Palavras Domesticadas

Palavras Domesticadas

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

O Pasquim Fala dos 20 Anos da Tropicália (1988)

Em 1988 o movimento tropicalista fazia 20 anos, e na ocasião o jornal O Pasquim fez uma ampla matéria, de quatro páginas, sobre o assunto. Um dos textos que fazem parte da matéria fala sobre a reação dos poetas concretistas ao movimento e seu apoio à estética da tropicália, que como o concretismo, buscava quebrar barreiras. Abaixo, transcrevo o texto, que não vem assinado, intitulado "Os aplausos antropófagos", embora, apesar do título, pouco se fala sobre os concretistas:
"Pelo menos dois caminhos levaram ao tropicalismo. Um passa pelo grupo de concretistas de São Paulo (Haroldo e Augusto de Campos, Décio Pignatari) que, desde o início dos anos 60, defendiam uma arte útil, que se infiltrasse nos meios de comunicação de massa, com 'ênfase visual, ligado às técnicas da publicidade, das manchetes de jornal às histórias em quadrinhos.'
Esses intelectuais, hoje confinados às pesquisas sobre literatura e comunicação na PUC de São Paulo, tiveram grande influência na época - por exemplo, sobre Hélio Oiticica, nas artes plásticas. Eles se inspiraram na antropofagia de Oswald de Andrade, 'o culto da estética instintiva da terra nova', expresso no Manifesto Pau Brasil, de algumas décadas de Augusto de Campos. Na interpretação de Augusto de Campos, tratava-se de canibalizar, mesmo, 'devorar as técnicas e informações dos países desenvolvidos, para reelaborá-las com autonomia, convertendo-as em produto de exportação'. Agir como o antropófago, que devora o inimigo para adquirir suas qualidades.
O segundo caminho tem início menos erudito. Começa na Bahia, de onde vieram para o Rio alguns jovens artistas: Caetano Veloso, Gilberto Gil, Maria Bethânia e Gal Costa. Gil chega a ser militante do grupo nacionalista, que se opunha às guitarras na música brasileira. Ele e Caetano, que jamais gostou de política, terminaram numa prisão da ditadura militar. Tiveram a cabeça raspada, foram levados para a Bahia, impedidos de aparecer ou dar entrevistas e, afinal, por acordo com seus carcereiros, asilaram-se voluntariamente em Londres. Como isso aconteceu?
A explicação só tem sentido no clima de radicalismo ideológico de 1968. Paralelamente ao Festival da Canção da Globo, houve um happening tropicalista na boate Sucata, de Ricardo Amaral. Era uma espécie de resposta ou desagravo às vaias do Tuca, de São Paulo. No cenário, dominava a bandeira de Hélio Oiticica, com sua legenda: 'Seja marginal, seja heroi'. a certa altura, Os Mutantes dedilhavam no violão alguns acordes que os censores acharam parecidos com os do Hino Nacional.
A delação corria solta no meio artístico. O ódio dos militares se concentrava em Geraldo Vandré, autor de Caminhando. Por contágio, atingia tudo que era diferente, inusitado. Zuenir Ventura cita um radialista, Randal Juliano, como responsável pela decisão de prender Caetano e Gil, tão logo um juiz proibiu o show da boate Sucata. Daí a cabeça raspada (os cabelos grandes na época incomodavam muito) e, não se tendo constatado qualquer culpa, o exílio na Bahia, onde os dois tinham que se apresentar diariamente a um oficial do Exército.
Caetano comentou, em 1972, de volta de Londres, que havia se tornado, em 68, um ídolo 'para consumo de intelectuais, jornalistas, universitários em transe'. E completou: 'Na sua miséria, a intelectualidade brasileira via em mim um porta-estandarte, um salvador, um bode expiatório'.
Caetano, com Macalé ao fundo
Todos esses fatos eram surpreendentes para o jovem baiano que, anos antes, alertado pela irmã Maria Bethânia para o sucesso que fazia a jovem guarda, teve a ideia de se fazer acompanhar pelos Blue Boys (*) em Alegria, Alegria - sem saber o quanto era feroz a briga entre nacionalistas e internacionalistas. Isto o incompatibilizou com a plateia do Tuca: as roupas, os gestos, o rapagão louro foram acessórios na grande vaia. Mas essas roupas e gestos irritaram, mais que tudo, os militares radicais, convencidos, na época, de que o movimento hippie era uma armação para minar a estrutura da família brasileira."

(*) Na verdade o grupo que acompanhou Caetano em Alegria Alegria se chamava Beat Boys

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

A Guitarra Fenomenal de Roy Buchanan

Roy Buchanan (1940-1988) foi um grande guitarrista de rock e blues. Possuía uma técnica e um fraseado que o credenciava a ser classificado entre os grandes mestres de seu instrumento, embora sua popularidade não o colocasse ao lado de outros grandes mestres guitarristas mais conhecidos e cultuados. Mas aqueles que conheceram o seu trabalho e os discos que gravou podem dizer que Buchanan foi um dos maiores guitarristas de seu tempo. Infelizmente, ele teve uma morte prematura e trágica, além de cercada de mistério, que é relatada abaixo, num texto do jornalista José Emílio Rondeau, publicada em O Globo, em 23/10/88:
"Venerado pelos colegas, virtual desconhecido para o público, o guitarrista norte-americano de country-blues Roy Buchanan teve um fim enigmático, após uma carreira errática de mais de três décadas. No dia 14 de agosto, ele foi encontrado morto numa das celas da Fairfax Country Adult Detention Center, no Estado de Virgínia. Roy estava enforcado, pendendo das grades da janela de sua cela, para onde fora levado, a pedido da própria esposa, para 'gastar' uma bebedeira. Aqui começa o mistério: os legistas encarregados da autópsia deram como 'causa mortis' uma parada cardíaca. Mais tarde mudaram o veredito para suicídio. Roy Buchanan tinha 48 anos.
A conclusão dos legistas conflita com declarações de amigos de Roy, segundo os quais Buchanan passava por uma fase artística e pessoal ótima e feliz. Ele acabara de lançar o álbum 'Hot Wires' (pelo selo independente Alligator Records) - considerado o melhor de uma discografia que inclui uma dúzia de títulos - e planejava um disco exclusivamente instrumental.
Dias antes de morrer, Buchanan também assinara um contrato com um fabricante de guitarras pela qual seria lançada uma série de instrumentos levando o nome e a chancela do artista. Até meados de outubro não havia sido feita nenhuma outra declaração oficial a respeito da morte de Roy.
Havia quem chamasse Roy Buchanan de 'o guitarrista mais egoísta do mundo' - daqueles que não ensinam dicas e truques de seu ofício. Mesmo assim, gerações sucessivas de músicos - entre eles Jeff Beck, Eric Clapton, e Robbie Robertson - sofreram influências variadas do instrumentista que, segundo conta a lenda, por pouco nãp substituiu Brian Jones nos Rolling Stones.
Roy Buchanan nasceu nas montanhas de Ozark, no Estado de Arkansas, mas foi criado na Califórnia, sob constante presença de hinos religiosos cantados na igreja do pai, um pastor pentecostal. O próprio pai encorajou o pequeno Roy a aprender guitarra e aos sete anos o garoto já ensaiava os primeiros acordes. Oito anos mais tarde, Roy fugiu de casa para juntar-se à banda de R&B  de Johnny Ottis, em Los Angeles. Depois disso, trabalhou com Dale Hawkins ('Suzie Q'), Ronnie Hawkins (sem parentesco) e The Hawks (a banda que acompanhava Ronnie e que, no futuro, viraria a The Band), Merle Kilgore (country) e Bobby Gregg (baterista).
O semi-anonimato de Roy terminou em 1971, com um documentário feito pela cadeia de TV Educativa dos Estados Unidos, a PBS, intitulado 'O maior guitarrista desconhecido do mundo'. Entretanto, a fama súbita não impediu que Roy vagasse por três gravadoras diferentes, fazendo discos irregulares que poucas vezes capturavam o fogo que ele tinha ao vivo. Tampouco ajudavam o vai-e-vem de opiniões relativas ao repertório do artista: em determinado momento, Roy foi obrigado a gravar um compacto discotheque. Para quem não conhece Buchanan, uma boa oportunidade é tentar achar o vídeo 'Roy Orbinson and Friends', onde ele aparece duelando com Bruce Springsteen."

sábado, 5 de outubro de 2013

Raul Seixas Fala de Filosofia e Música - 1976

O trabalho de Raul Seixas foi marcado pelo alto teor filosófico (principalmente na fase de sua parceria com Paulo Coelho) e uma postura anárquica e irreverente. Em 1976 Raul lançava seu quarto disco solo "Eu Nasci Há Dez Mil Anos Atrás", e ainda na fase de gravação e finalização do trabalho, escreveu um texto para o jornal Hit Pop, um tabloide que acompanhava a revista Pop, onde ele fala sobre a fase de preparação do álbum, que estava prestes a ser lançado. Abaixo, transcrevo o texto de Raul:


