Palavras Domesticadas

Palavras Domesticadas

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2019

Walter Franco, Sem Medo, Como As Crianças - O Globo (1976)

O compositor Walter Franco se notabilizou por seu trabalho de difícil entendimento para o grande público, mas apurado, lírico e profundo para quem entende sua proposta. Sua fama de maldito vem daí, da difícil assimilação de sua proposta, do hermetismo de seus versos e melodias, de sua postura zen, quase despreocupada diante da falta de entendimento de suas propostas estéticas. Em sua edição  de 03/02/76, o jornal O Globo traz uma boa matéria com o músico paulista, assinada por Ana Maria Bahiana, e intitulada "Walter Franco, sem medo como as  crianças":
" 'Que que tem nessa cabeça, irmão?' Uns três anos e meio atrás, foi a pergunta que ele lançou para uma plateia algo perplexa, que o vaiou, muito mais do que aplaudiu, num festival da canção. Para o público, que travava seu primeiro contato com ele, era no mínimo estranho ser chamado assim de irmão por um estranho. Para ele próprio, aquele momento representava um ponto final, o encerramento de um ciclo - e um novo ponto de partida. Que o levou ao ponto de partida. Que o levou ao ponto de chegada atual - marcado pelo lançamento se seu disco Revolver. Que nada mais é, por sua vez, senão mais um ponto de partida, num fluxo contínuo, como o das águas.
Corre por aí a lenda de que é dificílimo entrevistar Walter Franco. Mas não é: difícil, sim, é colocar num papel uma entrevista com Walter Franco, transmitir a uma terceira pessoa os fluxos e refluxos de palavras, as marés circulares de ideias.  E sem trair o espírito original da conversa: Walter, como observou muito bem o jornalista José Miguel Wisnick, 'tem um cuidado ritual com as palavras'. Elas são o seu utensílio básico, sua matéria-prima, sua ferramenta de trabalho. ele não desperdiça nenhum som. Nem quando compõe, nem quando fala. 'A palavra tem de ser exata. Foi João Gilberto que nos ensinou isso. A palavra tem de ser suave e firme e exata como um golpe de caratê.'
Walter Franco é, ele mesmo, uma pessoa suave, firme, exata. A voz sai baixa e controlada quando fala, o fio do pensamento não é contínuo, mas é claro. Os gestos são fluidos como os de um lutador de kendô. É sem dúvida admirável encontrar tanta calma em alguém que foi, durante a maior parte de sua vida, o alvo favorito dos ódios alheios. 'Sou de São Paulo mesmo, da capital. Como toda minha família. Minha idade? (Ri, um riso de gato, introspectivo.) Já passei pelo muro, aquele muro que a gente custa a passar. Sofri muito, foi uma barra pesada.' (Walter tem 31 anos, nasceu num dia de Reis, 6 de janeiro, signo de Capricórnio. 'Dá pra se notar, não é?).
E a música? A maior parte do público só conheceu Walter Franco no Festival Internacional da Canção, de 1972, com a hipnótica Cabeça ('Que que tem nessa cabeça, irmão/ sabe que ela pode/ ou não?/ ou não?'). 72 foi por assim dizer, a abertura a temporada oficial de caça a Walter Franco. Mas houve outras escaramuças, antes. 'Faço música desde os tempos dos festivais universitários. Participei de todos os festivais universitários da Tupi de São Paulo. Fazia toadas, canções, as coisas que todo mundo fazia naquela época. Mas já então havia uma coisa assim... hãããã arregala os olhos)... um susto... a meu respeito. Eu estava procurando uma linguagem minha, uma linguagem própria, uma ligação direta... Essa busca, as experiências, foi um ciclo posterior aos festivais. Cabeça foi o encerramento desse ciclo.'
Walter Franco sentado num banco, cabelos nos ombros, barba, olhos brilhantes, repetindo uma língua entre fala e o canto, o 'que que tem nessa cabeça, irmão?' Com eco, sem eco, com distorção, feedback. Em volta a plateia, a plateia vaiando num coro uníssono, quase apoteótico. 'Foi um momento de grande violência. Eu sabia que estava confundindo as pessoas lançando o sim e o não numa contagem muito rápida. As pessoas reagiam jogando de volta uma carga negativa fortíssima, mesmo quando eu repetia uma palavra positiva como 'irmão'.
Logo a seguir um disco: capa banca, uma mosca num canto, um 'não' escrito na contracapa. Seria Walter Franco um charlatão? Os que haviam absorvido as vibrações negativas emanadas no Maracanãzinho nem sequer abriam o disco - na verdade, ele deve ser o LP menos vendido da fonografia brasileira, algumas dezenas de cópias, só. Quem ouviu, descobriu uma música nova, difícil às vezes, provocante sempre, resumindo a atualizando as lições de João Gilberto, mestre confesso de Walter. Ele se refere a esse período como 'ciclo do não'.
'O disco não vendeu por minha culpa, mesmo. Eu me segurei, eu me escondi, me guardei, porque havia deflagrado movimentos demais com 'Cabeça'. Entre o disco do não e Revolver há todo um processo de auto-anulação, um caminho para a não-violência que é o sim. Eu não poderia repetir 'Cabeça', não uma coisa igual, mas um momento semelhante, porque ia provocar um curto-circuito paralisante. Então, num espetáculo que eu fiz em São Paulo, só eu, o violão e  o microfone, eu cheguei ao grito primal com o sim. E eu senti que quando percorria todo o meu corpo, despertando tudo, destapando a cabeça. Eu senti que tinha conseguido a ligação direta. A partir daí, tudo é só exercício, o exercício com o toque, o tátil.'
No meio das evoluções iogues e pacíficas de Walter Franco houve o festival Abertura. Cara limpa, olhar calmo, violão e 'Muito Tudo', singela, quase sopro. Mas, na plateia, de novo os urros e vaias concordes. 'Aí eu já acho que foi uma outra coisa. Ninguém estava vaiando 'Muito Tudo'. Eles estavam vaiando a mim, ou melhor, estavam vaiando uma imagem que eles tinham feito de mim. É aquela coisa de cada pessoa ter um curta-metragenzinho dentro da cabeça, projetando naquela hora.' E você, sofreu? Sentiu alguma coisa? 'Não, já não senti nada. Cada pessoa tem uma defesa, é só questão de exercício. Eu percebi que todas aquelas pessoas estavam querendo descarregar suas raivas. É como uma chuva, um temporal.'
Agora, Walter vem andando de branco na diagonal, numa rua de São Paulo: é a capa de Revolver, seu disco novo.  Na contracapa, em braile ('o toque, o tátil'), há uma palavra: 'sim'. No disco, a mesma inquietude somada a uma base elétrica, rítmica, pulsante, uma base de rock.
'Foi um disco muito trabalhoso de se fazer. Por um lado foi difícil, mas bom, porque havia uma comunicação muito intensa entre os músicos. Tudo começou com Rodolfo Grani (baixo, teclados), que é o meu braço direito. Através dele foram chegando outros, até formar um núcleo muito unido, uma transação muito... sólida... tátil. (Carlinhos Sion, produtor do disco, aparteia: 'Dizem até que a gente era uma máfia'. Walter sorri: 'Quase isso... quase isso...'). Foram 198 horas de estúdio, mas devia se muito mais. Mas, a partir de um certo momento, eu senti que havia... não sei bem como dizer... uma vontade muito grande, em algum lugar, de que esse disco não se fizesse. Aí a gente se uniu mais ainda, para enfrentar isso'.
- E você, está satisfeito?
Um longo silêncio.
- Eu tenho a impressão de que, agora que todo mundo já descarregou, o ar está limpo. E esse disco tem passado coisas muito boas para as pessoas. Isso é o que eu queria, acima de tudo. Que o disco fosse uma coisa positiva, boa, sim-cera. Tudo depende da sim-ceridade.
- E a eletricidade, o rock? Onde entra no esquema não-violento?
-Esse é um disco de corpo inteiro. Antes as pessoas só me viam em parte. Eu mesmo só me via em parte. Agora, se você junta as duas metades, você tem um corpo inteiro. Esse disco envolve tudo, todos os centros de energia, é essa a ligação com o rock, que é dança, o corpo inteiro. E também São Paulo, uma cidade violenta, onde eu sempre vivi, que pega e tritura tudo, revolve... Revolver é mesmo a palavra exata para esse disco, esse momento. Revolver tudo o que ouvi, tudo o que eu sou. Revolver as pessoas. A eletricidade... é o estúdio... as contagens... já que estou num estúdio, então vamos entendê-lo, usá-lo como um canal, aproveitar tudo, revolver...'
E assim a conversa circular de Walter Franco se completa. Revolvendo, girando. Na televisão está passando um filme, uma cena onde um moinho d'água movimenta uma forja de metais. Walter presta atenção só a essa cena: 'A água é mais forte', diz ele num sussurro. Depois, no fim da conversa, olhando as amendoeiras da rua, impressionado porque elas passam por todas as estações do ano em poucos meses, ele volta à ideia da água. E a João Gilberto.
'A água é mais forte. Nada resiste à agua, ela passa por tudo, vai, leva, é um fluido, gera movimento. A música de João Gilberto é pura água, pega você, te leva. Você não pode é ter medo, ficar como um animal na própria toca, fechado, sendo um animal, só. Você tem que e abandonar, sem medo, se deixar levar. Como as crianças.'
As crianças, em geral, gostam muito da  música de Walter Franco. "

terça-feira, 26 de fevereiro de 2019

João Donato Lança Quem É Quem - Jornal do Comércio (1973)

