Palavras Domesticadas

Palavras Domesticadas

quarta-feira, 11 de abril de 2018

Raul Seixas: O Delirante e Atrevido Elogio da Mentira (1977)

Em 1977, o jornalista e crítico Nelson Motta fez uma análise da personalidade de Raul Seixas, um artista controverso e talentoso, em sua coluna em O Globo. O jornalista em seu texto fala no costume que Raul tinha de inventar histórias a seu respeito, de mentir constantemente. Era uma marca na personalidade de Raul, que Nelson Motta analisa no texto abaixo:
"O atual show de Raul Seixas é cabal demonstração prática do auto-conceito que já expressou muitas vezes - e que, como muito do que disse -, não foi devidamente levado em conta:
- Eu sou um ator que representa o papel de cantor e compositor.
Não posso deixar de associá-lo a outro ilustre baiano, Glauber Rocha, ao dizer-se na realidade um político que se vale do cinema como forma capaz de melhor expressar suas ideias.
Ao contrário do que se pensa, num mundo de crescente cinismo, desencanto e pé-atrás, Raul não quer enganar ninguém. Ou melhor, quer enganar tanto e tão ostensivamente - por determinação própria e consciente - que a sua presença artística, como um todo, se apresenta cristalina em sua verdadeira essência e na plenitude de seu potencial desmistificador.
Inquieto e atento navegante dos mares de lama e púrpura das civilizações industriais de nosso tempo, Raul não se furta a viver plenamente as torturantes contradições que são próprias dos seres artísticos em geral quando criativos, e conscientes em particular.
Um dia ele me disse que havia feito (ou iria fazer, não interessa) um filme em que estaria pelas ruas de Nova York vestido de palhaço, abrindo latas de lixo e devorando com prazer quase sexual os restos da opulência e da pobreza da nação mais poderosa de nosso tempo. Tá legal, uma boa cena de filme, se bem interpretada. Ao lembrar-me dela vejo Raul mostrando como iria representá-la, no jardim da minha casa... E mais, tenho quase certeza que ele me disse que tinha vivido, ao vivo mesmo, de corpo presente, a cena supracitada. Deve ser 'mentira' dentro dos padrões tão estupidamente repressivo-punitivos que habitam o rigor dos pouco criativos. Afinal, é tão difícil e complexo - quase inatingível mesmo - conseguir perceber com clareza o real, que o exercício da imaginação se torna uma das formas mais ricas e bonitas de tentar chegar ao Real e à tentativa de sua compreensão...
Raul mente até cair de costas. Sempre, cada vez mais, com tal coerência e constância que tudo acaba se tornando exemplarmente verdadeiro aos que o veem e ouvem suas palavras - que são as de um ator, um grande ator, que às vezes representa melhor e outras, pior o seu papel de cantor e compositor.
Você, que é mais arguto/a, já deve ter notado que uma visão um pouco mais profunda do que representam o trabalho-figura de Raul Seixas, no momento nos remete obrigatoriamente aos signipecados da instituição universal da 'mentira', quase todos de origem moral - disciplina na qual são raros e complexos os mestres e tantos e intolerantes os cobradores.
Sem adentrar os breves receituários da 'mentira caridosa', 'mentira desinteressada' e outros qualificativos, diga-se que a fantasia e a capacidade de recriar a realidade representam atributos próprios dos artistas e como tal são aceitos pela sociedade, não no nível condenatório de 'mentira', mas já no status de 'arte' - a mentira consentida, aprovada 'moralmente' como atividade humana necessária à comunidade. Seria talvez um... 'mentir com arte'? E quando a mentira é tão bem e convenientemente contada que você a vive como real e como tal a incorpora, a seus universos interiores de memória, informações e emoções?
Agora... se você conta uma maravilhosa história que você (não) viveu e ela a todos encanta, a ponto de despertar as invejas e as imediatas suspeitas de que você não pode ter tido o privilégio de vivê-la, você passa a ser investigado e fiscalizado como um mentiroso.
A menos que - estranha 'moral' - ganhe a vida com isso; que torne suas mentiras ostensivas ao reunir pessoas especificamente para ouvi-las e fazendo-as pagar por isso.
Tantas vezes alguém é levado a recriar a realidade que consegue perceber por lhe ser insuportável a sua aceitação...
Tantas vezes alguém revela as coisas e pessoas não da forma como são vistas e aceitas mas à imagem e semelhança de suas reais potencialidades não exercidas...
São algumas ideias importantes para uma devida valoração do trabalho de Raul Seixas, que talvez por não se ter agregado a qualquer corrente, movimento ou partido musical-promocional-criativo, ainda não só tenha desfrutado de atenções mais profundas dos que pretendem - como quem separa 'o joio do trigo' ou os santos dos pecadores - colocar de um lado os 'artistas' e do outro os 'mentirosos'...
Tipo solitário, introspectivo, tímido, Raul representa o exato oposto a isso como artista criador - e como tal assusta as pessoas, desperta-lhes o temor de atribuir-lhe alguma forma de 'seriedade' e depois perceber que tudo não passava de um grande deboche, desperta-lhes inveja pela capacidade de exercer de forma tão competente as suas fantasias; sejam elas Elvis Presley, Bob Dylan, John Lennon ou Raul Seixas mesmo, o seu próprio e mitológico personagem favorito.
No seu show ele aparece de roqueiro/70, alto rockand-roller/50 e como underground-maquis/60. Tudo uma supercascata, justamente porque ele recorre a esses símbolos tão fortes, que marcaram três gerações, para expressar a sua própria realidade e suas contradições; porque se sente exatamente como quem viveu e está vivendo realidades gêmeas das formidáveis 'mentiras' que seu talento e atrevimento transformam na realidade concreta de um dos mais interessantes, surpreendentes e ágeis artistas de sua geração: a que está na faixa dos 30. Ou dos 97? Ou dos 14 e meio? Ou dos 0,83? Ou..."