Palavras Domesticadas

Palavras Domesticadas

domingo, 22 de novembro de 2015

Paulinho da Viola - Jornal Hit Pop (1976) - 2ª Parte

"A paixão de Paulinho pela escola de samba da Portela é algo que não se pode explicar. Algo tão sensorial que, como frisou o poeta Hermínio Bello de Carvalho, é um amor 'que os olhos não conseguem perceber, as mãos não ousam tocar, e os pés evitam pisar'. Só que tem um detalhe: a letra, feita para uma música de Paulinho da Viola reverenciava a maior rival da Portela, tendo o ostensivo título de Sei Lá, Mangueira. Paulinho, ao que consta, ficou agastado com o parceiro que cometeu a heresia. Quem ficou possesso, porém foi o pessoal da escola, que não queria deixar o compositor (de sua ala de compositores!) frequentar a quadra da Portela. Foi um custo. Paulinho lembra: 'O pessoal ficou enciumado com a letra. Tive que explicar, então, que a letra era de Hermínio, que pretendia montar um show, que acabou não acontecendo, sobre a Mangueira, Foi difícil para o pessoal da Portela aceitar...'
No duro mesmo, os portelenses só reabilitaram Paulinho no ano de 1970, quando ele lançou o antológico Foi Um Rio Que Passou em Minha Vida. Coincidência ou não, essa música lançou-o definitivamente junto ao grande público. Era uma época ruim para o samba, época em que as grandes expressões da MPB estavam fora do Brasil. Paulinho deu força à nossa música, mostrou que o samba não estava morto, só precisava de motivação, para explodir.
'Nesse tempo - lembra - tudo o que 'cheirasse a brasileiro', usando um termo do Vianinha (Oduvaldo Viana Filho, teatrólogo falecido), fazia as pessoas torcerem o nariz. Ninguém queria tomar conhecimento. Houve, também, o equívoco das pessoas quanto ao tropicalismo, que tinha propostas de grande abertura e, ao mesmo tempo, era uma coisa terrivelmente crítica e irônica. Quando eu lancei Foi um Rio..., essa fase estava declinando, e havia uma certa repressão em cima do pessoal da tropicália.'
Bons tempos, aqueles, em que Paulinho passou a trocar impressões com gente de sua geração - embora de formações diferentes. Ele, por volta de 65, já se mostrava fiel às origens mais populares do samba, fazendo uma música balançada e simples, sem preciosismos. E os outros? Os outros eram Gil, Capinam, Chico, Caetano, gente que, a rigor, era curtidíssima pelas plateias universitárias, enquanto Paulinho permanecia na chamada cozinha, fazendo sua música sem pretensões. E vieram os festivais, autênticas feiras-livres de compositores, onde pintaram todos os grandes cartazes brasileiros, sem exceção. Paulinho esteve lá, com Sei Lá, Mangueira, em 68 (Record), com Coisas do Mundo, Minha Nega (Festival do Sambão)(*). No ano seguinte, ele comete uma façanha que surpreende meio mundo. Apresenta uma música de requintada elaboração, ritmo cinematográfico, versos em contraponto, chamada Sinal Fechado. É o diálogo angustiado entre duas pessoas que casualmente se encontram, cada um dentro do seu carro, num sinal de trânsito. Foi uma façanha e um choque, mesmo para os chamados críticos especializados. Sim, porque designativos como elaboração, requinte, concretismo, até aquela altura pelo menos, estavam reservados a compositores que tivessem formação universitária, que frequentassem saraus lítero-musicais. Naquelo ano de 1969, Paulinho da Viola obrigou os especialistas a reverem seus pontos de vista. E ele passou a ser respeitado. Já era tido como um bom músico, bom fazedor de melodias; agora, era também, um poeta de mão cheia.
Sem se preocupar com o sucesso, sem se deslumbrar com as ilusões, vivendo à base das descobertas que faz - que as coisas estão no mundo - Paulinho vem gravando um LP por ano, desde 1970. Invariavelmente, são discos bem cuidados, cuidados que começam, é óbvio, na escolha do repertório, e que se prolongam na concepção da capa, que vem sendo desenhada por Elifas Andreato. Essa regularidade iria desaguar, finalmente, na dupla obra-prima que ele realizou com o Memórias. Por que esse título? 'Acho o termo meio desgastado - responde ele. Sugere uma volta ao passado, um retrocesso, e não é esse o objetivo do meu trabalho. Prefiro resumir a discussão em torno de cultura popular, ao problema da falta de memória. O que ela carece é de preservação'. Habitualmente identificado como compositor tradicional, Paulinho não aceita o argumento: 'Apenas não sou de dar saltos. Me preocupo com o novo, mas não faço disso uma obsessão. Sou muito desconfiado com inovações, por isso, uso de muita cautela com elas em meu trabalho. Mas é uma preocupação constante.'
No momento, Paulinho da Viola não tem maiores planos. Muito satisfeito com  a repercussão de seu trabalho musical, inclusive em termos de vendagem e programação de rádio, ele encontra tempo para cultivar outra face (oculta e amadora) do seu talento: a do artesão que se dedica à construção de móveis, com  a mesma paciência e empenho que caracterizam seu ofício de compositor. Humilde sempre, ele também diz que está aprendendo a mexer com  as ferramentas que estão no mundo..."

(*) O nome correto desse festival é Bienal do Samba

sábado, 21 de novembro de 2015

Paulinho da Viola - Jornal Hit Pop (1976) - 1ª Parte

Em 1976 o jornal Hit Pop, que vinha encartado na revista Pop, trazia uma matéria de capa com Paulinho da Viola, que estava lançando dois discos simultaneamente: Memórias Cantando e Memórias Chorando, sendo o segundo um disco instrumental de chorinho. Um texto de apresentação da edição do jornal dizia:
"Com o lançamento dos LPs Chorando e Cantando - na verdade, um álbum duplo desmembrado - Paulinho da Viola inicia de maneira brilhante a terceira fase de sua carreira. Até a gravação da antológica Sinal Fechado, Paulinho praticamente se perdia na multidão de bons sambistas que, no panorama então pouco comercial do gênero, brigava por um lugar. Através da letra quase concretista de Sinal Fechado, o público descobria a força e a importância da poesia de Paulinho, e ele logo passou ao primeiro time entre os nossos sambistas urbanos. Agora, com Chorando e Cantando, Paulinho faz uma renovação histórica de duas das mais importantes manifestações populares brasileiras: o samba e o choro. Nasce, portanto, o Paulinho/síntese, bom de briga tanto no violão como no cavaquinho."
Abaixo transcrevo a matéria, assinada por Ruy Fabiano:
"Como um pescador afeito a mares tempestuosos, e por isso mesmo humilde diante da vida e dos elementos, ele sabe quie é preciso aprender, sempre. E, embora reconhecido como um paradigma da autêntica música popular brasileira, não se deslumbra nem sai por aí anunciando o novo: as coisas, afinal, estão no mundo.
Paulo Cesar Baptista de Faria é um carioca de 34 anos, síntese bem formulada de duas de nossas típicas manifestações musicais, o samba e o choro. Filho do violonista Cesar Faria, que tocava no conjunto Época de Ouro, acompanhando o lendário Jacob do Bandolim, Paulinho foi criado na intinidade das sessões de choro. Carioca, ele desde cedo ligou-se ao carnaval e ao samba, amarrando-se nas cores azuis da Portela, 'um rio que passou em minha vida'. Assim, entre o choro e o samba, ele consegue produzir dois discos que, certamente, já estão incorporados à história da música brasileira: Memórias. Num deles, Paulinho da Viola dá vazão a seu talento de compositor e sambista: é o LP que levou o subtítulo Cantando. No outro, ele se revela para o público como um exuberante solista de cavaquinho e, acima disso, como um compositor de chorinhos na melhor estirpe de Pixinguinha: é o LP que levou o subtítulo Chorando. Por essas duas obras, que resumem uma carreira de doze ou treze anos, Paulinho já forma no primeiro time da nossa música. O próprio Cartola, inclusive, nomeou Paulinho como legítimo herdeiro musical de sua obra, uma indicação que não deixa de ter sua importância.
Habituado desde garoto a frequentar rodas de choro e de samba, Paulinho nunca teve dúvidas quanto a seu futuro: seria mesmo a música. Nem mesmo seu pai, conhecedor das agruras da profissão de músico, pôde alterar seus rumos, e talvez nunca tenha tentado ir além de alguns poucos conselhos. 'Sambista não tem valor, nesta terra de doutor', disse o velho Cesar a seu filho, quando este completou 14 anos. Boa memória, a frase seria inserida num samba de anos mais tarde, musicado pelo próprio Paulinho. Ele, aliás, é um dado a mais para confirmar a tese do filho de peixe, peixe é: seus ouvidos se acostumaram aos acordes elaborados do choro clássico, da mesma forma que o rock nunca fez parte de seu repertório auditivo. A mesma história de sempre: todo homem tem seu lugar e seu tempo, Paulinho da Viola, sendo resultado de uma infância frutífera (pois desenvolveu sua musicalidade latente) e bem vivida (pois ele nunca precisou recusar o velho nem perseguir o novo).
Os primeiros toques de violão - que a viola não é seu forte, é apenas um aposto dado por Sérgio Cabral - ele aprendeu com Zé Maria, um dos parceiros do pai. Nessa época, já desfilava pelo bloco 'Foliões da Rua Anália Franco', em Vila Valqueire (subúrbio carioca), onde teve sua primeira experiência como compositor. No ano seguinte, 1961, saiu numa escola de samba, a União de Jacarepaguá.
'Em 1963 - prossegue -  através do meu primo Oscar Bigode, que era diretor de bateria, fui levado à Portela. Fiquei conhecendo compositores como Casquinha, Zé Keti, João da Gente, e muitos outros que me influenciaram bastante. Logo depois, fazia parte da ala dos compositores da escola'. No meio de velhos sambistas de tradição, que traziam na bagagem muitos anos de disputas, enredos e partidos-altos, lá estava o jovem Paulo Cesar de Faria, tão novo que ainda não era da Viola. De qualquer maneira, já fazia seus sambinhas discretamente, participando de noitadas musicais regadas a cerveja, e sobrevivendo num modesto emprego de escriturário de banco..." 
(continua)

sexta-feira, 20 de novembro de 2015

Elton Medeiros Critica os Rumos do Samba - O Globo (2001)

