Palavras Domesticadas

Palavras Domesticadas

segunda-feira, 7 de setembro de 2015

Elis Regina - Entrevista de 1974

Em sua edição nº 20, de junho de 1974, a revista Pop trazia uma entrevista com Elis Regina. A cantora na ocasião estava lançando o antológico álbum em parceria com Tom Jobim, e falou do disco e de outras coisas, naquele jeito franco, que sempre foi sua característica. A matéria, assinada por Nelson Rubens (que não sei se é o mesmo que ficou conhecido pelas colunas de "fofocas" do mundo artístico na TV) traz como destaque a frase: "Já apanhei muito da vida. Agora ninguém mais me dá pancada". Antes da entrevista propriamente dita há um texto introdutório que diz:
"Ela está mais segura, tranquila, com mil coisas novas para contar. O álbum junto com Tom Jobim (saindo aqui), gravado nos estúdios MGM, em Los Angeles, Estados Unidos; o concerto no Teatro Municipal de São Paulo, em setembro, também com Tom; e uma temporada nos EUA, no começo do ano que vem. Elis está de bem com  a vida. A fala mansa e os gestos descontraídos revelam uma incrível paz interior, de quem sabe o que quer. 'Eu quero cantar, viver e até sonhar. Em paz!'.
Abaixo, a entrevista;
Pop - Elis, você mudou bastante, de uns tempos pra cá. Até o cabelo cresceu. Há alguma razão especial?
Elis - Bom, eu acho que a gente não muda. A gente se acrescenta. Esse lance do cabelo mais comprido, por exemplo, foi coisa do meu filho, o João Marcelo. Ele um dia me perguntou: 'Mamãe, por que todas as mães dos meus amiguinhos têm cabelos  e você não?' Já viu, né? Aí, eu tive de tomar uma atitude.
Pop - E essa tranquilidade, Elis, onde você encontrou?
Elis - Há dois anos eu venho tentando botar minha vida em ordem. E consegui. Hoje, eu canto e vivo em paz. O fundamental é que  me sinto amparada por gente que gosta de mim. E isso se reflete no meu trabalho. Eu nem me grilo mais com  as críticas ao meu comportamento. O que importa agora é a Elis profissional, que agora existe mais que nunca!
Pop - E esse novo disco com o Tom Jobim? O que ele representou na sua carreira?
Elis - Olha, esse é um disco cheio de recordações que pertencem à minha adolescência, quando eu achava tudo divino-maravilhoso. Ele inclui músicas de quinze anos atrás, que nem aparecem nas paradas de sucesso. Mas tem também bossa nova e as composições novas de Tom e Chico Buarque. É uma boa seleção. A gente ouviu mais de duzentas músicas, antes de escolher as que iam entrar na gravação.
Pop - Foi bom trabalhar com Tom Jobim?
Elis - Ah, foi sensacional. No começo eu estava meio inibida . Sabe como é, né? Ele é um cara que tem uma tremenda fama! Mas, aos poucos, mil papos foram pintando e eu descobri que ele é uma pessoa maravilhosa, muito sensível, que conhece profundamente a música brasileira, de Villa-Lobos a Pixinguinha. A gente se deu tão bem, que no final da gravação, quando ouvimos a fita, houve uma choradeira geral. Tom chorou. Eu chorei. Choramos juntos, como duas crianças. Foi incrível! Eu senti umas das emoções mais fortes da minha vida.
Pop - Conta como foram os seus dias nos Estados Unidos.
Elis - A gente ficou o tempo todo em Los Angeles, onde estão  os estúdios da MGM. De dia, nós discutíamos sobre as músicas que íamos gravar. Às 7 da noite já estava todo mundo no estúdio para trabalhar até de madrugada. Mas o importante é que gravar naqueles estúdios dá gosto. Quando a gente terminava uma faixa, as luzes se apagavam. Aí ficava todo mundo deitado no tapete, no maior silêncio, ouvindo a fita. Foi um trabalho duro, mas compensador. Normalmente, Tom demora para gravar um disco. O nosso levou vinte dias. Sacou a correria?
Pop - E agora, quais são os seus planos?
Elis - O Roberto Oliveira (seu empresário) está transando uma temporadas nos Estados Unidos, além da apresentação que eu e Tom faremos em setembro, no Teatro Municipal de São Paulo.
Pop - Isso também é reflexo dessa fase boa?
Elis - Claro! Eu hoje faço tudo com calma. E tenho até tempo para sonhar. Afinal, tenho só 29 anos e ainda pretendo sonhar muito. Antes, eu vivia apanhando da vida. Agora não, está tudo legal. Ninguém mais me dá pancada. Acho que esta é a melhor fase da minha vida."

