Palavras Domesticadas

Palavras Domesticadas

quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Uma Carta Uma Brasa Através - Paulo Leminski


Paulo Leminski morreu em 1989, e após sua morte alguns textos inéditos foram publicados, reunidos em edições especiais, trazendo a marca de qualidade, que foi sua marca. Em 1992 a editora Iluminuras publicou um livro com cartas de Leminski para seu amigo Régis Bonvicino, escritas de 1976 a 1981, trazendo textos poéticos, críticos e repletos da verve literária, numa escrita às vezes caótica, mas genial, que sempre permeou tudo relativo ao grande poeta curitibano.
O livro traz prefácio de Caetano Veloso, que diz:
"Leminski foi o poeta mais apaixonado e o escritor mais intenso de sua geração, e as cartas que compõem este livro são um outro modo de nos aproximarmos do entendimento de sua trajetória. Dos primeiros poemas em Invenção ao livro sobre Bashô, do Catatau às decisões caprichosas de relaxar, das canções caipiras ao Agora É Que São Elas (romance fascinante que é um anticlímax em relação ao Catatau mas que me parece ter de fato o interesse que Boris Shneiderman aponta nele, em artigo também constante deste livro), Leminski viveu delícias e tormentos que procurou comunicar aos amigos, e é bonito ver isso nas cartas a Régis."
Na orelha do livro Régis Bonvicino escreve:
" 'Uma carta uma brasa através' é o verso inicial de um poema de Paulo Leminski, que tematiza a correspondência. O texto, publicado em 'Caprichos e Relaxos', prossegue: 'nuvem cheia de minha chuva/cruza o deserto por mim/a montanha caminha/mar entre os dois/uma sílaba um soluço/um sim um não um ai/sinais dizendo nós/quando não estamos mais'. Paulo Leminski já não está mais entre nós desde outubro de 1989 (*), mas deixou sinais: seus livros de poesia e prosa de ficção, os textos jornalísticos, cartas, etc. Por isso resolvi adotar o verso 'Uma brasa uma carta através' como título deste volume, que reúne as cartas por ele enviadas a mim de 1976 a 1981 - ano que Leminski comprou seu primeiro telefone e foi, gradativamente, perdendo o hábito de escrevê-las."
Segue abaixo, uma dessas cartas, de 1979, respeitando a grafia original, publicada no livro:
"Nos 3 dias de show, Gil dedicou para mim 'Logunedé' (soube depois q em Porto Alegre ele dedicava a mesma música a Caetano q estava lá) com o seguinte comercial: para Paulo Leminski, grande poeta do Paraná, poeta realce, uma das inteligências mais faiscantes destre país...
Num dos shows, Cetano cantou a pedido meu 'Cajá', dizendo, 'esta música é para um amigo meu, o grande Paulo Leminski'...
Quer dizer: em matéria de ego, não posso querer mais... definitivamente, meus ídolos são meus fãs.
no último dia, Caetano e músicos foram num jantar na casa do Helinho, garoto nosso daqui.

De tarde esteve aqui em casa onde cantei as últimas.
Ele, enfim, pediu uma fita !!! Que dei de qualquer jeito...
Perguntou se Walter ia mesmo gravar 'Verdura', eu expliquei que não, e ele:
- Ótimo! Porque eu vou gravar!
Disse que neste LP não dava mais. Mas q ele ia cantar no show 'Cinema Trascendental', a seguir... Terminamos a noite de manhã, Caetano e todo mundo cantando 'Verdura', várias vezes...
E soube q Gil disse a um garoto daqui q a joia mais preciosa q ele estava levando de Curitiba era minha fita com música q ia estourar no próx LP dele (q é 'Mudança de Estação', acho).
Estou até meio tonto com tanto...
É um sonho paranoico de 10 anos come true!
(pintou uma música nova: 'canção movida a energia solar', Caetano curtiu pacas
a tempo (há tempo? será que o tempo existe mesmo ou é um subproduto da (H) história? ora, cartésio, isso são horas? vá dormir, que você precisa, rapaz!)
lucinha turnbull(re/rita lee) vai lançar um lp odeon produzido por gil soube via ele q eu tinha cansongs merveieulleulyeuxes
me telefonou implorando, em prantos, uma fita cassete
o qual mando
minha passagem para a MPB está para se completar: operação mass-mídia"

(*) Com relação à data de morte de Paulo Leminski, Régis Bonvicino comete duas imprecisões neste livro. Primeiramente, na orelha ele afirma que foi em outubro de 89. Depois em um artigo, ao final do livro, denominado Morte, que começa com a frase: 'Paulo Leminski, que morreu anteontem...', um texto de rodapé informa: "Artigo publicado na Folha de São Paulo em 9 de agosto de 1989, dois dias depois da morte do poeta(...)". Na verdade Paulo Leminski faleceu no dia 07 de junho de 89, mesma data em que faleceu a cantora Nara Leão.

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

A Ópera-Rock de Odair José


A partir do início dos anos 70 Odair José se tornou um dos artistas mais populares, e um dos grandes vendedores de discos do país. Músicas como "Eu Vou Tirar Você Desse Lugar", "Essa Noite Você Vai Ter Que Ser Minha". "Uma Vida Só (Pare de Tomar A Pílula)", "Deixe Essa Vergonha de Lado", e muitas outras, tornaram Odair um nome sempre presente nas paradas de sucesso. A temática de suas letras, que falavam de forma direta sobre temas que eram tabus, como se apaixonar por uma prostituta, ver a mulher amada em uma revista masculina barata ou viver um amor com uma empregada que se envergonhava de sua condição, o levaram a ser chamado de "Bob Dylan da Central", numa alusão à estação de trens de subúrbio da Central do Brasil, no Rio, que representava bem seu público e os personagens das histórias de suas músicas.
Porém, em 1977, Odair José resolveu dar uma guinada em sua carreira ao ousar fazer um disco conceitual, uma ópera-rock (uma prática bem comum na época). Uma matéria que saiu em janeiro de 1977, no tabloide Hit-Pop, que vinha encartado na revista Pop falava dessa mudança radical a que Odair se propôs. Sua gravadora, a PolyGram não aceitou bancar seu projeto, e Odair convicto de sua proposta, lançou seu disco (que segundo a matéria, seria duplo, mas na verdade foi lançado como simples) por um selo menor. O disco, talvez devido à pouca estrutura de divulgação por ser lançado por uma pequena gravadora, vendeu pouco. Seu público tradicional não entendeu sua proposta, e o público-alvo de seu projeto talvez por preconceito, não tenha dado a devida atenção ao álbum. Se não é uma obra-prima, pelo menos o disco "O Filho de José e Maria" traz um diferencial em sua carreira.
Odair hoje é respeitado por grandes compositores por ter sabido falar diretamente ao povo, e atingir em cheio as classes b e c. Já foi gravado por nomes respeitados na MPB, como Caetano, Ney Matogrosso, Arnaldo Antunes e Zeca Baleiro.
A matéria publicada na época é a seguinte:
"Odair José é o mais novo contratado de Guilherme Araújo, o inventivo e inquieto empresário de Caetano Veloso, Gal Costa e Ney Matogrosso. Isso pode significar grandes mudanças na carreira de Odair, 30 anos de idade, sete LPs gravados, sucesso de público, mas não de crítica. Quais são os planos de Guilherme para o cantor? No mínimo um grande sucesso ou um grande escândalo, com a estreia, em abril, da ópera-rock de Odair O Filho de José e Maria(título provisório) em Nova Jerusalém, Pernambuco, num espetáculo ao ar livre, que será gravado num álbum duplo. Guilherme fala do ambicioso projeto: 'Mesmo que os intelectuais virem a cara, vai ser um trabalho muito popular. E há muito tempo que eu vinha querendo fazer alguma coisa bem popular. Esse trabalho de Odair é uma história de início, meio e fim, sem textos, só com músicas, que também têm vida própria, mesmo isoladas do espetáculo'.
Na montagem da ópera-rock, que talvez receba o nome definitivo de Coisas Proibidas, Sonhar com Prazer ou Vale a Pena Tentar a Sorte (músicas do espetáculo), e que depois da estreia será apresentada em estádios de várias cidades brasileiras, Odair vai se mostrar mais descontraído, com roupas coloridas e muitas luzes, acompanhado por uma banda de rock e dois corais, masculino e feminino. Para ele, O Filho de José e Maria é um apanhado de si mesmo, a história de qualquer pessoa, desde o nascimento até os 30 anos. 'É um negócio muito simples', diz Odair, 'estou partindo para uma coisa mais calma, mais musical. Esse é um trabalho forte, mais jovem. Senti que minhas músicas estavam ficando envelhecidas e, na verdade, eu não sou tão adulto quanto aquelas letras que vinha fazendo ultimamente. Por isso, estou fazendo uma coisa muito mais parecida comigo, usando tudo que já fiz, sem renegar nada do que já fiz, porque eu gosto de tudo e minha intenção é somar. Não quero dividir. Eu quero é me mostrar mais para as pessoas.'
Odair com Caetano
O primeiro encontro de Odair com Guilherme Araújo e seus artistas (Caetano, principalmente) aconteceu em São Paulo, durante a Phono 73, espetáculo promovido pela gravadora Phonogram, reunindo todos os seus contratados.
Na ocasião, Odair cantou junto com Caetano (na foto acima aparecem os dois), o que provocou vaias que aplausos, fato que deixou Caetano irritado e o fez reagir com a já antológica frase 'não existe nada mais Z do que a classe A', numa crítica ao comportamento elitista do público, que não admitia o encontro de dois representantes de plateias tão distantes quanto a esclarecida e o 'povão'. E o 'povão' vai aceitar a mudança de Odair? Ele acredita que sim: 'Meu trabalho é a minha imagem. O público sempre está esperando o novo, e o novo é sempre mais válido do que uma coisa repetida, mesmo que algumas pessoas, no ínício, não gostem da novidade. Meu trabalho não é uma ópera. Ele parte do princípio de que uma música é sempre uma história. Então, esse espetáculo é uma história, a história de qualquer pessoa.' "