“No momento não existe no mundo nada novo. As águas parecem pedras. Existe um vazio, um momento caótico no que se refere a qualquer esfera de movimento das ‘coisas do homem’. A arte é o espelho social de uma época e tudo o que se passa. O artista, criador, sente profundamente, e conscientemente ou não, acaba por comunicar esse momento dentro do seu próprio prisma. E existem tantos prismas como existem muralhas. Embaixo desse mar petrificado o comunicador tenta, com seus instrumentos de trabalho, ajudar a ordem natural das coisas a movimentar-se de novo. Ajuda, sem impor, à despetrificação do rio para que as águas do processo histórico continuem a correr. Nada acaba. Tudo é mutável.
Eu escolhi ser artista no sentido de viver nessa sociedade, dando meus gritos e pontos de vista, e ser ao mesmo tempo, um bom surfista na onda da frente, de onde vislumbro intuitivamente o Novo momento. O novo chegou e só quem pode detectar o novo é aquele que dispõe de um olho Novo, caso contrário vai ser sempre o Novo em sua frente como velho. É como meu parceiro Paulo Coelho diz: ‘a humanidade caminha como se dirigindo um carro e captando o momento presente através de um espelho retrovisor. Ora, quando se dá o insight do presente vivido naquele instante, o retrovisor do carro já fez o momento percebido se transformar em passado.’ E assim se torna mais fácil e mais cômodo deixar as coisas como estão, como medo de viver ou enfrentar um Novo desconhecido.
 
Estou pouco a pouco vencendo meus problemas que deixam de existir à medida em que eu me sinto bem sem eles. Isso para mim é a única medida utilizada para saber o que quero na vida. Me faz bem isso e não me faz bem ou feliz aquilo.
Há Dez Mil Anos Atrás, que é o disco que estou gravando agora, foi, digamos, uma nova muralha que galguei e pulei. Sei que há muitas muralhas.
Meu objetivo fundamental sempre foi o homem e sua equação. Eu, como homem, continuador da história em ’10 mil anos atrás’, me senti como o velhinho da esquina da Rio Branco, como Jesus, amor, assassino, bruxos e bruxas em fogo. Moisés, Maomé, Pedro, o apóstolo, o papa, o drama Babilônico, Drácula, discos voadores e arca de Noé, Salomão, Zumbi dos Palmares, Hitler ou um soldado solitário. Minha cabeça se projetava em livros sagrados entre Gitas e Umbanda. Fui macaco, Rapunzel e tudo mais que eu vivi por esses séculos me provaram que as águas petrificadas do rio estão próximas a correr de novo. E aquém disser que estou mentindo, tiro o chapéu.
Sobre o LP Há 10 Mil Anos Atrás, digo que está sendo preparado por mim e pelo Paulo Coelho com todo vapor que temos em nós. A primeira fase das composições já está praticamente terminada, pois desta vez estamos mais ligados e trabalhando juntos em letras e músicas, sem ficar aquela coisa de botar letras nas músicas dele ou eu botar música nas letras do Paulo. Assim, brigando, discutindo, 3 horas da manhã, entre cafezinhos requentados, estamos no final não só da relação das músicas, mas na concepção global do trabalho. É um Lp muito claro e muito bonito.
 
A próxima fase é comigo e com meu velho e predileto maestro Miguel Cidras Rivas, que virá passar algumas semanas aqui em casa em ordem de ouvirmos discos, falar de músicos, arte, burilarmos as orquestrações em códigos diferentes que um outro maestro faria. Meu trabalho com o maestro Miguel é incrível! Mostro para ele exatamente o feeling de uma passagem musical e ele a capta por intermédio de um código meu que só ele se acostumou a sentir. Por exemplo, eu digo: ‘Miguel, aqui nessa frase... me ensina a segurar... a barra de te amar... eu quero uma harmonia azul turquesa com... assim um cheiro leve de jasmim mas ao mesmo tempo a nota dissonante tem que ser como um som  da pancada de um carimbo de um tabelião às cinco horas da tarde no centro da cidade... entendeu? E ele sempre entende e pega e escreve exatamente o que eu ‘sensoriava’. Ouro de Tolo, Gita, Trem das 7, essas músicas foram orquestradas assim desse jeito abstrato.
Há Dez Mil Anos Atrás será gravado no estúdio de 16 canais da Philips e logo estará pronto, pois vou entrar no estúdio com todo o trabalho já pronto. É bem mais fácil e perfeito assim. Vou gravar a maior parte do Lp com o grupo Flamboyant e mais a guitarra de meu cunhado Gay Vaquer (aquele americano que gravou aquele Lp ‘20 Anos de Rock’ comigo), Ele é indispensável nesse trabalho. No mais, estou ansioso para essa nova fase de um novo disco a mais chegar ao ouvido dos que ouvirão.
OS: De resto... só cortei meu cabelo bem baixinho. Me retei e cortei.”

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Chico Buarque na Bronca - Revista Careta - 1981 (2ª Parte)

"Como um lobo sabido e atento, a Polygram enviou, em janeiro, no dia seguinte à expiração (por decurso de prazo) do contrato de Chico, um protesto judicial à Ariola, advertindo para que esta não colocasse em funcionamento o contrato com o cantor, pois ele continuava preso a sua antiga grvadora, através de respeitável dívida. Passarinho sim, Chico, mas na gaiola do lobo.
E agora? O departamento jurídico da Ariola afirma que agiu muito criteriosamente, como manda o figuriino. Ou seja: antes de firmar o contrato com Chico vasculhou todos os cartórios, e só encontrou registrado o último contrato (assinado a 30 de março de 1977, e registrado a 5 de maio daquele ano), pelo qual o cantor deve à Polygram apenas duas obras. 'E sobre elas, que representam um compacto - afirma a gravadora alemã -, estamos totalmente dispostos a entrar em acordo. Mas não sobre  4 LPs!' E, mais ainda, para demonstrar que a Polygram não está jogando limpo, o advogado da Ariola, Danilo Rocha, exibe a última página do 'contrato anterior', de 1974, onde aparece o registro em cartório feito a 16 de janeiro de 1981! 'Como podemos aceitar como válido um contrato registrado seis anos depois! Assinamos o nosso com o Chico a 31 de dezembro de 1979, e naquela época esse de 1974 não estava registrado, portanto não existia para terceiros.'
Tranquilo, Jorge Costa, o advogado do lobo, responde que o contrato, mesmo não registrado na ocasião, vale sim, se vale, na medida em que o de 1977 menciona a sua existência e o incorpora, o mesmo ocorrendo com todos os contratos anteriores, desde 1971, redigidos de maneira semelhante. Muito cioso o advogado explica ainda que a Polygram (sem dúvida preocupada com os destinos da música popular brasileira) não se coloca contra o Chico, mas contra a  Ariola, que assinou o contrato assim dessa forma, quando não podia fazê-lo. 'Estamos com o Chico, não contra ele', insiste o Dr. José. Ouvindo frase tão calorosa e desprendida, não consigo deixar de pensar que são amigos como esse que lascam a nossa vida. Tão bom se eles não existissem, ou tivessem a dignidade de se declarar inimigos, sem tergiversar. Selva danada, essa.
Por sua vez, Roberto Menescal, o executivo de calça Lee do lobo, acrescenta, muito solene: 'Questão de interpretação, questão de interpretação do contrato. Cada um olha de um jeito, e por isso também existe o juiz para ser mediador.' Defendendo bem as suas cores, ele fala claramente: 'Não estamos a fim de perder o Chico, nenhuma gravadora estaria, e vamos fazer tudo para não perdê-lo!' Mas Menescal, Menescal, pondero eu, e a música popular brasileira? Esta questão pode se arrastar por dois ou três anos, você, afinal, como compositor, não acha que é um grande prejuízo para nossa música, o Chico, o Chico Buarque de Hollanda, ficar sem gravar tanto tempo?! Nem por isso ele esquenta a cabeça: 'Não será a primeira vez que Chico não gravará durante dois ou três anos, ele já fez isso antes e, depois, você não acha também que 4 LPs do Chico não realizados representam um grande prejuízo para a gravadora?' Sem dúvida, Menescal, questão de perspectiva. Você se preocupa com os prejuízos da Polygram, e outros, como eu, o do Chico e da música popular brasileira.
A conversa prossegue e Roberto Menescal faz questão de destacar que não gosta de tratar dessas coisas não. 'Para resolvê-las existe o departamento jurídico, o advogado. Cada um na sua, ele de terno e eu de calça Lee. 'Lembra depois, convicto, que os contratos do Chico foram feitos 'pelo tio dele', a Polygram limitou-se simplesmente a aceitá-los. (Segundo pude apurar, apenas o primeiro contrato, de 1969, foi feito mesmo pelo tio, pois o cantor se encontrava na Itália, e então recorreu ao irmão de sua mãe. Mas, no de 1971, o tio já estava totalmente fora da jogada, pois Chico retornara ao Brasil).
Finalmente, Menescal aproveita a oportunidade até para tripudiar um pouco, vejam só, 'Sabe - diz-me ele - se der, até faço outra musiquinha com o Chico. Já tenho mesmo uma música para ele botar a letra, só tou meio envergonhado de no meio desse bolo mostrar para ele...' Qual é, Menescal?
Mergulhado até o pescoço em todo esse 'imbroglio' fica Chico tenso, nervoso, acabrunhado, sem ânimo nem cabeça para trabalhar, para criar. O seu próprio processo criativo é o mais atingido. A Ariola diz que vai gravar um disco com  ele até o fim do ano, de qualquer jeito, mesmo correndo o risco de ser processada. Será mesmo? A essa altura, ele já deveria estar no estúdio, e não está. Por outro lado, produzir músicas para outro cantor, ou uma peça, segundo ele, é muito diferente do que produzir para seu próprio disco. A motivação deste último é muito maior. Sem falar que o clima de tensão já se prolonga por mais de um ano. - como criar qualquer coisa assim? É, a Polygram talvez esteja perdendo uma boa nota, porém, Chico e nossa música, certamente, perdem coisas bem mais importantes.
'Incrível, quando termina a censura, a pressão oficial, etc, começa outra coisa. É muita coincidência. Uma coisa substitui a outra. Mas olhe, se eu soubesse que ia ser assim... fazia tudo de novo'. É isso aí, Chico."