domingo, 6 de setembro de 2015

Paulo Moura Sem Qualquer Apelo Comercial (1980)

O clarinetista Paulo Moura foi um dos músicos mais respeitados do Brasil. Sempre solicitado para participar de gravações de grandes músicos brasileiros, Paulo Moura sempre primou pelo apuro técnico e uma musicalidade nata de quem conhecia profundamente a música e suas nuances. 
Em 1980 a revista Música nº 44 trouxe uma matéria, assinada pela jornalista Cleide Nascimento, intitulada "Paulo Moura sem qualquer apelo comercial', que transcrevo abaixo:
"Participar do show 'Diário de Bordo', na Sala Guiomar Novaes, foi para o clarinetista Paulo Moura uma oportunidade de deixar bem clara sua postura atual: simplesmente fazer música, sem nenhuma preocupação de que contenha qualquer apelo comercial, ou possa ser gravada como garantia de vendagem. Assim, ao abrir o espetáculo, no último 24, Paulo Moura apresentou composições praticamente desconhecidas do público, pois não entra num estúdio de gravação desde 1976, quando fez o elogiado 'Confusão Urbana, Suburbana e Rural'.
Ao lado da atriz  Miriam Pérsia no espetáculo 'Diário de Bordo', Paulo Moura toca algumas de suas composições recentes, além de interpretar músicas de outros autores, como Pixinguinha, Chopin, Baden Powell e Heitor Villa-Lobos. Os eruditos Villa-Lobos e Chopin não devem ser considerados estranhos no repertório selecionado pelo saxofonista.
Foi ele o primeiro artista a gravar, num instrumento de sopro, em 1958, 'Moto Perpetuo', de Paganini. Também surpreendeu muitos críticos, em 1960, ao fazer um disco somente com composições de Radamés Gnatalli. Nem por isso, entretanto, deixou de ser olhado com estranheza pelos 'puristas'. Depois de vinte e cinco anos de carreira não foi compreendido como deveria.
'Não tenho preocupação de fazer sucesso. Talvez seja meu erro'. O gosto pela música Paulo Moura adquiriu em pequeno, observando seu pai, mestre da banda da cidade onde nasceu, São José do Rio Preto. Naquele tempo, ficava horas seguidas admirando o trabalho no coreto da praça principal.
Com dezesseis anos já possuía o controle do clarinete, o primeiro instrumento a colocar na boca. Nessa época, morava no Rio, cidade que nunca mais deixou de considerar a sua. Mesmo quando aos dezessete anos, foi para os Estados Unidos terminar seu curso de música e de lá seguiu viagem para a Europa, passando pela França, Grécia e União Soviética.
A viagem foi muito boa para Paulo Moura, que aproveitou e aprofundou seus estudos de jazz. não que admirasse somente a música negra americana, mas nesse tempo, no Brasil, para um músico se profissionalizar era necessário que dominasse a linguagem jazzística.
 'É gozado, porque à proporção que você estuda jazz, vai achando a música popular brasileira cada vez mais quadrada. Um exemplo? o maxixe tocado por Pixinguinha.'
Mas Paulo Moura não queria saber apenas de jazz, vai achando a música popular brasileira cada vez mais quadrada. Sua formação terminava rompendo esses limites. Principalmente porque no Rio foi morar na Tijuca, perto do Morro do Salgueiro. E também frequentava habitualmente as 'bossas', espécie de festas populares, dos subúrbios cariocas, onde os músicos, geralmente negros, compareciam para tocar e comer. Essa troca de informação musical terminou dando uma outra visão ao artista. A  de que a arte negra não é rebuscada, mas muito objetiva, simples e enxuta. Um aprendizado que passou a colocar em seus discos.
'Se a música negra  costuma irradiar uma energia muito forte, espontânea, a música popular branca, do europeu, é justamente a tentativa de pegar esta energia e trabalhá-la sem nenhum esforço - claro que o resultado deixa a desejar.'
Paulo Moura diz estar preocupado cada vez mais com a busca de uma característica nacional para a música popular, 'que desenvolva a sensibilidade do povo'. A nacionalidade seria aplicada no modo de se interpretar os instrumentos, de composição e mesmo de canto.
Conhecedor do Brasil como é, Moura não se preocupa com o fato de não estar participando da atual efervescência pela qual passa a música popular brasileira.
Por se considerar, dentro deste quadro, um músico privilegiado, assumiu definitivamente a postura dos músicos de jazz, do início do século. Compões somente para mostrar suas músicas em espetáculos, onde as pessoas comparecem para realmente escutar um trabalho que não se preocupa em andar no moda: 'E minha música não dá pra ser dançada'."