Elton Medeiros é um dos sambistas mais importantes do país, embora não tenha a popularidade de vários de seus colegas e parceiros. Falando em parceiros, podemos citar Paulinho da Viola, Cartola, Tom Zé, Zé Kéti e muitos outros. Em 04/02/2001 o jornal O Globo trazia uma matéria com Elton, assinada por João Pimentel, em que ele faz críticas ao rumo que o samba, as escolas e os desfiles estavam tomando, e suas misturas nem sempre bem acabadas. Segue abaixo a matéria:
"Elton Medeiros não faz questão de ser querido por todos, mas dispensa o rótulo de mal-humorado. Para ele, quem não entende de um assunto deve ficar calado e se esforçar para aprender. Na saída do show da Velha Guarda da Império Serrano, que encerrou o ciclo de homenagens a Zé Kéti, com sua direção, há duas semanas, em meio a uma série de sambas-enredos Elton irritou-se com uma moça que pedia insistentemente por 'Máscara Negra'. 'Minha filha, a Império é uma escola de samba, não de marcha', disparou. Mas, ao falar de seu novo CD, ainda sem nome, em fase final de produção, não esconde o orgulho dos parceiros.
- O meu último disco individual, o 'Mais Feliz', do início de 97, foi o meu trabalho mais infeliz. Não pelos músicos e pelo produto, que ficou ótimo, mas pela relação com  a gravadora, que não honrou seus compromissos - conta Elton, criticando a Rob Digital. - Quando resolvi realizar este disco, reuni os parceiros novos e antigos.
Uma pequena olhada no escrete que Elton reuniu mostra o que vem por aí. O disco tem arranjos de Cristóvão Bastos, do bandolinista Afonso Machado - que também assina a direção musical - de Chico Moreira e Maurício Carrilho. As participações de Zezé Gonzaga ('Recato'), Regina Werneck ('Valsa Breve'), Pena Branca ('Minha Boiada') e Paulinho da Viola (na inédita 'Samba do Meu Drama'), diferentemente de sugerir uma mistura confusa, ressalta as qualidades do compositor, que não se prende ao samba tradicional, mas passeia tranquilamente por todas as suas variações.
Autor de clássicos como 'Recomeçar', com Paulinho da Viola, o sambista, um exímio melodista, diz que não toca nenhum instrumento e nem precisa, 'pois a música está na cabeça e no coração'.
Com autoridade, Elton critica a deformação não apenas das escolas, mas da cultura geral. Para ele é preciso entender os fundamentos, o alicerce de qualquer cultura, para querer modificá-la.
- Toda cultura tem seus fundamentos para atender a uma necessidade. Seja ela religiosa, hierárquica ou comportamental. Eu acredito que a cultura não seja estática, mas ela tem que ter um termômetro para reciclar, alguém que tenha estes fundamentos.
Para ilustrar sua tese, lembra de um encontro recente, com uma antropóloga, irmã de uma amiga, que perguntou qual era sua opinião sobre o Jongo da Serrinha. Depois de dizer a ela que respeitava Darcy (considerando um dos últimos mestres do ritmo), Elton contou que havia visto uma apresentação do grupo em que os outros instrumentos, como o clarinete e a flauta, misturavam-se aos tambores originais.
- Eu disse a ela que não era uma questão de gostar, que o jongo é tocado por tambores. Ela disse que era para melhorar um pouquinho. As pessoas transformam as coisas de tal forma que hoje todo mundo é pai de santo, macumbeiro e sambista.
Um abraço emocionado no parceiro Paulinho da Viola
Fundador da Tupy de Brás de Pina, da Aprendizes de Lucas e da Quilombo, Elton Medeiros, mais que um crítico, é um personagem da transformação na concepção e na história das escolas de samba. Filho de um dançarino dos antigos ranchos, origem e modelo das primeiras agremiações, ele se emociona ao lembrar dos terreiros onde os sambas eram ensaiados.
- As pastoras tinham um caderno e eram acompanhadas por um regional que parecia estar fazendo uma serenata. O silêncio do restante era absoluto. Era um ritual. A gente queria cantar mas o diretor de harmonia segurava - lembra. Todo mundo sabia pelo olhar. O prazer de cantar era geral. Quando eu vivi isso pela primeira vez com um samba meu eu quase chorei. Isso não volta mais, não tenho ilusão.
E a falta de ilusão é a de um compositor que viveu um tempo em que para se entrar para uma escola era necessário antes saber tocar e construir os instrumentos.
- Também não tinha esta função de letrista. Era preciso saber compor letra e melodia para se juntar aos compositores mais antigos.
Sobre o Carnaval de hoje, Elton tem apenas críticas a fazer. Para ele, a transformação foi tamanha que as escolas se descaracterizaram completamente.
- Hoje em dia, o Carnaval  se presta a um tipo de informação que não é cultural. Se eu entrar em um campo de futebol eu sou preso. O jogador entra na avenida, não sabe sambar, não canta, e é aplaudido - reclama. - Hoje em dia, o que existe é um grande baile de má qualidade."

quarta-feira, 18 de novembro de 2015

Egberto Gismonti Lança Meeting Point - Jornal do Brasil (1997)

Em sua edição de 27/07/97 o Jornal do Brasil trazia uma matéria com Egberto Gismonti, que estava lançando um novo CD, Meeting Point, gravado na Lituânia. A matéria, assinada por Lena Frias, tinha por título "Gismonti e a linguagem do ilimitado":
"Egberto Gismonti desdenha um pouco da palavra, como um estorvo na comunicação. É músico e, como tal, dispõe da linguagem do ilimitado. Mas, apesar do entrave, conversar com esse grande artista, que está lançando novo CD, Meeting Point, gravado na Lituânia, é um exercício prazeroso e desafiador. Gismonti não é linear no compor, nem no dizer. 'Mais de uma vez, vi como a palavra atrapalha', reafirmou, ao comentar a forma como se entendeu - musicalmente - com o lituano e outras línguas não familiares. A palavra que atrapalha é, contudo, a mesma que o seduz no amigo Manoel de Barros, o poeta pantaneiro do chão e do pequeno; 'Ele fala na formiga sob a folha que está atrás de uma árvore...' - e completa o encantamento com um gesto de maestro. Gismonti vai compor um poema sinfônico sobre O Livro das Ignorãças de Manoel de Barros: 'Sonho ver a Cássia Eller falando os textos do Manoel e a orquestra tocando'.
Gismonti está musicando a peça Les Bonnes, de Jean Genet, a ser apresentada em Paris, no ano que vem. 'É um trabalho fundamentado na fé que tenho na vida.' Religiosidade? 'Eu não sei o nome, mas cai naquilo da utopia.' Gismonti tem obra vasta, 53 discos, música ambiental, trilhas sonoras, balés. Respeitado no exterior, o Brasil precisa conhecê-lo melhor. Obras como Sol do Meio-Dia, a partir da imersão nos sons do Xingu, Mágico, Dança das Cabeças, Academia de Danças já são clássicas. Mas Gismonti está soltinho, em relação a tudo isso. Sobre a própria obra, diz que 'não é pra levar tão a sério, é pra levar no prazer'.
Gismonti é um cara engraçado, com uns olhos brincalhões e um jeito de cigano chefe de caravana. Guarda os bastos cabelos sob um gorro de crochê: 'Desde pequeno minha mãe dizia que eu ficava bonitinho assim. Estou sempre com ele. É uma forma de lembrar minha mãe.'
Meeting Point é belíssimo. A música flui numa linguagem límpida, boa de entender. 'É bão, como diz meu amigo Manoel de Barros'. O CD já foi lançado na Europa, nos Estados Unidos, no Canadá e chega ao Japão em agosto. Ficou pronto em apenas uma semana. A Lithuanian State Symphony Orchestra recebera as partituras e, quando Gismonti chegou, tudo já estava preparado. 'A melhor orquestra brasileira para peças sinfônicas que eu conheço atualmente é lituana', exagera e provoca. Por que Lituânia? 'Porque lá os músicos mantêm a alegria da arte e a humildade diante da própria capacidade de exercer essa arte. São livres para a música, tocam o dia inteiro, alegremente. Realizam a utopia do exercício prazeroso da profissão. E o melhor é que se dedicam por inteiro a uma coisa que não existe - a música não existe, conclui, os olhos faiscando.

