Palavras Domesticadas

Palavras Domesticadas

sexta-feira, 16 de setembro de 2016

Hermeto Pascoal: "Sou Músico, Não Vendedor de Disco" - Revista Pop (1975)

Em sua edição nº 76, de outubro de 1975, a revista Pop trazia uma entrevista com Hermeto Pascoal. Nela Hermeto fala sobre gravadoras, o mercado musical da época, seu prestígio fora do Brasil, etc. Na entrevista, o músico se mostra bastante insatisfeito com as condições impostas pelas gravadoras para lançar seus discos, e revela sua pouca disposição para lançar discos na época. Felizmente, já para o final daquela década, e a partir dos anos 80, Hermeto, que até então quase não gravava, passou a lançar discos de alta qualidade, no Brasil e exterior. Segue a matéria;
"Hermeto Pascoal é um dos poucos músicos brasileiros realmente respeitados no exterior. Há uns dois meses, convidado a participar de um LP da também brasileira Flora Purim, nos Estados Unidos, ele foi, tocou, fez arranjos e acabou incluindo músicas suas nos discos de outros músicos de vanguarda, que estavam por lá. E quando quiseram segurá-lo para gravar um LP seu, Hermeto disse que vinha ao Brasil e voltava logo. Mentira: o genial Hermeto não quer gravar mais. E aqui explica porque.
Pop - Como é que está o movimento da música brasileira nos Estados Unidos, com você, Airto, Flora Purim, Gismonti e  outros?
Hermeto - O trabalho lá... eu acho que a música está cada vez mais se unindo mais. Não só a brasileira, mas a de outros países que também têm muitos ritmos. Você não vê mais aquele negócio de ser só um tipo de música, entende? A música está se juntando. Há influências espanholas, brasileiras, japonesas... E isto está caminhando para um negócio mais universal. Por exemplo: agora você vê um garoto de 18, 20 anos tocando com um cara de 50, 60 anos de idade. E estão se entendendo. Antigamente não era assim. Então, é também por isso que eu acho que a música está cada vez se unindo mais.
Pop - E há também um respeito recíproco entre os caras de 18 e 60 anos.
Hermeto - Há um respeito de ambas as partes. Antigamente, o garoto achava que o cara de 60 anos estava por fora, e vice-versa. Agora não, porque o garoto já estuda muito. E eu estou falando isso não em termos só de Estados Unidos, não - em termos de Brasil também. Você pode ver que tem muitos garotos por aí que estão tocando muito bem. Acontece que eles estudaram.
Pop - É difícil conquistar respeito e prestígio nos Estados Unidos?
Hermeto -  Não. Lá é até mais fácil do que aqui.
Pop - Por quê? Qual é a dificuldade aqui?
Hermeto - Olha, eu já me conformei. Não quero mais do que o que está acontecendo. Então não ligo. Pra mim, ter um show pra daqui a um mês já está tudo bem. Se não tiver, estou tocando, estou ensaiando, estou escrevendo. Então, prefiro ficar aqui mesmo e fazer uma ponte aérea para os Estados Unidos. Quando tiver alguma coisa para fazer, vou lá, gravo e venho embora.
Pop- Mas você não desenvolve um trabalho contínuo nem lá nem aqui. Não grava com regularidade o seu trabalho.
Hermeto - Olha, era para eu fazer um disco antes de voltar para cá. Mas como eu já estou com muita raiva, estou chateado com esse negócio de gravação, disco... decidi não gravar mais.
Pop - Aqui ou lá?
Hermeto - Nem aqui nem lá. O negócio do disco é o seguinte: aqui no Brasil, a gravadora já pensa logo em vender disco. Eu digo pra eles que eu não sou vendedor, eu não sou o cara que vai oferecer o disco pra vender. Quem tem obrigação de vender são os caras que trabalham na gravadora. Eu tenho que gravar o que eu sei, o que eu sinto. Então eles dizem para mim: 'Olha, nós adoramos o seu trabalho, seu trabalho é muito bom, mas não podemos gastar muito. Você quer orquestra, muitos músicos...' Então, o problema de eu não gravar aqui é que nós não entramos em acordo: eu não entro na dos caras e os caras não entram na minha. Então fica um problema. Eles querem que antes de fazer um disco eu dê toda a relação do que eu vou usar, para que eles façam um levantamento do preço. Mas eu não gosto disso, porque não sei o que vai acontecer. Quero começar o disco e ir fazendo o que acho que devo fazer. Por exemplo: às vezes tem lugares em que eu quero colocar vinte músicos; em outros quero botar um só, ou nenhum, mas eles ficam com medo. E eu acho também que outro problema é que eles pensam que a música não é comercial. Então, eu já estou mudando. Mesmo antes de sair daqui eu já estava com essa ideia. Analisei muito bem a minha música e acho que ela é uma espécie de peça de teatro, um negócio mais para o teatro... Não dependo muito nem vou depender de gravação.
Pop - E nos Estados Unidos é a mesma coisa?
Hermeto- Bem, agora que fui participar do novo LP  da Flora, não gostei muito de Los Angeles. Achei muito parado, muito parecido com o Brasil, na maneira de agir dos caras. O movimento musical está parado, acomodado, tem muita gente a fim de ficar rica...
Pop - Na verdade, é o mesmo processo industrial, não é?