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

The Who - The Kids Are Allright


Para qualquer fã do The Who, é imprescindível assistir ao documentário The Kids Are Allright, o filme definitivo sobre a banda. Em 1980 foi lançado nos cinemas, e nos anos 90 saiu emVHS, e com certeza deve ter uma versão em DVD.
Na ocasião de seu lançamento o jornal quinzenal Canja, em sua edição de nº 11, de 20 de agosto a 3 de setembro de 1989, trazia uma resenha da obra, escrita por Kid Vinil.
Segue abaixo o texto:
"A música já quase nos acordes finais, quando a bateria de Keith Moon, com o bumbo cheio de pólvora, explodiu. Só que desta vez foi diferente: o lunático baterista subornou o o encarregado da montagem para que colocasse mais pólvora que o programado. O homem caprichou. Colocou dez vezes mais. A explosão atirou Keith por cima da bateria, os pratos voaram, cortando seu braço. Pete Townshend recebeu todo o impacto da explosão e teve o ouvido seriamente afetado. Os monitores e as câmeras de tv partiram-se em milhões de estilhaços.
A abertura dessa obra-prima, The Kids Are Alright, ou Os Garotos Estão Numa Boa (de longe, de todos os filmes de rock 'n roll da face da terra o mais fantástico e sensacional) não podia ser mais feliz: o palco era o show de televisão The Smothers Brothers Comedy Hour. O ano, um dos mais insanos de que se tem conhecimento na caminhada da Humanidade, 1967. The Who - o filme conta 15 anos de sua história - executava My Generation, com todos os efeitos possíveis e imagináveis daqueles crazy days: bombas de fumaça, milhares de cintilantes spotlights, guitarras, amplificadores e microfones sacrificados em nome da anarquia e do rock'n roll.

Os Garotos Estão Numa Boa é atualmente um dos cinco filmes de rock que vêm arrepiando as plateias norte-americanas e europeias. Talvez eles cheguem até o Brasil, talvez não. Depende da boa vontade das exibidoras vocês assistirem a essas alucinantes maravilhas da sétima arte. Desde o momento em que você compra seu ingresso à saída da sala de espetáculos. Os Garotos Estão Numa boa soterra os espectadores em toneladas de watts de excitação e a comoção gerada por ele exige pelo menos uma vidraça estilhaçada, ou seu coração saltará boca afora.
A história do The Who, um dos grupos mais conscientes da música contemporânea, conta desde uma obscura apresentação num clube londrino, em 1965, ao último concerto com o tragicamente desaparecido Keith Moon, nos estúdios de Filmagem Sheppererton, com as imagens desfilando perante nossos olhos estarrecidos e na maioria das vezes, rasos d'água.
É um clima de devastação que permanecerá por mais de duas horas na tela, fornecendo argumentos para os fiéis fãs do The Who confirmarem, orgulhosos, que eles são a maior banda de rock'n roll do universo. E se era devastação que o diretor Jeff Stein queria mostrar, ele não poderia deixar de incluir em seu documentário as antológicas apresentações nos festivais de Monterey e Woodstock, onde Townshend, Daltrey, Moon e Entwhistle consagram-se como estrelas de primeira grandeza no firmamento do rock. Esses dois memoráveis concertos dentro do contexto de Os Garotos Estão Numa Boa causam tanto impacto, que eu mesmo vi, com esses olhos que a terra há de comer, dezenas de teenagers se urinarem de tanta emoção.

Mas é nas três últimas canções, My Generation, Won't Get Fooled Again e Long Live Rock que Jeff Stein brilhantemente sintetiza toda a mensagem do documentário, que é o recado do mais lúcido dos grupos de rock, tudo o que a minha geração veio a fazer e a ser.
O próprio Stein explica: 'Quando éramos mais jovens, My Generation era tudo o que queríamos dizer em termos de revolta e autodestruição. Won't Get Fooled Again fala de uma geração que queria se tornar uma força e como todos nós nos decepcionamos. Agora nós somos os novos chefes. E somos exatamente como os antigos. Nos tornamos cínicos ao invés de revoltados. Nos desviamos de nossos princípios e acabamos fodendo tudo'.
Ele termina: "Apesar de termos fodido com tudo, o rock'n roll ainda é algo por que vale a pena lutar, algo que valeu a pena ter amado. E não importa o quanto tenhamos nos tornado cínicos, que o rock'n roll tenha longa vida. Nós precisamos dele todas as noites.'
Quando vimos as cenas finais dessa música, o último grito de Roger Daltrey, a Gibson vermelha de Townshend se arrebentando no chão, Keith se levantando de sua bateria, abraçando e beijando Entwhistle e os demais membros do grupo num derradeiro adeus, e a câmera retroceder, mostrando a multidão, um oceano de mãos e braços estendidos, teremos a certeza de que não há maior catalizador de idealismo e paixão que o rock'n roll."

sábado, 25 de fevereiro de 2012

Primeira vinda de Rod Stewart ao Brasil


Em janeiro de 1978, Rod Stewart, um dos grandes astros do rock, desembarcava no Brasil pela primeira vez, não para fazer shows, mas sim como turista. Na época, talvez o único órgão de imprensa que cobriu sua chegada em solo brasileiro, foi o Jornal de Música. A foto que ilustra essa postagem foi tirada em seu desembarque no Aeroporto Internacional do Galeão, pelo fotógrafo Maurício Valladares, segundo o jornal, o único fotógrafo que se encontrava na pista de desembarque. De acordo com a publicação, havia cerca de 300 fãs no aeroporto aguardando a chegada de Rod, o que até causa estranheza por só haver um único fotógrafo no aeroporto, já que pelo visto não havia tanto segredo em torno da chegada do grande astro internacional ao Brasil.
Revendo essa matéria, chego à conclusão que foi nessa passagem de Rod pelo Brasil, na ocasião, lançando seu disco "Footloose and Fancy Free", que ele ouviu e se encantou com a música Taj Mahal, de Jorge Ben, a ponto de plagiar o refrão da música em seu hit "Do Ya Think I'm Sexy?". Para quem não se lembra desse episódio, Jorge Ben entrou com uma ação contra Stewart, que foi ganha, embora ele não tenha recebido nenhuma indenização financeira por direitos autorais, já que Rod, espertamente, havia doado os direitos de sua música para a UNICEF, órgão da ONU que trata de questões ligadas às crianças carentes do mundo, e Jorge optou por não tirar o dinheiro dos cofres da instituição. Por uma coincidência ou ironia, o jornal que noticia a chegada de Rod ao Brasil, trazia na página anterior uma matéria com Jorge Ben, conforme foto abaixo. Eis a matéria, escrita por José Emílio Rondeau, intitulada "Histeria, gritos e loucura: Rod Chegou ao Rio":

