete acatar 'essa voz que me aconselha'. A jura evidentemente é fruto da admiração pelo grande maestro, pois Blanc às vezes, muitas vezes, afasta o equilíbrio e pisa fundo, com aquela crueldade santificada de Henfil, na indignação contra o comportamento escroque dos poderosos e, com o ardoroso despudor de um hipotético Carlos Zéfiro contista, na explicitação sem rodeios da anatomia dos amantes. Tudo, no entanto, sem perder o poder do estilo, a capacidade de transcrição da vida para a criação, a generosidade e a vocação do amor à cidade, flagrante até quando menciona os vira-latas de Catumbi. "

 (*) Na verdade, o lançamento de Aldir como letrista aconteceu dois anos antes, no mesmo festival, com a música "Nada Sei de Eterno", defendida por Taiguara


sexta-feira, 14 de outubro de 2016

Fagner Lança Traduzir-se - Revista Música (1981)

Em 1981 Fagner lançaria seu sétimo disco - Traduzir-se, gravado na  Espanha, com a participação de artistas locais. Há tempos Fagner já flertava com a música latina, principalmente a espanhola, e ritmos como o flamenco. Traduzir-se é um disco diferenciado na carreira do músico, por ser um trabalho que fugia um pouco do estilo apresentado nos discos anteriores, embora não tenha se afastado por completo de sua personalidade musical apresentada até então. Na ocasião, a revista Música trazia uma matéria sobre Fagner e seu novo disco, assinada por Denise Ribeiro e com o título "Fagner fazendo história na Espanha":
"Não foi à toa que o especial da Globo, 'Raimundo Fagner Cândido Lopes', levado ao ar no último dia 2, teve como cenário uma reprodução do gigantesco quadro 'Guernica'. O telespectador sabe de toda a polêmica que a obra-prima de Pablo Picasso suscitou na Espanha e, automaticamente, fica consciente de que o último disco de Fagner tem muito a ver com coisas flamencas.
Indo um pouco mais além na analogia, e guardando as proporções devidas, pode-se dizer que o novo trabalho de Fagner, assim como Guernica, também entrará para para a história espanhola. Sua ousadia, perseverança e personalidade cativante lhe valeram esse mérito. Se em  Guernica, Picasso conseguiu retratar todo o horror da guerra civil espanhola, chamando a atenção do mundo para os desmandos do franquismo, o disco Traduzir-se presta um favor à música espanhola, na medida em que amplia suas fronteiras de domínio. 
É sabido que Fagner provocou muita emoção 'en las plagas de alla'. Em Lisboa, juntamente com Jorge Amado, Zélia (mulher de Jorge) e João Ubaldo Ribeiro, acompanhou os últimos dias de agonia de Glauber Rocha. Conseguiu que o compositor e cantor mais popular da Espanha, Juan Manuel Serrat, participasse, pela primeira vez de um disco alheio. Deixou bastante comovido Rafael Alberti, o maior poeta vivo da Espanha, ao incluir um poema seu, 'Málaga' (musicado por Ricardo Pachón), em seu recente repertório. Mercedes Sosa, então, só tem palavras de elogio, para classificar seu relacionamento com Fagner. Segundo essa incrível mulher, o que Fagner fez em Madrid é absolutamente inédito.
A novidade está em reunir tanta gente importante, dentro do contexto espanhol, num disco só. Bastava citar apenas um nome, para se avaliar o quilate dos escolhidos: Garcia Lorca. Lorca é um orgulho nacional, espécie de mártir do franquismo e, é claro, sua poesia nunca precisou de Fagner para ser eloquente. Ela já o é há décadas. Mas não deixa de ser bastante gratificante encontrá-la num disco. É muito alentador esperar que os excelentíssimos ouvidos tupiniquins descubram a beleza que são 'Verde' (Lorca e José Ortega Heredia) e 'La Leyenda del Tiempo' (Lorca e Ricardo Pachón).
Além de gravar os poemas de Lorca e Rafael Alberti, Fagner canta ao lado de Mercedes Sosa, em 'Años' (de Pablo Milanés); Joan Manuel Serrat, em 'La Saeta' (de Antonio Machado e Serrat); Camaron de la Isla, em 'La Leyenda del Tiempo' e Manzanita, em 'Verde'. São artistas que fortalecem a interpretação de Fagner, integrando-se a ela. Notem apenas a magnitude das vozes de Mercedes Sosa e Joan Manuel Serrat. São vozes cheias, empostadas, de um timbre arrasador. Fagner deveria ouvi-las mais e gritar menos.
Outra participação enriquecedora é a guitarra flamenca de Henrique de Mechór, em 'Trianeira' (de Fausto Nilo e Fagner), que todos puderam admirar no especial da Globo. Nessa música, o brasileiro Fagner conseguiu sintetizar as influências que sofreu na península ibérica e as recebidas por intermédio do pai árabe, numa unidade melodiosa tão expressiva que espantou até os 'gitanos' mais legítimos.
Houve ainda espaço para um grande poeta nosso, chamado Ferreira Gullar. Seu poema 'Traduzir-se', musicado por Fagner, mereceu o título do LP.
Também não faltou lugar para homenagens. 'Fanatismo' (Florbela Espanca e Fagner) é dedicada ao rei Roberto Carlos e 'Flor de Algodão', é uma tentativa de superar o célebre mal-entendido com Caetano Veloso. Aliás, em 'Flor de Algodão', Fagner retorna à simplicidade e ao lirismo de seus três primeiros e melhores LPs, quando não fazia concessões ao gosto médio, tão chegado a baladas gritadas e trêmulas. Naquela época Fagner era sério, mas em compensação mais pobre.
A banda que acompanhou Fagner, tanto no disco quanto no especial da Globo, é afinadíssima e valoriza todos os momentos musicais. Manassés é um mestre no cavaquinho. Fernando Falcão e Chico Batera são prodígios na percussão. Só para citar uns poucos.
Enfim, Traduzir-se deixa claro que a intenção de Fagner foi realizar um trabalho íntegro e coeso. O resultado está aí, bonito, histórico, poético, cheio de musicalidade e competência. Pequenas falhas, como a péssima pronúncia em espanhol e os famosos gritos lancinantes de Fagner são apenas detalhes comparados à proposta do disco.
Resta saber se ele será bem aceito pelo público consumidor de Raimundo Fagner. Creio que a galera está mais para 'Coração Alado' do que para Garcia Lorca. "