Hermeto - É, mas acontece que lá os caras querem que eu grave. Se quisesse, teria gravado antes de voltar, mas eu já estava cheio, chateado mesmo. Queria vir embora mesmo e não quis ficar para gravar. E era na mesma gravadora em que a Flora gravou. Isso é bom, porque eu não quero gravar em gravadora especializada em jazz, de jeito nenhum. A música é uma só, e não quero nunca que digam que eu sou um músico de jazz, que eu sou um músico de não sei o que, disso ou daquilo. Quero apenas continuar, quero ser um músico, um cara universal. O cara que toca todo tipo de música e faz música, só. No disco da Flora, 90% é rock, eu larguei o pau, peguei a flauta e não quis nem saber. Toquei rock, toquei tudo lá, o que apareceu eu toquei. Eu não tenho preconceito sobre música. Pra mim, se a música for boa, está tudo bem.
Pop - Já que não há possibilidade de transar com  as gravadoras aqui, você não teria interesse em produzir seu próprio disco?
Hermeto - Interesse, eu tenho, mas teria que ter dinheiro para gastar, pagar estúdio, músicos. E eu também não tenho grana. Mas se produzisse um disco meu, aí eles iam ver como é que vende. Porque o disco que eu gravei na Phonogram vendeu, vendeu mais de 60.000 cópias. E eu acho que o público que tenho é quase tudo universitário, e eles compram disco. Eles não compram agora porque não tem nada de novo. E ficam perguntando pra mim mesmo quando é que vai sair outro disco meu.
Pop - Um cara como o Egberto Gismonti - agora ele fez um disco, com música também de vanguarda, e até que está vendendo bem. Ele também vai para os Estados Unidos. Você acha que ele tem chances lá?
Hermeto - Tem, tem porque ele é um arranjador. Mas eu falei pra ele: tem que ficar lá. Porque, como já disse, o americano quer as coisas para ele. Eu dei um drible neles. No segundo disco, vim para ficar quinze dias, eles me deram passagem de ida e volta, mas fiquei quase três anos. A passagem já era. Quando fui, um dos caras perguntou: 'E desta vez?' Respondi: 'Desta vez eu vim mesmo, vou ficar no Brasil no máximo um mês, então volto para morar aqui'. Mentira, vou nada! Não vou morar lá nunca.
Pop - Por quê? Só por questões, digamos, sentimentais?
Hermeto - Não. Porque, no momento, a coisa mais importante do mundo, o centro da música, está aqui no Brasil. Coisas que a gente  já fazia aqui, há mais de dez anos, os caras estão fazendo lá agora. A música lá está ruim principalmente em Los Angeles. E os caras estão vindo pra cá, tem muita gente vindo porque aqui já é há muito tempo o centro. No futuro vai vir todo mundo pra cá, isso aqui vai ficar uma maravilha. Antes era só negócio de escola de samba - que eu respeito, é claro -, mas agora a coisa tá começando a se unir.
Pop - Os próprios músicos de rock que têm vindo ao Brasil, todos eles muito respeitados, chegam aqui e desbundam, descobrem novos caminhos para a música deles, que parece que está em crise.
Hermeto - Está tudo em crise lá. A música lá não está com nada. Sabe quando o cara está pendurado num cabo de aço, no meio do mar, e aí o cabo quebra no meio? O cara fica pendurado num lado só, pedindo pelo amor de Deus para alguém tirar ele dali. A música lá está nessa base. Nós aqui não, nós temos muitos caminhos. Tem que acabar é o preconceito do músico que faz um determinado tipo de música, e de achar que o outro não é legal. Tem que misturar, e todo mundo estudar e aprender a tocar bem.
Pop - Você tem acompanhado o trabalho da nova geração aqui? O pessoal do rock...
Hermeto - Eu adoro rock. Mas o rock aqui no Brasil não tá com nada. Ninguém toca legal. Porque só vendo os caras que tocam lá no exterior para acreditar... Não é que a moçada tenha que imitar. Eu falo é do nível do instrumentista. Aqui, só podem tocar bem rock os músicos que desenvolvem mais os instrumentos.  Os outros precisam ver o pessoal de fora, sacar o nível dos instrumentistas. Porque um bom músico de rock lá não toca só rock - ele toca tudo. Mas tem que ter cuidado pra não imitar. Porque tem músico aí que ouve um disco e sai tocando igualzinho. Isso não tem valor.
Pop - Só um exemplo. Tem muita gente aí que tenta imitar o grupo Yes. Daí, o tecladista do Yes veio ao Brasil e acabou fazendo o contrário: gravou uma fita com os nossos ritmos e está trabalhando em cima dela, colocando teclados em cima para o seu disco como solista. Que acha disso?
Hermeto - É o tal negócio: eu duvido que algum músico brasileiro vá lá e diga: 'Eu quero uns bateristas ingleses só para gravar um negócio aqui, que eu vou levar pra não sei onde...' - e fique tudo bem. Mas eles fazem. Eu acho que o próprio governo devia cuidar disso, porque é quase a mesma coisa que um cara tirar peixe das águas brasileiras. Não é proibido? Então por que na música um cara pode chegar, pegar e carregar? E o pior é que depois quem faz sucesso é ele, o disco é dele, e nós ficamos num plano secundário. Por isso é que, quando gravo lá, eu não vou logo abrindo o jogo, não. Eu ando conforme o barco, sem me deixar enrolar... "