"Às 16h01 min do dia 11 de janeiro, a energia que abastece o interior do Aeroporto Internacional do Galeão foi interrompida sem motivo aparente. A essa altura, a pequena multidão que cercava o portão de desembarque nº 5 começava a se inquietar, entoando gritinhos e 'úúúús' e abrindo as faixas que enfeitaram os três ônibus que os trouxeram da praia do Arpoador, cortesia da Rádio Cidade e da WEA. Quando algum provocador anuciava maliciosamente - 'É ele', a garotada (franca maioria) apertava mais forte sua cópia de 'You're in my Heart (gracias, WEA) e se espremia mais ainda no vidro que separava do setor de alfândega, na esperança de conseguir uma visão privilegiada do motivo de seu desassossego.
O terraço do aeroporto também estava apinhado, mesmo sendo nulas as chances de se avistar alguém de lá, pois Rod Stewart sairia direto do Concorde que o trouxe de Paris, onde comemorou seus 33 anos, para o saguão do aeroporto, pela 'lagartixa telescópica'. Para delírio geral, a 'salsicha' quebrou, e Rod, vestindo um conjunto marrom degradé, de argola dourada na orelha esquerda e, claro, de óculos escuros, teve que andar pela pista de aterrissagem. Eram 16h30 min. A multidão que antes era pequena virou turba incontrolável, atingindo, por cálculos arredondados, 300 pessoas. No momento exato em que Rod pisou em solo brasileiro, a luz voltou voltou a iluminar os corredores do Galeão.
Dentro da alfândega, aeromoças, funcionários e passageiros curiosos arremedavam os teenagers, enfileirando-se para ver Rod Stewart, que fatalmente desceria a escada rolante que dá para as esteiras de recolhimento de malas. Assim que se percebeu que a 'fuga' do astro inglês seria pelo portão nº 6, o tumulto estava formado. Todos correram em direção a Rod, que já estava a poucos metros do Galaxie que o levaria ao Copacabana Palace, para a suíte presidencial, onde ficou até o dia 23, tentando evitar os nervos breakdown que seu médico previu. Rod veio ao Rio para realmente descansar, chegando até a cancelar uma tournée pelos EUA, marcada para iníciar nas próximas semanas.
Os cinco policiais que isolavam Rod não conseguiam cumprir seu trabalho protetor. Com uma das expressões mais apavoradas que já vi em toda a minha vida, Rod era levado de um lado para o outro, de acordo com os avanços da multidão histérica que o acuava. No meio da confusão, os mais eufóricos trepavam nos táxis estacionados próximo ao Galaxie, procurando um ângulo melhor que revelasse algo mais além dos esguichos de cabelo louro de Rod. Quando, enfim, Rod conseguiu alcançar o carro, ainda houve um guri mais afoito que berrava dentro do ouvido do motorista - ROD! Stewart, ofegante e sem largar o seu 'Vogue', acenava um 'tudo bem' como o polegar levantado enquanto o Galaxie cispava para a segurança do Copa."

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Belchior Lança Todos Os Sentidos - 1978


A partir de 1976, quando lançou o disco Alucinação, Belchior se tornou um dos artistas mais populares do Brasil. Naquele mesmo ano, antes de seu disco ter sido lançado, Elis Regina gravara Como Nossos Pais e Velha Roupa Colorida, composições suas, em seu disco Falso Brilhante, chamando a atenção para o nome daquele cearense, ex-estudante de medicina, que já tinha em seu currículo um disco lançado e um primeiro lugar em um festival universitário de música.
Alucinação fez um sucesso estrondoso,e impulsionou sua carreira. No ano seguinte lançaria Coração Selvagem, e em 1978 seria a vez de Todos os Sentidos. O jornal Hit Pop, complemento da revista Pop, trazia em seu número 69, uma matéria sobre o lançamento desse disco, que estava saindo do forno. A matéria, intitulada "Selvagem, Sensual. É o Novo Belchior" dizia:
"Impressionado com as condições de trabalho do músico norte-americano ('Eles têm o tempo que quiserem para fazer uma gravação de qualidade, além de ganharem bem e terem seus direitos profissionais garantidos'), Belchior voltou dos EUA entusiasmado com o trabalho feito na mixagem de seu quarto LP, que já está pintando nas lojas.
'O esquema, lá, me fez lembrar imediatamente aquela famosa frase de Miles Davis durante uma gravação. 'Que maravilhoso país o nosso, onde se podem contratar quarenta músicos para tocar um uníssono!'

Nos States, Belchior encontrou-se com Ney Matogrosso - que também foi mixar um novo disco, onde está incluída uma canção de Belchior em parceria com seu pianista Tuca -, mas não fez nenhuma apresentação. 'A Warner está estudando a possibilidade de lançar um disco meu por lá, mas existe um problema sério: a tradução das letras, que são o forte de minhas músicas. Para fazer uma adaptação ruim, onde as coisas que digo percam a força, não vale a pena.'
E nas dez canções que integram seu novo disco (o nome do LP será Todos os Sentidos), ele deixa bem clara essa constante preocupação com as letras - como esta, por exemplo: 'Cantar não é cantar/cantar é fazer, refazer/deixa esta deixa no ar/é possível apressar o amanhecer...' Cantando ele diz o que quer e sente, e só vê o seu canto como uma forma de provocar reações e mudanças.
No novo disco, a maior e mais ousada inovação é a música Corpos Terrestres, onde a letra, totalmente inspirada em trechos bíblicos, é cantada em latim puro - embora a melodia nada tenha de sacra, como poderia esperar: é bem no estilo discothèque, com participação até das Frenéticas!

Sensual, no entanto, promete ser a faixa mais forte do disco, com uma letra que, segundo Belchior, 'visa as raízes do humano, ao falar do prazer e da sexualidade'. Neste trecho da música fica muito claro:'...quando eu cantar/quero deixar você molhada de amor/e por favor não vá pensar/que é só a noite ou o calor/quero ver você ser/inteiramente tocada/pelo sal da saliva/a língua, o beijo, a palavra...'
Para Belchior, essa preocupação com a vida - não no sentido de desafiá-la, mas de uma maneira até lúdica, como parte de um divertimento bom - já aparecia de maneira clara em Na Hora do Almoço, música com a qual ele participou do Festival Universitário da Canção, promovido pela TV Tupi, em 1971, e que volta, regravada, neste novo disco: '... e eu ainda sou bem moço/pra tanta tristeza/deixemos de coisas/cuidemos da vida/senão chega a morte/ou coisa parecida/e nos arrasta moço/sem ter visto a vida/ou coisa parecida...'
No ano passado, Belchior fez aproximadamente 130 shows em todo o país; e, para ele, este contato direto com o público é, sem dúvida, o aspecto mais gratificante de toda a sua atividade como artista.
Assim, depois de lançar seu disco e de se apresentar por dois meses no Rio de Janeiro e São Paulo, ele iniciará uma excursão por todo o país, a partir de setembro, na qual já estão previstos oitenta shows.
Nessa saída que pretende fazer para a estrada, Belchior vai utilizar o ônibus de equipamentos de Gilberto Gil (que viajou para os Estados Unidos) e no roteiro da excursão estão incluídas as capitais e muitas cidades do interior, pois ele acha que seu trabalho deve chegar a todas as pessoas.
'Não pretendo ter um só público. O homem é que conquista sua liberdade e seu meio de expressão, em qualquer lugar.'"

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Carta ao Chico - Tom Jobim


Chico Buarque meu heroi nacional
Chico Buarque gênio da raça
Chico Buarque salvação do Brasil
A lealdade, a genialidade, a coragem
Chico carrega grandes cruzes, sua estrada é uma subida pedregosa
Seu desenho é prisco, atlético, ágil, bailarino
Let's dance! Eterno, simples, sofisticado, criador de melodias bruscas, nítidas, onde a Vida e a Morte estão sempre presentes, o Dia e a Noite, o Homem e a Mulher, tristeza e alegria, o modo menor e o modo maior, onde o admirável intérprete revela o grande compositor, o sambista, o criador, o grande artista, o poeta maior Francisco Buarque de Hollanda, o jogador de futebol, o defensor dos desvalidos, dos desatinados, das crianças que só comem luz, que mexe com os prepotentes, que discute com Deus e mora no coração do povo.
Chico Buarque Rosa do Povo, seresteiro poeta e cantor que aborrece os tiranos e alegra a tantos... tantos...
Chico Buarque Alegria do Povo, até seu fox-trote é brasileiro. Zona Norte, Malandragem, Noel Rosa, Sinuca, Neruda, Futebol, tudo canta na tua inesgotável Lyra, tudo canta no martelo.
Bom Tempo, bota água no feijão, pra ver a banda passar, vem comer, vem jantar, menino Jesus, dia das mães, vou abrir a porta, Deus, Pai, afasta de mim este cálice de vinho tinto de sangue. Chico também não evitou os assuntos escabrosos, sangue, tortura, derrame, hemorragia...
Houve um momento em que temi pela tua sorte e te falei, mas creio que o pior já passou.
Chico Buarque homem do povo
Fla Flu, calça Lee, carradas de razão
Mamão, Jacarandá, Surubim
Macuco não, Pierrot e Arlequim
Você é tanta coisa que nem cabe aqui
Inovador, preservador, reencarnado, redivivo
Mestre da língua
Cabelos Negros
Olhos de gatão selvagem
Dos grandes gatos do mato
Olhos glaucos, luminosos
Teu sorriso inesquecível
Ó Francisco, nosso querido amigo
Tuas chuteiras caminham numa estrada de pó e esperança

Tom Jobim
Nova York Outubro 89

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Os Mestres e as Criaturas Novas - Jim Morrison