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

Chico Buarque na Bronca - Revista Careta - 1981 (1ª Parte)

Em 1981 Chico Buarque trocou de gravadora. Depois de anos na Polygram, assinou com o selo Ariola, que acabara de se estabelecer no Brasil. Mas essa transição não foi tranquila, pois por questões legais e contratuais Chico ficou impedido de lançar o disco que estava planejando. Essa questão acabou estremecendo sua relação com o produtor Roberto Menescal, diretor de sua antiga gravadora, que inclusive havia sido recentemente seu parceiro em "Bye Bye Brasil", tema do filme de Cacá Diegues. Essa situação acabou inspirando Chico a compor "A Voz do Dono e o Dono da Voz", onde ele ironiza a situação, que ele gravou em "Almanaque",seu primeiro e adiado disco na nova gravadora.
Em sua edição de julho de 1981 a revista Careta descreve a situação em uma matéria assinada por Helena Salém, intitulada "O Lobo Silencia Chico". Segue abaixo a primeira parte:
"Chico Buarque anda tenso, nervoso, acabrunhado. A essa altura, já devia estar gravando seu novo LP, produzindo, cantando. Mas não pode. É que ele se viu enredado na armadilha do lobo. Uma armadilha bem pensada, preparada, de quem não brinca em serviço. Explico: sem a malícia necessária, Chico tratou o lobo (leia-se : a Polygram, gravadora holandesa multinacional) como se fose gente, numa boa. Relaxou, deu, recebeu como só se faz entre as pessoas. Enquanto ele disse sim, tudo bem, a fera também riu, parecendo mesmo gente. Até que o cantor resolveu dizer não, deixar aquele domínio ferino. Então aí ela esbravejou, com  as garras e os dentes em riste: 'Alto lá, rapazinho, sou lobo, não sou gente, se você se esqueceu, azar o seu.'
Azar o do Chico, e da música popular brasileira. Eles que se danem, não o lobo multinacional. Afinal, foi para isso que ele sempre armou suas armadilhas, mesmo quando não pareciam importantes. Mas elas estavam lá, rapidamente acionáveis, se fosse o caso. E foi. Depois de gravar durante 11 anos com a Polygram, renovando sucessivamente seus contratos, Chico Buarque decidiu fazer as malas e ir para outra gravadora, a Ariola (multinacional alemã), que lhe ofereceu condições bem melhores de trabalho e remuneração. O último contrato de Chico com a Polygram, de três anos, vencia a 8 de janeiro último, e por isso mesmo o cantor, um ano antes, assinou com a Ariola um outro contrato (de dois anos), para vigorar a partir do dia 9 de janeiro.
Negociação para lá, negociação para cá, ainda com o aspecto de gente, a Polygram fez o que pôde para conservar o seu cantor, um produto que vende, e muito. Não conseguiu. A proposta da concorrente era materialmente muito melhor, por que Chico não a aceitaria? Multinacional por multinacional, ora, há de se escolher a mais generosa (?). Crente que era passarinho, dono de seu destino, Chico foi em frente. E logo, esbarrou com o lobo, que lhe arreganhou um sorriso todo poderoso.
'Tá pensando que vai partir assim, como quer, qual, qual!' - disse-´lhe então o lobo, enfurecido. 'Vai não senhor, porque não pode não.' E, com aquelas patas horríveis, unhas imensas e venenosas, empunhou vitorioso sua armadilha: o contrato. O contrato, com 17 cláusulas, muito bem pensadinhas, que Chico assinara em março de 1977, como sempre fizera no passado, sem dar muita importância aos seus meandros e particularidades, numa boa, relaxado. Por exemplo: ele nem dera atenção à cláusula nº 11, que afirmava: 'Fica incorporado nesta data o contrato anterior de interpretação, assinado em 7 de janeiro de 1974.' Detalhe: pelo 'contrato anterior', Chico deveria gravar 60 obras (faixas) em quatro anos, equivalentes a cinco LPs. E pelo contrato de 1977, 48 obras em três anos. Sendo que, segundo a regulamentação vigente (favorável às gravadoras, evidentemente), não são computadas como 'obras' as faixas de um LP não interpretadas pelo cantor (como a maioria de 'A ópera do malandro'), assim como cantam somente apenas como 'meia-obra' aquelas interpretadas em parceria com outro cantor (como 'Que Será', com Milton Nascimento).
'Eu assinava aqueles contratos', explica Chico, irritado, ' nunca pensando em cumprir, e não cumpria mesmo. Impossível para mim fazer mais de um LP por ano, ainda mais que eu sou compositor. Não dá. Mas tudo era feito num clima de cordialidade, não me passava pela cabeça que poderia vir a ter problemas'. Bobeou com o lobo, machucou-se. É a lei da selva. Nos 11 anos, Chico produziu discos (como 'Saltimbancos'), fez e aconteceu, tanto que ele se sente em crédito com a Polygram. "Se eu não tivesse dado mais, não teriam me oferecido luvas para renovar o contrato no ano passado.'
Lei da selva é lei da selva., não é refresco. 'Quem tem que ler o contrato é quem assina', professa trqnquilamente, com jeito de bom moço, Roberto Menescal, ex-parceiro de Chico, compositor, ou melhor, quer dizer, diretor artístico da Polygram. Um executivo de calça Lee, sim senhor. E pelo contrato, segundo a Polygram, Chico não é absolutamentye credor, mas um grande devedor da gravadora. Deve, nada mais, nada menos que 47 obras - o equivalente a 4 LPs! E tem que pagar, tem que pagar! No ano passado, antes de gravar 'Vida', Chico tentou chegar a um acordo. Muitas reuniões, muitas discussões, e tensão. Propostas e contrapropostas. A última que, para o cantor, parecia definitiva, era a que ele fosse mesmo para a Ariola mas fizesse ainda pela Polygram dois projetos musicais. Tudo acertado, só faltava o acordo da matriz em Amsterdã. 'Vida' foi para a rua, em cima do Natal. O cantor esperou até a última hora uma resposta a fim de autorizar a publicação do disco para não prejudicar seu próprio trabalho A resposta da matriz nunca chegou, e de lá para cá, diálogo interrompido."
(continua)

terça-feira, 1 de outubro de 2013

Essa Tal de Gang 90 & Absurdetes

Um dos melhores discos de rock nacional dos anos 80 - um período de tantos lançamentos nessa área - foi na minha opinião, "Essa Tal de Gang 90 & Absurdetes", de 1983. Um álbum de grande criatividade, surgido da mente inquieta de Júlio Barroso, de quem já falei nesse espaço. Quando comprei esse vinil, eu o ouvia muito, várias vezes ao dia, o disco todo ou determinadas faixas, de tão agradável que se tornou sua audição. Uma crítica muito favorável e a esse álbum foi publicada por Ezequiel Neves, na revista Pipoca Moderna nº 4 (nov/dez 83) :


“Escândalos dos escândalos: foi preciso esperar 15 anos (ou séculos?) para que surgisse no país o Tropicália Vol. II. Exagero? De forma alguma! Mas enquanto aquele genial projeto resgatava do limbo formas musicais brasileiras consideradas cafonas pela intelectualidade, Júlio Barroso, via Gang 90 & Absurdetes, nos gratifica com uma obra multimídia provando que a África é a Mãe Terra da música popular, sem linhas divisórias de raças ou idiomas. O tom-tom dos tambores ancestrais é o mesmo tanto em Nova York como em Nova Iguaçu. 
 