sexta-feira, 9 de setembro de 2016

John Coltrane Lança A Love Supreme - 1965

John Coltrane (1926-1967), foi um dos maiores saxofonistas de jazz. Músico refinado e dono de grande técnica, Coltrane não tardou a se tornar um músico reconhecido e dos mais requisitados no circuito de jazz. Deixou uma discografia brilhante, como A Love Supreme, lançado em fevereiro de 1965, e sempre citado entre as grandes obras-primas do jazz. O livro "1965 - O Ano Mais Revolucionário da Música" ( Andrew Grant Jackson - 2015 - Leya) destaca o disco entre as grandes obras lançadas naquele ano. Segue abaixo o texto:
"Quando o saxofonista John Coltrane voltou a se viciar em heroína, em 1957, Miles Davis o demitiu do primeiro Great Quintet, a banda de jazz norte-americana formada por Davis dois anos antes. Coltrane tocou com o pianista Thelonius Monk por um ano, depois teve uma epifania espiritual e ficou limpo. Ele não queria acabar nas chamas como o pioneiro do sax do bebop Charlie Parker, morto aos 34 anos em 1955, vítima de cirrose avançada e ataque cardíaco. Foi com Monk que Coltrane inventou seu estilo de tocar, conhecido como 'sheets of sound' (assim chamado pelo crítico Ira Gitler, da Down Beat, em 1958). Coltrane tocava arpejos e temas que mudavam muito rápido da nota mais baixa para a mais alta, usava vários acordes ao mesmo tempo, depois uma nota em cada um. Era um estilo tão novo que até os franceses o vaiaram e, quando ele tornou a se juntar a Davis em turnê pelo país em 1959.
Coltrane passava o dia inteiro ensaiando, tocando escalas sem parar em seu quarto, depois praticava ao vivo por horas, alcançando um estado de êxtase. Ele chegava a tocar com o próprio quarteto até 45 semanas por ano, seis noites por semana, de três a quatro sets por noite, atravessando os Estados Unidos em uma van Chrysler. Ele começou a estudar diversas formas de música de várias partes do mundo - compositores como Stravinsky e Debussy, ragas indianos, ritmos africanos - e disso tirou elementos para as suas composições.
Após o nascimento de seu filho, Trane, como era conhecido, tirou uma folga da turnê e passou cinco dias em seu quarto meditando. Lá compôs A Love Supreme, uma suíte dividida em quatro movimentos que simbolizavam o caminho para alcançar a iluminação espiritual; 'Acknowledgement' (reconhecer o desejo de iluminação), 'Resolution' (decidir alcançá-la), 'Persuance' (lutar por isso) e 'Psalm' (alcançá-la de fato).
Em 9 de dezembro, com sua banda (McCoy Tyner no piano, Jimmy Garrison no baixo acústico e Elvin Jones na bateria), ele gravou o álbum em uma sessão que foi das 20h à meia-noite, no estúdio do engenheiro Rudy van Gelder, em Nova Jersey. O local era um pouco parecido com uma igreja, com teto de mais de dez metros formado por dois grandes arcos de madeira e paredes com tijolos aparentes. A majestade do álbum deve muito ao equilíbrio espacial do som de Gelder: os músicos tocavam próximos, o baterista não ficava separado em uma área isolada acusticamente e a iluminação era amena para criar um clima.
A banda não sabia o que Coltrane planejava para eles fazerem, mas tocados se comunicavam de forma quase telepática depois de anos tocando juntos ao vivo. Quando um raro erro era cometido, Coltrane pedia desculpas com delicadeza e eles recomeçavam.
'Acknowledgement' abre com a batida benevolente de um gongo e o toque delicado de pratos, depois o baixo entra com um tema de quatro notas que ecoam as palavras 'a love supreme'. Com cinco minutos de música, Coltrane toca 37 vezes o tema com seus sax em todos os doze acordes, depois o entoa como se fosse um mantra e, pela primeira vez, sua voz é ouvida em disco.
Para a peça final, 'Psalm', os tímpanos e pratos de Jones evocam a grandiosidade das ondas do oceano quebrando nas montanhas, enquanto o sax de Trane soa pelo espaço. Coltrane 'toca' as palavras de um poema de 69 versos que escreveu (e incluiu no texto de capa), constituindo um chamado para buscar Deus todos os dias e pedir que Ele ajude a 'pacificar nossos medos e fraquezas' (vídeos feitos por fãs no You Tube tocam música enquanto exibem os versos do poema, e Coltrane segue as palavras de forma quase exata). Ele agradece e enaltece as maravilhas do universo. 'One thought can produce millions of vibrations' (Um pensamento pode produzir milhões de vibrações), escreve/canta ele. 'Tought waves, heat waves...and they all go back to Gold... and He cleanses all (Ondas de pensamento, ondas de calor... e todas voltam para Deus... e Ele limpa tudo). O movimento chega ao clímax com 'Elation. Elegance. Exaltation. All from God. Thank you God. Amen' (Elevação. Elegância. Exaltação. Tudo vem de Deus. Obrigado, Deus. Amém).
Sobre em que tipo de Deus Coltrane acreditava, no texto de capa de seu álbum Meditations, ele escreve: 'Acredito em todas as religiões.' Seus dois avôs eram pastores da igreja African Methodist Episcopal Zion, e ele estudou a Bíblia. Sua primeira esposa, Juanita, converteu-se ao Islã, o que o levou a entender melhor o Corão. Ele também estudou o Bhagavad Gita hindu, o Livro Tibetano dos Mortos budista, Zen, Cabala, filosofia grega e astrologia.
A gravadora Impulse! Records lançou o álbum de 33 minutos em fevereiro, que se tornou a obra mais popular de Coltrane. Normalmente, seus LPs vendiam cerca de trinta mil cópias, mas esse alcançou a marca de meio milhão. Phil Lesh, do Grateful Dead, lembrou que com frequência ele ouvia o disco pelas janelas das casas enquanto caminhava por Haight-Ashbury. Coltrane, porém, só tocou A Love Supreme ao vivo uma vez, no Festival Mondial du Jazz Antibes, na França, em 26 de julho. Seu palco habitual eram os clubes noturnos, onde o público estava bêbado e distraído, a atmosfera inadequada para seu hino de devoção."