Jim Morrison foi uma das figuras mais marcantes e conturbadas da história do rock. Dono de uma personalidade ímpar, uma inteligência e uma cultura mordazes, aliadas a uma vida pessoal marcada por ínumeros acontecimentos que marcaram sua biografia extramusical, Morrison foi antes de tudo um grande poeta. Não apenas o letrista, mas o poeta mesmo, que escrevia versos inpirados, carregados de dor, angústia, ironia e todos os sentimentos que percorriam sua mente inquieta. À frente de sua banda, The Doors, Morrison também se tornaria um dos mais carismáticos e cultuados astros que o rock produziu.
A editora portuguesa Assírio & Alvin, nos anos 80 editou uma coleção chamada Rei Lagarto, por sinal, uma forma com que que Morrison era denominado. Essa coleção trazia biografias e antologias poéticas de várias figuras marcantes no mundo do rock e do jazz, como por exemplo, o baixista Charles Mingus, Ian Curtis (Joy Division), Patti Smith, Neil Young, Frank Zappa, Leonard Cohen, David Bowie, e claro, Jim Morrison.
O livro nº 14 dessa coleção traz textos não musicados de Jim Morrison, chamado "Os Mestres e as Criaturas Novas". Assim o livro é apresentado, por Paulo da Costa Domingos:
"James Douglas Morrison, que se notabilizou como Jim Morrison, nasceu em Melbourne (Flórida) a 8 de dezembro de 1943. Carreira fulminante, da escola de cinema (a U.C.L.A., de Los Angeles, onde foi companheiro de Coppola) aos palcos como cantor de música popular.
Dizem que a morte apazigua. Sabe-se que o sacrifício aplaca a ira... dos deuses?... do homem? Jim Morrison representava o ódio ao Poder amerikkkano(sic), o ódio à cruzada contra o Vietname. A sua morte 'acidental', em Paris, a 3 de julho de 1971, consagra a vitória de uma batalha química sobre aquilo que as maiorias silenciosas designam por 'inimigo de dentro'.
Os livros de poemas The Lord e The New Criatures, ambos de 1969, referem zonas do conhecimento translúcido, solucionáveis, na tradução, unicamente pelo afastamento dos lexemas. Tentamos reconstituir esse clima, onde a fidelidade não reside em traduzir 'Lords' por 'Senhores'."
Abaixo alguns textos de Morrison, que selecionei:


Saunas, bares, piscinas interiores. O nosso chefe ferido
jaz sobre os azulejos. Hálito e longos cabelos
de cloro. Inválido, seu ágil corpo
de pugilista. Ao lado
um jornalista creditado, confidente. Gosta de sentir-se
entre homens com profundo sentido de vida. Mas a maioria
na imprensa são abutres sobrevoando a cena
à cata de curiosa arrogância americana. Câmeras
dentro do esquife entrevistam germes.

Só o genocídio revolveria a terra
expondo os vermes escondidos. Revelando
a vida dos nossos insatisfeitos loucos

Por dentro do sonho floresce o sono vestindo o teu corpo
como uma luva. Afinal liberto do espaço e do tempo. Apto a dissolver-se no verão que corre

Noite após noite o sono mergulha-nos num sub-oceano.
Pela manhã, acordamos molhados, arquejantes, com os olhos
a arder

Já não temos dançarinos, os possessos.
A clivagem dos homens em atores e espectadores
é o fato crucial do nosso tempo. Obcecam-nos
herois que por nós vivem e nós punimos
Ah! se todas as rádios e televisões fossem
desligadas, e todos os livros e quadros
queimados já, todas as salas de espetáculos encerradas...
essas artes de viver por procuração...
Contentamo-nos com ofertas, na nossa procura de
sensações. Deu-se a matamorfose do corpo enlouquecido
pela dança nas colinas num par de olhos
rasgando a treva

Em teoria o nascimento é provocado
pelo desejo da criança abandonar o útero
Mas na fotografia o pescoço
de um cavalo nascituro
apesar das pernas já de fora, luta por reentrar.
E isto diz tudo:
Sorvemos o leite do seio
até não haver mais leite.
Atulhamo-nos em riqueza
até transbordar.
Ele sorve a semente, orgulhoso
até que, boca pálida, foge
chupa ela a raiz, mundo
arrepiante devorando a criança.
Não me engolirá a terra
quando eu morrer, ou o mar
se for o mar a minha morte?

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Miles Davis no Brasil - 1986


Miles Davis, um dos grandes gênios da música já se apresentou no Brasil por mais de uma vez. A revista Bizz nº 16, de novembro de 1986, trazia uma resenha sobre um show que o grande músico fez no Palácio das Convenções do Anhembi, em São Paulo, em 13/09/86. Escrita por Alex Antunes, a resenha assim descreve a apresentação:
"Frisson: Deus desce à Terra. Miles Dewey Devis III, o homem que operou sucessivas revoluções no jazz e no rock das três últimas décadas, pisou o palco do Anhembi. Público extasiado, a banda se espalha rápida pelo palco e ataca sumariamente a bombástica 'Decoy', ao longo de dez minutos - é o tempo que os fotógrafos, num acordo entre imprensa e os produtores, por exigência de Miles, têm para trabalhar. Depois de disparados os últimos clicks o show começa pela segunda vez, agora com uma música mais relaxada. E é aí, entre temas alternadamente carregados e poppies, que Miles revela não só o grande instrumentista que todos já comentaram, mas um homem com firmes concepções de trabalho em banda, de música, de arte e de vida.
Já se ouviram reclamações do tipo 'pô, o cara é um puta trumpetista e só faz uns solinhos de vez em quando, o resto do tempo fica lá de costas, dando uns acordes naquele teclado'. Isso sem falar nas infindáveis comparações com o tradicionalista Winton Marsalis, nas acusações de traidor do jazz, etc, etc, etc. Miles e música já resolveram sua relação - ele já a formulou e reformulou como linguagem, do be bop ao cool, do blues ao rock. Pop não é traição - tocar sucessos de Michael Jackson ou Cindy Lauper é só tomar outros pretextos para repetir, ainda uma vez, seu manifesto de negro liberto. É o mesmo gosto de que Miles tem ao processar os guardas que frequentemente o fazem parar nas estradas da Califórnia, afinal, que diabo é isso de criolo dirigindo uma Ferrari? Não é rancor. É um estado de humor muito particular, transposto em estética.

Seu grupo é uma verdadeira banda de rock: maciça, pesada. E um combo de jazz, com fartos improvisos. Mas há sempre o maestro, editando a duração das partes, indicando aquelas viradas harmônicas conjuntas que você nunca sabe se é arranjo ou repente. Às vezes o Miles regente contém os dois teclados, guitarra, baixo, sax, bateria e percussão, e vem para a frente, solando seu trumpete em surdina. Depois solta os cachorros.
Em São Paulo ele estava de bom humor. Jogava para cima e aparava objetos imaginários, passeava solando, pelo palco, como quem caminha pelo parque, ouvia sua própria performance com a cabeça quase dentro das caixas de retorno. Em 'Human Nature' (de Michael Jackson), desceu do palco e solou, sucessivamente, para três mocinhas da primeira fila. A primeira ficou estarrecida, e passou o resto do show beijando o companheiro. A segunda teve tempo de preparar uma performance mais 'fatal', e ficou sussurrando sei lá o que para o velho Miles. A terceira, cool, ficou só olhando com cara de 'que peculiar, você aí, tocando para os meus peitos'. Essa ganhou um apertão mais carinhoso no nariz e uma piscada, por baixo dos indefectíveis óculos escuros do trumpetista.
Quanto à banda: nos teclados, o sobrinho (e responsável pelo retorno de Miles, depois do sumiço de 75/81, às voltas com drogas pesadas) Robert Irving III e um outro, convidado, ambos fazendo usos de timbres fortemente eletrônicos, mas muito adequados à química do som. Um saxofonista e um guitarrista prolixos, Bob Berg e Adam Holzman, um com um pé para cá e outro com um pé pra lá da linha do exagero. Mas nada muito grave. Felton Crews, baixo discreto e bem competente, cresceu muito ao longo da apresentação. Vince Wilburn Jr., o baterista que, ao lado de Bob Irving, participou da histórica volta de Miles, sempre brilhante. O percussionista Steve Thornton, dono de um estilo único de solar tumbadora com a mão direita e timbales com a baqueta na mão esquerda, ou tudo como se fosse uma bateria, outro destaque do show. E Miles no centro desse sistema, reluzente em lamê prateado, movendo-se como um misto de felino e lagarto, sorridente e assustador... Não um deus, um homem raro."