Não explica esse conceito da inexistência da música ('Explicar? Como?'). Tem razão. O mistério não se explica.. Vive-se, e pronto. Passa para outros temas, a Lituânia, o jeito do povo, as paisagens. Confirma que trabalhar com orquestras de países do antigo bloco soviético é economicamente sedutor. 'São orquestras ótimas, cujos artistas ainda não têm uma relação capitalista com o dinheiro.' Mas para Gismonti, que goza da confiança e da solidez econômica da gravadora alemã ECM, com quem vem trabalhando há algum tempo, o que mais pesou na escolha foi outro fator; 'Eu não queria sotaque nenhum, vício nenhum, só alegria. E assim foi.'
Gismonti tem estúdio e selo particulares, o Carmo, cujo nome é uma referência afetiva à cidade fluminense onde nasceu. Detém também os direitos de comercialização de seus fonogramas da EMI, a gravadora anterior. 'A Carmo produz e a ECM distribui para muitos países. É maravilhoso', pontua com seu exclamativo predileto. Encontrou o selo até numa pequena loja do Tirol, nos Alpes. 'Foi maravilhoso.' Mas, embora trabalhe fora do país, não considera o ambiente musical brasileiro saturado: 'Nunca esteve tão bom'.
Gismonti gosta de experimentar a música brasileira nos formatos mais diversos e o novo CD não foge à regra. 'Estou me tornando cada vez mais brasileiro. Teimoso como um bom brasileiro.' Brasileiramente redescobre a improvisa. Por exemplo, usa, na corda sol do violão, linha Caiçara A,B e C, própria para pesca de dourado. 'Não existe nada melhor em matéria de corda sol.' E por aí viaja na conversa, atirando frases inesperadas, nunca se mostrando de todo, embora não exatamente se escondendo. Não raro, depois de uma delas, ensina: 'É Fernando Pessoa'. Nas viagens, leva consigo um violão e um piano mudo, onde se exercita. E imagina, no avião, alguém perguntando, curioso: 'Está tocando?' Só para desenhar, na ponta dos lábios, a resposta igualmente muda: 'Estou'. Uma piada, que 'infelizmente nunca acontece, porque ninguém nunca pergunta nada'.
Em Meeting Point, o computador cita instrumentos como o zabumba, ritmos como o maixe, danças como o frevo, sugere o ranger de rodas de carroças interioranas e os jeitos e cheiros do homem carregando a vida. Incorpora termos da linguagem mestiça brasileiras 'e também os Villa-Lobos, os mestres por puro entusiasmo. Numa das faixas, Strawa no Sertão, 'fiz uma ficção musical considerando a possibilidade de Igor Stravinsky estar vivendo no sertão brasileiro'.
Música erudita? Semi-erudita? Popular? É o quê? 'Não sei. É só música.' "

terça-feira, 17 de novembro de 2015

Joan Baez - Jornal de Música (1976)

Joan Baez é um dos principais nomes da folk music americana, um estilo musical marcado por seu caráter acústico e letras engajadas, que geralmente falam de direitos civis e pacifismo. Joan ficou marcada por sua associação ao nome de Bob Dylan, que junto a ela, no início dos anos 60, se tornou a grande revelação do estilo. Joan tornou-se um nome dos mais respeitados da cena do rock, tendo inclusive participado do Festival de Woodstock em 1969, e lançando uma grande quantidade de álbuns ao longo de sua carreira.
Em 1976, o Jornal de Música, que vinha encartado na época na revista Rock, a História e a Glória, trazia um coluna sobre  folk, que falava sobre Baez, assinada por Antonio Carlos Carvalho, intitulada "Joan Baez, a pacifista que, por acaso, se tornou cantora folk":
"Existem discos que são lançados para testar o mercado, discos para dar prestígio aos catálogos das gravadoras e, é claro, discos para vender muito. No Brasil, Joan Baez fica na categoria do prestígio. Os seus raros discos editados aqui são apenas presentes endereçados aos poucos e fiéis seguidores da cantora folk pacifista, ou da pacifista, que, por acaso, também é uma cantora folk. Estes admiradores devem estar agora, no mínimo, aniversariando. A Odeon colocou nas lojas nada menos que um álbum duplo de Joan Baez a quatro cores chamado From Every Stage. Nele, vinte músicas gravadas ao vivo durante suas apresentações nos Estados Unidos, em julho e agosto do ano passado.  Os dez primeiros números ela canta do jeito que sempre gostou: acompanhada apenas por seu violão. No segundo disco seu grupo entra no palco. Estava formado pela bateria de Jim Gordon, baixo de James Jamerson, teclados de David Briggs e guitarras de Dan Ferguson e Larry Carlton. Mas já faz muitos anos e muitos discos que ela se apresentou para uma grande assistência pela primeira vez.
Joan Baez e Bob Dylan
 Nascida em Nova York, em 1941, só iria aprender a cantar nas igrejas da Califórnia. Quando seus pais se mudaram para Boston, aproveitou para fazer um curso de drama em nível universitário e cantar um pouco no Tulla's Coffe Grinder - ponto de reunião dos estudantes - até que o seu incessante envolvimento com  as panelinhas de música folk dos clubes do eixo Cambridge-Boston a tiraram definitivamente dos ensinos. Embora o meio musical já fosse, na época, uma pequena batalha elétrica cheia de pré-roqueiros bravos, Joan estava conseguindo bons aplausos. Esses aplausos começaram realmente em 1959 quando um amigo a convidou para assistir ao Festivall Folk de Newport. Como não estava inscrita, ficou cantando na área do acampamento até que começou a fazer mais sucesso do que os que estavam se apresentando no palco. Foi eleita a rainha do folclore norte-americano. Talvez tenha sido a primeira rainha folk da história americana. No ano seguinte, voltou para se apresentar no mesmo festival e três meses depois seu primeiro LP foi lançado no mercado. A vendagem deste disco, até hoje, é considerada a maior obtida por uma cantora folk. Em 1962, com o título de cantora folk recordista em vendas, já estava com três LPs nas paradas de sucesso dos Estados Unidos. Tornou-se a primeira intérprete folk a colocar LPs nas listas dos 10 mais vendidos. Já como pioneira em paradas, começou a aparecer com frequência em todos os noticiários internacionais com suas campanhas contra a guerra e a segregação. A partir daí, associando-se a todas as manifestações a favor da paz, passou a ser vista como uma cantora com impacto político e social muito maior do que musical. Hoje, com mais de 20 discos gravados, Joan Baez é muito famosa por ter lutado contra a violência como um meio de vida e por ter sido uma das lançadoras de Bob Dylan, com quem trabalhou intensamente entre 1961 e 1965.

segunda-feira, 16 de novembro de 2015

Joyce: Minhas Cartas para o Brasil - Revista Ziriguidum (1996)

Em seu número de estreia (novembro de 1996), a revista musical Ziriguidum trazia uma matéria com  a cantora e compositora Joyce, assinada por Alberto Feitosa Neto, e intitulada "Minhas cartas para o Brasil":
" Joyce estava com saudades do público brasileiro. E a recíproca era verdadeira. Depois de dez anos sem lançar um disco de músicas inéditas no país, a EMI brinda com o festejado CD Ilha Brasil.
Os anos noventa mostram a arte de Joyce mais refinada do que nunca, sem deixar de lado a força e a inteligência, duas marcas registradas. Para grande parte do público, a imagem de Joyce ainda era daquela menina cantando Clareana ao lado das filhas, proclamada ídolo dos bichos-grilo com canções como Monsieur Binot e Mistérios. Longe de rasgar sutiãs em praça pública e bem antes da deliciosa Outras Mulheres, a bandeira feminista havia sido levantada em Feminina.
Herdeira direta da bossa nova, sua carreira no exterior - em especial Inglaterra, EUA e Japão - já lhe rendeu felizes temporadas nos mais badalados clubes de jazz e blues e inúmeros hits nas pistas de dança mais descoladas da Europa.
Foi um esperto DJ inglês que descobriu maravilhas como Aldeia de Ogum (do LP Feminina, 1980) e Taxi Driver (do CD americano Language and Love, 1991). Provou que poderiam cair bem nas pistas de dança e transformou Joyce em cult entre aqueles adolescentes. 'No ano passado a gente fez uma experiência dessa aqui no Rio, tocando músicas brasileiras para dançar e trouxe esse DJ, que estava realizando um sonho. Mas ele quase apanhou. As pessoas queriam Madonna e Michael Jackson e ele não entendeu nada, ficou arrasado', ri do incidente, dizendo não acreditar que sua música conquiste as pistas de dança tupiniquins. 'Falta ver a música brasileira como digna de ser dançada, curtida', completa.
O disco novo chega com uma carga especial de saudade. São cartas ao Brasil. Cartas que ela guardou por longos anos sem lançar um trabalho inédito. 'Gravar no exterior para mim é muito fácil, mas eu queria que esse disco fosse feito em um estúdio daqui, para, depois, mandar para o mundo inteiro', explica.
Nas lojas japonesas dois meses antes do lançamento brasileiro, Ilha Brasil abre o valioso baú de músicas inéditas da cantora. Todas as faixas levam a marca pessoal e intransferível de Joyce, com parceiros como Paulo César Pinheiro, Maurício Maestro, Edu Lobo e Léa Freire.
A doce poesia de Paraíso contrasta com o samba-rap-desfile Rodando a Baiana, nas palavras da própria Joyce, 'um esporro em alguém'. Das imagens cinematográficas dessa faixa sai o primeiro video-clip do CD.
A força de sua poesia e de sua música é bem mostrada logo na primeira faixa: Samba da Zona. A bela e suava Havana-me vem de contraponto. O delicioso arranjo com um leve sabor bossa nova é da própria Joyce ao lado do Quarteto Livre, grupo idealizado a formado para acompanhar a cantora em shows e discos. Ao lado do parceiro de vinte anos, Tutty Moreno (bateria e percussão), conta com Mozar Terra (piano), Teco Cardoso (sopros) e Sizão Machado (baixo). O encontro foi tão feliz e proveitoso, que o Quarteto já prepara seus voos mais altos com apresentações solo e, em meio a outros compromissos o breve lançamento de um CD próprio.
No palco do elegante Teatro do Leblon (Rio), Joyce apresentou as músicas de Ilha Brasil em um show irretocável. Repertório, banda, luz, figurinos, direção e, no centro, a cantora em um momento muito feliz. Tudo funcionando perfeitamente, que conseguiu derramar algumas lágrimas de Caetano Veloso.
Mostrando grande segurança, Joyce dispensa a banda na hora de relembrar antigos sucessos. O clássico momento 'um banquinho, um violão' ganha em Joyce uma defensora em potencial. Para quem faz cara feia para o estilo, pensando em cantores de pouco talento que se escondem atrás da bossa nova acreditando que estão escondendo seus desafinos - quando na verdade estão os deixando ainda mais evidentes - é ácida, sem perder o humor: 'Pode ser bom, depende de quem toca', é taxativa.
Joyce é uma das grandes riquezas do Brasil. É tempo de aproveitar Joyce enquanto americanos, europeus e japoneses não reclamem saudades."