quinta-feira, 8 de setembro de 2016

Os 50 Anos de Caetano Veloso - Revista Visão (1992) - 3ª Parte

"Vitalidade. Esta talvez seja a palavra mágica que define a forma como cada um desses músicos chega aos 50 anos. No caso de Gilberto Gil, que aniversariou no dia 26 de junho, esta energia se traduz nos quase 150 shows que faz no Brasil e no exterior todos os anos e nos discos que grava a cada triênio. Parabolicamará, é prova de um talento que foi se apurando nesse meio século de vida. Ele mesmo é bem modesto ao falar sobre o seu trabalho. 'Atualmente, acho que estou fraco em melodia, médio em ritmo e muito sabido em harmonia', define-se Gil.
Seu disco contradiz tanta modéstia. Parabolicamará mistura Xuxa com Dorival Caymmi, canções antigas suas com outras semifolclóricas, num estilo que tem como constante a capacidade de Gil de surpreender. Seus 50 anos foram comemorados com um singelo jantar em família (seus sete filhos, dois netos, sua atual mulher, Flora, e as três ex, Belinha, Nana Caymmi e Sandra) em casa mesmo. Na época, Gil até criticou a lembrança de data tão redonda: 'A cronologia é uma forma de controle racial.' Mas reconheceu que o tempo o fez mais emotivo, chorão mesmo. Se houve mudança, foi para melhor.
Gil prefere não fazer um balanço da sua geração nem fazer das suas desistências marcas de um fracasso de geração. A política, ele admite que tenha mesmo sido um desses fiascos. 'Na conjuntura brasileira atual, ela é uma arte marcial, que se pauta pela guerra, pela eliminação dos adversários, e o meu temperamento é mais diplomático, mais inclinado à convivência com os contrários', observa. E conclui: 'Talvez a minha geração não seja guerreira, talvez tenha vindo exatamente para depor as armas, para fazer do fracasso uma vitória a longo prazo, anunciando que as verdadeiras mudanças não se fazem através dos partidos e da política, mas sim através das conquistas espirituais'.
Gil já encerrou as comemorações de seu aniversário. Quem está cuidando disso é Almir Chediak, que prepara para setembro o songbook do compositor, que terá 135 músicas divididas em dois livros, uma entrevista com o homenageado, textos de Caetano Veloso, Jorge Mautner, Antonio Rizério e Muniz Sodré, além de um CD com 30 músicas escolhidas do repertório de Gil e gravadas por quase toda a constelação da música popular brasileira. Vai ser um trabalho nos moldes de Noel', destaca Chediak.
Se Gil passou - e está passando - seu cinquentenário praticamente em branco e Caetano Veloso foge de tanta comemoração, o mesmo não parece ocorrer com o outro cinquentão, Milton Nascimento, que chega ao meio século no dia 26 de  outubro cercado de mistério. Ativo ele está, como todos os outros, pois lançou  um disco, O Planeta Blue na Estrada do Sol, no início do ano; concorreu ao Grammy com o disco anterior, Txai!; fez uma turnê pela Europa e ainda encontrou tempo para revisar sua Missa dos Quilombos e apresentá-la, reintitulada como Missa da América Negra, na Exposição Mundial de Sevilha e, no último fim de semana, em Belo Horizonte.
 A timidez não impede que Milton seja festejado como um dos maiores músicos brasileiros em todo o mundo. Até o início deste ano, Milton era um dos principais contratados da Sony Music, que se encarregou de arremessá-lo definitivamente no mercado mundial. Uma tentativa que já vinha sendo feita desde a década de 70. 'A música brasileira pode conquistar o mercado internacional e tem caráter universal', diz. Ele, no entanto, não quer saber, tão cedo, de assumir um novo compromisso com a indústria fonográfica nacional. 'Eles só querem saber de trabalhos comerciais, não se preocupam com a qualidade. Eu coloco a vida no meu trabalho e, só por isso, já mereço respeito', desabafa.
O caçula dessa turma é Paulinho da Viola que, mesmo com a cabeça completamente grisalha, lembra aquele jovem tímido que compôs um dos hinos da Portela, 'Foi um Rio que Passou em Minha Vida', em 1970. Quando o assunto é o seu aniversário no dia 12 de novembro, e os seus 50 anos, ele faz rodeios: 'Não estou sentindo nada de especial, não tem significado para mim, não tem essa badalação. Na verdade, não sei falar sobre isso'. Para Paulinho, a idade não altera em nada sua vida, levada na maior tranquilidade em seu apartamento na Barra da Tijuca, ao lado de quatro de seus sete filhos, que já lhe deram duas netas. E, mesmo quando se pergunta se ele corresponde à imagem que fazia, há 30 anos, de um avô de 50 anos, o sambista abre um sorriso e responde; 'Nunca tive uma imagem fixa dessa ou daquela idade. Agora, se você me pergunta se eu me olho no espelho e vejo um velhinho que só brinca com os netos e não faz mais nada, eu te digo que não me vejo assim, não'.
Bastava ter assistido ao show que Paulinho fez no Rio de Janeiro, há 20 dias, no Circo Voador, lotado, para confirmar o que ele diz. Se os cabelos estão grisalhos, o rosto é luminoso e a timidez passa mais como uma elegância, um jeito cool de cantar seus sambas e cativar uma plateia jovem como a que costuma frequentar o espaço sob os arcos da Lapa. E quem o visse, nem perceberia a confessada preocupação ao entrar no palco. 'Por questões particulares', diz ele, 'eu passei seis meses sem me apresentar. Por isso, antes do show, eu fiquei meio apreensivo. Mas, no palco, tudo voltou ao que era antes.'
Paulinho não fala sequer de arrependimentos. Ele diz apenas que, ao ouvir algumas músicas que fez há mais tempo, pensa: 'Se eu soubesse certas coisas, não teria feito assim. Seria de outra forma.' E sua gentileza se estende ao falar da nova geração: 'Fica difícil comparar, porque são épocas diferentes. Tenho visto muita gente dizer que agora todo mundo é 'mauricinho', de falar com saudade de outros tempos, que tudo era melhor. Mas eu acho que o pessoal mais novo encontrou outra realidade, um país mais deteriorado e teve mais dificuldades. Assim, fica difícil avaliar, porque não houve um processo natural. O que a gente fazia era beber na fonte do passado para criar. Hoje, há todo um grupo voltado para fora do Brasil. O pessoal de hoje cria, mas de um jeito diferente da gente', diz.
Paulinho da Viola é o único que já tem data marcada para a festa. Na verdade, acontecerá dois dias antes, em 10 de novembro, quando ele vai receber o Prêmio Shell de Música. Uma homenagem que é prestada todos os anos a um compositor e já recebida pelos outros três cinquentões deste ano, além de Tom Jobim, Braguinha, Dorival Caymmi e Martinho da Vila. O sambista fará um show no Canecão, receberá U$ 10 mil e aproveitará a ocasião para lançar o disco que ficou devendo ano passado para a gravadora BMG-Ariola.
Se os 50 anos são recebidos de tão bom grado, Paulinho dá a receita citando seu pai, o violonista César Farias, que foi do conjunto Época de Ouro e até hoje o acompanha nos shows. 'Meu pai, que já é bisavô, joga bola na praia até hoje. Por isso, fazer 50 anos não me assusta', ensina. E não são apenas estes os pontos comuns entre os cinquentões. Nenhum deles se vê como celebridade, mas é Caetano Veloso quem sintetiza a melhor resposta: 'Eu posso ter sonhado ser célebre, ou achado que ia ser uma pessoa célebre quando era criança. Até me imaginava assim com uma barba grande feito um filósofo. Eu era pequeno e achava aquilo. Mas a verdade é que eu não sinto uma atração real por viver uma situação que não tenha a ver com a vivência cotidiana das pessoas que eu vejo hoje ou do período que a minha imaginação pode cobrir da humanidade. Não tenho vontade de descobrir nada que não possa ser compartilhado pelos outros. A impressão que eu tenho é de que todo mundo pode entender tudo.' "