Em 1973 João Donato ainda era um músico pouco conhecido no Brasil. Apesar de ter sido atuante na Bossa Nova, e ter gravado dois discos instrumentais antes de ir morar nos Estados Unidos, Donato ao voltar ao Brasil naquele ano foi fazendo contatos, formando novas parcerias e iniciando uma nova fase em sua carreira. Dessas novas parcerias, nasceriam discos fundamentais como Quem É Quem (que ele estava lançando na época) e Lugar Comum, além do trabalho como arranjador. Em sua edição de 265/08/73 o jornal do Comércio, do Rio, trazia uma matéria sobre o músico, assinada por Tárik de Souza:
"Envolve a classe dos músicos uma tradição de desapego, de despreocupação com os problemas que afligem a maioria das outras categorias profissionais. 'Músico é desligado', costuma-se dizer, sem muitos contra-ataques, o que prova que pelo menos parte da tese deve estar certa. Há, porém, graus de desligamento, se é que se pode dizer assim. Músicos como Sérgio Mendes ou Antonio Carlos e Jocafi, devem até ser alistados entre investidores mais que razoáveis, ainda que seu capital seja a música. Em compensação, João Donato, 39 anos, 25 como músico, apenas dois elepês individuais gravados no Brasil, está no pólo oposto. Viveu treze anos nos Estados Unidos, entre fases de opulência (morava em Los Angeles, cidade dos milionários de Hollywood e chegou a ter três carros) e quase miséria. Em Nova Iorque, recusou um hotel pago por seu amigo, o baterista Dom Um Romão, porque 'era o paraíso das baratas da cidade'. Só conseguiu voltar para o Brasil porque 'vendeu' seis horas de gravação, o equivalente a sete faixas 'daquelas longas' a um produtor de jazz que estava montando sua etiqueta. 'Ele disse que tinha somente aquele tempo no estúdio e eu devia me virar com ele. Era a maneira de conseguir um adiantamento para comprar a passagem, e eu gravei o que me veio à cabeça. 'Afobado - queria chegar antes do Natal - nem esperou o disco ficar pronto. Avisou seu produtor, John Fields: 'Para a montagem chame o Eumir Deodato. Ele sabe o que eu gosto e o que deve ser selecionado'. E o misterioso elepê Donato/ Deodato, que escala vertiginosamente o hit-parade americano, ainda não chegou ao Brasil, portanto João sequer sabe quais são suas faixas. O dinheiro que pode lhe render seu primeiro sucesso ele nem consegue calcular, mas no mínimo deve satisfazer suas curtas ambições: 'ter um lugar onde eu possa escutar música sem incomodar os vizinhos'.
Por enquanto Donato mora na pequena cidade de Paracambi, Estado do Rio, no caminho para Vassouras. E gravou seu terceiro elepê nacional, Quem É Quem (Odeon), que sai essa semana. Para variar há muita coisa no disco sem explicação lógica, ao menos para os que encontram alguma sistematização na lógica de um músico. 'Que existe, existe uma outra galáxia, você duvida?' pergunta Donato que não sabe explicar o título do elepê nem porque 'de repente vi que o clima da gravação me empurrava para cantar - e eu cantei pela primeira vez na vida'. Por acaso também a cantora Evinha, uma das afinadas coristas do disco, falou que estava com medo de gravar. Suas palavras foram registradas, antes da faixa Terremoto (escrita por Donato enquanto Los Angeles era sacudida por um tremor de terra). 'O que ela disse ficou dentro do clima da música e nós deixamos gravado.'
O acaso, portanto, é mais parceiro que inimigo de João Donato. Se é necessária uma prova de prestígio entre a classe, de Quem É Quem participou um verdadeiro Who's Who da música brasileira. Gaia e  Laércio de Freitas nos arranjos, Bebeto (do Tamba Trio), contrabaixo, Norato, trombone, Naná, percussão e Nana Caymmi, vocal. E João tocou seu piano elétrico explosivo e latejante, diferente da maioria dos músicos que usam este instrumento eletrificado, não fez por menos: pegou uma variedade deles (órgão, piano elétrico, mellotron) e foi para sua casa, em Los Angeles, de onde só saiu com dezenas de folhas anotadas 'com muitos barulhinhos e combinações que eles produziam entre si' e dez músicas compostas com eles. Por isso, nota-se, em  Quem É Quem ele é quase um mestre no instrumento. Numa pasta de couro que o acompanha sempre está uma repleta e volumosa agenda dessas de propaganda, onde anota o que fazer até com semanas de antecedência. João Donato, acreano de Rio Branco, pode não ter realizado o sonho que formou quando ainda menino andava no colo do pai, um policial militar, fazendo viagens de instrução nos teco-tecos da região: queria também voar como o pai. Mas não é impossível que ao menos uma parte considerável de sua atenção esteja pelos ares, procurando um tipo especial de interesse. Conta, por exemplo, que já conversou com uma estrela usando o pisca-pisca de uma caminhão parado e há tanta convicção em seus olhos penetrantes e inquietos que desaparece a hipótese de qualquer brincadeira. Ele fala sério quando narra o nascimento A Rã, incluída no elepê, antes gravada por João Gilberto com o nome de O Sapo.
'Aquele saxofonista, o Stan Getz, bebe muito, e ficava inchado como um sapo, daí a homenagem da música. Mas, na verdade, ela deveria ser uma parceria minha com o João Gilberto e o Tom Jobim. Imaginamos cada um uma espécie diferente de sapo coaxando, o corongodó, o casainguê e o quiringuidin, que repetidos formaram a letra da música, que por fim não quer dizer nada.'
Mesmo passando por tantos acidentes, no entanto, o resultado do elepê de João Donato é mais animador. Com a eletrificação, seu sensível piano de discos tocantes como Muito à Vontade ou A Bossa Muito Moderna de Donato perdeu em emoção e ganhou em balanço. A voz - rouca e arrastada ('e eu ainda estava resfriado na gravação') - passa para o ouvinte o que transmitia o piano. Donato ficou à vontade a ponto de mandar um esotérico recado a seus amigos de Paracambi, na faixa Ayê, que por um mistério inexplicável foi o nome sonoro que ele encontrou para descrever a cidade. Em resumo, como diz a letra, 'Ayê, é o que você quer dizer'. Seu elepê ainda deve ser uma surpresa para os que deixaram de acompanhá-lo na época da bossa nova, quando foi embora do Brasil. João é, porém, até anterior a este tempo, e pode ser relacionado entre os decisivos precursores do movimento. Com doze anos desembarcava de Rio Branco no Rio de Janeiro, porque com a mudança política do Território do Acre, ficava extinta a Polícia Militar e seu pai resolveu trocar de cidade. Dono de um acordeon desde os três, quatro anos, ele aos 14 anos já tocava profissionalmente, 'porque tinha aparência de mais velho'. Na década de 40 a moda eram os conjuntos vocais e ele foi unir-se aos extintos Namorados da Lua, com Miltinho e Nanai, depois da saída de Lúcio Alves, fundador do conjunto. 'Com ele ficou o copyright e nós tivemos que cantar só com o nome de Namorados'. Antes do novo batismo, porém, o conjunto ainda se chamou Os Modernistas por algum tempo, gravando um de seus sucessos, a marcha Que Calor, para o carnaval. Extinta a fase a a moda, Donato experimentou muitos conjuntos e até o trombone, participando de várias gravações como um fantástico Dance Conosco, produzido pelo flautista Altamiro Carrilho, onde Milton Banana tocava bateria e Ed, que ainda se chamava Eduardo Lincoln, piano. Ex-acordeonista do Cabaré Dancing Avenida, Donato desistiu de estudar depois de ter repetido quatro vezes a quarta série. Gravou tocando acordeon (Invitation), participou de um trio onde não havia bateria, tocou com a então famosa orquestra do maestro Cópia no Copacabana, um programa que era transmitido 'direto' pela Rádio Nacional à noite e fazia a diversão dos colegas: eles ficavam marcando o tempo de atraso diário do acordeonista.  Em sua tortuosa carreira, Donato tocou também seu acordeon na música nordestina, sucesso nacional na década de 50 (´pergunte ao Luiz Gonzaga se eu não era bom'). Fazia ponto no programa Manhãs na Roça de Zé do Norte, com a mesma naturalidade com que depois gravou várias músicas, já nos EUA, com meu chapinha Cal Tjader, um dos maiores vibrafonistas do jazz. Porque seu conjunto foi desmantelado por Sérgio Mendes (contratou de uma vez o baixista e o baterista), Donato convidou, praticamente para preencher o espaço na boate El Matador, os astros Chet Baker (piston) e Bud Shank (sax). O trio acabou se desentendendo e Donato parou suas apresentações durante um bom período, vivendo de gravações esporádicas (foi considerado pelo San Francisco Chronicle, 'o maior pianista brasileiro') e principalmente direitos autorais. Chris Montez e Sérgio Mendes, entre os comerciais, além de muitos músicos importantes (Herbie Mann, Cal Tjader, Wes Montgomery, Tito Puente, Mongo Santamaria) gravaram suas músicas, embora nenhuma delas seja especialmente conhecida no Brasil. Uma vez o sisudo arranjador alemão Claus Oggerman ligou para ele da Europa. tinha ouvido um de seus discos e, entusiasmado, queria convidá-lo para gravar um elepê 'cheio de violinos'. Viajou para o Japão integrando o Brasil 66, na troupe de Sérgio Mendes e lá recebeu um elogio insuspeito, do diretor da gravadora Blue Tamb; 'Quando ouço seus solos fico arrepiado, queria gravar com você'. Pronto o disco, ele se chamou A Bad Donato (Mau Donato, ou quem sabe, O Pior de Donato), mais um título que ele não sabe porque caiu sobre uma gravação sua.
capa de Que É Quem
E muitas outras histórias que pela profusão e algunm surrealismo, quase o equiparam a um amigo e companheiro, João Gilberto, com quem viu nascer a bossa nova. ('Era difícil dizer quem fazia o que, cada hora aparecia um com coisas novas, foi uma criação em conjunto'). Donato explica seu caso raro de não-consagração com o movimento, por causa da 'bobeira' que me impediu de participar do  show do Carneggie Hall em 62: 'Inclusive eu já estava lá e o pessoal me convidou'. De lá saíram todos com gravações acertadas, conta ele, sentado num bar próximo à gravadora Odeon, onde se reúne o clube do qual é relações públicas, o 'Melancia - 90% água'. Gorro na cabeça, sandálias japonesas e roupa escura, ele inspira simpatia em seu jeito desorganizado. Acredita que conhece o motivo dos músicos chamarem-se de  bichos. Foi na época que eu tocava no Copacabana e numa excursão a São Paulo fiquei conhecendo o trombonista Edson Maciel, o Edson Maluco, de quem sou fã. Depois de cada solo a gente se beijava na boca, e o pessoal formava uma roda para assistir e chamar a gente de bicha. Com o tempo o tratamento de agressivo passou a carinhoso.' Absurdamente desarmado contra as repressões das cidades ('o beijo era porque a gente se amava') Donato, desquitado, uma filha oficial e várias 'por aí', acredita que o amor realmente move o mundo e tudo deve ser feito nesse clima. Não entende, por isso, o corte de uma de suas músicas, só pelo nome Gol de Coréia (o resto da letra, como sempre, nada tinha a ver com isso). E da censura dos versos de outra, Me Deixa, que acabou saindo apenas instrumental. 'Olha bicho, isso não tem explicação' "