quinta-feira, 3 de setembro de 2015

Os 20 Anos de Wodstock - 1989

O festival de Woodstock, que aconteceu em agosto de 1969, tornou-se um marco da contracultura, um acontecimento sem precedentes não só no mundo do rock, mas em termos de comportamento e tantos outros fatores que retratam os anos 60, que estavam terminando. Em 1989, ao se comemorarem os 20 anos do festival, muitas matérias foram feitas em diferentes meios de comunicação - revistas, jornais, tvs, etc.
No domingo 20 de agosto daquele ano, a jornalista Ana Maria Bahiana escreveu um belo artigo sobre o evento, sob um ponto de vista extra-musical, na seção Rio Fanzine, do jornal O Globo. Segue abaixo a transcrição da matéria, intitulada "Saudade tem idade":
"Vi Woodstock pela primeira vez num cinema Rian cercado de choques da PM por todos os lados - todo mundo era uma malta suspeita nos primeiros anos 70. Havia uma profusão de calças boca-de-sino confeccionadas em legítimo tecido carne-seca comprado na rua da Alfândega. As pessoas vaiaram profusamente os trinados de Joan Baez e as discurseiras de John Sebastian, todo mundo ia comprar pipoca e dar uma voltinha no banheiro enquanto os bem-nutridos hippies americanos desfiavam seus depoimentos. Os grandes aplausos iam para o 'See me feel me' do Who, o 'I'm goin' home' do Ten Years After e, é claro, a performance de Jimi Hendrix.
Meses depois, ouvindo o caríssimo álbum-triplo, importado, comprado com mais quatro melômanos, um amigo meu jurava ter ouvido entre os sulcos, alguém gritar, em nítido português, 'Mete bronca, cara'.
Pronto, disse tudo. Agora já podemos passar para as décadas seguintes?
A importância de Woodstock, ou dos anos 60, para mim, está exatamente onde sempre esteve, nessa fotografia polaroide que acabei de arrancar dos bancos abarrotados da minha memória. Naquele instante, em alguma tarde de 1970, 1971, 1972, tudo aquilo deve ter sido importantíssimo para mim, e influenciado diretamente o tipo de escolhas que fiz e que definiram toda a minha vida. Agora, pelo amor de Deus, isso foi há 20 anos, minha gente. A pessoa que eu fui, a pessoa que nós fomos, o país e o mundo que nós experimentamos não existem mais. Será que não dava pra gente largar o cobertor sebento da choradeira nostálgica e tentar avançar, nem digo para o próximo século, mas pelo menos até 1989?
Se existe um único valor que devemos estar recordando dos anos 60 é que  nos anos 60 as pessoas tinham ânsia de futuro. A grande arrancada que vai dos Beatles até o pós-punk de 1982 tem um único grande traço comum: havia que se tocar o passado apenas na medida em que ele pudesse ser mola propulsora para adiante, informação e referência para o tempo presente. Repeti-lo, jamais. Mesmo porque, como os sábios gregos já diziam, é impossível banhar-se duas vezes nas águas do mesmo rio.
Agora eu ligo a TV e, pateticamente, Woodstock está sendo exibido sob o gracioso patrocínio de uma marca de jeans, outra de canetas e uma nova comédia tolinha baseada nos anos 60. Abro jornais e revistas e dou de cara com uma multidão de figuras grisalhas, carecas, barrigudas, enrugadas, anunciando planos de turnê e repertório exatamente idênticos aos que tocavam quando tinha cabelo, músculos e caras bonitas. Pior que isso, cada última novidade que a mídia anuncia com fanfarras - pessoas cronologicamente  jovens, pelo menos - soa, em meus cansados ouvidos, exatamente como uma versão requentada daqueles idos sons: psicodelismo de segunda mão, glam de segunda mão, até discoteca de segunda mão já me 'inventaram' como o cúmulo do píncaro da modernidade.
Jefferson Airplane
Sou só eu ou estamos todos sofrendo da paralisia aguda, com doentios sintomas nostálgicos?