quarta-feira, 7 de setembro de 2016

Os 50 Anos de Caetano Veloso - Revista Visão (1992) - 2ª Parte

"A falta de comemoração pode ser compensada pelos seus 30 discos que permanecem em catálogo, especialmente pelo mais recente, Circuladô, gravado em Nova York com produção de Arto Lindsay, que está entre os melhores de sua carreira. Suas músicas, mesmo as mais antigas, fazem sucesso. Melhor prova disso é 'Alegria, Alegria', que o lançou num festival de música da TV Record em 1967, e hoje é tema da minissérie Anos Rebeldes, em exibição na Rede Globo.
O curioso em Caetano Veloso é que, embora seus discos não tenham sido grandes sucessos de vendagem - ele só alcançou as 100 mil cópias do disco de ouro a partir de Velô, em 1984 -, suas canções nunca deixaram de cair no gosto popular. Ele mesmo se surpreende: 'Aquele disco Muito, por exemplo, tinha as faixas 'Terra' e 'Sampa'. O disco não vendeu nada, a crítica esculhambou e todo mundo sabe cantar as músicas. 'Terra' nunca tocou no rádio, porque diziam que era muito longa. E, no entanto, todo mundo canta'. Ele poderia citar inúmeras outras músicas e outros discos e, mesmo quando não toca, canta ou compõe, é capaz de provocar frissons. Há algum tempo, surpreendia-se com a repercussão de suas declarações. 'Não vendo tanto disco para que ouçam com tanta atenção o que eu falo', dizia na época do lançamento de Estrangeiro, seu disco anterior.
A disposição tranquila em correr riscos, desafiar dogmas, empurrar delicadamente a inteligência para o terreno da inspiração confere à personalidade de Caetano Veloso um enquadramento como fora de série.  Ele inverte alguns conceitos intelectuais. Ao contrário de ser um exemplo de como as conquistas da modernidade vieram a se banalizar na cultura de massas, ele é a comprovação da assimilação profunda do que os grandes artistas de vanguarda fizeram. Basta um olhar atento no comportamento, na moda, na linguagem. Caetano Veloso não criou rótulos nem definiu modismos. Fez música e poesia antenadas com seu tempo. E, mesmo assim,  soube criar obras atemporais. 'Por mais sofisticada que a música popular seja, ela trabalha com os restos do que a música já fez, com lixo musical do passado e do presente. De repente, uma coisa que é feita numa área superbanal termina informando áreas mais densas.  O interesse musical intelectualmente mais exigente pode buscar no banal o que os artistas pop procuram nos quadrinhos, nas latas de sopa para aumentar o repertório das artes sérias', observa.
Caetano assume tranquilamente os seus 50 anos, deixando os cabelos grisalhos, mas não se furtando a uma nudez de segundos no clip de Fora da Ordem. Contradição? Só para quem ainda não se acostumou com suas surpresas nesses mais de 25 anos de careira em que ele eletrificou a música brasileira, cantou e compôs canções clássicas, elogiou e impulsionou carreiras de iniciantes - quem não se lembra dos elogios rasgados ao Barão Vermelho, ainda com Cazuza, há dez anos? Acompanhou atento o trabalho de outros músicos, fez cinema como ator (Nem tudo é verdade, de Rogério Sganzerla, e Tabu, de Júlio Bressane) e diretor (Cinema falado), brigou por um comportamento mais livre, onde não faltaram drogas e bissexualidade, e pela liberdade de expressão. Sempre através da música e da poesia. 'Eu nunca me aproximei de uma maneira ambiciosa da poesia. A poesia é uma coisa que acena com uma grandeza que eu não sei se tive o impulso e a coragem de encarar. Porque, ao ler poesia dos poetas, ao ouvir a poesia dos poetas, eu reencontro essa capacidade de ser livre neles, assegura.
Nana Caymmi em 1976
 A primeira a entrar no clube dos cinquentões foi Nana Caymmi, no dia 29 de abril passado. 'Não vejo nenhuma diferença', diz. 'Se minha vida tivesse sido muito fácil, talvez eu até sentisse, mas eu continuo trabalhando, cantando, cuidando de minha casa e de meus filhos, fazendo os meus shows sempre com muito público. 'Filha única de Dorival Caymmi (*), Nana primeiro foi dona de casa e teve três filhos, ainda na década de 60, de seu primeiro casamento com um médico venezuelano. Só em 1966, aos 25 anos, começou a sua carreira como cantora.
'E desde então não tenho parado', acrescenta. Tanto que a comemoração de seu aniversário teve, no lugar de festa, uma temporada no Jazzmania carioca. Nana garante que não para para pensar no que foi sua vida. 'Não tive tempo. Nunca planejei nada, nunca almejei uma carreira assim ou assado, nem segui modismos. sempre quis cantar o que é bom e consegui', observa.
Aos 50 anos, Nana até ri de quem lhe pergunta sobre uma possível parada, ou aposentadoria, para usar uma palavra menos gentil. 'Meu público é cada vez mais jovem e eu gosto assim, quanto mais jovem melhor', diz. O cinquentenário trouxe para Nana apenas a tranquilidade de que tudo se resolve. 'Se aos 26 anos eu tivesse ficado sem gravadora, eu me desesperaria, mas hoje eu sei que não é um problema muito grande. Sem gravadora, eu tenho que investir sozinha em mim, mas isso não quer dizer que eu deixe de cantar, de gravar e de vender'. Tanto que já tem um disco com os compositores que fazem 50 anos.
 O projeto ainda está engrenando, mas tem tudo para acontecer até o final do ano. A proposta foi da própria Nana a Roberto Menescal. 'É uma data legal de comemorar', diz ele. 'E a Nana seria o elo entre os compositores, que cantarão com ela. Difícil vai ser escolher o repertório para um só disco, pois todos eles têm uma obra enorme e importante e mostram hoje a mesma vitalidade de quando começaram', completa. "