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2019

Caetano Fala do Disco Cê (2006) - Revista Bizz

Em 2006 Caetano lançou o disco , com uma sonoridade mais elétrica, voltado para o rock. O lançamento dividiu a crítica, mas de uma forma geral, o disco foi bem recebido. Na edição de dezembro daquele ano, a revista Bizz fez uma matéria com Caetano, assinada por Paulo Terron, incluindo uma entrevista, onde o músico baiano fala de seu disco, do show originado do disco, de rock e sua proposta musical. Fala também de Devendra Banhart, um músico americano, que se declarava na época um fã devotado de Caetano. Segue abaixo a transcrição da entrevista:
"Tradicionalmente, sua música é classificada dentro do que se convencionou chamar de MPB, que, apesar de ter 'popular' no nome, tem um ranço elitista. Mas, nos últimos anos, você parece interessado em ressaltar suas ligações com o pop. É isso mesmo?
Não, não é. Essa sigla MPB é mais ou menos contemporânea do nascimento do tropicalismo. Talvez ela tenha se solidificado desse jeito depois que eu já tinha ido para Londres. O tropicalismo foi (popular) o tempo todo. E o meu trabalho em seguida também. Isso é o que marcou a diferença entre o meu grupo - que veio da Bahia e se uniu a uma mini-minoria de pessoas de São Paulo, representada sobretudo pelos Mutantes, pelo glorioso Rogério Duprat e Júlio Medaglia. A gente tinha uma reação contra o elitismo da segunda fase da bossa nova, que não tinha ganhado ainda esse apelido de MPB. Na verdade, essa abreviatura era usada para designar a segunda fase da bossa nova e, depois, virou uma palavra que se referia a todo um espectro amplo de criação musical difícil de definir como estilo e que foi, inclusive, muito influenciada pelas rupturas do tropicalismo. Então, não é assim. Não gosto, acho que o apelido é um nicho, ninguém sabe exatamente o que põe ali. Porque elas são apenas um quebra-galho para as pessoas poderem conversar. No meu caso, é muito desorientador utilizar o termo e chegar a formulações como essa que você apresentou aí.
Logo que seu disco saiu, houve certa resistência das pessoas que gostam de rock. Lendo alguns blogs, reparei que muita gente dizia 'Mas Caetano vai fazer rock agora?!? Como ousa?', como se o rock representasse alguma espécie de 'nível' e como se você não tivesse participado da história do rock brasileiro. Esse tipo de percepção te irrita?
Não, porque houve muito menos disso do que eu esperava. Eu supunha que fosse haver mais. Mas acontece que o disco é suficientemente bom e as pessoas não são tão mesquinhas, então há uma tendência a ter uma visão mais equilibrada do que essa ingênua que você acabou de descrever. São opiniões às vezes nascidas de pessoas que, muito jovens, não têm essas informações que você tem e, tampouco são esforçadas pra ter uma visão mais corajosa das coisas. Essa reação muito fácil, de desqualificar porque não-venha-fingir-que-você-faz-parte-da-minha-tribo-porque-você-não-faz-parte-da-minha-tribo-, é primária porque toda história não está sendo reconhecida. E também porque essa visão da organização das pessoas em tribos é uma coisa muito vulgar e muito empobrecedora da vida. Ela parece dar razão justamente àquelas pessoas, àqueles pensadores e também àqueles produtores de cultura - tanto popular quanto quanto alta - que querem provar que esse mundo é abjeto, que só merece o nosso desprezo. Então essas pessoas estão inadvertidamente caindo nessa armadilha. Mas é assim mesmo, a vida é engraçada.
As letras de , supostamente, foram inspiradas por sua separação. Você mesmo já disse que elas causaram muita dor. É difícil ser solteiro? 
Talvez seja. Pelas estatísticas, dizem que as pessoas casadas são mais felizes. Mas eu não diria que as dificuldades, sobretudo as que aparecem, que eu superei, são da separação, e não da vida de solteiro. Nem todas as canções são documentais, embora todas tenham ecos desse clima emocional. Algumas são diretamente documentais, como 'Não me Arrependo' ou 'Waly Salomão'. Essas são diretamente documentais, as outras não.
O disco também lida com a questão da idade. Você inclui no show 'O Homem  Velho' (de 1986). Ouvindo a letra dessa música, faz sentido no contexto de . Foi por isso que você a escolheu?
Essa é uma das razões - uma das principais razões - porque aparece explicitamente na música 'Odeio': 'Só eu, velho, sou feio e ninguém'. (E também aparece) em uma que fiz mas não gravei porque só ficou pronta depois do disco, 'Amor Mais Que Discreto'. 'O Homem Velho' está bem dentro desse ambiente. Por outro lado, ela é de Velô, que era um disco um tanto mais roqueiro. Essa é outra razão, eu queria cantar uma música do Velô e, quando deparei com essa canção, pensei: 'É essa!'
Você concorda em dizer que esse é um show de rock?
Não é errado, mas não acho que dizer isso caracterize bem o show. É adequado, suficientemente. Se alguém quiser dizer isso, não me incomoda. Os meninos que tocam comigo tampouco vão se incomodar. Mas, se alguém quiser dizer que não, também não vou me incomodar. Também está certo porque é um show meu, entende? Para mim esse show se parece mais com Livro ou Noites do Norte do que um show do Luxúria. Rock é uma denominação muito genérica de um acontecimento de quebras da tradição da música americana e que foi, ao mesmo tempo, como muita gente acredita, um assassinato da grande canção americana. Se você ler a história da bossa nova escrita pelo Ruy Castro (Chega de Saudade), a entrada do rock é assim:
'Então vieram aqueles caipiras ignorantes a acabaram com essa tradição deslumbrante de Cole Porter, Gershwin e Irving Berlin'. Por outro lado, se você ler esse cara que escreveu Criaturas Flamejantes (Nick Tosches), ele diz o contrário. Você sente nele aquele desprezo pela tradição americana, porque ele foi jovem quando o rock apareceu, vindo do sul, daquela gente ignorante, meio primária. Para ele é uma liberação, para muita gente foi assim. Eu estava morando no Rio quando Elvis aconteceu. Eu era amante da música brasileira tradicional desde menino. Música boa, bonita, bem-feita, bem cantada, bem tocada. Então, quando o rock apareceu, era lixo comercial aos meus ouvidos, era normal que fosse. Então é toda uma mudança, fiquei apaixonado pelo rock e fui ouvir os Beatles. Depois fui preso, fui para Londres, ouvia Pink Floyd, Jimi Hendrix, James Brown... Aí me diziam: 'Pô, mas isso é uma coisa comercial, primária'. Ficaram de mal comigo, Edu Lobo, Francis Hime, Wanda Sá. Ficaram decepcionados, choravam, viravam a cara. Foi um drama porque a gente tava apoiando o rock e introjetando elementos dele na nossa música. Não quero ser posto no nicho da MPB, mas tampouco quero ser colocado no nicho do rock. Esse negócio de tribo, de rock... Parece que você está entrando em um negócio... E eu sou ativo, estou fazendo uma intervenção pretensiosa! Eu sou cabeça! Já ouvi essa palavra sendo usada sobre mim como se fosse uma espécie de ironia, pejorativa. Não é! Eu sou cabeça!
Em uma Bizz de 1990 tem uma declaração sua sobre o rock que diz o seguinte: 'Nunca procurei fazer um show como o dos Rolling Stones ou dos grupos de rock. Rock é um excesso de energia, de uma turma de adolescentes, de países onde as pessoas se alimentam muito bem. Não é um carinha, um frango de macumba, chegar no palco no Brasil e fingir que está esbanjando energia...'