domingo, 15 de novembro de 2015

Preciosidades em Vinil : Superfly - Curtis Mayfield

Um dos grandes álbuns de música negra de minha coleção, é, sem dúvida, Superfly, de Curtis Mayfield. Uma trilha sonora em que um grande mestre da black music americana coloca toda sua criatividade e musicalidade num álbum que se tornou clássico. Lembro que comprei esse disco em um brechó que também vendia vinis, e havia recebido um enorme lote de LPs, onde fiz uma grande compra, e pude adquirir essa obra-prima que faltava em minha coleção.
Para falar desse disco, reproduzo abaixo, um texto escrito pelo jornalista e crítico Regis Tadeu na revista Mosh nº 1 (agosto 2004), da qual era também editor:
"Curtis Mayfield foi um dos raríssimos artistas a expressar com perfeição a dualidade de se viver em uma época marcada por uma encruzilhada cultural. Oriundo do meio gospel, ele logo adquiriu fama e respeitabilidade ao integrar o The Impressions, com quem começou, em 65, uma de suas obras-primas, 'People Get Ready'.
Quando largou o grupo e enveredou por uma brilhante carreira-solo, Mayfield estabeleceu o terceiro vértice do triângulo formado pela doçura da Motown e pela crueza lapidada da Stax, além de ter sido um dos primeiros a cantar a necessidade do engajamento na luta pelos direitos civis da comunidade negra, sempre pela ótica da valorização do orgulho racial.
Desde sua estreia em 1970 com o ótimo Curtis, ele ele já preconizava que o otimismo hippie havia dado lugar às incertezas e à militância política, mais contundente que o 'peace & love', preconizado por gente que não era muito chegada a tomar banho. Mas foi por intermédio da trilha sonora de um dos momentos mais significativos da chamada blaxploitation (corrente cinematográfica em que diretores negros glorificavam a bandidagem e a malandragem sacana de quem vivia nos becos e sarjetas de Nova York e Los Angeles, cujo ápice foi o filme Shaft, com trilha sonora imortalizada pelo genial Isaac Heyes) que Mayfield traçou um retrato inequívoco de uma sociedade.
Embora muitos acusem Superfly de ser um péssimo filme que glorificava as drogas, a obra era um tapa com luvas de boxe na pretensa sensibilidade social americana, antepassada distante da nefasta tese do 'politicamente correto'. Mas o incrível é que sua trilha sonora era embalada com um incrível requinte melódico, com grooves monstruosos e plácidas canções que serviam de perfeita moldura para a aparente apologia ao excesso. Mais do que ilustrar  musicalmente as cenas do filme e longe de qualquer tipo de julgamento moralista, Mayfield e sua voz adocicada contavam histórias por meio de letras em que não dava para separar os personagens da película das figuras reais - e tão torpes quanto - que perambulavam pelas grandes cidades americanas no período pós-Vietnan. Tal qual um poeta/menestrel atento, ele teceu incisivos comentários sociais sobre como uma poderosa América começava a se esfacelar a partir de suas entranhas, não se esquivando de questionar nem mesmo a complacência da própria comunidade negra.
 Estendendo o termo 'disco conceitual' - que havia sido criado pelos Beatles em Sgt Pepper's... - para o terreno da black music (coisa que Mavin Gaye também havia feito com o espetacular What's Goig On?), Mayfield criou um verdadeiro maremoto de levadas sacolejantes, com sua guitarra plugada em pedais wah wha tão insanos quanto geniais. Sua voz em falsete, urgente, angelical e demoníaca ao mesmo tempo, era um outro instrumento, com o qual Mayfield explicitou suas convicções sociais ao contar a trajetória de um traficante prestes a se aposentar, funcionando como um microscópio da sociedade americana que a mídia hipócrita preferia ignorar.
Na abertura com 'Little Child Runni' Wild' (única das músicas não composta especialmente para o filme), a união perfeita entre a percussão latina e a base contundente do órgão Hammond serviu para Mayfield exalar a dor sentida por uma infância vivida nas ruas. Se 'Freddie's Dead' mostrava a descida ao inferno de um neguinho boa-praça, tudo sob olhar indiferente de quem via a desgraça acontecendo, a inacreditável 'Pusherman' (e sua mitológica linha de baixo) estabelecia um interessantíssimo paralelo entre o traficante e a maneira como respeitáveis homens de negócio exerciam suas atividades. A sensualíssima 'Give Me Your Love (Love Song)' e o balanço de 'Eddie You Should Know Better' eram um perfeito contraponto atmosférico à eloquente moral da história tristemente celebrada na definitiva 'No Thing on Me' e na explosão suingada da faixa-título, uma continuação de 'Pusherman', com Mayfield tentando entender a natureza do traficante.
Dois temas instrumentais formavam um caso à parte.. 'Junkie Chase' tinha uma relação musical muito próxima a 'Shaft', ao passo que a pungente 'Think', estrategicamente posicionada após a conclusão da história, fazia uso de instrumentos pouco convencionais ao estilo - como um oboé - para sedimentar a ideia de que não era preciso usar drogas para se alcançar a felicidade.
A influência do 'Brian Wilson' do soul em todos os cantores de soul, funk, r&b e o raio que o parta após Superfly foi tão intensa, que até mesmo as trilhas sonoras de filmes da TV sofreram os efeitos devastadoramente geniais causados por ele, abrindo caminho para outras experiências do gênero (a trilha de Across 110th Street foi composta por Bob Womack, enquanto que as músicas de Trouble Man  vieram de Marvin Gaye) e ditando as regras da black music elaborada por todas as gerações que o sucederam - vide os Beastie Boys sampleando o baixo de 'Superfly' em 'Eggman', no disco Paul's Boutique.
Vítima de um acidente inacreditável - a queda de uma torre de iluminação em sua cabeça durante um show em 1990 deixou-o tetraplégico, o que o levou à depressão e a um câncer de próstata, que acabou matando-o em 1999 - Mayfield era tão genial que, mesmo passados 25 anos de seu lançamento, Superfly ainda é um bálsamo para nossos ouvidos cansados e claudicantes."

sábado, 14 de novembro de 2015

Arnaldo Antunes - Revista O Globo - 2007- 2ª Parte

Arnaldo elogia os investimentos na cultura para afastar os jovens do crime, feitos pelo AfroReggae, no Rio; e pelo Projeto Axé, na Bahia:
- O resgate de jovens através da cultura dá resultados magníficos. Cria auto-estima, leva o jovem a se sentir parte do mundo. Levas as pessoas a querer dar um jeito na casa, na vida, nas relações afetivas.
A originalidade que o Brasil tem a oferecer ao mundo, segundo ele, só aparece através da música popular.
- A música popular é responsável por dar uma cara dessa originalidade brasileira ao mundo. Ela já tem um reconhecimento considerável. Esse valor que a música brasileira tem é uma parte dessa representatividade que o Brasil poderá conquistar.
Quando Arnaldo Antunes fala em música popular, ele se refere a qualquer gênero musical. Gosta de música, daí seu afastamento dos Titãs para ampliar para além do rock a diversidade de sua produção:
- Todos os gêneros musicais têm coisas interessantes, acho estranho você se ligar a um só tipo de música. Saí dos Titãs um pouco pelo desejo de mostrar uma diversidade que não caberia numa banda de rock. O samba, o rock, o funk e o reggae são minhas quatro paixões. Mas cada vez mais fico querendo ouvir coisas diferentes, de outros lugares do mundo.
Arnaldo diz que nunca elegeu um gênero para recusar outros:
- Nunca tive essa coisa sectária de algumas pessoas do rock. Eu acompanho um monte de gente: Lenine, Pedro Luís, Lobão, da minha geração. Sou muito curioso, muitos são meus parceiros. Paralamas, Titãs, Frejat, Barão. Tem uma galera que continua produzindo e há as novas gerações, como Nação Zumbi, Mundo Livre, Marcelo D2, Moreno, Domênico e Kassim, Adriana Calcanhoto. Gosto de muita coisa. Com Marisa Monte e Carlinhos Brown compomos compulsivamente, como fazia com os Titãs. E, de antes, Caetano, Gil, Chico, Luiz Melodia, Paulinho da Viola. Os tempos convivem, as gerações convivem.
E, agora, vai para o carnaval!
- Gosto de carnaval, mas depende do estado de espírito. Às  vezes quero fugir do carnaval. Este ano, estou carnaval - diz, rindo, o sambista que faz requebrar até os personagens do Cartoon Network. É dele a trilha carnavalesca que bota todo mundo pra sambar nas vinhetas do canal.
'Qualquer' é apenas um dos trabalhos que Arnaldo está lançando de uma só fornada. Além do CD e do show, o poeta reuniu na coletânea 'Como é que chama o nome disso' (Publifolha) poemas de sua dezena de livros, letras de música, inéditos, entrevistas. E o desenhista ilustra o livro de frases que reuniu de seu caçula, Tomé, 'Frases do Tomé aos 3 anos' (Editora Alegoria)
- São frases que têm densidade poética - orgulha-se sorridente - Fiz com o Tomé o contrário do que fiz com  a mais velha, em 1992, quando ela, aos 3 anos, ilustrou um livro meu de prosa poética inspirada na maneira da criança falar e de fazer associações inusitadas e revelar coisas óbvias. O olhar infantil é revelador de coisas que a gente não está vendo, porque tem o primitivo preservado, o instinto.
Se o jeito pai babão de falar dos filhos, é comum a qualquer pai, Arnaldo Antunes parece incomum no desejo pelo reconhecimento dos seus:
- São meus primeiros ouvintes, meus primeiros leitores. A gente fica querendo ter orgulho dos filhos, mas quer também que eles se orgulhem da gente. Quero que se orgulhem de mim e acho que estou conseguindo - diz ele, que teve quatro filhos com a ex-mulher Zaba Moreau: Rosa, de 18 anos; Celeste, de 15; Brás, de 9; e Tomé, que fará 5.
Do poetinha caçula, Arnaldo não cansa de citar as melhores frases:
- Por exemplo, 'a bola só tem curvas'; 'o lobo mau é malvado porque não tem amigos, só tem um amigo que é o lobisomem'; 'o Papai Noel não nasceu de uma barriga, foi feito numa fábrica'; 'sabia que se Deus morrer, todo mundo morre?' O livro acaba quando ele faz quatro anos e diz: 'Agora eu tenho 4 anos, um monte de 4 anos, um milhão de 4 anos'.
Parte dessa suavidade que Arnaldo Antunes quer enfatizar em seu novo trabalho vem, sem dúvida, da relação especial que  tem com os filhos. A música 'Saiba', gravada também por Adriana Partimpim, sugiu quando ele botava Tomé pra dormir na rede. Vem daí 'todo mundo já foi neném, Bush e Saddan Hessein'. Mas isso, segundo ele, não significa que esteja julgando ou absolvendo as atrocidades de um ou de outro:
- Essa música fala do primitivismo, de uma natureza humana que nos iguala. Todo mundo nasceu e todo mundo vai morrer. É a única coisa que nos iguala. Era originalmente uma canção de ninar e tem essa doçura. Talvez por isso dê essa impressão de acolher todos os seres humanos, além do bem e do mal.
A suavidade é a intenção atual:
- Eu retirei a percussão para que esse tratamento instrumental evidenciasse uma interpretação mais serena, para que as canções aparecessem com maior clareza, mais suavidade. Eu acho que as letras das canções nunca estiveram tão em evidência.
Apesar da ênfase nas letras em português, ele tem certeza de que 'Qualquer' pode ir para qualquer lugar.
- A canção transcende as letras. Sempre ouvi música em inglês sem entender as palavras e gostava. A intenção que é dada no canto expressa bastante significado. - diz.
O cenário em preto e branco embala o conceito do show: é um vídeo de média-metragem com imagens e fotos feito pela fotógrafa e artista plástica Márcia Xavier, de 39 anos, namorada de Arnaldo há dois.
- O vídeo não conta uma história, dialoga com  a música - diz ela.
Para Márcia Xavier, Arnaldo tem o domínio da modernidade, com  seu traço multifacetado, fluido em todos os canais. Para Arnaldo, lidar com diferentes linguagens sempre foi algo natural, espontâneo:
- Nunca me senti muito especializado. Qualquer artista de música popular já tem um pouco essa necessidade de lidar com várias linguagens. Tem a letra, o show, o cenário, o videoclipe, a capa do disco.
Para a namorada, o ponto mais forte é, acima de tudo, 'aquela voz':
- Aquele tom de voz é muito maravilhoso. Acho que é o que mexe aquela coisa dentro doida."