(*) Quem escreveu com certeza quis dizer que Nana é a única mulher dos três filhos de Caymmi. Da forma como foi escrito dá a entender que foi ignorada a existência dos irmãos Dori e Danilo

terça-feira, 6 de setembro de 2016

Os 50 Anos de Caetano Veloso - Revista Visão (1992) - 1ª Parte

Em agosto de 1992 Caetano Veloso completava 50 anos. A data não poderia passar em branco, e a imprensa brasileira registrou o acontecimento com a importância que Caetano representa para as artes e cultura brasileiras. A revista Visão naquela semana de agosto trouxe uma matéria de capa com o músico baiano, ostentando a frase "O iluminado Caetano". Em seu edital da semana a revista destacava: "(...) Visão traz como reportagem de capa a apaixonante figura de um cinquentão, Caetano Veloso. Com ele, faz 50 anos uma geração luminosa e um lote de esperanças. Geração e esperanças íntegras, apesar de acompanharem os paradoxos, os excessos das últimas décadas. Não é por acaso que umas das canções mais repetidas do show e do disco Circuladô é Fora de Ordem, que tem como refrão o sentimento muito brasileiro de se flagrar estrangeiro no próprio solo: 'Alguma coisa está fora da ordem/ fora da nova ordem mundial.' É Caetano, espelho e reflexo, quem explica ao país: 'Há uma dor e uma grande alegria em que nós estejamos fora da nova ordem mundial. Nós somos diferentes.'
A matéria, de seis páginas, é assinada por Beatriz Coelho Silva e Dilson Osugi, e  segue abaixo a primeira parte;
"Totalmente demais. Caetano Veloso pertence a uma geração que despertou pra as profundas preocupações filosóficas, sociais, espirituais e estéticas no final de década de 50. Utilizou a sua obra para traduzir esse pensamento, extravasou os limites da música e da poesia e transformou a música popular brasileira nos últimos 25 anos. Entrou em todas as estruturas e saiu delas sem perder o rumo. Experimentou e misturou. Ao completar 50 anos, nesta sexta-feira, 7, Caetano Emanuel Viana Teles Veloso é o artista brasileiro mais moderno, brilhante e criativo do nosso tempo. E, num Brasil mergulhado numa crise ética e moral, ele prefere falar de sentimentos esquecidos, como o orgulho de ser brasileiro: 'Há uma dor e uma grande alegria em que nós estejamos fora da nova ordem mundial. Nós somos diferentes e dessa diferença podemos fazer uma coisa melhor, mais interessante do que os americanos fizeram até aqui. Criamos um estilo nacional e uma realidade racial diferentes'.
Mostra que não tem nenhuma vocação para a nostalgia. 'Quando a gente faz alguma coisa que caminha junto com o tempo, a gente se sente apenas  contemporâneo da história vivida', observa. Essa sensação também é compartilhada por outros quatro músicos que estão chegando aos 50 anos, cheios de esperança e muito enxutos. Completamente diferente da imagem tradicional de um cinquentão. A bem da verdade, Caetano, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Nana Caymmi e Paulinho da Viola têm em comum não só o ano de nascimento, mas também o fato de chegarem ao meio século de idade sem notar nenhum salto brusco em suas vidas. 
Por isso, em cima da hora, Caetano desistiu das comemorações. No início da semana, junto com  a mulher Paula Lavigne e o filho Zeca, ele embarcou para Nova York. E deixou a festa para o público. Muita coisa foi prometida para o seu aniversário. Pelo menos três livros: Caetano - esse  cara, do jornalista pernambucano Heber Fonseca, reunindo suas entrevistas à imprensa; Caetano, por que não?, um ensaio biográfico dos professores Ivo Luchesi e Gilda Diegues; e uma terceira biografia a ser escrita por Rodrigo Veloso, irmão mais velho do compositor. Mas, nesta sexta-feira, quando ele estivar completando 50 anos, os projetos ainda estarão, na melhor das hipóteses, no prelo.
De concreto, há só o especial gravado por Walter Salles Júnior (diretor de A grande arte), que vai ao ar em seis capítulos de uma hora, de segunda (10) a sábado (15), na Rede Manchete, e que posteriormente será transformado em home video pela Polygram. É um trabalho extenso e, de certa forma, inovador na televisão, a partir do sistema em que foi gravado. Ao invés de videotape, película de 16 milímetros, que aumenta a qualidade da imagem e dá mais recursos. 'Quando vimos o show, achamos que simplesmente não havia como registrar esse momento. Assim como Glauber Rocha ou João Gilberto sintetizaram perfeitamente o que este país viveu nos anos 60, Caetano é o melhor tradutor, e também o mais iluminado, deste  Brasil fora de todas as ordens', observa o diretor.
No programa, há Caetano  em quase todas as situações possíveis: fazendo o show Circuladô, no Imperator, no Rio de Janeiro; conversando e cantando com a mãe, dona Canô, em Santo Amaro da Purificação, sua terra natal, na Bahia ('Aprendi a cantar com minha mãe. E sobretudo aprendi a gostar de cantar com ela, porque ela cantava muito em casa e assoviava afinado. Sabia tantas canções antigas e tinha um prazer tão grande em cantar. A minha mãe sempre me passou uma sensação de muito prazer'); sendo entrevistado pelo jornalista Matinas Suzuki em estúdio e aproveitando para dedilhar o violão e cantar 40 de suas canções preferidas.
Rodado ao longo de oito meses, o programa leva Caetano de volta aos lugares onde viveu em Londres, há mais de 20 anos, e a lembrar dos acontecimentos que marcaram seu exílio e a prisão. 'Durante o Tropicalismo havia quase uma premonição de que aquilo era um grande sofrimento. O Gil tinha certeza de que aquela era uma coisa que envolveria sofrimento de algum modo. Eu não, eu era um pouco mais ingênuo. Mas não estava feliz. Eu não sentia aquilo como uma experiência maravilhosa para mim. Achava belo, achava importante, sentia que era forte, mas eu estava exilado, tinha estado preso, tinha medo de tudo, não conseguia dormir em Londres. Londres era chata', comenta. Entre essas imagens e lembranças, mesclam-se depoimentos do crítico Jon Pareles, do The New York Times, além de farto material de pesquisa. Mas Caetano ao vivo, no seu aniversário, não vai ter. Pelo menos no Brasil."