Lógico que o disco Gang 90 & Absurdetes é um projeto que só será deglutido se tivermos seu encarte à mão. Mas, afinal, o carioca Júlio Barroso sempre foi fascinado pela informação; basta lembrarmos seu tempo de editor da fabulosa revista Música do Planeta Terra (idos de 76/77). Aliás, seu LP é a própria revista transportada para o vinil. Pura obra-prima em 33 rotações. Mas é bom lembrar o que dizia Virgínia Woolf a respeito de Ulisses, de James Joyce: ‘Nenhuma obra-prima tem o direito de ser chata’.  E Gang 90 & Absurdetes, felizmente, não tem nada de nauseabundo.
São apenas 10 faixas. Mas essas 10 faixas são o próprio caldeirão fervente de informações sonoras, mapa geográfico do swing, despirocadas guloseimas para os tímpanos, cucas e músculos. Contando com músicos do calibre de Herman Tôrres, Luiz Paulo Simas, Otávio Filho, Gigante Brazil, Guilherme Arantes, etc... e mais as vozes das Absurdetes, Júlio e parceiros constroem um caleidoscópio que é pura desrepressão. Os xenófobos vão odiar, não apenas o disco todo, mas principalmente a presença coloquial do idioma inglês nas letras. E, como poucos, Júlio sabe verbalizar o transe de maneira acachapante. Exemplo: ‘Zoom navalha corta um globo/ Lâmina luz olhar/ Desenhando um poema/ Corpo nu deusa lunar’ (Spaced Out in Paradise). E há também um poema que é a própria síntese da antropologia: ‘Meu amor/ Vem me abandonar (...) Já foi assim mares do sul/ Entre jatos de luz beleza sem dor/ a vida sexual dos selvagens’ (Nosso louco Amor).
Mas a petulância (amantíssima petulância!) de Júlio vai mais longe. Ele é capaz de assinar uma letra, a de ‘Românticos a Go-Gô em que os versos só contém citações de gênios, começando com “Donga, Cartola, Guevara, Sinhô’ e terminando com ‘Marley, Duchamp, Oiticica, Xangô’. E também declama, sobre uma base de reggae espacial, uma belíssima confissão de amor ao rei dos Beats, Jack Kerouac.
Se me perguntarem de qual faixa gosto mais, vou ficar mudo, mesmo se tiver tentado a responder que é ‘Telefone’ ou ‘Nosso Louco Amor’ ou ainda ‘Eu Sei, Mas Eu Não Sei’ – o que seria a resposta mais plausível para essa obra-prima, produzida por Luiz Fernando Borges e que teve a direção musical de Herman Tôrres. O que me deixa mais feliz e gratificado é que, com incrível bom humor, Gang 90 & Absurdetes guilhotina a linha divisória que existia entre a música de vanguarda e a popular. Ave Júlio!
 


segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Revista Bizz Especial - A História do Rock no Brasil

A revista Bizz dominou o mercado de publicações musicais sobre rock, especificamente, durante 15 anos. De vez em quando a revista lançava edições especiais, destacando uma vertente do rock, ou edições históricas, como a que destaco aqui, abrangendo o rock brasileiro. Publicada nos anos 80 (não há referência ao ano exato de publicação), a revista fala do rock nacional, desde sua pré-história - a fase anterior à Jovem Guarda (Tony e Cely Campelo, Demátrius, Sérgio Murilo, Wilson Miranda, Ronnie Cord), até o rock dos anos 80, que vivia seu auge, citando ainda artistas de vanguarda, como Arrigo Barnabé e Itamar Assunção, que também produziam uma forma de rock, mais elaborado e de influências e públicos diferentes. A Jovem Guarda, o Tropicalismo e o rock dos anos 70 também são historiados.
Cely Campelo
Em um trecho do texto de introdução, que é apresentado como "Carta ao Leitor", os editores dizem: "Esse tal de rock'n roll, do lado debaixo do Equador, tem uma história cheia de lacunas, de buracos negros e explosões efêmeras, de esquecimentos imperdoáveis e consagrações injustificadas... Afinal, é só o roteiro inacabado de um filme. Ainda há muita história por fazer..."
A narrativa sobre os primórdios de nosso rock, considerado como "pré-história" é assim narrado:
"O ano é 1959. O país respira a euforia da construção de Brasília e a TV, com nove anos de vida, começa a ocupar definitivamente o lugar do rádio. Em São Paulo, Sérgio 'Tony' Campello, cantor em início de carreira, acompanha a irmã em sua segunda gravação pela EMI-Odeon. É apenas o lado B de um disco, mais uma versão de Fred Jorge. 'Oô cupido, vê se deixa em paz...', suplicava a voz tímida da menina Célia, aliás, Cely, na versão de 'Stupid Cupid', hit de Neil Sedaka e H. Greenfield. Em poucos dias, a música alcançava o primeiro lugar nas paradas, e Cely Campelo, aos 16 anos, conquistava o posto de 'namoradinha do Brasil'. Voz doce, rebeldia controlada, romantismo ingênuo: essa era a receita de Cely, que reinaria suprema em todo o período pré-Jovem Guarda."
O sucesso de Cely e outros astros daquela fase são relatados na publicação, até desembocar na Jovem Guarda. Ainda com relação a Cely, curiosamente, sua carreira experimentou um renascimento cerca de 15 anos após ela tê-la abandonado para casar e viver uma vida longe dos palcos. A novela das 7 da Globo "Estúpido Cupido", de 76, de autoria de Mário Prata, ressuscitou sua carreira. Mesmo com o passar do tempo ela ainda trazia uma jovialidade, que a trouxe de volta aos palcos.
Trio Esperança
Ao falar da Jovem Guarda, obviamente foi dado um destaque ao trio Roberto, Erasmo e Wanderléa e o programa de TV que dimensionou a carreira dos três e de tantos outros artistas e grupos, como Os Vips, Ronnie Von, Eduardo Araújo, Trio Esperança, Os Incríveis, Renato e Seus Blue Caps e tantos outros. Um box especial sobre os três filmes estrelados por Roberto Carlos, assinado por  Nico Pereira de Queiroz, diz:
"Quem conhece o Roberto Carlos atual, dificilmente poderá imaginar 'o outro', o rei da Jovem Guarda. Verdadeiro rock'n roll. Com a ajuda do diretor Roberto Farias, produziu e interpretou três filmes que conseguiram levar para a tela toda a loucura que a Jovem Guarda representou, com a grande força do Tremendão e da Ternurinha. O trio perfeito: o heroi, o escudeiro e a namoradinha eterna e pura. O primeiro filme foi Roberto Carlos em Ritmo de Aventura, lançado em 1968, algo do tipo James Bond misturado com Help, dos Beatles. O segundo filme, mais do tipo Spielberg, rodado no Japão e Israel, foi O Diamante  Cor-de-Rosa. O terceiro, certamente o melhor, foi o mais 'brasileiro': A 300 Quilômetros por Hora, onde Roberto Carlos interpretava um mecânico pobre, que, na última hora, substitui o piloto, ganha a corrida e a mulher do piloto. É mole?"
A Tropicália é destacada em seguida, relatando toda a revolução estética que o movimento liderado por Caetano e Gil representou. Os Mutantes - o braço mais roqueiro do movimento - logicamente ganharam um destaque, não só por seu envolvimento com a Tropicália, como por tudo que representam na história  e no amadurecimento do rock brasileiro.
Tim Maia, nos anos 70
Os anos 70, uma das fases mais ricas e criativas de nosso rock são relatados através de personagens fundamentais para o rock brasileiro, como Rita Lee, Secos & Molhados, O Terço, Made in Brazil, Novos Baianos, o rock rural de Sá, Rodrix & Guarabyra e Raul Seixas, que na época de publicação da revista ainda era vivo, e foi descrito como "A mosca que ainda pousa na sopa do rock bem-comportado. A receita? Chuck Berry + esoterismo + Little Richard + ousadia = duas décadas de rock puro e abusado".
Também é importante destacar artistas que estão intimamente ligados à história de nosso rock, sem que obrigatoriamente seguissem a estética rock'n roll, caso de Tim Maia, que é o responsável por uma vertente mais swingada e ligada à soul music. Ou ainda uma tribo que é assim apresentada na revista: "Espremidos entre a a tribo roqueira e a MPB bem estabelecida, havia os 'malditos': Jorge Mautner, Walter Franco, Macalé e Luiz Melodia."
O Barão Vermelho, no seu início
Finalmente, chegando nos anos 80, a revista fala do que era atual. O rock brasileiro vivia um de seus períodos de maior popularidade, e muitas bandas, já consolidadas e emergentes eram destacadas: RPM (a banda de maior sucesso na época), o punk-rock dos Inocentes, Gang 90, Blitz, Sempre Livre, Kid Abelha, Ritchie, Paralamas, Barão Vermelho, Lobão, Titãs, Legião, Capital Inicial, Plebe Rude, etc.
Outros grupos também são lembrados, como nesse trecho da revista: "No início da década, o underground paulista está em plena ebulição. Grupos como Ira!, As Mercenárias, Ultraje e Voluntários da Pátria dividem a mesmo palco. No Rio, quem dita as regras do rock nacional é a 'maldita' Fluminense FM."
Assim é contada a história do rock brazuca com boas fotos e referências que servem como um bom material de pesquisa. Um tipo de revista que pode ser chamada de "edição de colecionador".