sexta-feira, 13 de novembro de 2015

Arnaldo Antunes - Revista O Globo - 2007- 1ª Parte

De todos os cantores e compositores surgidos nas últimas décadas, um dos que mais admiro e chamam minha atenção é Arnaldo Antunes. Artista multimídia, atuando não só na música, mas na poesia e nas artes visuais, Arnaldo desde a época dos Titãs já trazia um diferencial, seja em suas letras ou na sua performance no palco, e essa boa impressão se confirmou em sua carreira solo.
Em sua edição de 11 de fevereiro de 2007, a Revista O Globo, que vinha (e ainda vem) encartada nas edições dominicais do jornal, trazia uma matéria de capa com Arnaldo, que reproduzo abaixo:
"Que Chico Buarque é ídolo de muitos ídolos de várias gerações, isso é sabido há décadas. Mas, agora, há outro gênio cuja luminosidade de suas múltiplas faces está enchendo os olhos de artistas de todas as áreas. Todos querem Arnaldo Antunes, um artista da palavra, da música, da dança, das artes gráficas. Paulinho da Viola diz que teria 'muito prazer' se o ex-titã botasse letra em mais um de seus sambas. Eles já são parceiros em 'Talismã'. Bia Lessa diz que pensa sempre em Arnaldo antes de começar qualquer trabalho, de desfiles e instalações. Lenine o convidou para botar fogo, dia 18, no carnaval do Recife. Carlinhos Brown garantiu sua participação, dia 20, para levantar o carnaval da Bahia. Depois da folia, Arnaldo retoma a turnê intimista para multidões, do CD 'Qualquer', na qual, sem percussão, recria um clima João Gilberto (com timbre de violoncelo), em apresentações previstas no Circo Voador e no Espaço Tom Jobim, no Jardim Botânico. Jeitinho tímido, ele fica quase mudo ao perceber tantos fãs famosos.
- Acho bacana, mas nem saberia o que dizer sobre a opinião dessas pessoas a meu respeito...
Parece um homem comum. Mas há algo extremamente complexo em Arnaldo Antunes. Se é caseiro e gosta de comer pizza aos domingos em São Paulo com os quatro filhos, também vive na estrada, compondo compulsivamente em hotéis e camarins com os músicos dos mais diversos gêneros. Se denunciava, aos berros de rock'nroll, os 'bichos escrotos' do Brasil, agora dispensa o peso da percussão para valorizar a suavidade das canções. A proposta intimista de 'Qualquer', ótima para uma casa noturna, levou ao delírio 15 mil pessoas num estádio no Uruguai. Ele diz que continua a tocar na essência da condição humana, nas emoções mais primitivas, mas, agora, de maneira mais suave.
- Quando penso em fazer uma canção, tenho sempre este desejo de alterar a consciência das pessoas, dando luz sobre algumas situações emocionais. O que vale é a surpresa de uma informação sobre algo simples, como o fato de que Bush e Saddam Hussein já foram nenéns e sentiram medo - diz, referindo-se à letra de 'Saiba', título do penúltimo CD.
Esta busca do primitivo emocional e social, 'daí os tribalistas, o espírito da tribo', revela o romantismo do homem que ama, muitas vezes, 'como um Roberto Carlos', e até colecionava álbuns de figurinhas da Jovem Guarda.
- Minhas músicas 'Se tudo pode acontecer' e 'Socorro', com letra de Alice Ruiz, são influenciadas pelas baladas de Roberto Carlos, que são uma tradução do que a gente sente. Isso não tem nada de brega, é sofisticadíssimo.
Ele é também simples ao considerar o Brasil um gigante deitado. Mas, antes de se referir ao crescimento econômico, remonta à antropofagia dos modernos.
- O Brasil tem uma originalidade grande a dar ao mundo, que passa pela miscigenação racial, cultural, culinária e religiosa. Isso vaza de uma forma muito rarefeita.
O otimismo com o Brasil e com a vida em geral - 'O Brasil tem que dar certo', diz - vem da certeza de que  o apreço pela cultura pode salvar vidas e ajudar o país a resolver a longa lista de suas deficiências internas.
- Sou otimista em relação ao Brasil, apesar dos problemas profundos de miséria, de violência, de corrupção e de educação. A gente tem muito trabalho pela frente, muita conscientização a ser feita. Investir nesse lado bom é basicamente priorizar a questão da educação. Se existe uma solução para a violência, que é crescente nas periferias das grandes cidades de todo o Brasil, isso passa pela educação. A gente precisa pensar num futuro mais largo. Não é só pôr mais polícia nas ruas. A violência não é só isso - comenta.
Para enfrentar a violência, Arnaldo Antunes diz que é preciso dar alternativas aos jovens:
- Não é só comida. Se estes jovens tiverem alternativas de cultura, de esporte, de arte e de emprego, de condições mínimas, de cidadania, onde vivem, isso será mais sedutor que a marginalidade. Mas é um trabalho a longo prazo, você tem que investir.
E, por falar em violência, o ex-doidão de drogas ilícitas, hoje só fuma cigarro e bebe vinho ('Embora esteja cada vez mais ilícito fumar cigarro'), mas defende a descriminalização:
- Acho que toda substância entorpecente, que eu nem chamaria de droga, deveria ser descriminalizada. Cada pessoa deveria ter a liberdade de optar sobre o que deseja fazer com seu corpo, sua mente e seu espírito. Há tradições culturais de uso de substâncias entorpecentes inclusive para fins religiosos. Não é  caso de polícia. É uma discussão complexa, porque há envolvimento de organizações criminosas, que são verdadeiros poderes econômicos. Mas a descriminalização do uso deveria ser uma medida mais civilizada.
(continua)