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Tubarões Voadores - Arrigo Barnabé


Após lançar o bombástico e surpreendente Clara Crocodilo, Arrigo Barnabé em seu segundo disco concebeu um álbum onde trazia uma parceria visual com o quadrinista Luiz Gê. Tubarões Voadores foi baseado em uma HQ do artista gráfico, que também aparece como letrista na faixa-título. Na época de seu lançamento o jornal o Pasquim, em outubro de 1984 trazia uma matéria sobre o disco, intitulada "Arrigo Barnabé - Profeta Maldito da Megalópole", assinada por Ilmar Carvalho:
"Com seu segundo disco, Tubarões Voadores, da Ariola, Arrigo Barnabé vem confirmar todas as expectativas geradas com o lançamento do independente Clara Crocodilo, seu primeiro mergulho fonográfico, realizado em 1980. Em Tubarões Voadores, continua predominando a temática da grande metrópole, desde a cascaval Crotalus Terrificus, cuja letra é de Paulinho da Viola, até Tubarões Voadores, letra de Luiz Gê e música de Arrigo. Tubarões e crótalus significam a terrível opressão dos grandes aglomerados urbanos, significam a inchação teratológica das metrópoles, onde tanto a Neide Manicure Pedicure, o Kid Supérfluo ou o Office-Boy (esta faixa do disco anterior), são os seres comuns, representam a humanidade, os urbanoides de uma apocalíptica, fria e eletrônica pauliceia desvairada, que os esmaga e deprime.
Mas Arrigo traz molhos e condimentos ainda pouquíssimo usados aqui. Na música é personalíssima. Em Tubarões, por exemplo, ele trabalha com ostinato, onde a frase ou desenho é repetido várias vezes nos instrumentos graves. Houve um planejamento de gravação (Dino Vicente) e o equipamento usado foi o Drumulator JX3P, Sequencer SCI Pro One, Moog Sistem 15 e Yamaha, este programado por Bozo Barreti. Essa faixa mostra o compositor da grande cidade, de São Paulo, com suas avenidas, seus becos: é música incidental sobre São Paulo. O compositor trabalha muito com o cromatismo; o ostinato sustenta a tonalidade, que é repetida, e o efeito é de uma grande reportagem musical urbana, amarga, fria, devoradora, como os Tubarões Voadores que invadem a cidade:'Feche a janela Joãozinho/Ou seremos comidos/Pelos tubarões voadores.../De nada adianta fugir/Estes são/Os Tubarões voadores...'

Neide Manicure Pedicure é música concebida essencialmente num estúdio. A letra é de Paulo Barnabé e a música de Arrigo e Bozo Barreti. Vânia Bastos, soprano afinada, dobra a própria voz, canta com ela própria. São utilizados todos os recursos de estúdio, e o resultado é o próprio disco, produto final dessa manipulação, desse uso. Arrigo usa bem adequadamente o instrumental à sua disposição. É flagrante o equilíbrio de planos, no estúdio: instrumentos combinados, diálogos tímbricos bem realizados. A peça não é necessariamente atonal, de vez que no atonalismo é proibido qualquer regra tonal. Nesta faixa, a repetição do desenho cria um centro gravitacional que não está longe do centro tonal clássico. Há elementos rítmicos de rock, como em Kid Surpéfluo, e Vânia Bastos usa o 'sprechgesang' (espécie de declamação musical que participa a um tempo do canto e da fala, alternando um e outro). Aliás, essa técnica que veio no bojo da abordagem dodecafônica de Shoenberg, aqui foi usada, nada mais, nada menos, por Moreira da Silva, em seus sambas-reportagens. Ele, sem o saber, foi o novo precursor do 'sprechgesang'. O autor volta aí a usar o ostinato, fazendo alternância de compassos.
Arrigo faz uma música para consumo? Sim, mas que não deixa margem a que sua obra seja confundida com o consumismo descartável. Ela é um objeto de consumo, mas do nível de um Rolls Royce. Arrigo se situa na região de Hermeto Pascoal, Egberto Gismonti, faixa que, sem ser popular, tem o nível do trabalho de Caetano, de Milton Nascimeto. Esse jovem londrinense detém uma refinada soma de informação musical, e o resultado se vê/ouve em seu trabalho. Ele faz dialogar instrumento e voz. Em sua concepção, o instrumento não serve como mero acompanhamento. Ele utiliza também elementos aleatórios, mas controlados.
A linguagem do compositor não é pioneira no Brasil, se se levar em conta os arranjos de Rogério Duprat para Baby, de Caetano, em 68, e de Julio Medaglia para Tropicália, também de Caetano, naquele mesmo ano. Aliás, autores eruditos têm feito com frequência arranjos para a música poular, como é o caso de Guerra Peixe, Radamés Gnatalli e do maestro Gaia.

Arrigo, com sua música personalíssima, está abrindo outro espaço, como Hermeto, que usa em sua obra efeitos concretos e aleatórios. E pelo que se vê de seu segundo disco, Arrigo realiza um trabalho de conjunto, elaborado em estúdio. Não é, parece, nem o caso de ele desconhecer arranjo, pois há compositores que dão o arranjo de base para um arranjador, o de cordas para outro, o de metais para um outro, registrando-se um trabalho de várias mãos, tanto é que na ficha técnica do disco constam várias assinaturas dos arranjos. Pode ser até uma proposta de Arrigo fazer esse tipo de divisão do trabalho com seus companheiros. Aliás, se ele é capaz de fazer tudo o que está registrado no LP, então é possível que ele tenha condições de realizar um trabalho completo. Arrigo impressiona uma faixa etária jovem, mas seu trabalho vem sendo acompanhado por todas as demais áreas. A meu ver, a rigor, ele supera a compartimentação ainda estanque da música popular e erudita. Aliás, não existe o compositor erudito ou popular: há o bom e o mau compositor. Há, inclusive, como bem observa Nestor de Holanda Cavalcanti, compositores por especialidade: Waldemar Henrique, por exemplo, é compositor para canto, como há compositor para determinados instrumentos, como Pinxinguinha.
O trabalho de Arrigo tem substância e conteúdo. E o que mais chama a atenção é a feitura de uma música crítica, onde ganha foros de um repórter da grande cidade, criando um clima surpreendentemente belo e terrível, onde expõe as feridas da megalópole, São Paulo.

domingo, 19 de fevereiro de 2012

Rock, A História e a Glória - Crosby, Stills, Nash & Young


Como falei na postagem anterior, na adolescência eu descobri o rock, e comecei na época, em plenos anos 70, a tomar conhecimento daquele rico panorama que se abria para mim. Passei a comprar revistas especializadas, principalmente Pop, e mais tarde, Rock, A História e a Glória. Dessa forma, passei a saber mais sobre as bandas em atividade, ou já desfeitas. Muitas dessas bandas eu conhecia somente por leitura. Sabia a história, formação, principais músicas, influências, mas não conhecia o som. Eu tinha uma grande curiosidade em conhecer aquelas músicas sobre as quais eu lia, mas nem todos aqueles artistas e bandas eu ouvia nas rádios, mesmo nos raros programas especializados. Não tinha grana para comprar discos com frequência e meus amigos mais próximos também não tinham muitos discos, assim muitas daquelas bandas que eu parecia conhecer tão bem, na verdade nunca tinha ouvido.
Um dos exemplos foi o quarteto Crosby, Stills, Nash & Young. Já tinha lido sobre eles, sabia da importância do quarteto, mas nunca os tinha ouvido. Mas conhhecia sua história, muito por causa de uma excelente revista dedicada a eles. A revista Rock, A História e A Glória era a melhor publicação sobre rock na época - meados dos anos 70. Era uma publicação independente, em preto e branco, com poucos anúncios, mas com um excelente time de críticos e pesquisadores de rock: Ana Maria Bahiana, Ezequiel Neves, Luiz Carlos Maciel, Okki de Souza, Rick Goodwin, Tarik de Souza, Júlio Hungria, etc. Quando começou a circular, em 74, era uma revista que trazia como encarte o Jornal de Música, que falava também de MPB. Depois, passou a ser o contrário. A publicação passou a ser o Jornal de Música, que tinha encartada a revista. E foi nessa segunda fase, que a revista trouxe o quarteto como tema.

Trazendo ótimas fotos, e contando detalhadamente a trajetória da banda, a revista começa falando das bandas precursoras do C,S,N & Y, onde seus componentes se iniciaram na carreira, como os Hollies, o Buffalo Springfield e os Byrds.
"Os caminhos vêm do Canadá, da Inglaterra e dos Estados Unidos para formar uma rua de quatro mãos, unidas pelo ofício-missão de de cantar folk. Crosby é político, Nash, ingênuo, Stills, egoísta, Young, revoltado". Assim a revista resume o quarteto em um dos textos.
Trazendo, além da biografia, discografia e letras traduzidas, a revista também tinha uma sessão chamada Opinião, em que reproduziam comentários sobre os artistas destacados. Um exemplo:
"Enquanto a música de Bob Dylan formou a ponta de lança estética do ódio e fervor moral dessa geração dos anos 60, a música de Young expressou com a mesma credibilidade a culpa, as dúvidas e a paranoia que acompanharam esse ódio. As obsessões de Young são a idade e o passar do tempo. Evoca polaridades psíquicas e sociais para exemplificar a deterioração da cultura americana. Em suas músicas Young ousou o que nenhum outro astro do rock (com excessão de John Lennon) se atreveu: narrar, expor e talvez até ajudar a expurgar a paranoia e culpa coletiva de uma sociedade, encenando-as sem desculpas ou explicações. - Stephen Holden - Rolling Stone, 74".