 É isso mesmo. Você não vê que os apaixonados críticos de rock ficam com muita impaciência, muita raiva com relação aos grupos de rock brasileiros? É muito difícil você competir com os americanos, só os ingleses é que chegam lá meio que perto, porque são da língua inglesa e porque têm dinheiro também.
 A língua inglesa é a língua da dominação. Os britânicos deram aquele upgrade de respeitabilidade, mas raramente estão lá, na força da energia.
Você não acha estranho que, enquanto você volta um pouco pro lado rock, vem uma pessoa de fora - como Devendra - puxando para o lado contrário, querendo ser mais brasileiro? 
Você acha que ele está puxando para o lado contrário? O David Byrne fez uma virada nesse negócio. A apreciação virou e nunca mais desvirou, e nem pode mais desvirar. Quando fui para Londres, em 1969, tudo que a gente representava parecia um pouco com bossa nova, com música brasileira, com samba. Veja o caso dos Mutantes: achavam que pareciam com os Beatles, que eram ruins. Achavam que não era original e não tão bem-feito quanto os Beatles. Era o que eles diziam - e não estavam errados, porque os Mutantes não eram meros covers, eram criativos na mesma linha. É o que eu achava na época, agora eles acham também. Mas isso só veio a ser achado depois do David Byrne, que tem a cabeça mais livre. Vi um crítico de música americano dizendo que não tem ninguém igual a Lulu Santos no rock do mundo. Não tem ninguém igual, é um dos melhores do mundo porque ele tem a capacidade dos melhores americanos. Para mim, Lulu é dos melhores artistas que o Brasil já teve. Essa gente que quer esnobar Lulu, que pensa que Lulu não é rock, está por fora! Lulu é mais rock do que 99,9% deles. E o Devendra não quer e não faz um movimento no sentido contrário. A minha música que ele cantou no festival ('Lost in the Paradise') eu fiz em inglês antes de sair do Brasil. Ela fala diretamente com essas pessoas que produzem o pop do mundo.
Aliás, ele me pediu para dizer que, quando você cantou 'Io mismo un burro que um grand professor' (em 'Cambalache', 1969), estava prevendo o encontro de vocês. Ah, ele também quer saber o que precisa fazer para que você participe de uma música dele, 'mesmo que seja só um suspiro'...
Não precisa fazer muita coisa: basta ele dizer onde e quando vai gravar que eu anoto na minha agenda. Adorei ele, achei gente fina à beça. Gostei do show dele no Rio, o que ele fez coma minha canção foi lindo. Essa coisa de burro e professor... Isso eu cantei, mas não acho que tenha sido uma profecia do meu encontro com ele. "


quarta-feira, 13 de fevereiro de 2019

Alceu Valença - Revista Pipoca Moderna (1983) - 2ª Parte

" Verdade que Alceu Valença ('Valência', quando atende ao telefone e fala com 'Anelísica', ou seja, Anelise, ex-mulher e atual empresária) não vinha tão mal assim. Não foi bem no início mas, voltando da Europa, vendeu 80 mil cópias de Coração Bobo (1980) e caiu para 70 mil, com Cinco Sentidos (1981), em plena crise. O crescimento até às quatro centenas de milhar, entretanto, não encontrou ainda explicação coerente.
Ainda mais se considerarmos a fatia de público que vem consumindo o trabalho. A garotada - o termo é dele - está despertando para a qualidade? Capitão por quê?
Alceu tenta vagamente uma explicação: 'eles estão sentindo falta de líderes e aí transferem tudo para quem surja com mais força'. Explicação não convincente. Para entender a poesia e a abrangência musical de Cavalo de Pau é necessário mais do que, simplesmente falta de liderança.
Durante muito tempo, seu nome foi associado ao adjetivo histriônico: o histriônico Alceu Valença, etc. Seria, talvez, o momento de substituir os qualificativos.  Que tal carismático? Porque histriônico pressupõe certa elaboração que, no caso, parece intrínseca ao personagem. Alceu fala com as mãos, com os olhos, com todo o corpo, com a barba. Aliás, não fala: recita, declama. Como se fosse um grande cordelista transferido cultural e geograficamente para a grande cidade e nela apenas realimentasse a verve do repente e da cantoria e dela recebesse, absorvendo-a, a transfusão de novos elementos.
Cavalo de Pau é um disco de síntese, consideradas as sintaxes poética e musical.  A música título é, talvez, a mais bem realizada fusão do baião com o blues jamais conseguida - embora muito perseguida - por qualquer de nossos criadores. As duas formulações musicais estão ali, límpidas, precisas e personalizadas, embora fundidas à confusão total e final de suas raízes e origens, quem sabe até aparentadas. O já citado 'Maracatu' não é apenas um maracatu, mas a integração do maracatu na nova ordem de coisas que a linguagem eletrônica dispõe. 'Tropicana', música de Vicente Barreto com letra de Alceu, é um xote que dignificaria, sem estranhamentos, Jackson e Paul McCartney, no tempo dos Beatles. Duvidam? Inventem uma letra qualquer em inglês e substituam o 'ai, ai, ai, ai' por 'ye, ye, ye, ye'. 'Como Dois Animais' resume novamente as tendências pop no binômio baião/blues. Pode?
Pode. De Porto Alegre ao Recife. o cidadão pernambucano de São Bento do Una, está fazendo delirar plateias, desmaiar mocinhas, mobilizar forças policiais que evitem pancadarias e machucaduras. Ninguém sabe dizer quem regeu este concerto louco de herói desgarrado. Ou que regerá o destino do artista precioso em sua criação, efetivo em seu discurso, enfático em suas convicções.
No terceiro de nossos encontros para falar deste fenômeno, vivíamos situações inversas. Alceu estava curtindo uma ressaca, eu estava preparando a minha. Bebemos chá (ele) e uísque (eu). Perguntei-lhe , como perguntam os repórteres da Rede Globo, qual era a sensação de ser superstar. Ele respondeu-me calmo (até onde pode ser calma uma pessoa que se expressa por gestos largos e voz de cantoria e desassombrado:
'Véio, não sei o que é isso, não. Sei que não estou na moda, essa é outra história. Moda é coisa que se fabrica. Não me sinto fabricado, não sou fabricado. Também não pretendi ficar rico, apenas mostrar minhas coisas, acredito que boas, sem freio na criatividade. Não mudei radicalmente nada na minha noção do que seja um trabalho decente, honesto. Sabe, véio, a gente está vivendo um tempo em que muita gente vem usando a cultura popular como ponto-de-venda. Eu não vou usar meu sotaque nordestino, para vender disco - ainda mais nessa época em que tem tanta gente metendo a mão na cuia do cego. Eu, se puder, deposito lá. Se não puder, não tiro. Não estou atrás de fuçar raízes ou discriminar, diagnosticar o que seja ou não cultura brasileira. Meu trabalho é um misto de de fé e prazer. Fé em nós, prazer para nós'.
O bom disto é constatar que o universo musical brasileiro não acaba - nem começa - em Alceu Valença. Qualquer simplificação, agora, seria e soaria idiota. Na cabeça dos garotos que escrevem a tal faixa - 'Capitão, nós estamos com você' - deve estar acontecendo alguma coisa. Nem que seja o desejo reprimido, enfim identificado, de estar na praça fazendo amor 'como dois animais'. Animais racionais, na praça racional de um ´país racional regido por estrutura de poder e prazer racionais. As dúvidas nem tanto assim metafísicas de Alceu Valença ('cavalo doido, por onde me levas/ depois que eu vim parar na capital?') são inquisições sadias em nome de uma sadia construção do futuro. Falta-nos, eventualmente, encontrar a capital. Mas temos tempo, estamos em busca. Acreditando na sorte menos que na vontade. O tombo e suas eventuais sequelas serão absorvidas pelo fluxo orgânico que será, fatalmente, mais proteinizado - fala Belchior! - que o de nossos pais. "