domingo, 29 de setembro de 2013

Jorge Mautner Fala de Orquídea Negra e Zé Ramalho

A música "Orquídea Negra" é uma composição de Jorge Mautner, que fez sucesso na voz de Zé Ramalho, e inclusive deu título ao disco onde ela está incluída. A música é tão identificada com a linguagem e o perfil artístico de Zé Ramalho, que muitos acham que a composição é do músico paraibano. Essa confusão chegou a ocorrer até em uma coletânea de Zé Ramalho, onde Orquídea Negra está incluída, e a autoria da música é erradamente atribuída a Zé Ramalho. Lembro que um dia estava na casa de um amigo ouvindo essa coletânea, e quando tocou Orquídea Negra alguém destacou os versos como uma grande letra de Zé Ramalho. Então eu corrigi que a música não era de sua autoria, e sim de Mautner. Mas ao pegar o CD para comprovar a real autoria, pra minha surpresa, vi que naquela coletânea ela era atribuída a Zé Ramalho. Anos depois, ao conhecer Jorge Mautner lembrei desse fato, e o próprio Mautner ficou de corrigir esse engano, até por questão de direitos autorais.
No livro "Zé Ramalho - Um Visionário no Século XX", de Luciane Alves (editora Nova Era - 1997) há um depoimento de Mautner falando de Orquídea Negra e Zé Ramalho:
"Compus Orquídea Negra pensando em Zé Ramalho. Essa música é uma saudação à bandeira negra da loucura e da pirataria. Loucura que a razão oficial negava. É a rebeldia, a imaginação da quarta dimensão, sempre presente nos trabalhos de Zé Ramalho. Ele é o anjo do impossível. Sua obra tem um surrealismo onde o absurdo e a realidade se entrecruzam muito fortemente. Onde a própria experiência pessoal nunca está separada da peça de arte que produziu. Zé Ramalho é muito profundo, um poeta que desvela as profundezas do ser humano.  É como um médium que recebe mensagens. Ele fala muito dos mistérios de Atlântida, pois esse é um assunto com o qual está muito envolvido. Ele mesmo vibra muito com as sete pedras, com  as inscrições antiquíssimas, e fica muito revoltado com a descrença das pessoas. Sobre esse assunto tudo é muito obscuro, mas, a exemplo de outros acadêmicos, Lévi-Straus, em seu último livro, fala do Amazonas e cita um explorador chamado Cabeza de Vaca, que teria explorado o sul da América e encontrado no Amazonas uma civilização com seis milhões de almas que não eram índios e tinham casas com tetos de ouro. Isso foi motivo de muita gozação na época. Daí nasceu a lenda do 'Eldorado'.
Mas tudo isso foi provado graças ao teste radioativo do carbono-14 e de algumas explorações arqueológicas. Ficou provado ter existido ali uma civilização diferente de nossos índios. Suas vestimentas eram diferentes, muito parecidas com as dos astecas. Chegou-se então à conclusão de que a civilização inca começara no Amazonas e dali fora para a Cordilheira dos Andes.
Ideias como esta, Zé Ramalho captou do inconsciente coletivo de poeta. ele tem um farto material sobre as sete pedras e sobre lugares misteriosos. É um profundo desvelador desses mistérios. Sua cultura é muito embasada no Avôhai. Ele tem todo o inconsciente altamente literário da Paraíba. Nesta região existem pessoas que, embora analfabetas, são capazes de produzir poesia de alta qualidade literária. Exemplo disso é Zé Limeira. Zé Ramalho comunga este inconsciente coletivo, e essas coisas, nem a lógica nem a psicologia nem a filosofia alcançam. Esse mistério é Zé Ramalho."

sábado, 28 de setembro de 2013

George Harrison Sai em Turnê Após 17 Anos (1992)

George Harrison foi sem dúvida um dos grandes ícones do rock. Um compositor fantástico e uma figura carismática, apesar de ser um tanto tímido e recluso para um astro do rock. George não era muito chegado a grandes turnês, e seus shows eram muitos esparsos. Por isso quando era anunciada uma turnê de George, o fato virava notícia no meio musical, como em 1992, quando saiu em excursão pelo Japão com o amigo de sempre, Eric Clapton. Na ocasião o correspondente do jornal O Globo nos Estados Unidos, José Emílio Rondeau, noticiou o fato na seção "Rio Fanzine", em 26/07/92:
"Desde 1974 George Harrison não fazia turnês. Apenas eventualmente o ex-Beatle subia ao palco, geralmente em ocasiões muito especiais, raras em espetáculos beneficentes, como o Prince's Trust Fund, ou dando uma canja em shows de seu velho amigo Eric Clapton. Triturado pela crítica durante a turnê 'Dark Horse', de 74 - uma excursão marcada por muito nervosismo e problemas em suas cordas vocais - George preferiu restringir suas atividades musicais ao estúdio.
Dezessete anos mais tarde, convencido (pressionado?) por Clapton, Harrison topou retornar aos palcos para uma mini-turnê de 12 shows em Osaka e Tóquio, no Japão. Este 'Live in Japan' é o registro dessa turnê: dois CDs (ou dois cassetes), com 19 faixas selecionadas de um repertório generoso, que cobre algumas das melhores suas suas com e sem os Beatles.
Livre, em teoria, da posição de bandleader - no íntimo, Harrison se comportava como mais um integrante da banda de Clapton, embora fosse ele a atração principal do show, todos os vocais principais fossem seus e quase todas as músicas, exceto uma ('Roll Over Beethoven', de Chuck Berry) fossem de sua autoria - George está à vontade e confiante. E com isso conseguiu realizar o melhor disco ao vivo já gravado por um ex-Beatle.
Apoiado por uma das melhores bandas em atividade - a de Clapton, que conta com músicos como o baixista e vocalista Nathan East, e os tecladistas Greg Philinganes e Chuck Leavell - George percorre com segurança e entusiasmo uma lista de clássicos, quase sempre acrescentando um peso e uma dramaticidade superiores ao ouvido nas gravações originais.
Ele pinçou músicas que cantava com os Beatles - como 'I Want To Tell You', que os japoneses ouviram pela primeira vez em 1966, quando os Beatles se apresentaram pela primeira vez no Budokan - as revisitou com um novo approach, enxertando novidades - em 'Taxman' ele pode ter mantido e utilizado em sampling a contagem e a tossida que abrem a versão do disco, mas agora ele ataca George Bush, ao invés dos governantes ingleses dos anos 60 alfinetados em 'Revolver'. Por fim, ele misturou sem a menor cerimônia assinaturas musicais de sua carreira Beatle e de sua discografia solo - no refrão de 'Isn't It A Pity', ele acrecenta um pedaço de 'Hey Jude".
Além disso, George reestruturou muitas canções, algumas delas do começo ao fim. 'Something' pega de surpresa o ouvinte, numa cover em muitos aspectos superior à versão original do disco 'Abbey Road'.
Estão aqui os pilares obrigatórios - 'My Sweet Lord' é provavelmente o que menos falta faria - mas há no disco um bom número de raridades nunca antes ouvidas ao vivo, como 'Piggies' (do 'Álbum Branco', com direito à coda de 'One More Time'). E mesmo o material mais fraco - 'Devil's Radio', 'All Those Years Ago', 'Darkhorse' - soa forte, por causa do ataque e do balanço da banda."

sexta-feira, 27 de setembro de 2013

Hermeto Pascoal - 1975 (2ª Parte)