(continua)


sábado, 3 de setembro de 2016

Egberto Gismonti Lança A Dança dos Escravos - 1989

Na véspera da data de lançamento de mais um disco - "A Dança dos Escravos", Egberto Gismonti ganharia destaque na edição de 17/12/89 do jornal O Globo,  numa entrevista em que fala de seu novo trabalho. Seria o segundo disco lançado pelo músico naquele ano. A matéria, intitulada "Samplers fora da tomada", é assinada por Helio Muniz:
"Egberto Gismonti tirou os samplers da tomada e está lançando um LP sem acompanhamentos eletrônicos. Em 'A Dança dos Escravos' as engenhocas high-tech foram banidas. O disco é de Egberto Gismonti e seu violão, está pronto há sete meses, foi gravado na Suécia e lançado em toda a Europa. Aqui no Brasil, 'A Dança' chega às lojas amanhã, com 200 mil cópias vendidas, segundo a EMI-Odeon.
Apesar da expectativa de sucesso, Gismonti não vai fazer nenhuma turnê nacional para divulgar este que é o seu segundo lançamento em menos de um mês. O primeiro foi 'Kuarup', com a trilha sonora do filme de Ruy Guerra, que ele considerou 'uma ação entre amigos'.
Completando 21 anos de carreira, Gismonti diz que a trilha é um dos trabalhos mais bonitos de sua vida, mas admite ser parcial quando faz coisas com os amigos. E em 'Kuarup', Gismonti é amigo de todo mundo. Antonio Callado foi o primeiro a entrar no circuito, em 1968, quando lançou o romance 'Quarup' e  pediu ao compositor para musicar  o livro. Depois chegou Ruy Guerra, que encomendou a trilha sonora. Por último, veio Mário de Aratanha, dono da Kuarup Discos, gravadora que lançou o LP.
São grandes as diferenças entre os dois trabalhos. Enquanto em 'Kuarup' há duas orquestras - uma é a Transarmônica D'Amla D'Omrac, modo como Egberto chama seus samplers e computadores - na 'Dança dos  Escravos' o músico optou pela simplicidade. Para Gismonti, cada trabalho nasce de uma forma diferente, não há fórmulas ou caminhos a serem seguidos:
- 'A Dança' é meu  primeiro disco com violão puro, e estou muito ligado nele. Mas não significa que vou trabalhar sempre assim. Meu próximo disco pode ser completamente diferente. Gosto de experimentar e adoro os instrumentos eletrônicos.
Os compromissos internacionais não deixam muito espaço em sua agenda. Ele viaja para os Estados Unidos e Canadá no final de março, numa grande turnê. Volta em julho, toca por aqui e em outubro vai ao Japão e à Austrália.
- O desgaste existe, mas me divirto muito também. Numa hora, desço no aeroporto de Tóquio, com violão do lado, depois estou no piano na Austrália. Isso é gozado. E não me impede de compor, porque faço música em qualquer canto, não tenho frescura para criar.
Egberto Gismonti é o artista brasileiro que mais faz shows no exterior e um dos mais respeitados pela crítica internacional. Apesar disso, ele diz que quanto mais viaja pelo mundo, mais se considera um cidadão de Carmo, um lugarejo perdido na fronteira do Rio de Janeiro com Minas Gerais:
- Lá eu me sinto reconhecido sem precisar fazer nada. Sou só um sujeito que conhece todo mundo e é lembrado como o 'filho de mestre Antonio'. Essa é a minha forma meio irracional de encarar certas coisas. Aliás, tem horas em que o racionalismo só atrapalha.
A conversa volta sempre para o tema preferido de Egberto: os amigos.
- Considero o filme o melhor do mundo e a trilha sonora uma das melhores coisas que fiz porque estava entre amigos. Para mim, amigo não erra nunca, tudo o que eles fazem é o melhor que existe.
Num ano normal, Egberto Gismonti faz quase 200 shows pelo mundo inteiro. Ele não considera muito, mesmo para quem garante detestar o esquema do show business. A explicação é muito simples. Depois de conseguir da EMI os direitos de comercialização de seus discos no exterior, ele tem que tocar mais. Quando termina um trabalho, o esquema de lançamento envolve mais de 20 países:
- Eu não faço música para a maioria. Meus discos atingem um consumidor específico, uma minoria. Tenho que chegar junto desse público em todos os cantos do mundo. E sendo dono dos direitos de comercialização eu mesmo tenho que vender o trabalho.
Ele acredita que esse será o método do futuro. As grandes gravadoras vão transformar em distribuidoras levando o mercado fonográfico a se especializar mais, com os autores fornecendo o trabalho pronto. "

quinta-feira, 1 de setembro de 2016

Sérgio Dias e os Mutantes - Jornal Hit Pop (1976)