terça-feira, 12 de fevereiro de 2019

Alceu Valença - Revista Pipoca Moderna (1983) - 1ª Parte

Em 1983Alceu Valença vivia um grande sucesso. Seu álbum Cavalo de Pau, o mais bem sucedido de sua carreira, lançado no ano anterior, vendeu mais de 400 mil cópias. Inúmeros shows de Alceu e sua banda aconteciam Brasil afora, sempre com grande público. Em  sua edição nº 3 (janeiro de 1983) a revista Pipoca Moderna nº 3 trazia um boa matéria com o compositor pernambucano, atestando seu grande sucesso na época. A matéria, assinada por Mauro Dias, tinha como título "Capitão Alceu chegou lá':
" 'Capitão, nós estamos com você' - faixa erguida por jovens entre 14 e 19 anos, apinhados no estádio principal de Curitiba. Não era o início de qualquer movimento político, apesar do capitão aludir, certamente, a Che Guevara. Os jovens erguendo a faixa não usam mais camisetas com retratos de Che e provavelmente não têm mais seus posters pregados na parede.
O capitão em pauta é outro, também barbudo, quase quarentão. Não usa a boina com estrelinha - símbolo, de reto, cooptado pelo Partido dos Trabalhadores -, mas um chapéu de abas largas e caídas. Não faz comício: canta. Chega ao palco montado numa burra - aquele cavalo de madeira usado na festa de reisado, no norte como no sul
A burra de madeira está, ainda na capa do último LP  de Alceu Valença, o capitão. Cavalo de Pau é seu oitavo disco, se contarmos o que foi dividido com Geraldinho Azevedo, início de  carreira para ambos, 1972 - chamando a atenção apenas da crítica e de pessoas muito ligadas em música, pouco mais do que isto. Na ocasião, megafone em punho, correu as ruas de Copacabana conclamando o público para o show que montava e não dava público(*).
Perseguindo o sucesso por caminhos menos convencionais - em 1979, largou tudo e foi tentar a sorte em Paris - Alceu conseguiu a façanha invejável de vender 400 mil cópias de Cavalo de Pau em apenas quatro meses - ou seja, 100 mil cópias por mês, mais de três mil por dia. Isto sem que  a gravadora investisse em publicidade mais do que o costumeiro, sem que armasse esquemas especiais, especiais na televisão - houve um, dividido com Elba Ramalho, mas foi consequência do sucesso e não estratégia promocional - ou qualquer outro truque de marketing.
Ao contrário, o disco andou meio desacreditado, na ocasião do lançamento. Primeiro porque Alceu exigiu apenas quatro faixas de cada lado,  que garantiria melhor rendimento sonoro e posterior melhor qualidade de reprodução. Aos olhos do comprador comum, entretanto, a providência poderia ser mal interpretada. Pagar por oito músicas o menor preço que pagaria por 10 ou 12 não é exatamente tentador.
Mas Alceu fechou a questão e a coisa saiu como ele queria. Segundo ponto de descrédito: a capa, nada didática, com duas 'frentes' e cortes laterais sugerindo a perspectiva de um caixote de madeira, desses usados para transporte de mercadorias (não falta o made in Brasil gravado a fogo numa das ripas).  Sobre a madeira, numa das 'frentes', o próprio Alceu, meio príncipe medieval, montando a burra. Na outra, numa escultura de Antonio Peticov que tanto pode ser a cara do cavalo de pau, estilizada, quanto a cara de uma pessoa.
Para o lojista - e, portanto, para a gravadora -, não é bom um disco com duas capas. Qual delas deve ser exibida, exposta de modo a chamar o comprador? Uma confusão mercadológica dos diabos. Alceu Valença pensou nisto? Pensou, sim:
'A capa de um disco, véio, deve ser o mesmo espírito do disco, deve ser um objeto de arte, tanto quanto o disco precisa ser, de verdade, uma expressão artística, a expressão de uma cultura, de um universo cultural de uma expectativa cultural. Então, se você faz um disco pensando em expressar sua arte, não é coerente fazer uma capa que não tenha o mesmo espírito'.
E que espírito é este? No caso específico, uma brilhante miscelânea de citações, cobrindo o largo universo que vai de Jackson do Pandeiro aos Beatles (mesmo que o autor não admita), de Carlos Drummond de Andrade a Ascenso Ferreira. Proposta que já resultou em retumbantes fracassos qualitativos - basta o discófilo atento verificar sua coleção de nordestinos da geração 70 - e que nada traduz de excepcional ao menos enquanto proposta.
Porque o problema é a execução da proposta. E nenhuma execução poderia estar menos voltada à expectativa comercial do que a adotada por Alceu em Cavalo de Pau. De cara, ele radicalizou a definição estética. 'Eu acredito que a grande poesia brasileira já não mora nos livros, mora também nos discos, na música popular. Resolvi assumir o poeta que sou e fiz um disco de poeta e para poetas. Descobri identidades entre minha poesia e a poesia de Drummond, de João Cabral de Melo Neto. Estou dizendo em voz alta que sou poeta'.
Daí que as faixas são dedicadas a Bandeira, Cabral, Drumond, a 'todos os poetas repentistas da grande nação nordestina' e a mais algumas pessoas de outras áreas ou assemelhadas. Além disto, Alceu musicou um poema de Ascenso Ferreira ('Maracatu'), o que lhe valeu aborrecimentos com a família do poeta falecido. Aborrecimentos contornáveis - mais contornáveis, ao menos, do que o brio ferido quando encontrou Drummond num restaurante e a ele se dirigiu:
'Cheguei perto e comecei: 'poeta, eu dediquei uma composição ao senhor'. Ele, sem levantar os olhos, foi logo dizendo: 'não, não quero saber, não quero isto, já estou muito velho, você me desculpe'. 'Fiquei arrasado'.
Tudo bem, porque o poeta deve estar cansado do assédio por parte dos jovens 'talentosos'. Não nos esqueçamos de que jamais se pronunciou sobre a versão musical de 'José', abominavelmente cometida por Paulo Diniz, há alguns anos. Tudo bem, ainda porque a poesia de Alceu é melhor do que a distração do poeta. E tudo muito bem porque Alceu é hoje a grande estrela de sua companhia, a Ariola.
O que tem jeito de incongruência. Um disco racionalmente pensado para ser bom, despreocupado de ser vendável, passa a ocupar o trono dourado e reservado às - quase sempre - forjadas estrelas de primeira grandeza. Surpreendemos, um dia, Ney Matogrosso, dizendo não saber porque Alceu não tinha acontecido, até então. Surpreendemos Geraldinho Azevedo, surpreendido, desconhecendo a que atribuir a súbita ascenção do velho amigo. "

(*) Na verdade esse fato aconteceu em 1975, no show Vou Danado pra Catende, e não naquele período

continua

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2019

The Clash - Uma Banda Que Revolucionou o Rock (Revista do CD - 1981)

Em sua edição nº5 (agosto de 1991), a Revista do CD trazia uma matéria com a banda The Clash, que começava a ter seus discos lançados em CD no Brasil, numa época em que esse formato começava a ganhar força, mas ainda carecia de um número significativo de lançamentos. A matéria é assinada por Jeferson de Sousa:
"A polêmica sobre qual seria a melhor banda de rock de todos os tempos é tão insolúvel, infrutífera e infindável quanto discussões sobre futebol e religião. Sendo um pouco racional, descobre-se que a importância de um grupo musical pouco tem a ver com o gosto pessoal. Ninguém precisa gostar dos Beatles, dos Rolling Stones ou do Led Zeppelin para reconhecer seu valor. Tampouco é necessário ser um admirador fanático do punk para gostar do Clash e reconhecer seus méritos. Basta analisar sua obra (e, passados tantos anos, há uma real possibilidade de distanciamento crítico) para perceber as inúmeras influências e direcionamentos deixados por esse inesquecível quarteto inglês.
A história do Clash começa no verão de 1976, quando o guitarrista Joe Strummer abandona o projeto de criar sua própria banda para se unir ao também guitarrista Mick Jones (a quem Strummer teria dito 'Cara, você toca demais, mas a sua banda é uma porcaria') e ao baixista Paul Simonon, ambos do SS. Os três eram admiradores confessos do grupo Sex Pistols e, não por acaso, pouco tempo depois eles, mais o baterista Terry Chimes, estavam fazendo as aberturas para os shows de seus ídolos.
Embora o Clash tivesse grande admiração pelo Pistols - a ponto de imitá-lo no começo -, em pouco tempo o grupo começou a chamar a atenção na cena punk londrina por sua postura e ideologia. O Clash não queria apenas ser mais uma banda punk, de trajes rasgados e atitudes niilistas. Seus jovens integrantes faziam questão de apregoar aos quatro ventos que eram 'proletários e socialistas'. Quem mais assumia essa postura era Joe Strummer, um dos líderes incontestáveis da banda. O outro mentor musical do grupo, Mick Jones, sempre marcou presença por sua postura de rocker (nos shows e mesmo em disco se portava como um guitar hero e, muitas vezes, foi ironizado por Joe).
Naqueles anos (1976/1977) as coisas realmente ferviam no mundo da música pop, sobretudo em Londres. Uma verdadeira revolução estava ocorrendo, fomentada por jovens entre 16 e 20 anos. Eles esbravejavam contra ídolos decadentes que ostentavam seus discos de ouro, mansões e limusines; e protestavam contra a decadência do rock, perdido entre a melosidade e o virtuosismo vazio.
Em março de 1977 o Clash lança seu primeiro compacto, White Riot/197, e ainda no mesmo ano apresenta o primeiro álbum, The Clash, provando que seu trabalho era mais do  que um simples fruto da empolgação. Tratava-se de uma obra de auto nível e, ao mesmo tempo, de um violento manifesto contra a corrida armamentista, o desemprego e o racismo. Ou seja, uma antítese do movimento punk.  
A história do Clash, como aliás a de todas as grandes bandas, não é uma história tranquila.. Em 1978 o grupo é tachado de traidor do movimento quando lança Give 'Em Enough Rope, produzido por Sandy Perlman, já famoso por seu trabalho com o grupo Blue Oyster Cult, banda violentamente repudiada pelos punks. O que mais incomodava nesse segundo álbum do Clash era sua opção pelo rock-and-roll, o que representava um inequívoco sinal de diluição para a geração punk. Analisando hoje, Give 'Em Enough Rope soa como um álbum cru e sincero. Mas na época ninguém tinha muita paciência  para perceber tais sutilezas. Depois de acusar o Clash de traição, adesão ao sistema e ambição (acusações que, aliás, nunca tiraram o sono dos membros do grupo), os fãs da primeira hora ficaram perplexos com o terceiro álbum, London Calling. O rompimento final com o radicalismo punk se daria com o álbum triplo Sandinista!
Em 1982 o grupo lança Combat Rock e, a partir do sucesso desse álbum, conquista os Estados Unidos e se consagra como uma megabanda. A essa altura, os atritos entre Strummer e Jones já tinham arrefecido, mas pouco depois Jones deixaria o Clash para fundar o Big Audio Dynamite. Strummer e Simonon tentaram manter o Clash com novos integrantes, e em 85 lançaram o álbum Cut the Grap - um grande fracasso, que não merece constar da discografia da banda.
O Clash não teve, então, condições de sobreviver, e naquele mesmo ano o grupo se desfez. Mas continua vivo nos acordes das bandas que ainda hoje se inspiram nos ousados modelos criados por esses músicos visionários, que anteciparam os rumos do rock moderno. "

domingo, 10 de fevereiro de 2019

Joe Pass - Jornal A Clava do Som (1993)