"A impossibilidade de gravar como quer, mesmo no exterior, ele constatou na Alemanha, de onde chegou mês passado. Lá ele se apresentou como convidado especial no 'Festival Internacional de Jazz de Berlim'. Era o quinto integrante de um quarteto formado pelos brasileiros Egberto Gismonti e o percussionista Naná. Voltou um pouco decepcionado por ver que até os músicos estangeiros estão se submetendo aos esquemas comerciais propostos por gravadoras e empresários. Mas também ficou comovido com sua popularidade entre os alemães.
- Depois de cada concerto, dezenas de pessoas traziam o disco que gravei em Los Angeles ou então o álbum-duplo (Live/Evil) que gravei com Miles Davis para eu autografar. Um público maravilhoso, eu me sentia como como se não tivesse saído de São Paulo. Aliás, quer saber de uma coisa? Não troco o Brasil por lugar nenhum do mundo. Aguento ficar fora no máximo uns 6 ou 8 meses. Mais não dá.
Também pudera. Quem como ele, nasceu no sertão de Alagoas não se adapta mesmo no estrangeiro. Ainda mais sem falar uma palavra de inglês. Ele nasceu em 1936, em Vila de Lagoa *, município de Arapiraca. Mesmo na sua música livre e elétrica de hoje, estão presentes todos os sons da infância: as cantigas do pai (cantador e sanfoneiro), as rezas, o coro das beatas, das filhas de Maria, a cantilena dos velórios, as ladainhas, o grito dos vaqueiros e as festas. Em seu espetáculo no Bandeirantes, havia um momento emocionante: no meio de todo speed dos metais, os blocos de som e ritmo, surgia de repente a figura de seu pai (Pascoal José da Costa, autor de 'Galho da Roseira'), de sanfona na mão, como um pacificado Antonio Conselheiro. Quando isso aconteceu, me peguei chorando, emocionado.
Quando saiu do Brasil, em 70, logo depois que o Quarteto Novo (ele, Airto, Theo de Barros) dissolveu, Hermeto foi trabalhar com Miles Davis. Chegando em Nova York foi procurar Miles mas ele já havia se mandado pro Japão. O jeito foi se virar até o 'Negro de Ouro' voltar da excursão. Quando voltou, trabalharam juntos em Live/Evil e quando o disco foi lançado choveram elogios. Foi chamado de gênio por gente como Miles, Lukas Foss, Gil Evans, Ron Carter, Leonard Bernstein e pelo produtor Creed Taylor. Só Airto não disse nada e até hoje, em suas várias entrevistas nunca falou sobre os toques que Hermeto lhe deu. Flora Purim, não. Ela sempre cita Hermeto como responsável por seu sucesso. Ele não esconde sua alegria por ver Flora estourando na América. Flora queria cantar e não cantava coisa nenhuma. Ele deu as dicas: 'Use sua voz apenas como instrumento. Grite, mie, faça os sons mais malucos. Então ela compreendeu tudo e explodiu. Mas Airto achava aquilo feio. No primeiro disco que Airto gravou nos EUA, a faixa 'Uri' é minha. Aliás fiz tudo naquele disco. Depois ele e Flora entraram pro grupo de Chick Corea e deram todas as minhas dicas para Corea. E os americanos ficaram malucos com  o som que 'ele' inventou'.
Hermeto acha uma bobagem os músicos brasileiros se mandarem pro exterior. Lógico que acha difícil haver mercado aqui para a música instrumental, mas prefere ficar.
- O Brasil atualmente é o centro musical do mundo. Aqui estão sendo feitas as coisas mais novas e mais importantes, enquanto lá fora todos estão esgotados. Os músicos criam rótulos como jazz-rock, latin-jazz-rock, ou o funky. Isso é apenas um consolo pra disfarçar a falta de saídas. Mas isso não quer dizer que eu vou sair brandindo as raízes ou fazendo afirmações de nacionalismo musical. Folclore? O que é isso? Pra mim só existe música. Ela é universal e está acima de rótulos ou marcas. Eu nunca digo que sou 'um músico brasileiro que faz música. Porque como músico, eu sou universal.
Hermeto se queixa do desânimo dos músicos mais antigos e muito comprometidos com o sucesso. Elogia os novos músicos 'que acabaram com aquele preconceito de cada um tocar determinado gênero'.  Quando fala dos mais jovens se entusiasma e lembra alguns nomes que considera importantes e mal divulgados: 'Tem o Toninho Horta, tem o Novelli, Raul Mascarenhas, o Nivaldo Ornellas o Lelo (pianista de 17 anos), Aleula (sua vocalista), Zé Eduardo ('ótimo baterista e percussionista') e o Heraldo do Monte, que toca viola e guitarra. Essa gente tem ficar aqui. Podem ir pro estrangeiro gravar disco, mas depois vão ter que dar duro, tocar em boates, e o negócio não é mole. Você acaba ganhando 30 dólares por noite e isso é muito pouco. Eles podem dizer que está tudo bem, mas estão mentindo. Prefiro muito mais tocar em boate aqui do que lá'.
No princípio de 76, Hermeto viaja para Copenhague (2 shows) e Berlim (um). Ele está na expectativa quanto ao seu trabalho no disco de Taiguara que produziu antes de ir pra Alemanha. Fez também sua primeira experiência para cinema: música e arranjo para o filme 'O Predileto', de Roberto Palmari, com história de Roberto Santos. Como ele não grava mais, nem trabalha na TV, está a disposição dos jornalistas para papos, entrevistas e divulgação de seu trabalho. Está também procurando um teatro para fazer concertos às segundas-feiras.
- Estou muito feliz. Não dependo das gravadoras, nem da TV. Mas se me derem condições de trabalhar com liberdade, aí eu meto a cara. A gente tem de tocar o que sabe, sem se preocupar em agradar a ninguém. Quanto mais sinceridade, mais fácil será o diálogo.
Quando ia saindo, Hermeto me pegou pelo braço: 'Não me leve a mal, Gosto muito da revista Rock, mas acho uma besteira aquele concurso de vocês. Eu e Rita Lee concorrendo na mesma sessão. Adoro aquela menina, gosto muito da voz dela e de suas músicas. Mas tudo é tão sem sentido. Todos esses concursos de melhores são sem sentido. É coisa de Silvio Santos'. "

* Na verdade, o nome do local de nascimento de Hermeto é Lagoa da Canoa

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Hermeto Pascoal - 1975 (1ª Parte)

Na revista "Rock, a História e a Glória" nº 13 (1975) - suplemento "Jornal de Música", há uma excelente matéria com Hermeto Pascoal, escrita pelo jornalista Ezequiel Neves, que aqui reproduzo em duas partes:
" 'Queria ver todo mundo de gravador na mão registrando o que estou tocando. Não vou mais gravar discos porque não quero mais me repetir'.
Quem fala isso é Hermeto Pascoal. Ele está sentado à minha frente, na sala de sua casa, no bairro de Aclimação, em São Paulo. Seu cabelão está amarrado na nuca, ele veste uma camisa alaranjada e um calção estampado. Sua simplicidade me comove. Sempre que ouço o som  de Hermeto minha cuca explode e depois fica pacificada. Nunca tive coragem de chegar perto dele. Sua mulher dá uma gargalhada quando digo isso a ele. As crianças, seus filhos (ele tem seis), entram na sala, brincam com  os cachorrinhos. Hermeto pede a eles que brinquem no jardim. Ficamos então os três na sala. Ele explica, apontando sua mulher:
- Ilza é uma espécie de secretária vigilante. Cuida de tudo. Também não se importa com minhas namoradinhas.
Ilza interrompe rindo:
- Também não há razão de me importar. Sempre insisto pra que elas venham aqui. Elas chegam, dão de cara com os seis garotos e depois não voltam nunca mais.
Pergunto novamente sobre a história do gravador.
- Estou dizendo a verdade. Gravem meus concertos, divulguem as fitas. Não vejo outro meio de fazer meu trabalho ser ouvido. Vou tocar dia 28 de dezembro, no Morumbi. Vai ser um concerto patrocinado pelo Movimento Artístico de Mário de Andrade. E para a festa ser completa, quero ver todo mundo de gravador em punho. É importante isso. Você vê: levo pelo menos uma hora pra deixar meus músicos esquentarem. Depois tudo começa a explodir. Meus concertos duram, mais ou menos, umas duas horas e meia - sem interrupção. Ninguém vai se arriscar a lançar isso em gravação.
Falo entusiasmado sobre seus três concertos no Teatro Bandeirantes, na série da 'Banana Progressiva'. Digo que senti a mesma emoção quando ouvi Miles Davis. Pergunto se a transação não é a mesma. Tanto Hermeto quanto Miles funcionam como regentes, instigando músicos, organizando o caos e reinventando tudo. O que (Luiz Carlos) Maciel escreveu sobre Duke Ellington e Miles Davis, vale também para Hermeto. Para os três, 'a música é uma criação tão individual quanto coletiva, tão elaborada quanto improvisada, tão pessoal quanto comunitária'.
Já vi Hermeto com vários grupos, com vários agrupamentos de músicos. E o resultado, mais que o som universal, ou de nível internacional, é totalmente intergalático. Pergunto sobre o seu método de trabalho.
- Tudo bem simples. Na véspera do concerto a gente ensaia. O tema é escrito, todo mundo lendo a partitura. Mas 90 por cento é improvisação e acontece na hora. Já ouvi muita gente falando mal de certos músicos, mas quando eles tocam comigo rendem muito bem. Músico é como jogador de futebol. Num time ele pode render mal, mas vai pra outro e faz uma porção de gols.
A última vez que Hermeto entrou num estúdio para uma gravação com seu conjunto foi no começo do ano, na RCA. Ele fez um compacto com 'O Porco na Festa', prêmio de melhor arranjo no Fetival Abertura (que ele chama de 'Fechadura'). Em seguida, ia gravar um LP.
- Não deu certo. Eles também não queriam gastar dinheiro. E agora só aceito gravar para fazer o que sei, da maneira que eu quiser, sem aceitar qualquer imposição ou restrição. Só aceito limitações quando aceito gravar jingles e tenho feito isso com muita frequência. Pego minha flautinha e vou.. Faço isso sabendo como é e sempre com a maior dignidade. Não me escondo e até gostaria se meu nome aparecesse em alguns. Pois mesmo nesse gênero eu consegui dar minha contribuição pessoal."
(continua)

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Walt Whitman: Modernidade Sem Métrica ou Rima