Por que temos, hoje, pelo menos três gerações vivendo e operando sob o signo da saudade compulsiva é um mistério para mim. Às vésperas do terceiro milênio, tudo o que eu escuto na área tanto da produção quanto da análise da produção pop, é uma choradeira mal disfarçada de quem tem ou saudade dos anos 60, ou dos 70 ou, por incrível que pareça, dos 80 - daqueles primeiros 80, quando a escola era risonha e franca e a revolução Clash, Joy Division, Pretenders etc, parecia novo, viável.
E a nostalgia, além de paralisante, é inútil. Não apenas ela vai, sem dó nem piedade bloquear completamente qualquer esforço para se ir adiante, como em sua premissa básica está o fato que não se pode viver de novo o que já foi vivido. Nostalgia não é trazer o passado para o presente: ninguém traz o passado para o presente. O que traz é o veneno das coisas já vividas, experimentadas, encerradas, que não podem ser mudadas, que estão definitivamente lá, no passado, e jamais aqui, no presente.
Joe Cocker
Parte desse delírio coletivo de saudade tem a ver, eu suspeito, com  a compulsão que se instalou, nestas últimas décadas, de 'ser jovem'. Estas três chorosas gerações forjaram-se sob a promessa de 'ser jovem para sempre' e 'morrer antes de envelhecer'. As duas coisas, é claro, são exceções e não regra, e o único jeito de ser realmente jovem para sempre é morrer antes de envelhecer, e ninguém, de fato, quer isso, quer? Mas viver é aceitar o ônus da mudança, da transformação, da maturidade, do envelhecimento; que são mudanças e transformações em si mesmas. Agarrar-se a uma juventude que se vive uma vez só, na esperança de que isso detenha a marcha natural da transformação, que é a maturidade, é tornar-se o pior tipo de criatura humana: a pessoa cem por cento estagnada, esclerosada, pateticamente abraçada a seu 'certificado de juventude' ('Ah, os anos 60 é que eram...'; 'ah, o punk é que era...') desatenta ao fato de que seu corpo, e seu mundo estão mudando à sua volta.
Richie Havens
O mundo que se desenha na última década dos anos 90 me parece absolutamente fascinante, e eu gostaria de guardá-lo com o mesmo tipo de atitude da geração mais jovem e mais ousada que este século conheceu - a geração dos anos 10 e 20, que produziu esta garotada esperta: Picasso, Cocteau, Miró, Casals, Einstein, Stravinsky, Buñuel, Henry Miller, Anais Nin, Amelia Earhrdt. Os próprios conceitos de música estão mudando, com a irremediável invasão de samplers, midis e sequenciadores, exigindo uma nova mente analítica, novos ouvidos, novos conceitos de valores como 'desempenho' e 'gosto'. Já estamos ouvindo 'música' que realmente não está lá, no sentido tradicional da palavra, assim como estamos vendo imagens que, sampleadas da realidade, não são a realidade ( como a sequência de seis minutos que a Industrial Light and Magic criou para o filme "The Abyss').
Jimi Hendrix
Muito em breve, o desafio do meio ambiente será um tipo de escolha e de reflexão que ninguém poderá evitar; a ciência está alargando cada vez mais os limites entre 'vida' e 'morte'; a União Soviética está se transformando de 'bandido' em 'mocinho'; as relações, inclusive culturais, entre o Primeiro e o Terceiro Mundo estão cada vez mais complexas e perigosas - países inteiros estão falando línguas que não existiam há 50 anos; como o híbrido de inglês e espanhol que se escuta em várias cidades americanas hoje. E nós não sabemos o que existe no fundo das falhas geológicas oceânicas.
Ufa. Para começar está bom, não está? Que tal, agora, acertar o relógio, mudar as páginas do calendário e, de uma vez por todas, despertar?"