quinta-feira, 12 de novembro de 2015

Raphael Rabello - Uma de Suas Últimas Entrevistas - Revista Jam (1997) 2ª Parte

" Jam - Quem foi seu principal professor de violão?
Raphael Rabello - Foi o pernambucano Jaime Florêncio Meira, natural de Paudalho. Ele seguiu pro Rio de Janeiro, com um grupo que revolucionou a música brasileira: Os Turunas da Mauriceia. Meira foi um violonista fabuloso, era detentor de uma técnica oriunda do flamenco, porque, como se sabe, há muitos ciganos em Pernambuco e em todo Nordeste. Ele sabia tudo de violão, tocou com João Pernambuco, com Augusto Barrios, e foi meu grande mestre. Sinto-me um privilegiado, por ter sido seu aluno particular. Meira também ensinou violão a Baden Powell, João de Aquino e Maurício Carrilho.
Jam - Muitos concertistas definem a 'Chaconne' de Bach como uma peça dificílima, com alto grau de exigência técnica em violão clássico. Cite outras composições que você considere igualmente virtuosísticas.
Raphael Rabello - Realmente, a 'Chaconne' é uma peça que tem tudo; sua interpretação violonística foi um feito maravilhoso de Andrés Segovia. No universo das peças escritas originalmente pra violão, eu cito 'La Catedral' e 'Alegro Sinfônico', ambas de Augusto Barrios, que também  são extremamente difíceis. No campo das transcrições (onde se inclui a 'Chaconne', que Bach escreveu originalmente pra violino) eu destaco 'Sevilha' de Albenez, composição original pra piano, que exige muita técnica em sua versão violonística.
Jam - Ao contrário da grande maioria dos violonistas, o saudoso Dilermando Reis preferia as cordas de aço. Você só usa as de nylon?
Raphael Rabello - O Delermando foi admirável, fez escola e influenciou muita gente, popularizou o instrumento. Eu já trabalhei com cordas de aço também, no tempo do regional, quando eu tocava em grupo. Mas, para solos, prefiro as cordas de nylon.
Jam -  Quais os melhores encordoamentos do mundo?
Raphael Rabello - Os americanos 'D'Addario' e 'Augustine', o francês 'Savarez' e há também cordas muito boas de fabricação alemã, como as da marca 'Pyramid'. Por outro lado, a 'Giannini', embora não produza violões de boa qualidade, tem evoluído muito na fabricação de cordas. Atualmente, o encordoamento 'Giannini' tem um nível bem competitivo e pode ser comparado a muitos importados. 
Paco de Lucia
Jam - Que  achou do solo de Paco de Lucia na gravação de 'Oceano', de Djavan?
Raphael Rabello - Eu adoro os trabalhos de Paco. Sobre essa gravação, há um fato curioso. Era eu quem iria fazê-la, mas estava com o braço quebrado e não pude. O Djavan telefonou me convidando e, coincidentemente, o Paco estava lá em casa, no Rio, no momento do telefonema. Foi muito engraçado, porque respondi brincando: Djavan, eu estou com o braço engessado, mas tem um sujeito aqui que está começando e dá pra quebrar um galho (risos). Depois, fui junto com Paco pro estúdio, assistir à gravação; ele fez vários solos e achei todos excelentes. Infelizmente, o solo que Djavan escolheu e editou no disco não foi o melhor de todos. Mas é uma questão de gosto...
Jam - Você ouve rock de um Mark Knopfler, por exemplo?
Raphael Rabello -  Ouço e gosto do grupo dele, o Dire Straits. Gosto também de Prince e de outros.
Jam - Conhece um guitarrista de blues chamado Stevie Ray Vaughan?
Raphael Rabello - Esse é gênio, totalmente genial!
Jam - Pernambuco sempre teve bons violonistas e você aprendeu violão com um deles, o Jaime  Florêncio Meira. Destaque outros.
Raphael Rabello - João Pernambuco é definitivo, deixou uma obra belíssima pra violão. Dos violonistas atuais, destaco João Lyra, Caio Cezar e Henrique Annes: gente muito boa e séria., que estuda e toca para valer. Pernambuco é um verdadeiro manancial de músicos e artistas brilhantes, noutras áreas também: instrumentos de sopro, literatura, artes plásticas. Os melhores músicos de sopro do Brasil são pernambucanos.
Jam - Lá pelo Sul, qual é o melhor trabalho em violão, atualmente?     
Raphael Rabello - O de Ulisses Rocha. Para nim, ele é o maior talento que apareceu por lá, nos últimos tempos, como violonista.    
Jam - De quem são as obras mais importantes para violão, no Brasil?
Raphael Rabello - Sem nenhuma hesitação, eu lhe digo: João Pernambuco, Heitor Villa-Lobos, Radamés Gnatalli e Garoto. Esses quatro nomes representam o instrumento completo, são a síntese do violão brasileiro. Quem tiver o nível técnico suficiente para tocar essas quatro obras, pode dizer que é um grande violonista."          

quarta-feira, 11 de novembro de 2015

Raphael Rabello - Uma de Suas Últimas Entrevistas - Revista Jam (1997) 1ª Parte

Um dos maiores nomes do violão brasileiro de todos os tempos, Rafhael Rabello nos deixou precocemente, em 27 de abril de 1995. Mais de dois anos depois de seu desaparecimento, a revista Jam nº 6 (junho de 97) trazia uma entrevista até então inédita do grande músico, feita para o jornalista Guilherme Saraiva, concedida meses antes de sua morte. Foi uma conversa franca e até polêmica, da qual não concordo com tudo que ele falou, mas que reflete o pensamento de um dos maiores instrumentistas que esse país já teve. Segue abaixo a matéria:
"A história do violão de 7 cordas no Brasil e no mundo tem duas fases: antes e depois de Raphael Rabello. Na primeira, o instrumento aparece apenas em contraponto, desenhando as frases do baixo de valsas, chorinhos, fados, etc. Rabello inovou, ao utilizá-lo como instrumento de concerto, solando peças eruditas  e populares.
Infelizmente, a carreira brilhante de Raphael foi cortada por uma morte prematura. Mas ele já havia feito um trabalho suficientemente importante para que seu nome permaneça como um dos grandes instrumentistas na história da MPB. Nesta página e nas seguintes, JAM publica uma entrevista inédita, concedida por ele alguns meses antes de sua morte ao repórter Guilherme Saraiva durante alguns dias de apresentações em Recife.
A entrevista é interessante por mostrar, ainda vivo, o pensamento desse brilhante músico. Pensamos, a princípio, em editá-la, para tirar um pouco do lado mais técnico e das referências pernambucanas (Guilherme tencionava publicá-la em alguns veículos da imprensa local, o que acabou não acontecendo). Acabamos decidindo por deixá-la exatamente como aconteceu e Guilherme escreveu. Um registro histórico que começa na linha seguinte.
'Esse violonista brasileiro de 31 anos e 24 de carreira, após gravar brilhantemente Jobim em Todos os Tons, tem como próximo projeto já confirmado, um CD em dueto com ninguém menos que Paco de Lucia. Sua discografia compreende oito lançamentos, dois quais seis estão saindo no mercado dos Estados Unidos, este ano. Dentre mais de 400 participações em discos de outros artistas, no Brasil e exterior, a faixa 'Further to Fly', do CD Rhythm of the Saints de Paul Simon; além de embelezá-la com seus dedilhados de mestre, Rabello  fez com que o ex-Beatle Ringo Starr também participasse no violão, em vez de na bateria.
Nesta entrevista concedida na semana passada, Raphael Rabello revela que seu grande professor foi o pernambucano Jaime Florêncio Meira e desaprova a 'performance' de Egberto Gismonti como violonista. Comenta a 'Chaconne' de Bach e outras peças que exigem igual virtuosisimo no violão. Descreve os instrumentos que possui e fala de suas preferências quanto a cordas e microfone. Músico sem quaisquer preconceitos, Rabello (que já trabalhou com Elizeth Cardoso, Marisa Monte, Paulo Moura, etc) confessa apreciar o rock do Dire cStraits, Prince, e considera o guitarrista Stecie Ray Vaughan 'totalmente genial'. Sobre a tradicional  e excelente fama dos violonistas pernambucanos, ele declara que 'João Pernambuco é definitivo' e (citando os contemporâneos João Lyra, Henrique Annes e Caio Cezar) comenta: 'Gente muito boa e séria, que estuda o toca pra valer'.
Jam - Certa vez, Paulinho Nogueira, que foi professor de Toquinho, disse: 'Violão é o instrumento mais fácil de ser mal tocado e o mais difícil de ser bem tocado'. Concorda com ele?
Raphael Rabello - Inteiramente; é uma frase de grande sabedoria e eu não sabia que era do Paulinho.
Jam - Seu instrumento tem 7 cordas; há um bordão adicional que permite uma harmonização mais ampla nos baixos. Quanto à afinação, você trabalha só com  a tradicional 'mi, si, sol, ré' ou utiliza variantes?
Raphael Rabello - Eu sempre uso variantes, a meu gosto e de acordo com as peças que toco. Mantenho a afinação tradicional até a quinta corda e vario muito nos dois últimos bordões, sobretudo na sétima corda que afino em dó, si, lá e às vezes em ré.
Jam - Guardadas as devidas proporções, as fábricas de violão Giannini e Di Giorgio sempre mantiveram uma acirrada disputa de mercado, semelhante à da Pepsi versus Coca-Cola. Qual das duas produz o melhor violão ou o menos ruim?
Raphael Rabello - Nenhuma das duas fábricas. Eu espero que elas melhorem cada dia mais, porém rezo pra não ter que tocar em violão de nenhuma dessas marcas.
Jam - A tecnologia já criou violões de boa qualidade com sistema de amplificação própria, como o Gibson e o Takamine, mas você continua fiel aos instrumentos totalmente acústicos. O 'pinho' puro dá melhor resposta?
Raphael Rabello - Eu tenho restrições quanto ao uso desses sistemas, pelo fato de não traduzirem ainda o som verdadeiro do violão. Prefiro tocar em bons instrumentos acústicos e usar um bom microfone, o De Byll da fábrica alemã Sunriser.
Jam - Quais são seus violões?
Raphael Rabello - No total, são cinco: dois de 7 cordas, fabricados no Rio de Janeiro por Márcio Passos, e três de 6 coras, espanhois da marca José Ramirez. Desses três violões espanhois, dois são clássicos e o outro é flamenco.
Jam - Egberto Gismonti, vez por outra, está pilotando um violão de 14 cordas, dessa marca José Ramirez. Qual a sua apreciação.
Raphael Rabello - Egberto Gismonti é um pianista muito talentoso, um músico brilhante que tem uma concepção própria, mas toca violão só ocasionalmente e muito mal. Como violonista, eu não posso avaliá-lo, porque acho que ele não conhece o instrumento; nem o violão de 6 cordas, quanto mais o de 14! Então, ele procura criar efeitos nas 14 cordas do violão. Seria melhor se ele continuasse buscando os efeitos nas 88 cordas do piano, que faz muito bem.
(continua)



terça-feira, 10 de novembro de 2015

A Suprema Percussão de Naná Vasconcelos - Revista Qualis (1995) - 2ª Parte

" Voltou em 77 para Nova York, de onde não mais saiu, a não ser para fazer eventuais trabalhos - não poucos - na Europa, Japão e Brasil. Entre os quais se destaca a colaboração com Don Cherry no grupo CoDoNa (Colin-Waycott+Don Cherry+Naná Vasconcelos). E com Egberto Gismonti, quando participou do antológico disco Dança das Cabeças. Sem esquecer, é claro, os próprios álbuns solo de sua extensa discografia, valendo citar o notório primeiro disco Amazonas (72) e o terceiro Saudades (80) onde foi acompanhado por uma orquestra sinfônica.
Em março, Naná está como diretor do II PercPan - Panorama Percussivo Mundial - nos dias 27 a 30, em Salvador. Em 94, ele participou como ilustre convidado no festival que reuniu ritmos de vários pontos do planeta, em shows e workshops. Sob sua batuta, este ano a intenção foi maior ainda, abrangendo músicos dos EUA, América Central, Senegal, Índia, Indonésia e Uruguai etc., além dos nacionais Milton Nascimento, Gilberto Gil, Carlinhos Brown e Marcos Suzano, reunidos com Naná na banda  Brasil de abertura do evento. Nada mais justo para um artista que sempre se preocupou com a amplitude das linguagens sonoras. Ser presidente do II PercPan é mais que uma função executiva para Naná, é um tributo e reconhecimento a um dos maiores da percussão internacional.