Outra sessão fixa da revista se chamava Geleia Geral, que trazia curiosidades. Na edição em questão, trazia, por exemplo, essa nota:
"Relações amorosas: 69 foi um ano trágico para as relações amorosas do nosso quarteto. Só Neil Young se deu bem, casando com a atriz Carrie Snodgrass (hoje tem um filho chamado Zeke). O romance de Stills com a cantora Judy Collins terminou de repente (foi para ela que fez a famosa Suite: Judy Blue Eyes. Christine, a namorada de Crosby (e para quem fez a bonita Guinevere), morreu num desastre de automóvel. Nash continuava sua transa apaixonada e tempestuosa com Joni Mitchell, atrapalhado pelo fato de sua esposa não lhe conceder o divórcio. Quando afinal ela consentiu, Joni já pasara a transar com James Taylor. A música que a musa de Nash inspirou saiu então amarga e triste. 'Tentei penetrar através dos muros nos quais você vive/Como amigo voei de muito longe pra uma amiga.../E se você continuar a se comportar como agora/toda a música na minhas veias os tranformará em pedra'. (Frozen Smiles, 72)".
Foi uma ótima forma de se entrar no universo de um dos melhores grupos da história do rock, embora o essencial - sua música - eu só viesse a conhecer um tempo depois.

sábado, 18 de fevereiro de 2012

Em Dylan, O Eterno Retorno da Adolescência


Quando era adolescente, eu estava descobrindo o rock. Era anos 70, e o cenário era riquíssimo, portanto minhas descobertas musicais me foram muito marcantes. E uma das descobertas que mais me chamaram a atenção e me fascinaram foi a voz de Bob Dylan. Antes de tomar conhecimento do Dylan compositor, e figura das mais importantes da história do rock, o que me chamou a atenção em Dylan foi sua voz, que me fascinou. Sua voz meio fanha, anasalada e fora dos padrões sempre foi alvo de críticas, mas para mim foi algo muito marcante.
Em 1989 o crítico Stephen Holden, do New York Times escreveu uma matéria sobre o Dylan cantor, o dono daquela voz que marcou definitivamente a minha adolescência. Segue o texto:
"Há vinte anos, um artigo sobre Bob Dylan comparava sua maneira de cantar a um 'grito da adolescência'. Não lembro o nome de quem escreveu, nem da publicação, mas recentemente voltou-me essa imagem, durante um concerto de Dylan no Bacon Theater, onde o legendário roqueiro, esquálido e de cabelos frisados, muito parecia e cantava como o mesmo moleque vingador de meados da década de 60. Quando cantou 'Ballad of a Thin Man', palavra final da anarquisação do quadradismo burguês dos anos 60, o grunhido abrasivo ainda soava insultantemente provocador em sua rude insistência.

Como podia o astro, agora com 48 anos, ainda manter o papel do mais embalado, mais arrogante adolescente que já existiu? Tinha de ser, ao menos em parte, uma autoparódia. Nem mesmo as selvagens caricaturas de Dylan, por Cristopher Guest, nos álbuns do 'National Lampoon' de meados da década de 70 são tão exageradas quanto os maneirismos exibidos por Dylan no Bacon Theater. Em certos momentos, a voz dava saltos agudos num falsete espasmódico, como se ele tivesse aspirado grandes doses de hélio.
Sons meio sobrenaturais, estrépitos sincopados, soluços desvairados e murmúrios cavernosos embelezavam cada frase musical. Qualquer interesse que outrora Dylan houvesse tido em seguir uma melodia, manter-se no tom ou numa clara enunciação, foi deixado de lado, à medida que ele cantava suas músicas em pequenas raiadas furiosas, picotadas.
Mas se a interpretação de Dylan violou alegremente todos os cânones da projeção vocal, continuava sendo emocionalmente compulsiva. Embora outros possam ter caricaturizado seu estilo e atitude, ninguém conseguiu transmitir tanto seu sentimento quanto ele. Amado ou não, Dylan continua sendo um dos dois ou três cantores mais influentes da era do rock.
Seu 'grito de adolescência' abriu o reino da vocalização popular para uma geração de compositores originais, de vozes estranhas e feias, que desejavam interpretar suas próprias músicas. Sem Dylan para lhes permitir o acesso, talvez jamais tivéssemos ouvido o sussurro sepulcral de Lou Reed, o monocórdico David Byrne ou o falsete rachado de Neil Young.

A iconoclastia de Dylan acabou também por encaixar-se certinho na tradição vocal mais ampla da música popular americana, cujas vozes mais influentes chutaram para o alto as ideias convencionais de cantar 'bem'. A grandeza de Billie Holliday, Ray Charles, Hank Willians, Frank Sinatra e Barbara Streinsand, cantores americanos que, ao lado de Bob Dylan, por mais tempo marcaram os vocalistas populares do país, pouco têm a ver com uma projeção vocal e uma dicção precisa. Se esses cantores emitiram sons considerados 'bonitos', essa beleza foi quase incidental para sua arte. O mesmo se pode dizer de suas muito copiadas técnicas. Seguir a dicção e o fraseado de outro cantor jamais levou cantor algum à alma de uma música.
Os mais significativos cantores populares dos EUA podem dividir-se em três amplas categorias. Os mais esteticamente conservadores são artistas como Ella Fitzgerald, Mel Tormé, Linda Ronstadt, Jonnhy Mathis, Michael McDonald, Whitney Houston, Maureen McGovern e Judy Collins, que transmitem um senso clássico de equilíbrio e proporção ao que quer que toquem. Seus impulsos a fazer com que tudo dependa da emoção, em geral, estão subjugados a considerações formais de tom, altura, inflexão estilística, detalhe rítmico e precisão de interpretação, já que aspiram a um tipo de excelência tradicional.
À esquerda deles temos cantores frequentemente menos certinhos e cujos estilos são compilações óbvias, embora muitas vezes não deliberadas, de outras influências. Lembramo-nos de Elvis Presley, Michael Jackson, John Lennon, Bruce Springsteen, Jim Morrison, Prince, Elton John, Janis Joplin, Diana Ross e Rickie Lee Jones.
Ainda mais à esquerda, há verdadeiros pioneiros como Judy, Hollyday, Wilians, Sinatra, Streinsend e Dylan, que, apesar das influências (Bessie Smith sobre Hollyday, por exemplo, ou Woody Guthrie sobre Dylan) são ícones vocais sem precedentes. Ao contrário dos conservadores estéticos, eles agem quase inteiramente por instinto, e muitos talvez não estendam seu próprio talento."

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

João Gilberto - Revista Veja (1990)


A revista Veja em sua adição de 30 de maio de 1990 trazia uma matéria de capa com João Gilberto. No texto da chamada da capa trazia estampado: "João Gilberto - A vida secreta de um gênio brasileiro". A razão da matéria de capa era que João estava lançando um dos discos mais esperados do ano, como aliás, é todo trabalho lançado por João Gilberto. Lembro que quando saiu a notícia que João estava em estúdio, começaram as expectativas em torno do álbum, já que há dez anos ele não lançava um disco de estúdio. O último havia sido Brasil, gravado ao lado de Caetano e Gil, em 1980. Nesse meio tempo João havia lançado um disco ao vivo no festival de jazz de Montreux, na Suíça, em 1986.
A matéria de seis páginas fala dos bastidores das gravações, curiosidades a respeito de seus hábitos estranhos, que fazem parte de um folclore em torno de sua personalidade, depoimentos de pessoas próximas, etc. Destaca também algumas frases proferidas pelo mestre, como:
"É preciso descobrir e encontrar no ritmo da música. Depois, dividir as palavras para que elas se adaptem ao ritmo, à respiração. Eu gravo rápido, pode ver nos meus discos, mas passei muito tempo trabalhando antes. Gravei essas músicas agora para ficar uma coisa bonita, para que as pessoas gostem deles."
"Bossa Nova é o que vem depois daquilo que você coloca numa coisa que já existe. Aí, os especialistas ficam em dúvida e perguntam: mas isto é Bossa Nova ou samba? Mas logo no começo a gente cantava: 'Eis aqui esse sambinha feito de uma nota só...' Então é lógico que é samba, pelo compasso, pela cadência, por tudo. É um sambinha no qual se colocou uma bossa, um jeito novo. Aí, fica sem sentido essa discussão dos especialistas, essa procura de precursores da Bossa Nova. Assim, a Bossa Nova teria de ter uns 300 precursores."
"Bossa Nova é qualquer coisa feita com bossa."
"Miles Davis ouviu um monte de músicas brasileiras para gravar Bossa Nova. Ouviu e escolheu o quê? Escolheu Ave Maria no Morro, e gravou de um jeito tão bonito... Então Ave Maria no Morro virou Bossa Nova. Miles Davis é muito bom. Às vezes, ele toca de costas para a plateia. Curioso, não?"
Nara Leão era uma cantora generosa e suave. Brincava comigo, dizendo que que ela não sabia tocar violão. Sabia sim e tinha uma voz maravilhosa. Tenho tanta saudade dela."
"Tema sem bossa não é Bossa Nova"
"Sim, música clássica é legal. Mas o que eu gosto mesmo é de música popular. Gosto daquelas coisas, daquele som que vem do Brasil, de sua gente."
"Quando vou a São Paulo, olho aqueles prédios enormes e pergunto: 'Quem fez? Quem fez?' E escuto só aquele eco do meu grito na noite escura. Ninguém responde, ninguém sabe quem fez... Mas quem fez os prédios foi o homem do Norte. Quem faz São Paulo é aquele pedreiro que está ali, no seu quarto na obra, com aquela lâmpada dependurada, quando a gente vai indo à noite encontrar a namorada. Paulistas, por favor, construam a Praça Homem do Norte. São Paulo merece."
A matéria ainda traz um box contando algumas curiosidades. Eis o texto:
"Se o João Gilberto de hoje é um tanto surpreendente, o do passado é uma verdadeira caixa de surpresas. Poucos sabem, por exemplo, que ele é o quinto de uma família com oito irmãos e que uma penca de sobrinhos o chama de Tio Joaõzinho (...)
Quem conhece a obstinação de João Gilberto em não cantar para plateias fuleiras ou barulhentas ficaria atônito em saber que em janeiro e fevereiro de 1954, precisando de dinheiro, ele trabalhou num show de Carlos Machado (famoso empresário de shows com vedetes) na boate Casablanca, no Rio, intitulado Essa Vida É um Carnaval . Em uma hora e meia de espetáculo, João Gilberto trocava de roupa quatro vezes e aparecia vestido de sambista, fuzileiro naval, escravo na senzala e, na apoteose, entrava em cena fantasiado de palhaço, cantando o samba Recordar É Viver com o resto do elenco.