O americano Joe Pass é considerado um dos grandes mestres da guitarra semi-acústica. Não é à toa que ganhou o apelido de "o virtuoso", por sua apurada técnica instrumental. Pass já esteve algumas vezes no Brasil, nos brindando com sua técnica e virtuosismo. O jornal A Clava do Som nº 16 (dezembro de 1993) trazia uma matéria com esse brilhante e renomado guitarrista, em artigo assinado pelo conhecido crítico de jazz José Domingos Rafaelli. O texto começa com uma chamada da matéria que diz: "Nem drogas, nem doença grave impedem um dos melhores guitarristas de jazz do mundo de manter seus acordes vagando pelos palcos da vida". Abaixo a matéria:
"A história do guitarrista Joe Pass parece com a de tantos músicos, mas num ponto é atípico no jazz. Ao contrário da grande maioria, ele foi uma revelação tardia. Embora tenha iniciado seu aprendizado musical muito cedo, devido a problemas pessoais, só começou a se projetar com 33 anos, idade muito avançada para um 'jazzman'.
Josephy Anthony Passalaqua nasceu em Brunswick, New Jersey, em1929. Seu pai, um italiano da Sicilia, trabalhava numa fábrica de aço, e desejava que seus filhos tivessem uma vida melhor. Joe começou aos nove anos na guitarra. Obrigado pelo pai, estudava sete horas por dia, procurando aprender as músicas que ouvia no rádio. No início, ele detestava praticar tanto tempo, mas a revolta transformou-se numa grande paixão pelo instrumento. Aos 14 anos conseguiu seu primeiro trabalho profissional num conjunto de sua cidade. Era o começo de uma trajetória que - mesmo acidentada - lhe garantia uma posição entre os maiores guitarristas de jazz de todos os tempos, sendo considerado um dos maiores virtuosos do instrumento.
No final dos anos 40, vivendo os frenéticos dias da lendária Rua 52, em New York, tocou com Dizzy Gillespie, Charlie Parker, Coleman Hawkins e outros gigantes. Ele admite que o guitarrista cigano Django Reinhardt foi sua primeira influência, mas também absorveu muitas coisas de Charlie Christian, Tal Farlow, Barney Kessel e, mais tarde, Wes Montgomery. Entretanto, garante que as grandes influências que teve foram os pianistas Bud Powell, Art Tatum e Al Hais, além de Parker, Gillespie e Hawkins. Mas, se a Rua 52 lhe deu oportunidade de tocar com tanta gente, marcou negativamente sua vida devido ao envolvimento com as drogas. Os efeitos maléficos do vício agravaram sua saúde, impediam-lhe de tocar e o afastavam cada vez mais da possibilidade de uma carreira estável. Depois de muitas peripécias, tocando aqui e acolá, inclusive algum tempo em Las Vegas, internou-se voluntariamente na Synanon House, uma instituição para recuperação de viciados, em Los Angeles, em 1960. Dois anos depois, ao lado de alguns internos, entre eles o pianista Arnold Ross, gravou o LP 'Sounds of Synanon' para o Pacific Jazz, que chamou a atenção da crítica para o seu talento.
Deixando Synanon, começou a tocar com conjuntos diversos na Califórnia, inclusive as bandas de Gerald Wilson, Bud Shank, Clare Fischer, Earl Bostic e Les Cann. Em 1963, gravou seu primeiro disco para a World Pacific: 'For Django'. Nessa época, em seções de gravação com Shank e Fischer, conheceu a Bossa Nova ('O Barquinho' e 'Samba de Uma Note Só'), interessando-se pela música brasileira moderna, que adota até hoje no seu repertório. Atuou durante dois anos no quinteto do pianista inglês George Shearing, ganhando alguma notoriedade. Mas a grande mudança em sua carreira aconteceu quando o produtor Norman Granz contratou-o para o seu selo Pablo, gravando 'The Trio', com o pianista Oscar Peterson e o baixista Niels Pedersen. A associação com Granz possibilitou-lhe recuperar o tempo perdido. Aos 44 anos, Pass caminha a passos largos para a fama. Sucederam-se uma série de colaborações com alguns monstros sagrados do jazz: Ella Fitzgerald, Peterson, Roy Eldridge, Sarah Vaughan, Dizzy Gillespie, Duke Ellington, Benny Carter, Count Basie, Zoot Sims e Mil Jackson. Joe ganhou uma projeção que jamais sonhara.
Os discos em seu nome - incluindo a série 'Virtuoso' -, os duos com Ella, o álbum duplo com Peterson na Salle Pleyel, em Paris, o encontro com o percussionista Paulinho da Costa, tocando músicas brasileiras em 'Tudo Bem!', os mais recentes 'Blues For Fred', 'One For My Baby' e 'Appassionato' mantiveram através dos anos a consistência e o alto padrão da sua excelente produção.
Joe Pass não é um revolucionário da guitarra, mas um solista dos mais inspirados. A beleza do fraseado, articulação precisa, o judicioso emprego de acordes, a inserção de acompanhamentos paralelos que sugerem motivos adicionais, os diálogos que emula consigo mesmo, de grande efeito e total liberdade são elementos de destaque do seu estilo. Seu som leve e a clareza como é extraído consegue completa dinâmica. A articulação das frases e o controle instrumental produzem ideias que agradariam aos exigentes admiradores de Segovia ou John Williams. Extremamente modesto, Joe afirmou que ainda não gravou um disco que o agradasse totalmente, mas sua habilidade instrumental e vasto conhecimento harmônico fazem dele o que todo guitarrista almeja: um 'jazzman' superiormente dotado. "

sábado, 9 de fevereiro de 2019

Rita Lee - Jornal Canja (1980)

No início dos anos 80, a Globo produzia grandes musicais, destacando sempre um grande nome de nossa música. O programa ia ao ar  às sextas-feiras. Foi um período bastante promissor, em que a mais poderosa rede de televisão do Brasil investia na qualidade, e recebia retorno de audiência. O jornal musical Canja, em sua edição nº 15 (outubro de 1980) trazia uma matéria que destacava um especial que foi ao ar naquele período, destacando Rita Lee. Anos depois, inclusive, esse especial ganharia um edição em DVD. A matéria em questão é intitulada "A última travessura de Miss Jones", e é assinada por Pedro Redig:
"Primeiro foi o da Simone, onde Milton Nascimento deu uma canja contando Maria Maria e Cigarra. Foi pro ar em março. Depois, Caetano e Jorge Ben, onde pintaram 3 músicas novas: Rapte-me Camaleoa (homenagem de Caetano à atriz Regina Casé), Aquela Senhora (malho de Jorge Ben na crítica Maria Helena Dutra) e Cae, Cae, Cae, Caetano. No terceiro especial pintou um problema: Ângela Maria foi abandonada pelo namorado pouco antes da gravação e não apareceu em nenhuma das reuniões de criação convocadas por Daniel Filho, o diretor dos especiais. Só iria no próprio dia da gravação e... chorando. Mas tudo se arranjou e ela ainda teve dois convidados: Ro Ro e João Bosco. No seguinte, paz total - era o de Paulinho da Viola. O de maior Ibope até agora foi o quinto: Gil e Cliff, que acabou dando dois programas, pois a dupla maluca gravou três horas corridas. O de menor audiência foi o de João Gilberto. E talvez até mais caro que este de Rita Lee, porque só a orquestra que acompanhou João custou 1,2 milhão, além de todas as manhas do baiano (o próprio Daniel Filho só ficou sabendo dos convidados na véspera da gravação). Foi também o que mais marcou na gaveta, porque a Globo ficou esperando patrocinador, até que o Minister topou.
O último foi de Elis Regina. Este da Rita foi o primeiro totalmente criado para a televisão. O João já veio com tudo pronto; a Elis já vinha pronta do Canecão; o Gil/Cliff, da turnê. No da Rita formou-se uma banda só para o programa. Ensaiaram uma semana. Teve 18 mudanças de cena - sem dúvida é o mais visual de todos. E não pôde ser gravado direto como os outros (um dos princípios do programa é deixar correr e só regravar cenas a pedido do artista) principalmente por causa de uma tragédia: estavam ensaiando no domingo de manhã quando Daniel Filho recebe a notícia de que sua ex-mulher e mãe de sua filha Carla, a atriz Dorinha Duval, assassinara com três tiros de revólver o novo marido, o publicitário Paulo Sérgio Alcântara. O astral foi zero, subindo a duras penas só no final da tarde).
Mas a Rita, na gravação pra valer, teve de parar a cada número, pra respirar e beber água - e ninguém tem dúvida de que foi o mais elétrico de todos os especiais até agora. Como em todos os outros, agora são 20 dias de edição, que o programa é gravado em cinco máquinas de vt ao mesmo tempo. Cem pessoas trabalham e este custou cinco milhões. O próximo, último do ano, será o de Bethânia.
Muito mais especial que os cifrões será o fascínio de milhões de pessoas, com as delícias de Rita Lee. Mais de uma hora de delírio que a maior roqueira do país oferece de bandeja pra quem quiser ter o 'prazer de ter prazer' com ela no vídeo.
- 'Brinque de sério, leve a sério a brincadeira', diz ela nos seus 32 verdes anos, a TV Globo levou a sério e topou a última travessura de Rita - Brincadeira de mais de 5 milhões de cruzeiros. Mas que valeu a pena, está todo mundo sorrindo de felicidade. De minha parte, não tenho o que reclamar. Basta o disco novo, que já escutei 57 vezes, cada fraseado das oito músicas dos dois lados. Mas também é o de menos, diante do que ficar debaixo da mesma luz que iluminou a presença de Rita, marido, banda e outros, salvando o domingo de chuva de 5 de outubro. A banda tem oito membros: o mago Lincoln Olivetti, que faz os arranjos de muita gente, mas voa alto quando o caso é Rita Lee. Caso de Roberto de Carvalho, que junto com Olivetti forma o duo de teclados. Roberto aparece, guitarra colada à calça branca, tênis e camisa americana, mas com cara de comportado. Rita dá o toque: 'É meu', esclarece quando a plateia dá gritinhos depois que ela canta, dirigindo-se a Roberto: '.. meu bem, meu bem...'
´'É minha, dá vontade de gritar - ela está de calça e paletó entre marrom claro e o cinza, camisa quadriculada de botão na gola, e uma gravatinha vermelha caindo calma e dividindo ao meio aquele corpo negro, magno, magnético (me segura, meu bom Deus!).
Voltando à banda: além de Lincoln e Roberto, o baixista Lee Marcucci, Jamil Joanes também no baixo de convidado especial, Robson Jorge numa guitarra e na outra... vejam só! o próprio Guto Graça Melo, o cara que responde por toda a parte musical da Rede Globo. E mais a mulher de Guto, Naila Skorpius, percussionista introduzida por Daniel Filho como 'Golbery do grupo'(*) (ele explica: 'pouco valorizada, mas a que manda no baixo'). A seu lado, Chico Batera, percussionista de muitos sons, baterista escondido que vai duplicar o impacto sonoro de Miss Rita Lee Jones: no centro redondo como a fruta, o Mamão, principal bateria, interlocutor musical mais solicitado por Rita durante a gravação. Ele vai no  ritmo novo que ela descobre na hora, ao vivo, dançando com a plateia um Baila Comigo íntimo e cheio de brilho.
Rita canta Luz Del Fuego, depois Mamãe Natureza, o teatrinho está esquentado. Todo mundo ligado, como todo mundo vai se ligar quando ela for pro vídeo com esta loucura toda. Em seguida, Ovelha Negra, e a intensidade vai subir com a aparição seguinte: ela de 'vítima indefesa', Roberto Carvalho com cara de vamp, dentes compridos - e ambos comandam o ritual de Doce Vampiro. Mas se segura, que tem mais.
O 'mestre de cerimônias' Hilton Gomes inventa uma expectativa: 'concurso de Miss Brasil', e Rita entra, triunfante - toda desengonçada, manto preto que procura equilibrar junto com uma coroa de brilhantes e mais a tradicional faixa na final emocionante da eleição da 'primeira Miss Brasil do Século 21'. E Rita vai estonteando um público que peca pela falta de dois ilustres convidados - Caetano, que foi ao lançamento do lp de Vinícius Cantuária; e Ney Matogrosso, que se enfureceu na confusão criada na entrada do teatro e rasgou o convite.
E lá vai Papai Me Empresta o Carro, e uma volta ao passado com Esse Tal de Rock and Roll. A amiga Lucia Turnbull salta da cadeira e não vai sentar mais até o fim (Lúcia foi guitarrista do Tutti Frutti, assim como Naila foi percussionista). A plateia agora vai viajar numa balada que é um bode só: Shangri-lá. É a primeira música do novo lp que aparece no show. Então virá a música que está sendo chamada de a nova Mania de Você - o debochante bolero Caso Sério. O swing mais saboroso das oito novas músicas é o de João Ninguém, um reggae em que Rita imita o sotaque jamaicano, supergozativa.  Comunicação estantânea, e em dois minutos todo mundo sabe a letra. Ela não pede, mas todos cantam junto com ela. E agora Bem Me Quer, Mal Me Quer, um pouco de new wave, como define o especialista Okky de Souza, que participa do disco e da divulgação de Rita Lee.
Mas eis que de repente, fim de show. Rita lança o já consagrado perfume - o coro, e ela de roupas fugazes, carnavalescas.  A plateia fica com jeito de quarta-feira de cinzas quando ela se retira. Mas Daniel Filho guarda uma bomba: o rockão Orra Meu, celebração enfumaçada de uma Rita Lee de casaco de motoqueiro preto, óculos negros também, e, de novo, ela arromba a festa. "