O PENSAMENTO DE NANÁ

Qualis - O que te despertou para a música? Como foi o contato com a percussão?
Naná Vasconcelos - Eu fui criado num ambiente musical por causa de meu pai que era músico. Depois comecei a tocar bateria na banda dele e posteriormente aprendi a usar todos os instrumentos de percussão, principalmente o berimbau.
Qualis - Dos músicos que você já tocou junto, qual foi a melhor experiência?
Naná - São muitos nomes, mas é evidente que Milton Nascimento me abriu várias portas no início de carreira. Egberto Gismonti foi muito frutífero também. Lá fora, a colaboração mais importante foi com Don Cherry, que era um dos meus ídolos, no grupo Codona.
Naná tocando com Egberto Gismonti
Qualis - Com um ecletismo tão grande, quais são suas principais influências?
Naná - Eu gosto de muita coisa, do pioneirismo de Villa-Lobos à energia do rock dos Paralamas do Sucesso. O que me influencia é com quem estou trabalhando no momento. Na casa do Pat Metheny, por exemplo, ele me fez despertar para a tecnologia, para  a eletrônica, e apesar de preferir a sonoridade acústica, hoje em dia eu uso até percussão eletrônica quando preciso.
Qualis -  Você sabe explicar a razão da tradição de tantos percussionistas brasileiros?
Naná - Por causa da variedade de regiões e raças existentes aqui que possibilitam uma riqueza musical muito grande. Enquanto lá fora você tem a bateria, as maracas, aqui temos a cuíca que vem de um lugar, o berimbau que vem de outro, o pandeiro que é cigano, o agogô, o ganzá e muitas outra opções. Ritmos como o samba só poderiam ter surgido no Brasil mesmo.
Qualis - E o que você acha dessa nova geração de músicos que estão utilizando a percussão e misturando ritmos brasileiros com outros estilos como Carlinhos Brown e a Timbalada na Bahia, e os seus conterrâneos Chico Science e Mundo Livre S/A em Pernambuco?
Naná - Eu acho bom, inclusive já toquei com o Mundo Livre. É um começo para músicos que estão procurando uma identidade nacional, pois não temos a necessidade de parecer estrangeiros, já que vivemos outra realidade. A gente não precisa procurar lá fora o que temos de sobra aqui. Não dá também para disputar com  a tecnologia do exterior, então temos que usar nossas coisas mesmo. Na verdade esta tendência ainda não está sintetizada, o estilo está cru, veja a Timbalada que apresenta um só timbre em todas as suas músicas porque não exploram totalmente a poliritmia daqui. Mas ao menos é um ponto de partida.
Qualis - O músico brasileiro que foge de padrões comerciais, normalmente só é respeitado no exterior, onde a aceitação para a música instrumental, jazz e outros gêneros é maior. E no Brasil, você acha que seu valor é devidamente reconhecido?
Naná - Ainda não, tanto que só tenho três discos lançados aqui, então por isso eu estou vindo mais ao país ultimamente. Eu tenho um estilo pessoal que não tem aceitação popular, mas algumas pessoas mais interessadas, principalmente os mais jovens, estão descobrindo minha música através do rock e de outros artistas. O trabalho educacional com as crianças e o reconhecimento do público jovem estão sendo muito gratificantes.
Qualis -  Existe algum projeto futuro?
Naná - Sim. Continuar com o projeto ABC Musical em outras cidades, e organizar o Festival Internacional de Percussão (PercPan), na Bahia.

segunda-feira, 9 de novembro de 2015

A Suprema Percussão de Naná Vasconcelos - Revista Qualis (1995) - 1ª Parte

Desde os  anos 60 Naná Vasconcelos encanta o mundo musical com sua forma de tocar percussão, e criar climas muitas vezes inimagináveis. Músico de fama internacional, já tendo tocado com alguns dos melhores músicos do mundo, Naná nunca se distanciou de sua alma brasileira.
Em sua edição nº 26 (abril/maio de 1995), a revista  Qualis trazia uma ótima matéria e entrevista com Naná, assinada por Sérgio Barbo:
"O pernambucano Juvenal de Hollanda Vasconcelos é considerado o maior percussionista do mundo. Provavelmente você nunca ouviu falar neste nome, mas certamente sob o epíteto de Naná Vasconcelos você conhece esse instrumentista brasileiro que já foi escolhido durante seis anos consecutivos como o melhor do mundo pela revista especializada Down Beat. A sua capacidade é comprovada pela enorme e variada lista de artistas que já tocaram com ele: Ornette Coleman, Don Cherry, Keith Jarreth, Jean Luc Ponty, Pat Metheny, Paul Simon, Talking Heads, Debbie Harry, Egberto Gismonti, Milton Nascimento, Caetano Veloso, Marisa Monte e Meninos de Rua são alguns dos nomes.
A mesma Down Beat foi obrigada a criar a categoria percussionista, até então inexistente, por causa da inventividade de Naná e outros músicos brasileiros como Airto Moreira, que agitaram o hemisfério norte com seus talentos na virada dos anos 60 para os 70. Criador de um estilo pessoal, utilizando voz e instrumentos brasileiros para atingir objetivos sonoros, ele transformou a percussão em harmonia. A música de Naná causou um certo estranhamento a princípio - principalmente nos estrangeiros, que acharam esquisito aqueles instrumentos exóticos - mas que logo se transformou em admiração. Seu talento singular e as experiências sonoras chamaram a atenção de muita gente e desde então ele é intensamente requisitado por inúmeros artistas, o que o possibilitou desfrutar de um ecletismo tão grande que o faz passear por diversos gêneros sem o menor constrangimento como jazz, MPB, rock, blues, salsa, ritmos africanos e música indiana. Como se vê, Naná Vasconcelos tem um gosto amplo e mente aberta. Uma sugestiva frase de uma canção de seu último álbum, 'Uma Tarde no Norte', já fala sobre esses limites: 'O meu chapéu é o alto do céu'.
Morando nos Estados Unidos desde os anos 70, e depois de duas décadas de reconhecimento internacional, Naná é um legítimo cidadão do mundo que mantém suas raízes originais, e que por isso está retomando contato maior com o Brasil, iniciado há quase três anos quando encantou plateias com o show O Bater do Coração. Ano passado ele participou do 2º Heineken Concerts, em abril, capitaneando (a melhor noite e) uma banda que teve como integrantes gente como Don Cherry (pai da cantora Neneh Cherry e um dos expoentes do free jazz na década  de 60), Vernon Reid (ex-guitarrista do Living Colour) o feríssima baixista Arthur Maia e Marçalzinho, na percussão, Bo Stewart na tuba, entre outros. Durante os meses de agosto e dezembro em Salvador e em São Paulo, Naná criou o projeto ABC Musical que promoveu a interação musical de crianças com o folclore brasileiro e que contou com  a participação das Orquestras Sinfônicas de cada cidade. Por último, lançou seu terceiro disco no país (O décimo-quarto  de sua carreira), Contando Estórias - Story Telling (Velas), cujas músicas já puderam ser apreciadas nos citados shows.
Nascido há cinquenta anos atrás em Recife, as coisas aconteceram naturalmente na vida deste pernambucano iluminado. Foi iniciado musicalmente aos 12 anos, quando ganhou um instrumento do pai, e aos 14 anos já tocava bateria em orquestra profissional. 'Eu tinha autorização do juizado de menores para tocar em bailes e no cabaré , mas não podia descer do palco.
Em 65, foi para o Rio tocar em um festival, quando conheceu Milton Nascimento e participou dos primeiros discos dele. Em 69, o argentino Gato Barbieri, de passagem pelo Brasil, convidou Naná para tocar com ele, levando-o primeiro para a Argentina e depois para os Estados Unidos. Lá ele entrou de cara no disputadíssimo circuito de jazz internacional: 'Eu caí no meio da panela de músicos experientes e renomados e os quais admirava', conta ele. Aos poucos foi ficando muito conhecido e de lá foi para a  França, onde morou alguns anos e trabalhou com terapia infantil em um sanatório para crianças excepcionais, utilizando berimbau e outros recursos percussivos, e que acabou servindo como protótipo para seu posterior projeto educacional com crianças brasileiras."
(continua)