Ele também teve sua carreira cinematográfica, ainda que amadora. Durante anos, andou com filmadoras a tiracolo. Em Nova York, no final dos anos 60, tendo Chico Buarque como diretor, João Gilberto fez o papel de um ladrão de violão num curta-metragem super 8. O filme, de ficção, está guardado na casa de Chico Buarque. Quanto às agências de propaganda, que se cansaram de oferecer-lhe malas de dinheiro para fazer comerciais, e sempre receberam negativas, elas ficarão surpreendidas ao saber que João Gilberto já gravou um jingle. Em 1960, para a agência Lintas, ele cantou uma letra e música do publicitário Heitor Carillo:
As estrelas do cinema usam Lever
O sabonete que você devia usar
Irradie mais beleza
Seja estrela do seu cinema
Use sabonete Lever
E, ainda por cima, João Gilberto recusou o pagamento. Esse jingle está perdido - por enquanto."
Alguns anos depois dessa matéria ser publicada, João Gilberto gravaria um comercial para a Brahma, cantando ao seu estilo o jingle:"Pediu cerveja, pediu Brahma Chopp". Tenho esse comercial gravado em uma antiga fita em vhs.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

O Pensamento Vivo de Gilberto Gil - Revista Somtrês (1985)


Em 1985 Gilberto Gil completava 20 anos de carreira. A revista Somtrês, especializada em música e equipamentos de som, em novembro daquele ano trazia uma matéria sobre a trajetória de Gil, intitulada O Pensamento Vivo de Gilberto Gil, trazendo frases proferidas por ele ao ongo daqueles 20 anos. A matéria dizia:
"1965/1985... Nesses 20 anos Gil pensou e fez pensar. Aqui, sem retoques, as ideias fluidas do negrinho carregando sua metamorfose sem fim."
Abaixo transcrevo algumas das frases destacadas pela matéria:
"O trabalho que fizemos, eu e o Caetano, surgiu de uma preocupação entusiasmada pela discussão do novo do que propriamante como um movimento organizado."
"Meu pai, fique tranquilo. O que eu fizer está bem feito. Ou está mal feito. Mas, está feito, e de qualquer jeito eu vou ter de aguentar. E se eu não aguentar, Deus é maior do que tudo e a nossa fé vai nos salvar..."
"Amanhã poderei estar cantando baião, samba, rock, valsa, bolero, conforme minha necessidade de expressão, ou como resposta a uma solicitação do público."
"Resolvi virar uma antena ou um para-raio, cê tá entendendo? É deixar bater tudo quanto é força da natureza que pode bater - homens, pensamentos, palavras, fatos, visões, imagens, tudo, tudo, tudo, sensações..."
"Eu devia ter aberto a cabeça de vocês a machadadas para que vocês entendessem o que eu estava dizendo. Talvez seja o que estou tentando agora. Se a machadada tem de ser dada, a marcha será dada. Não foi por bem, vai por mal."
"A música popular é o chão no alto, acima de tudo. Acima de tudo porque ela está abaixo de tudo, na raiz, na própria semente, antes das flores ou dos frutos, mas no alto, no canto alto onde o raio de sol bate sobre o chão, sobre o ladrilho do chão e não no lustre de cristal reto, como em outras músicas."
"Eu sei que sou um grande artista. Eu me respeito muito. Agora, têm muitos grandes no Brasil. E a maioria deles, da minha geração, de minha existência são João Gilberto e Jorge Ben."

"Desinformação. Estamos voltados, também em termos musicais, para a Europa e os Estados Unidos. Esse posicionamento nos impede, na maioria das vezes, de detectar o que está acontecendo ao nosso lado."
"Meu trabalho de criação não é assim tão fácil como até possa parecer. É que fixar uma imagem fica difícil pra mim. Fico vagando, passeio muito, de uma coisa pra outra, de um sim para um não, de um certo para um errado, de um perdão para uma condenação, e vice-versa. Soa é muito impreciso, sabe?"
"O ideal de uma relação é aquela que propicia a manutenção da fluência da vida, da personalidade da gente, quer dizer, é aquela que permite que a gente continue existindo... sem muita sensação de embaraço causado pela ligação com outra pessoa."
"O que quero mesmo dizer é que o artista não é só divino, maravilhoso, só positividade. De repente, quando uma crise se abate sobre mim, como é que eu faço? Não sou um iluminado. A obscuridade que habita toda a existência e consciência do ser humano me cabe também."

"Gosto de experimentar, mas sou conservador. Um pouco medroso. Talvez seja aquele medo de morrer que todos temos. Tenho medo da aventura."
"Eu sofro como os outros, embora no 'sofrimentômetro' eu tenha uma cotação baixa. Para isso, tenho investido muito na imunização, me instrumentado de coisas que me possibilitam superar questões que outras pessoas não superam."

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

O Outro Lado de Wando


A morte de Wando, na manhã de ontem, trouxe comoção ao meio artístico, como sempre acontece quando alguém famoso falece. Cantor e compositor da linha mais popular, direcionado mais especificamente às classes b e c, Wando se tornou um artista de enorme sucesso, ao criar uma imagem do latin lover sedutor, que lhe rendeu frutos e prestígio entre os produtores das gravadoras, em termos comerciais, de vendas e sucesso nas camadas mais populares de consumidores de discos.
Mesmo tendo se caracterizado por fazer um trabalho de menor qualidade, e mais voltado para o comercialismo, não se pode negar que Wando foi um artista de talento, e hábil em seu intuito de chegar ao grande público. Recentemente, inclusive, Nando Reis chegou a fazer um trabalho de parceria com ele, compondo e dividindo palcos.
O estilo e a imagem que se criou em torno de sua carreira foi na verdade um grande trabalho de marketing, e por ter dado certo, acabou norteando seu estilo de compor. O forte apelo malicioso e erótico de suas composições, e a imagem das calcinhas que eram jogadas nos palcos onde se apresentava o acompanharam ao longo de sua carreira.
Porém o que muita gente não sabe é que em seu início de carreira Wando produzia um trabalho mais "sério" e elaborado. Uma matéria de 1976 da revista Música deixa bem claro isso. Eis alguns trechos:
" (...) Wando acha que o público brasileiro está habituado a ouvir apenas a voz do cantor, esquecendo-se da melodia. Exatamente por isso, ele se anima a explorar vários instrumentos e efeitos sonoros. 'O meu último disco destaca o intérprete e cada peça de corda, teclado ou sopro. Se tocado em estéreo, o piano, por exemplo, é ouvido com seus agudos, médios e graves, e cada vocal é percebido em uma das duas caixas acústicas.'
Desenvolvendo esse trabalho de pesquisa em discos, o compositor pretende criar um estilo de música para ser ouvida em quadrifônico estéreo, assim que o aparelho for introduzido no país.
Seu último disco é dirigido à classe estudantil, 'que gosta dos Beatles e que tem medo de dizer que gosta de Roberto Carlos.'Por isso, além do trabalho em cima dos arranjos, Wando procura colocar duas ou três músicas com letras mais elaboradas, como Você Às Vezes Até Sou Eu: 'Você é/a paz dessa ternura/ o espinho que não fura/devagar só faz doer', e Há Tanto Pra Dizer: 'Vou ver Carnaval/Vou beber a vida/vou ser bem normal/vou ficar calado'. Composições que estão ao nível de Chico Buarque, segundo Wanderley Alves dos Reis.
O elepê, com desenho de uma colmeia e uma abelha na capa, representando um trabalho lento, estudado e de equipe, como explica Wando, o idealizador, esta sendo lançado juntamente com o penúltimo disco em 15 países. E 'Moça' conta com uma edição espanhola.
No próximo disco, que começa a ser gravado em agosto, Wando canta, além de suas composições, um pout-pourri com trabalhos de Milton Nascimento
Wando & Mercedes Sosa 'E não gravo um elepê com músicas só do Milton porque vai contra meu público. Lançando algumas de suas canções, eu não estou entrando na sua faixa, mas ele está entrando na minha.'
Em São Paulo, depois de quatro meses na 'Catedral do Samba', ele se apresenta com Mercedes Sosa, em fins de abril, no Parque Anhembi. Esse show, marcado pelo empresário Marcos Lázaro, 'pretende mostrar o trabalho de um cantor popular e de uma cantora pouco conhecida no Brasil. Eu gosto muito da ideia desse espetáculo com Mercedes, porque posso mostrar um trabalho mais sério, para um público mais exigente'.