Walt Whitman é considerado um dos melhores poetas da língua inglesa. Sua forma moderna e revolucionária de escrever seus versos levou-o, inclusive, a ser considerado como um dos precursores e influenciadores da Beat Generation, que surgiria nos anos 50. Em março de 1992, por ocasião do centenário de sua morte, o professor e tradutor Paulo Henrique Britto escreveu um texto sobre Whitman em O Globo:
"Se quiséssemos escolher um ano para assinalar o nascimento da poesia moderna, 1855 seria uma boa escolha. Em junho deste ano, em Paris, Charles Baudelaire publicou 18 poemas na prestigiosa 'Revue des Deux Mondes'. No mês seguinte, em Nova York, foi colocado à venda um livro de cerca de cem páginas intitulado 'Leaves of Grass' (Folhas de Relva). A capa não trazia o nome do autor nem do editor, e sim  a foto de um homem na faixa dos 30, vestido como um operário, com ar displicente. O homem do retrato, que era o autor do livro, chamava-se Walt Whitman, cujo centenário de morte está sendo comemorado este mês.
As diferenças entre os poemas de Whitman e os de Baudelaire provavelmente seriam, para um leitor médio da época, mais evidentes que as semelhanças: Baudelaire trabalhava com  as formas tradicionais da poesia francesa, enquanto Whitman escrevia versos longos, caudalosos, sem métrica e sem rima. Tal leitor talvez atribuísse aos dois, o gosto pelo escândalo: Baudalaire escrevia sobre prostitutas e sarjetas imundas, e oferecia preces ao demônio; Whitman dizia que o cheiro de suas axilas era melhor que o das preces, e numa passagem dava a entender que havia passado uma noite inesquecível com Deus. Porém, um leitor menos ingênuo e mais perceptivo assinalaria uma afinidade bem mais importante: em Baudalaire e Whitman, surgia pela primeira vez na poesia ocidental a grande cidade moderna.
Mas é justamente neste traço comum que vamos encontrar a diferença fundamental entre os dois poetas. Enquanto a Paris de Baudalaire é essencialmente uma paisagem noturna, pela qual o poeta vaga, solitário e passivo, a Nova York de Whitman é, acima de tudo, um lugar de trabalho, cheio de operários, máquinas, barulhos de toda espécie, onde o poeta não se limita a observar e registrar o que vê, porém participa de tudo. Mais ainda, o poeta é tudo e todos:
'Não sou só o poeta do bem... não me recuso também a ser o poeta da maldade.' E, ao identificar-se com a experiência humana em toda sua diversidade, ele confere a tudo a divindade que seu magnífico narcisismo se auto-atribui: 'Divino sou por dentro e fora e santifico a tudo que toco ou que me toca.'
No plano formal, a grande contribuição de Whitman foi o verso livre, que veio a se afirmar como a forma mais característica da poesia moderna. A liberdade de forma que Whitman se permite não se apresenta como uma escolha arbitrária. Para uma poesia que ambiciona a totalidade, que sonha conter num verso a pluralidade da condição humana, com todas as suas contradições, a única forma adequada é aquela que contém todos os sons e ritmos, sem privilegiar nenhum.
Se como introdutor do verso livre e do tema da moderna metrópole capitalista a influência de Whitman foi imensa, sua obra destoa da maior parte da poesia moderna,  pelo que tem de afirmativa e otimista. Whitman aceita tudo, regozija-se com tudo; nada nele é alienação ou estranhamento. Sob esse aspecto, só Joyce pode ser posto a seu lado: o 'Ulisses' é talvez a única grande obra moderna em que encontramos o mesmo sentimento orgiástico de imersão da vida., com total aceitação de tudo que há nela, que vemos em Whitman. A visão da civilização moderna que encontramos na melhor literatura de nosso século deve mais ao spleen noturno de Baudelaire que à embriaguez solar de Whitman. Quando Whitman morreu, há cem anos, Mallarmé refugiava-se do mundo em meio a seus livros e destilava a essência do nada em seus versos perfeitos; e 25 anos depois, o cristão Eliot condenava em seus 'Preludes', o mundo urbano que o pagão Whitman santificava. Modernos (ou pós-modernos) desiludidos, somos filhos de Baudelaire e suas sombras; Whitman é o bardo das promessas que a modernidade jamais cumpriu."

terça-feira, 24 de setembro de 2013

Elvis Presley - 68 Comeback Special

Em 1968 a careira de Elvis Presley andava meio estagnada. Os tempos do jovem rebelde que desencadeou toda uma mudança na música e no comportamento da juventude já ficara pra trás, e seus filmes de roteiros açucarados já não despertavam tanta atenção. Na verdade, o grande responsável pela fase decadente de Elvis foi seu empresário, o "Coronel" Tom Parker, que só visava o lucro financeiro, em detrimento  do prestígio artístico de seu cliente.
Nos anos 50, até início dos 60, a fórmula de sucesso engendrada por seu empresário surtiu efeito, e fez  grande sucesso, rendendo altos dividendos ao rei do rock. Todos seus filmes, por piores que fossem, eram sucesso garantido, embora artisticamente sua carreira estivesse indo por água abaixo. Porém, a partir de meados dos anos 60, o rock mudara o panorama, com o surgimento de bandas de peso , como Beatles e Stones, principalmente, e o grande apelo que exerciam perante a juventude. Elvis, aos 33 anos, precisava justificar seu título de Rei do Rock, antes que caísse no esquecimento. Porém Tom Parker insistia em uma fórmula que nada traria para contribuir para o resgate da imagem de Elvis junto ao público de rock.
No final de 68 o empresário propôs a Elvis um especial de Natal onde Elvis apareceria sentado em uma poltrona interpretando músicas natalinas, uma coisa completamente careta e de pouco apelo para o público jovem. Elvis, sentindo a roubada que ia entrar, disse não ao Coronel - uma das raras vezes em que não se deixou manipular. Conta-se que o Coronel Tom Parker ficou enfurecido, mas Elvis bateu pé, talvez sentindo que se fosse na onda de seu empresário, poderia enterrar de vez sua carreira. E assim Elvis voltaria a encarnar depois de anos, o rocker que ela havia representado no avassalador início de sua carreira.
Para o especial, Elvis se vestiu de couro, como nos velhos tempos, e convidou para acompanhá-lo, dentre outros, Scotty Moore e DJ Fontana, dois músicos que tocavam com ele nos tempos que era um autêntico cantor de rock. O especial começou com "Trouble", da trilha de seu filme Balada Sangrenta. Elvis ainda pegou na guitarra, e desfilou uma série de canções de seu início de carreira, como "That's All Right", "Heartbreack Hotel", "One Night", entre outras. Também interpretou o blues "Baby What Me to Do", de Jimmy Reed. Elvis parecia bem à vontade no palco, cantando para uma pequena plateia.
Outro bom momento do especial foi a interpretação de "Guitar Man", outro excelente rock, bem no estilo que o consagrou no início de careira. Elvis também dedicou uma parte de seu especial à música gospel, que ele sempre gostou de cantar, com um corpo de baile fazendo um número de dança. O ponto destoante do especial foi a interpretação dublada de uma balada açucarada, chamada "Memories" - uma pequena derrapada que não chegou a comprometer a proposta do show.
Para encerrar o especial, Elvis interpretou uma canção feita em homenagem a Martin Luther King, que havia sido assassinado naquele ano, e o mundo ainda vivia sob o impacto da morte do líder do movimento pelos direitos civis. Longe de ser algo oportunista, a homenagem foi interpretada de uma forma segura e emocionada.
Sem dúvida, esse especial para a tv, que foi ao ar em 3 de dezembro, batendo recordes de audiência, representou uma volta triunfal de Elvis a um mundo onde ele sempre reinou, apesar de alguns tropeços;: o mundo do rock'n roll. Assisti a esse especial pela primeira vez pela tv (SBT), nos anos 90. Anos depois, o DVD do especial foi vendido em bancas de jornais. Para quem quiser conhecer o melhor de Elvis esse DVD é melhor recomendado do que a fase "Las Vegas", por exemplo. Ali Elvis mostra porque é até hoje conhecido como "O Rei do Rock".


segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Arrigo Barnabé - Revista Pipoca Moderna - 1983 (2ª Parte)