domingo, 8 de novembro de 2015

Alceu Valença - Revista de Domingo Jornal do Brasil (1994) - 2ª Parte

" O seu pai, Seu Décio - que aliás, não gostava nada dos dotes artísticos do filho - mandou-o estudar direito em Recife. O moço até que tentou. Mas, logo em seu primeiro estágio, num escritório, percebeu que não tinha jeito para o negócio. Ao atender um cliente que estava sem razão na disputa com uma loja, acabou tirando do bolso um dinheiro para ajudar o pobre homem. E largou a Advocacia. Pouco depois disso, em 1969, rumou para os Estados Unidos - onde tocou nas praças para os hippies. Nessa época, já estava parecidíssimo com eles. O pai, que então desaprovava o cabelão, os chinelos, tudo mais, hoje se debulha de orhulho. Eis o verso, que diz na ponta da  língua, inventado em homenagem ao filho: 'Sinto que meu nome/ antes de mim já morreu/ cada vez sou menos Décio/ cada vez mais pai de Alceu.'
Era a hora da virada. Em 1972, já no Rio, estreou em disco fazendo dupla com o amigo Geraldo Azevedo - que conhecera na casa de Wilson Lyra, primo do político Fernando Lyra, na Zona Sul carioca. 'Sou ao mesmo tempo irmão mais velho e mais novo de Alceu. Quando ele vira menino e embola o meio de campo, sou o mais velho. Nas horas em que baixa o Alceu sábio, passo a ser o mais novo, fico só ouvindo', venera Geraldinho. Por causa do modo teatral, como se apresenta no palco - às vezes um coringa, às vezes um bufão - Alceu ganhou o status de mais original de todos os compositores da leva que desceu o São Francisco. Misturava cocos, Jackson do Pandeiro, maracatus e Gonzagão com um rock eletrificado e quadris à Elvis Presley.
Nesta época, protagonizou uma das poucas rinhas de sua vida. Num show em São Paulo, Zé Ramalho, que ainda era violeiro da bandas de Alceu, exagerou num solo e levou um pito no intervalo, no camarim. Na volta, em pleno palco, partiu com o violão para cima de Alceu. 'Fiz uma cara de Jesus e joguei minhas mãos para a frente, em concha, num gesto quase sacerdotal. Ele me poupou', conta Alceu. 'Mas hoje está tudo bem entre nós', assegura. De gesto em gesto, acabou no cinema. Fez o personagem principal no filme A Noite do Espantalho, dirigido por Sérgio Ricardo em Nova Jerusalém. O compositor e dublê de cineasta teve que diminuir o peso do papel de Alceu - uma metáfora de Jesus Cristo - por causa do jeito histriônico e abusado do protagonista. 'Ele era estrela demais', recorda Sérgio.
Passada esta fase inicial - de atritos e vida muito mambembe -, em 1980 inaugurou o selo Ariola no país e alcançou a consagração nacional. Ficou famoso além da sua conta. Ele se lembra daquele tempo e se depara mais uma vez encarnando Jesus, tentando um pistolão com o Criador: 'Ao meu lado, só via executivo, gente engravatada, diretores de gravadora. Música para mim não era aquilo. Eu não estava preparado para o sucesso. Um dia, num dos inúmeros voos até  São Paulo, fiquei tão estressado que olhei pela janela, vi um sol lindo e clamei ao Pai: 'Deus, derruba esse avião, acaba com isso!' Não foi ouvido.
Alceu olha para esse passado e, invariavelmente, acha graça. Assim como ri quando fala do pai - ex-repressor de sua carreira - e debocha dos seus medos no começo da fama, gargalha ao lembrar que imitou um corcunda para ser dispensado do serviço militar, da paranoia que sentia quando jogava basquete pelo Náutico (torcia pelo Santa Cruz) e da pose de Cristo que fez na capa do álbum Cinco Sentidos, de 1982. Hoje, como qualquer pessoa que tem coragem de rir de si mesmo, garante que é feliz e que só faz o que quer: bolou um disco acústico, quase lento, e mesmo assim o fez tocar nas rádios do Nordeste e até da França. De sua boa vida na cobertura do Leblon, manda a autodefinição: 'Sou um louco que analisa.' Depois, dá um espirro. Está gripado. Sintoma vindo em boa hora, uma prova que Alceu é humano. "

sábado, 7 de novembro de 2015

Alceu Valença - Revista de Domingo Jornal do Brasil (1994) - 1º Parte

Em 1994, a Revista de Domingo, que vinha encartada no Jornal do Brasil, trazia um perfil de Alceu Valença, um artista inquieto, que na ocasião tomava um novo rumo em sua carreira ao largar sua gravadora e entrar no mercado independente. Em destaque, a matéria, assinada por Lula Branco Martins, trazia a frase "Eterno 'maluco', larga a gravadora e volta à vida de artista mambembe'. Abaixo, a transcrição da matéria:
"Às vezes não parece de todo despropositada essa cara de Jesus que Alceu Valença tem. 'Para mim, ele é um semideus', aponta Dona Adelma, mãe do artista. 'Ele é uma luz a ser seguida por todos os nordestinos', emenda o compositor Lenine, conterrâneo. 'Ele é mais que um mito', completa outro nordestino, poeta e parceiro Carlos Fernando. E o próprio Alceu, recém-chegado de uma turnê europeia, sintetiza da seguinte maneira o que desejava quando, há algumas semanas, violão em punho, entrou no prédio da Unesco, em Paris; 'Eu só queria fazer o bem, iluminar Olinda, que tem um sistema de luz tão pobrezinho...' Que ele seja, então louvado: Frederico Zaragoza, o diretor-geral da entidade, de tão embevecido com  a retórica do cantor e compositor, beijou sua mão, prometeu verbas para iluminar a cidade - que é patrimônio histórico mundial desde 1982 e desde sempre o xodó maior da vida de Alceu - e ainda o nomeou, informalmente, embaixador de Olinda na Unesco. Antes de se despedir do brasileiro, lhe pediu que cantasse uma coisa qualquer. Naquela hora, os versos de Olinda, a música, foram, assim dizendo, uma bênção. 
Dez anos depois de invadir as rádios com Coração Bobo, Cabelo no Pente e Como Dois Animais, Alceu Valença percebeu que, seja na Europa, seja no sertão, não depende de ninguém para propagar suas ideias e fazer sua peregrinação musical. Depois de uma 'negociação adulta' com  a gravadora EMI-Odeon, pediu as contas e reinventou uma versão anos 90 da arte mambembe. Quase todo o trabalho de divulgação de seu último disco, intitulado 7 Desejos, foi feito sem suportes milionários por trás, e sim no esquema boca a boca, ou mesmo 'boca e orelha', como ele prefere dizer. 'Reparei que não estava tocando no Rio e São Paulo e quis fazer um teste pelo interior. Agendei shows e, dias antes dos espetáculos, realizava coqueteis, recebia o prefeito, radialistas... Dava para todos o meu álbum. O resultado é que minhas músicas novas, como La Belle de Jour e Tesoura do Desejo, já são quase tão conhecidas quanto Tropicana', festeja Alceu, que em setembro volta à Europa e em outubro aporta no Canecão.
 Mas ele acaba desinflando aos poucos o peito. Segura o orgulho e conclama: 'Não me considerem um heroi, nem um Cristo. Não estou fazendo nada de excepcional, nem briguei com ninguém. Apenas descobri que esse caminho era possível. Estou feliz, me sinto mais responsável por minha própria obra. ' Alceu joga os louros da investida para seu produtor executivo, André Buarque: 'Foi ele, antes de mim, antes até do meu empresário, quem acreditou nesse caminho.' Buarque, um ex-coleguinha de classe do filho mais velho de Alceu, acompanha o artista desde que era adolescente, filmando seus shows. Agora é seu braço-direito. 'Gravamos Bicho Maluco Beleza em ritmo de frevo e isto foi um pouco contra a axé music', diz André.
Aí então o bicho maluco beleza Alceu Valença dá uma de normal, baixa o ímpeto competitivo de seu produtor e desfaz, urgente, a polêmica: 'Teve um vereador que tentou impedir a axé music em Recife. Nada a ver. Tudo bem que tocou além da conta, mas a Daniela Mercury, por exemplo, é muito boa.' Há tempos que ele não quer mais saber de confusão. Nem musical, nem muito menos política. Em 1990, Alceu se engajou na campanha de Joaquim Francisco, candidato a governador de Pernambuco pelo PFL, e acabou patrulhado pela esquerda local. Picharam sua casa, jogaram lata de cerveja nos palcos em que se apresentou na época, até que esqueceram. 'No Nordeste, essa coisa de política ainda é um tanto maniqueísta, o bem contra o mal, o dragão versus o anjinho... Mas quem me vaiou na época atualmente é meu amigo. Até porque o Joaquim ganhou a eleição', brinca. 'O muro caiu, a utopia acabou, a esquerda não pode ser mais a mesma', analisa, para depois definir Itamar como um 'titio bom'. Ele torce o nariz ao ser questionado sobre Collor e grita um 'é claro!' ao afirmar que votou em Lula nas eleições presidenciais de 1989. O lado sociopolítico da obra de Alceu Valença é atestado por Ney Matogrosso - que não pensa duas vezes e o chama de visionário: 'Gravei FM Rebeldia no meu último disco. O clima da música tem a ver com os arrastões do ano passado, mas Alceu a fez muito antes de toda essa convulsão social acontecer.'
Vindo da pequena burguesia do agreste pernambucano - seu avô era fazendeiro; seu pai, promotor público - Alceu Valença, 48 anos, três filhos, 'casado três vezes e meia', nasceu na pequena São Bento do Una e passou a infância ouvindo Luiz Gonzaga nos alto-falantes. Sua mais divertida lembrança dessa época diz respeito a um concurso de música para crianças. Tinha quatro anos e defendeu um frevo de Capiba. Seu adversário, um pouco mais velho, cantou a impostada Granada. Alceu foi derrotado. Mas quando o outro menino foi a dar o bis da vitória, ele começou a pular atrás do palco, fez cambalhota, palhaçada e acabou estragando a festa do vencedor. 'Sempre fui assim, estrelinha', confessa Alceu. "
(continua)