(*) Referência ao general Golbery do Couto e Silva, chefe da Casa Civil do governo Figueiredo, e que tinha grande influência na política nacional

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2019

Titãs - Entrevista Revista Zorra (1986)

Em 1986 os Titãs deram uma guinada radical em sua carreira. Após lançar dois discos que não chamaram muito a atenção, e indicavam que a banda seguiria uma vertente um tanto pop e descartável, naquele ano eles lançariam um disco radical, repleto de criatividade e trazendo um peso e composições fortes: Cabeça Dinossauro. Produzido por Liminha, e revelando nuances até então não apresentadas pelo octeto, esse disco marcou profundamente o cenário do rock dos anos 80, e até hoje é considerado um clássico. Na ocasião, a revista Zorra nº 1, que destacava o rock nacional, trouxe uma entrevista com  a banda, em matéria não assinada;
"1986 vai passar para a história da música brasileira como o ano em que o rock nacional atingiu a maioridade. Tanto nos temas e ideias por detrás das letras, quanto no cuidado com a produção de discos e shows, as bandas de rock não têm mais a despretensão e ingenuidade de sua adolescência musical.
Titãs é uma banda exemplo deste tipo de mudança. Nascida no 'Big Bang' do novo rock nacional - as epidêmicas e efêmeras danceterias -, passou por duas experiências no vinil: Titãs e Televisão, que apesar da boa vendagem e repercussão, ficaram aquém da expectativa do grupo quanto à qualidade sonora. Cabeça Dinossauro é o seu último disco. Nele, os oito Titãs apresentam um trabalho muito mais coeso, mais grupal que os anteriores. Tentando resgatar o que já foi a principal característica do grupo, em particular, e do rock em geral - a força no palco e a rebeldia frente às instituições e autoridades -, eles partiram em busca de uma sonoridade primal, primeva, visceral, vigorosa, vibrante, ríspida, rascante, que traduzisse em linguagem musical os conceitos e intenções presentes em suas letras revoltadas, recalcitrantes, rebarbativas, contestatórias, replicantes, protestatórias e indignadas. Nando Reis (baixo e voz), Arnaldo Antunes (voz), Toni Belloto (guitarra), Paulo Miklos (voz), Sérgio Brito (teclado e voz), Charles Gavin (bateria e percussão), Branco Mello (voz) e Marcelo Fromer (guitarra) são os componentes da banda entrevistada por Zorra.
Todo o trabalho criativo é um trabalho do ego. Quando esse trabalho é coletivo a coisa complica, ego é uma palavra sem coletivo. Quando fama e sucesso estão envolvidos, aí é que a complicação é inevitável. Para desmentir tudo isso aí estão os Titãs, quatro anos juntos. Como tanta gente consegue tocar junto durante tanto tempo?
Com muita boa vontade. O maior problema não é quanto à criação. Todos no grupo compõem, e a gente sabe dividir o espaço para colocar as melhores músicas no disco.
Nós já éramos amigos antes do grupo, isso segura muito a convivência. O fato de os Titãs serem oito não é uma opção profissional nossa.Eram oito amigos que resolveram montar um grupo.
O que Cabeça Dinossauro tem que Titãs e Televisão não têm?
A direção. Uma direção que a gente toma em conjunto e vai atrás. Antes tudo era muito dispersivo, muito individual, pouco grupo. Isso foi fruto de uma coisa natural, nada muito programado. Estávamos apontando para muitos lados e resolvendo optar por uma coisa mais coesa. As músicas, arranjos, letras, tudo. Estamos mais coerentes com a força que a gente tinha desde o começo, uma energia muito forte no palco. No começo, com a nossa imaturidade quanto à gravação em estúdio, ficava uma coisa um pouco fria, standard.
De 'não posso mais viver assim ao seu ladinho' até 'Polícia para quem precisa de polícia' e 'Porrada nos caras que não fazem nada', a virada ideológica é grande, quase 180º. Pra que lado os Titãs estão apontando agora?
Para um caminho mais rock, menos pop, mais descompromissado com a mídia, com o rádio. Este é um disco que está mais ligado com a ideia básica do rock - essa coisa de rebeldia, de estar pouco se fudendo com as instituições - do que com a proposta ideológica. O que a gente fala são coisas simples, que as pessoas vivem. Não são as ideias estapafúrdias que entrem em choque com o que elas pensam.
De repente, no lugar de oito rapazes bem vestidos olhando com cara de você-está-em-meu-poder aparece a figura grotesca de um homem urrando. Como o público titânico reagiu a essa mudança?
O público na verdade, é uma coisa super consciente. Mesmo com essa capa estranha, Cabeça Dinossauro já vendeu mais que os outros dois discos. Mas o que importa é que a gente fez um trabalho muito forte, muito coerente com o que a gente pensa. Queremos que as pessoas que realmente se identificarem e gostarem do nosso trabalho, comprem o disco e curtam a gente.
De uns tempos pra cá, o rock nacional engrossou a voz, tem pintado muitas bandas fazendo um som mais sujo, pesado, cantando coisas mais críticas, mais ligadas à nossa realidade, mixando Sid Vicious e Geraldo Vandré. Vocês não acham que esse rock rebelde está se tornando apenas mais um filão para as gravadoras?
Acho que esse tipo de rock já existe no Brasil faz tempo. Isso pode não ter sido compreendido mercadologicamente, só ter sido assimilado comercialmente agora, mas o público de rock, para as bandas que tocavam antigamente, esse rock sempre existiu. Não encaro isso como um filão. É uma necessidade que as pessoas têm de escutar e fazer esse tipo de música. Já tem 4, 5 anos que começou essa onda de bandas novas. Demorou um tempo para se criar um caminho, um público que exigisse algo mais do que Blitz e Cia tinham para dar.
'Estado Violência, 'Porrada', 'Polícia'. Com essa agressividade toda, onde foram parar os Titãs de 'Sonífera Ilha'?
A temática não é uma coisa tão importante assim. Você pode falar sobre a guerra nuclear de um jeito extremamente idiota, bobo, simplório. Aliás, a maioria das pessoas acaba fazendo assim. Mas também pode se falar de amor de um jeito forte, vigoroso. O Ira!, por exemplo, tem uma série de músicas de amor nesse último disco que são vigorosas, é rock. O nosso lado mais doce, limpo, foi diminuindo mas ainda existe. A gente não deixou de fazer nada do que fazia. A fusão de funk-reggae-rock, que sempre foi a base do nosso som, continua presente. É uma linha evolutiva, o germe do som que a gente faz agora já estava no segundo disco - 'Televisão' e 'Massacre' era a pista.
Cabeça Dinossauro
Por que a produção do Liminha? (Arnolpho Lima Jr.,  a cabeça por detrás do Dinossauro, já foi membro de arquigrupos de rock como Os Mutantes e os Baobás e produziu discos de Gilberto Gil e dos Paralamas do Sucesso).
Pela qualidade de som do que ele anda fazendo. O som dos outros discos sempre ficou aquém do que podia ser, ou porque gravávamos com nossos próprios instrumentos, ou porque se perdia na mixagem final, etc. Agora, mais do que nunca, a gente ia fazer um disco pesado - a qualidade do som tinha de ser muito boa. Liminha se mostrou o produtor ideal, ele ajudou a explodir o que estava preso em nós, sem interferir em nada. Só em 'O Que', onde a gente sentiu uma fragilidade no arranjo inicial, que ele interviu diretamente. Ficamos tocando duas horas com ele, que programou a bateria eletrônica. Fora as manhas técnicas - gravamos com outras guitarras, baixo com amplificador microfonado, uma série de coisas que possibilitaram esse som pesado, forte.
E a produção dos shows, com quem vai ficar?
Com os Titãs. A gente quer se responsabilizar cada vez mais por todos os setores que nos afetam. A direção deu para as músicas, a capa, o som do disco, está se estendendo para a produção do show. A iluminação é nossa, o cenário é nosso, a aparelhagem, tudo. Se pintar a ideia de fazer um vídeo, nós é que vamos fazer o roteiro. A ideia é cada vez mais meter a mão na coisa, para que tudo saia como a gente quer. "