Nas três apresentações Wando canta músicas de seus dois últimos discos e composições de Edu Lobo, Milton, Caetano, Gil e Chico. E é acompanhado pelo grupo Colmeia, com três teclados, guitarrista, baixo, dois ritmistas e bateria. 'O meu trabalho de pesquisa em cima de arranjos é muito importante na medida que as pessoas percebem que estou fazendo coisas novas.'"
Relendo essa antiga matéria, fico tentando imaginar Wando dividindo um palco com Mercedes Sosa. Não sei se esse show chegou a acontecer, mas nos dias de hoje é inusitado imaginar essa imagem. Da mesma forma, letras mais elaboradas, um maior cuidado na parte intrumental, e um apuro na escolha de músicas de outros autores, como Chico, Caetano, Milton e Edu Lobo, soa um tanto estranho, em comparação com seu trabalho habitual. Ter suas músicas comparadas - exageradamente, é claro - com as de Chico Buarque - é outra coisa que hoje soa estranho. Certamente, se conduzisse seu trabalho nessa linha mais elaborada, Wando não teria sido o artista bem sucedido que foi. Coisas do mundo artístico.

domingo, 5 de fevereiro de 2012

Theremin - O Avô dos Instrumentos Eletrônicos


Historicamente, pode-se afirmar que o theremin foi o primeiro instrumento eletrônico a ser inventado e utilizado em peças musicais. Em 1919, portanto muito antes de haver o conceito de música eletrônica, o russo Leon Theremin, então com 21 anos, desenvolveu um estranho e inusitado instrumento, que não tinha nada a ver com os convencionais, de corda, sopro ou percussão. Era algo meio futurista, tecnológico e fora dos padrões, e por isso mesmo chamava muita atenção.
O instrumento tem um formato de caixa, parecendo um daqueles rádios antigos, de válvula, com uma longa antena. O gabinete do theremin é alto, de modo que o músico o execute de pé. Com uma das mãos o instrumentista capta e controla o volume e frequência, sem precisar tocar no instrumento. O som vem das antenas, que reagem a qualquer movimento do corpo. Sendo assim, para tocá-lo é preciso se estar completamente estático, mexendo apenas as mãos, de modo suave.
Como todo instrumento, o theremin também teve um intrumentista que se notabilizou ao usá-lo, no caso, a russa Clara Reisenberg Rockmore, considerada a maior theremista de todos os tempos. Enquanto Clara popularizava o theremin, fazendo turnês nos anos 30, o instrumento chamou a atenção de outro gênio musical, que também deu nome a um instrumento, Robert Moog. Influenciado pelo theremin, Moog inventou os teclados/sintetizadores que levam seu nome, e também reproduzem o som do theremin.
Nos anos 60, os Beach Boys, usaram o instrumento em algumas faixas do disco "Good Vibrations". Mais tarde, Brian Wilson, o líder da banda declarou que resolveu usar o theremin porque quando criança ele tinha medo do som do instrumento, e para exorcizar esse medo, e fazer ligação com o nome do disco (Boas Vibrações) utilizou o instrumento. O Led Zeppelin também fez uso do theremin, e pode ser visto no filme "The Songs Remains The Same". No Brasil, o theremin foi usado pelos Mutantes, sendo executado por Rita Lee, como na foto abaixo. Em sua carreira solo Rita também chegou a usar o instrumento.

Mas antes desses grupos, alguns desbravadores da música eletrônica já usavam o theremin e da sua versão no moog, como:
Forbidden Planet - A trilha sonora de "Planeta Proibido", de 1956, de autoria do casal Louis e Bebe Barron utiliza exclusivamente protótipos do moog, theremin e outros instrumentos criados exclusivamente para a trilha.
Jean Jacques Perrey - Esse músico francês lançou em 68 o disco "The Amazing New Eletronic Pop Sound" trazendo experimentos sonoros derivados do theremin. Em 70 lançou o disco "Moog Indigo", na mesma linha.
Pierre Henry & Michel Colombier - Essa dupla de compositores franceses usou experimentos eletrônicos utilizando o moog e o theremin na trilha que compuseram para o balé de Maurice Béjart "Metamorfhose: Messe Pour Le Temps Present" nos anos 60.
Ao longo dos anos várias bandas adotaram o theremin e sua sonoridade peculiar: Portishead, Blur, Eels, Dinossaur Jr, Fishbone, Fugazi, Luna, Man Or Astro Man?, Marilyn Mason, Mercury Rev, Meat Beat Manifesto, Pavement, Phis, Jon Spencer Blues Exploison e Tortoise, somente para citar algumas.
Leon Theremin, cujo nome verdadeiro era Sergeivitch Termen, e foi "inglesado" para facilitar a pronúncia, faleceu em novembro de 93. Viveu o bastante para ver sua invenção ser utilizada e perpetuada de várias formas.

sábado, 4 de fevereiro de 2012

Heitor Villa-Lobbos - Um Gênio Universal


A música popular é assunto recorrente nesse blog, mas eu não poderia deixar de fazer uma postagem sobre uma das figuras mais marcantes da nossa música erudita, e que com seu trabalho genial, acabou ganhando o mundo: o maestro Heitor Villa-Lobos.
Para iniciar, gostaria de trazer uma curiosidade. Villa indiretamente é responsável pela criação da mais importante escola de música criada em minha cidade, Campos dos Goytacazes, o Conservatório de Música de Campos, inaugurado em 28 de março de 1935. O primeiro volume da obra "Campos Depois do Centenário", do historiador Waldir P. de Carvalho, conta a história dessa importante escola de música, que hoje infelizmente se encontra inativa. Ao destacar os dados biográficos de sua fundadora, a musicista Edméa Regazzi, o texto diz: "... nascera em 1899, em Laranjeiras, no Rio, mas mudou-se com a família para Niterói, deixando na antiga capital, um seu namorado que seria igualmente famoso na área musical: Heitor Villa-Lobos." Em outro trecho o historiador conta: "Trouxe Villa-Lobos, afinal, para Niterói, para reger a orquestra da 'Artur de Azevedo'. Não havia dúvida: Edméa e Heitor se namoravam, de verdade. Mas o comportamento boêmio, na época, de Villa-Lobos, promoveu a separação do belo par." Assim sendo, conclui-se que a vida um tanto desregrada do maestro, para os padrões da época, principalmente para o universo da música erudita, fez com que sua namorada de então mudasse de cidade, e lá criasse uma escola de música.
Por ocasião do centenário de seu nascimento, acontecido em 1987, Villa foi amplamente homenageado. Uma das primeiras homenagens aconteceu já um ano antes, na segunda edição do Free Jazz Festival, em agosto de 1986.

O festival, que naquela edição trouxe atrações internacionais de peso, como Larry Carlton, Wynton Marsalis, Satanley Jordan, David Sanborn, Gerry Mulligan, Ray Charles e The Manhatan Transfers, promoveu em sua abertura o show "Tributo a Villa- Lobos". Na edição paulista o tributo ficou a cargo do violonista Turíbio Santos, e na carioca quem homenageou Villa foi o multiinstrumentista Egberto Gismonti, que na ocasião vinha se dedicando à música de Villa-Lobos, e havia lançado recentemente o disco "Trenzinho Caipira", inteiramente voltado para o grande mestre.
Uma revista trazendo a programação do evento, com dados biográficos das atrações do festival, ilustrações , etc, trazia um texto do jornalista José Domingos Raffaeli falando sobre a vida e a carreira de Villa-Lobos, já o homenageando pelo centenário que aconteceria no ano seguinte. Um trecho da matéria diz:

"Villa-Lobos, além de compositor célebre, foi uma figura humana ímpar. Gostava de jogar sinuca, onde quer que fosse, inclusive possuía um requintado taco de madrepérola, personalizado, que exibia com profundo orgulho. Curtia charutos, como um verdadeiro 'expert'. Foi um dos primeiros músicos a subir o Morro da Mangueira, para encontrar Cartola, de quem ficou amigo. Esta admiração à arte do mestre sambista motivou-o a apresentá-lo pessoalmente a Leopoldo Stokowisky, quando aqui esteve. Apesar da insistência do próprio Cartola, jamais ensinou fundamentos teóricos, por julgá-los absolutamente desnecessários ao inesquecível compositor da Estação Primeira. Até na omissão, Villa-Lobos foi um gênio."