Em 1976 os Mutantes completavam dez anos de estrada. Na ocasião a banda estava muito mudada em relação a sua formação original. Sérgio Dias, que sempre esteve a frente das várias formações da banda, falou sobre as mudanças que a banda vinha experimentando e as novas propostas e desafios que os Mutantes vinham experimentando na época. A matéria destacava os dez anos da banda da seguinte forma, numa frase em destaque; "Mutantes: dez anos de rock e de briga -  Há dez anos, os Mutantes estão na estrada. E só conseguiram sobreviver nessa base, mudando conforme a barra do tempo e das circunstâncias. como mutantes de verdade...". Abaixo, a matéria:
" 'Chegou uma época em que eu já não aguentava mais. No final do ano passado, cheguei com uma pá de músicas no ensaio. E ninguém estava a fim de tocar. Não deu mais...'
Quem adivinha o autor do desabafo? Não fosse agora, a confissão poderia ser atribuída a Arnaldo Batista. Ou, numa época mais remota, à própria Rita Lee. Que os Mutantes, desde sua formação original, viveram barras pesadas de todos os lados. Talvez isso explique a própria sobrevivência da banda. E talvez explique a seriedade com que Sérgio Dias, guitarrista, comete o desabafo, manifestando sua profunda ligação com os Mutantes, grupo de rock mas, acima de tudo, grupo de gente.
Depois da crise de 75, os Mutantes vêm com nova formação. E novas energias, no dizer de Sérgio Dias. Ele próprio conta o desenlace:
'Pois é. Chegou num ponto que não deu mais, e teve gente que espirrou. O Túlio deixou os teclados - ele que a gente criou aqui dentro mesmo. O Pedro largou o baixo - ele que entrou nos Mutantes por força das circunstâncias. Ambos foram um pouco medrosos, podes crer.'
Em lugar de Túlio Mourão, entrou Luciano, 21 anos, itinerante por vários grupos do Rio, disposto a se fixar na banda. Paul de Castro, que formou no complicadíssimo Veludo, além de tocar com O Bando e Zé Rodrix, trocou a guitarra pelo baixo e, aos 27 anos pega seu lugar entre os Mutantes. No vocal, inconfundível, Serginho, cantando agora com mais garra e intuição. Isto é, mais ritmo e menos elaboração, o oposto do perturbadíssimo cantor de meses atrás. Serginho e a nova fase: 
'Está uma segurança total. Nós somos parecidos, temos as mesmas influências. Fizemos os mesmos improvisos e, o que é mais importante, temos a mesma cabeça. Nosso último show, quando as pessoas pediram pra gente voltar ao palco, foi emocionante. Voltamos e improvisamos tudo, sem repetir nenhuma música. Foi gostoso demais. E isso não foi na primeira vez. Imagine só o que vem por aí...' 
Uma das várias formações da banda nos anos 70
De acordo com os informes do líder do grupo, a situação financeira andou bem ruça, nos tempos em que eram empresados por Líbero e Sérgio Pavão. 'Tivemos, só em um dos meses de maior faturamento, um prejuízo de quase 90 mil cruzeiros'. Foi uma dureza total. E isso ocorreu - como causa ou reflexo - no instante em que seus componentes se desentendiam, como amigos e como artistas. Antes, porém, que o pior acontecesse, Sérgio virou a mesa. Pois, pra ele, não há coisa que importe mais que os Mutantes:
'É isso aí. Mutantes tem um passado bem glorioso, que aquece o coração de muita gente. O nome tem força e eu respeito. O dia em que os Mutantes acabarem, acho que saio do Brasil. Vou confessar um negócio: amo os Mutantes mais do que a mim mesmo. Quando as pessoas vêm com esse papo de que somos parecidos com o Yes, Emerson, Lake & Palmer - ou sei lá quem, é porque não sacam nada de nada. A gente faz uma coisa nossa, feita aqui mesmo. Quer dizer: eu não toco igual ao Steve Howe, não tem nada a ver. Os Mutantes estão aí, como sempre. E o público sabe disso.'
Com a voz arranhada e os olhos brilhando, entusiasmado, Serginho se agita no sofá. Que não tem outra: desde o início, ele foi o cara responsável pela autêntica batalha que foi manter o grupo, com a formação que fosse. Assim, quando Rita pulou fora muita gente pensou que a banda estava liquidada, ele tratou de buscar músicos novos, aumentando ou diminuindo a composição dos Mutantes, de acordo com as circunstâncias.
E é essa paixão - ou obsessão? - que talvez explique a tumultuada trajetória do grupo. Ele não tem uma imaginação ou um gênero a definir, pois a transação é um nível estritamente de integração dos músicos. Atualmente como quarteto (Sérgio Dias Batista, guitarra líder; Luciano, teclados; Paul de Castro, baixo e pedaleiras; Rui, bateria), os Mutantes se preparam para gravar um LP, sem início programado. Eles aguardam a inauguração de um estúdio (Level, Rio de Janeiro), prevista para estes dias. Só então é que darão o arremate final no repertório.
Algumas músicas já estão escolhidas. Exemplos: Sagitarius (história de uma briga entre Serginho e sua mulher), Benvindos, Mistério, Esquizofrenia, Dia de Hoje, Ó Voz Vinda a Mim. Além dessas, os rapazes prosseguem compondo, fazendo rolar a inspiração.
Renovando contrato com a Som Livre por mais dois anos, os Mutantes estão aparentemente tranquilos. Sérgio dá o recado geral a respeito:
'A respeito do disco, é impossível antecipar como será. A gente está aberto demais. Tem essas músicas que eu citei, outras estão no forno. O que eu posso dizer é que será um disco rápido e leve. Nós queremos que o nosso trabalho alcance um objetivo. Isto é, que, através dele, o público enxergue um caminho dentro da nossa música.'
A rigor, essa sempre foi a preocupação de Sérgio Dias Batista. Pouco ligado em questões financeiras, ele não consegue administrar os negócios. É um talento que, pelo contrário, pinta violentamente na área da criação musical. Por sinal, foi quando pegou os Mutantes na base da cara e da raça, que o grupo se transformou numa usina de rock progressivo nativo. A tal ponto que muito carinha, ligadão no som dos Mutantes, diz que levam, à sua maneira original, tanta energia quanto qualquer superbanda famosa. Quem adivinha o autor-líder dessa usina? "