quinta-feira, 7 de fevereiro de 2019

Paulinho da Viola - Um Ourives e Um Luthier de Poesia Penetrante (2012)

Em 2012, Paulinho da Viola completou 70 anos. Em sua edição de 24 de junho daquele ano, o jornal O Globo dedicou um caderno inteiro para falar de vários compositores brasileiros de renome, que nascidos em 1942, também fariam 70 anos durante 2012. Todos, como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento e Jorge Ben, foram lembrados através de textos escritos por amigos, parceiros ou meros admiradores. O texto em homenagem a Paulinho foi escrito por Hermínio Bello de Carvalho:
"No princípio era o choro, quase que apenas o choro. Explica-se: a casa, no bairro de Botafogo, era dominada pelo majestoso violão de Benedito Cesar, pai de Paulo Cesar Baptista de Faria, que futuramente ganharia nome artístico: Paulinho da Viola. Na casa viviam a avó, a mãe e o irmão caçula de Paulo Cesar, Chiquinho. Este aí ficava de lado com seu cavaquinho, ou então consertando rádios, vitrolas, gravadores e também instrumentos musicais. Era uma paixão adolescente que, acho eu, iria influenciar o irmão mais velho, quando ele, já famoso, entulharia a garagem de sua casa na Barra com carcaças de carros antigos, ou se enfurnava numa imensa e bem fornida oficina de marcenaria, onde se transfigurava, entre outras coisas, em luthier.
O ambiente era dominado quase que apenas pelo choro. Mas convenhamos que era impossível não ouvir as rádios Nacional e Tupi nem ficar indiferente quando se aproximava o carnaval, aos sons que vinham dos blocos de rua do bairro de Botafogo. Paulinho se escafedia para Jacarepaguá, onde ajudou a organizar o bloco Foliões da Anália Franco. Mas foi seu tio, Oscar Bigode, quem fez com que o jovem entrasse para a Portela, sua escola de coração. O mundo musical de Paulo Cesar ia ganhando esses contornos, abastecendo-se dessas informações, captando esses sinalizadores que incorporaria, depois, à sua carreira.
Tudo mudava quando Benedito Cesar tomava, coincidentemente, o rumo de Jacarepaguá - mas longe dos tamborins, ganzás e cuícas que fascinavam o filho mais velho. A casa-alvo da visita era enorme, circundada por um grande muro e cheia de árvores - e a mais frondosa e tonitruante tinha nome e sobrenome: Jacob Pick Bittencourt, o Jacob do Bandolim. E as rodas de choro rapidamente se formavam em torno do anfitrião. Quem passou pelos saraus do Jacob jamais esquecerá aquelas noites. Paulinho inclusive.
E aí já estamos em meados da década de 1950.
'Olá, como vai?' 'Eu vou indo e você?' Poderia ter sido o diálogo quando fui pagar uma fatura no banco onde Paulinho dava expediente no balcão. Ele conta melhor esse nosso encontro do que eu. A partir dali, amigos e parceiros - e ele adentrando no 'já vi tudo' onde eu morava no Beco do Rio, vizinho à Taberna da Glória e ao maestro Moacir Santos. Minha casa tinha visitantes ilustres, e um deles era Ismael Silva. Os violões clássicos adentravam no apartamentinho que tinha apenas sala, banheirinho e uma quitinete sem-vergonha, onde mal cabia uma geladeira. Reza a lenda que ali, naquele moquifo, fui seu primeiro parceiro. Que Paulinho relembre essa história.
Estamos já na década de 1960. Não, Paulinho ainda não se aventurara a ir profissionalmente ao encontro da música. Isto se deu quando o levei para o então recém-aberto Zicartola, na Rua da Carioca, e onde Cartola deu a ele seu primeiro cachê como músico. Definia-se, ali, o seu destino. E por lá ficou tocando ao lado de Zé Keti, Nelson Cavaquinho, Ismael Silva, Clementina de Jesus, Cartola e os convidados ilustres que iam receber a Ordem da Cartola Dourada, artifício que criei em parceria com Zé Keti para impulsionar as rodas de samba que ele, Zé, criara.
E o que fazia o tímido Paulinho naquele palco diminuto? Acompanhava, simplesmente acompanhava ao violão. Até o descobrirem cantor e compositor levou um tempo.
Os blocos de rua que fizeram com que Paulinho cruzasse o seu caminho com o grande Mauro Duarte (Mauro Bolacha), Zorba Devagar, depois Jorge Mexeu e Catoni, não o fizeram afastar-se do choro. E Zé Keti, quietinho, estava sempre por perto, ardilando coisas, botando lenha na fogueira. Era um agregador.
Em dezembro de 1964, vamos assestar os refletores do Teatro Jovem na figura extraordinária de Clementina de Jesus, numa série chamada 'Menestrel', criada por mim - e que juntava um músico popular a um erudito. Acompanhando-a quem? Paulinho da Viola, Elton Medeiros, Benedito Cesar. Turíbio Santos abria o recital. Kleber Santos, dono do Teatro Jovem, me chama a atenção: 'Você tem um show pronto em suas mãos.' Nascia o 'Rosa de Ouro', com Clementina de Jesus, Aracy Cortes e os Cinco Crioulos: Paulinho da Viola, Elton Medeiros, Jair do Cavaquinho, Anescarzinho do Salgueiro e Nelson Sargento, além de um palco despojado, onde projetávamos slides e as vozes de Almirante, Pinxinguinha, Lúcio Rangel, Jota Efegê, Elizeth Cardoso e quem mais se possa imaginar. Enfim, a antítese de tudo o que estava na moda. Era uma estética que rádios e TVs ignoravam.
A carreira solo de Paulinho foi iniciada com um disco em que colocamos, com imensa alegria, a música de Valzinho - entre outros compositores. Valzinho passaria a ser um símbolo de tudo aquilo que não era midiático, sinônimo de total invisibilidade musical. Admirado por Radamés Gnattali e Tom Jobim, ainda assim vivia nas sombras.
Época de festivais, da bossa nova, da jovem guarda de Erasmo e Roberto, o choro praticamente declinando após a morte de Jacob em 13 de agosto de 1969. Falei em 69? Pois um ano depois nosso Paulinho ilumina a década de 1970 produzindo um LP arrebatador com a Velha Guarda de sua amada Portela, e de uma certa forma retomando a linha estética trazida pelos discos do 'Rosa de Ouro' e pela discografia de Clementina, da qual participa ativamente.
Há que se revirar a ampulheta, deixar que a areia escorra e nos faça lembrar todas as vertentes que se atravessaram em sua vida, desde o choro tocado com solenidade em sua casa por Benedito Cesar e na de Jacob do Bandolim, e também as sonoridades dos blocos de Botafogo e Jacarepaguá, mas todas as informações trazidas por Valzinho e outros músicos iguais a ele e a Elton Medeiros, seu parceiro mais constante, fizeram com que fosse esculpido esse grande personagem que é Paulinho da Viola, preso à tradição do samba e ao mesmo tempo adentrando a vanguarda ao compor 'Sinal Fechado', repleto de signos e sinais metafóricos, para em seguida, despir-se dessa ruptura e de novo vestir, com orgulho, os seus paramentos de sambista.
Vejo-o assim: ourives e luthier a bordar no pentagrama melodias de uma aparente simplicidade. Ourives e luthier de versos desprovidos de arabescos, mas de poesia penetrante que jamais rasteja para a vulgaridade. Nenhuma informação desperdiçada, tudo reciclado em sua arte enxuta, antimidiática por natureza. "