" 'Diversões Eletrônicas' ganhou o festival, uma armada de músicos paulistas saiu de armários empoeirados em pacatos bairros de classe média e Arrigo arrumou um emprego: professor de música. Muito melhor do que as pesquisas de alguns anos atrás, quando saía de casa às 8 da manhã com 24 tubos de pasta de dente para convencer seletas incautas. Era a época onde 'os quadrinhos seguravam a a barra - O Balão, O Grito, Agora, em 79, dando aula quatro vezes por semana e ganhando sete mil cruzeiros, 'fiquei feliz pra cacete'.
Acontecimento crucial no círculo de Arrigo: Robson Borba vem para São Paulo, monta uma casa e o grupo consegue um local para ensaiar, pensando no Festival de Jazz. Mas não queriam sua presença no dito: 'achavam que a gente era porra louca'. Roberto Muylaert, organizador do festival, não pensava bem assim, mas sugeriu um 'veja lá o que vão fazer'. Arrigo viu, foi e ficou 'emocionado', mostrando todas as suas músicas, menos 'Orgasmo Total' e 'Instante', com Biafra, do Premê, na guitarra, e Tetê Espíndola cantando. Na sequência, 'mal gravado, mal mixado, mal tudo', em novembro de 80 sai o LP. Arrigo está na arena, os leões da mídia estão ansiosos. 'Dá uma certa depressão o fato de se tornar público. Ficar exposto. Todo mundo vem falar com você. Pelo menos eu ainda consigo passar despercebido'.
A partir de 81, Arrigo começa a pensar que o preço pago pelo artista - como figura pública - para mostrar seu trabalho é alto demais. As reflexões, no entanto, não são suficientes para mergulhá-lo em um pessimismo dionisíaco, mesmo porque constata que nunca teria 'um nível de popularidade altíssimo. Ninguém mandaria o Caetano embora porque já é tarde e o bar está fechando, o que ainda acontece comigo'.
Recluso, eremita, excêntrico, pernóstico? Arrigo se desconcerta com as variações sobre sua pessoa. 'Eu tinha que dar uma parada mesmo. Não entendo bem. Posso nunca mais fazer nada depois de Clara Crocodilo. Mas tudo bem. Já dei uma contribuição real, concreta em termos culturais, é uma coisa que ninguém fez, musicalmente'. Arrigo acredita nesta originalidade, plasmada há pelo menos uma década. E não é só ele. No Festival de Berlim, nenhum crítico alemão o comparou a Zappa. Seria apenas uma cegueira na capital das vanguardas?
 Arrigo, na verdade, não está muito preocupado com juízos de valor, tanto europeus quanto tropicais. Acredita mesmo que quem reduz o seu trabalho a um novo degradado, já testado nos centros culturais dominantes, 'não entende nada de cultura brasileira, não tem percepção de que somos antropófagos'. Em Berlim, em contato com músicos eruditos, viu seu desprezo pela música popular. Amantes e praticantes dessa  última, por outro lado, sabendo que Arrigo escreve tudo o que toca - não há improviso - ficaram desconcertados. 'Aqui a gente está fazendo o contrário, misturando as coisas. Quem fez também, foram os americanos. O novo está sendo criado na América'.
O que Arrigo ouve e gosta? Pouco. 'Estão fazendo uma coisa que eu não gosto, esse negócio de new wave, punk. Abomina tecnologias eletrônicas e a progressiva sintetização. Só pegou fogo com Laurie Anderson. Mas do que ouviu na sua viagem à Europa as melhores lembranças são de fado. Cantores e cantoras excepcionais. Quem conhece seu lado descobridor de cantoras, e o viu ao piano no último show no Sesc-Pompeia em corpo-a-corpo com mágicas canções não se surpreende.
Definitivamente, Arrigo não é um vodu urbano. Toma café no bar da esquina, vai visitar a mãe, ali mesmo em Pinheiros, lê jornal e se irrita com marasmos e mediocridades. O verão não condenou à modorra. Pelo contrário.  Associou-se ao Lira Paulistana, por onde gravará e distribuirá seus discos. Está trabalhando em uma trilha sonora - 'vou viver desse dinheiro nos próximos tempos'. E está com um novo show pronto na cabeça - 'todo o conceito, é só começar a ensaiar, vai ser um choque'.
Até que ponto Arrigo premedita seus lances de dados? Até a justa medida para um inocente sofisticado, inquieto, porém acessível. Seu papel não é o de salvar a música brasileira de um buraco negro. Frente a uma paisagem aniquilada pela luz, ele permanece sereno. O sol é seu provedor de ideias negras, e o verão, a estação em que considera suas relações com o mundo e consigo próprio. Com eventual condenação de um e de outro, o que é altamente salutar."

domingo, 22 de setembro de 2013

Arrigo Barnabé - Revista Pipoca Moderna - 1983 (1ª Parte)

Arrigo Barnabé foi um dos expoentes máximos de uma corrente musical que teve uma grande repercussão no país, no início dos anos 80: a Vanguarda Paulistana. Seu disco Clara Clocodilo, lançado em 80, causou um grande impacto pela forma com ele fazia sua música, que sofria influência de música erudita de vanguarda, trazendo sons dedocafônicos e uma narrativa com elementos de histórias em quadrinhos. Em março de 1983 a revista Pipoca  Moderna trazia uma matéria com Arrigo, intitulada "Arre, Arrigo", assinada por Pepe Escobar:
"A música é a única arte que ignora a ironia. Não procede das malícias do intelecto, mas dos matizes ternos ou veementes da ingenuidade, estupidez do sublime, irreflexão do infinito. Como o 'rasgo de gênio' não tem equivalente sonoro, é denegrir um músico chamá-lo de 'inteligente'. Este atributo o diminui e não tem lugar nessas cosmogonias lânguidas onde, como um deus cego, improvisa universos. Se fosse consciente de seu dom, sucumbiria ao orgulho; mas é irresponsável; nascido no oráculo, não pode compreender a si mesmo.
Arrigo Barnabé tem sido qualificado, inúmeras vezes, de um músico inteligente. Ou o seu oposto. Ou o enigma. O fechamento em gavetas de fácil alcance é uma atividade altamente popular na província. Para esse paranaense de 34 anos, é indiferente. Está preocupado com este caso limite de irrealidade e absoluto, esta ficção infinitamente real: a música. Seu silêncio, no entanto, inquieta. Acalmem-se os sensacionalistas: não há nada de faustiano em se trancar em um pequeno apartamento de subsolo em Pinheiros, ao lado de um piano americano, partituras e livros, para produzir um pouco de música que introduza turbulências nas águas paradas da época.
A verdadeira história, sem mitos, começa em Londrina, em 68, quando Arrigo entrou em contato com os compositores contemporâneos de música erudita. Ele e seu amigo Mario Lúcio Cortes se perguntavam porque a Tropicália não incluía informações de música erudita na sua guerrilha contra o bunker bem-pensante da cultura brasileira.
'Superbacana', de Caetano Veloso, e 'Alegro Barbaro', de Bartók, provocavam a mesma iluminação estética. Arrigo, Mario Lúcio, Robson Borba e Paulo Barnabé começaram a pensar em desconstruir a linguagem. Só que é difícil ser bárbaro quando se é um simples garoto do interior, estudando no científico, provável futuro engenheiro químico, com eventuais incursões ao conservatório. Blood, Sweat & Tears, Dave Brubeck - interessante pela maneira como trabalhava os compassos - Jimi Hendrix, Iron Butterfly, também cruzavam seu espaço sonoro. Arrigo, no entanto, tinha preconceito contra a música americana. Rock não lhe chamava muito a atenção. 'Rock é outra coisa'.
69. Serenatas . Nelson Gonçalves e Orlando Silva. De repente Arrigo vê o Brasil pela primeira vez: O Dragão da Maldade..., em Curitiba. E começa a pensar em romper com os determinismos agindo em sua vida, por influência direta de O Lobo da Estepe.  O bom católico, bom menino e bom aluno está cara a cara com seu lado negro.
Três diálogos de Platão, Voltaire e Poe: está aberto o caminho para escrever poemas e sonhar utopias. Robson Borba lhe explica que o concretismo é o máximo. Arrigo resolve viver só mesmo na dura poesia concreta de certas esquinas.
70. Na sua cabeça, 'um momento fértil'. Arrigo chega e todo mundo está exilado. Não pensa em termos de atmosfera ' fim de sonho'. Precisa fazer cursinho, o que para ele é informação preciosa: como utilizar o espaço em branco, como compor, preencher vazios. Amigos o iniciam em determinados segredos, como os do fliperama da Ipiranga com a São João.
Arrigo vai para a  FAU, Robson para o ITA, Mario Lúcio para engenharia em Curitiba. Férias em Londrina, à Fellini, tese e prazer. Stockhausen começa a se misturar com Della Piccola, Ravi Shankar e Miles at the Filmore, quando surge, via livro, Augusto de Campos, 'fundamental, quem te direciona, dá visão crítica'. O marasmo musical não existe na cabeça de Arrigo, a não ser a partir de 76. Mesmo porque desde de 71 já estava compondo: nascia Clara Crocodilo, apresentada pela primeira vez há dez anos, em Londrina, no show A Boca do Bode - Itamar Assunção também estava. Pânico e estupor no Paraná, enquanto no palco se perpetravam coisas como 'Babynette rainha da night/faz susex com pouca light', girl, girl, yeah, yeah, bla, bla, bla e entra no palco Beta Pickles, travesti. José Richa, governador eleito do estado no último mês estava lá e gostou.
Da FAU para a ECA, vestibular de novo, mas sempre ganhando mesada - ainda por cima dividida -, dez em uma casa, sonhando com o pulsar das árvores em um enorme quintal de Londrina, ideia para show perpetuamente inédito. 'Eu nunca pensei que fosse ser músico'. No correr de uma década, Arrigo decodifica as pulsações da cidade. Em 79, no festival de Música da TV Cultura, tem uma surpresinha para ela, na primeira grande exposição pública.
Vanguardas adormecidas sacodem seus traseiros: é o novo Messias. Nem tanto. Tudo se espalhou, no início, de músico pra músico. 'O que a gente estava fazendo ninguém estava fazendo. Era uma coisa nova. Eu sentia a necessidade disso. E tudo começou com este festival, que não foi ainda devidamente dimensionado'."
(continua)