Palavras Domesticadas

Palavras Domesticadas

segunda-feira, 31 de agosto de 2015

The Faces - Discografia Relançada (1993)

Com o crescimento do mercado dos CDs, e o declínio dos LPs no início dos anos 90, as gravadoras aproveitaram o aquecimento das vendas dos compact-discs, que ainda eram uma novidade, e passaram a relançar álbuns que se encontravam fora de catálogo. Muitas caixas, trazendo discografia completa, out-takes, gravações não aproveitadas, etc passaram a surgir. Umas dessas caixas, que foi lançada em 1993 para o mercado americano, foi uma do Faces, uma das mais festejadas bandas dos anos 60 e 70, que trazia Rod Stewart nos vocais, cujos discos não eram fáceis de se encontrar. O jornalista musical José Emílio Rondeau, que era correspondente internacional do jornal O Globo falou sobre esse lançamento:
"No rock, como em tudo na vida, nada como um dia depois do outro. Após ter passado anos a fio sendo apedrejado pela crítica - o que nunca, diga-se de passagem, afetou tanto assim as vendas de seus discos - chegou a hora de Rod Stewart ser reabilitado.
Primeiro, foi a dobradinha 'Lead Vocalist' e 'Umplugged and Seated', lançada este ano com o mesmo repertório que havia feito de Rod uma das maiores promessas do rock nos anos 70 - algo que ele cumpriu em um par de discos solo e depois repudiou, sistematicamente.
Agora a Warner americana achou por bem lançar pela primeira vez em CD nos Estados Unidos (embora tudo já existisse em edição japonesa) a parte mais relevante da discografia do Faces, a banda de que Stewart fez parte entre 1969 e 1976.
'First Step' (de 1970), 'Long Player' (1971), 'A Nod is as Good as a Wink To a Blind Horse' (1971) e 'Oh La La' (1973) traçam a trajetória da banda do sublime ao semi-lamentável, uma jornada que começou no momento em que Stevie Marriot, o sócio-fundador do Small Faces, mudou-se de mala e guitarra para o Humble Pie e abriu a vaga para dois ex-integrantes do Jeff Beck Group, o vocalista Rod Stewart e o guitarrista Ron Wood. E que se estilhaçou quando o ego de Rod, cuja carreira solo, paralela à dos Faces, já rendia dividendos verdadeiramente vitais até para sustentação da banda, ditou a transformação do grupo em 'Rod Stewart e os Faces', e quando o baixista Ronnie Lane e Ron Wood foram buscar ares menos carregados em outras paragens (Wood, substituindo Mick Taylor nos Rolling Stones).
Rod Stewart
 O amor quase juvenil pelo blues, a paixão pela música folk inglesa e americana e uma fome de banda democrática fazem de 'First Step' um disco notável, e um dos destaques deste relançamento. Creditado ainda aos Small Faces, é o final de uma transição do pop bretão dos tempos do disco 'Odgen Nut Flake' para o som 'fundo de bar em fim de noite' devasso e executado com abandono.
'Long Player' é desigual, embora tenha momentos sublimes: uma versão pesadaça de 'Maybe I'm Amazed', de Paul McCartney, além de um cover imperdível de 'I Feel So Good', de Big Bill Broonzy.
Daí passa-se para a porranca/porrada de 'A Nod is as Blind Horse', o pico criativo da banda, no auge de seu ataque um tanto inebriado. Duas faixas, somente, já justificam a compra do disco: 'Stay With Me' e 'Memphis, Tenessee', de Chuck Berry.
'Oh La La' é um canto de cisne involuntário, a última vez que esta formação trabalharia junta, mas ainda sem sabê-lo. Rod, a esta altura já em totalmente outra, meio que 'passeia' pelo disco, de tanto desinteresse. Apesar da 'mordida' de faixas como 'Cindy Incidentally' e 'My Faut', quase tudo o mais é esquecível e amargo, um fim de festa em que anfitriões e convidados terminaram a noite brigados."

terça-feira, 25 de agosto de 2015

Chico Buarque - Tabelinhas do Craque Plural (1994)

Quando Chico Buarque completou 50 anos, em 19/06/44, o Jornal do Brasil trouxe uma longa matéria sobre o compositor, como é comum quando um grande nome comemora uma data tão especial. Dentre os tantos textos e depoimentos publicados, o jornalista e  crítico musical Tárik de Souza faz um resumo da obra de Chico, num texto intitulado "Tabelinhas do Craque Plural", numa referência a um dos grandes passatempos e paixões do homenageado: jogar futebol. Abaixo o texto:
"Quando apareceu na cena dos festivais dos anos 60, Chico Buarque de Hollanda logo recebeu o carimbo de novo Noel Rosa. Sua sintaxe autoral filiada à MPB castiça, entre a marcha-dobrado (A Banda), a marcha rancho (Noite dos Mascarados), o choro (Um Chorinho), a modinha (Até Pensei), o samba (Quem Te Viu, Quem Te Vê, Ela Desatinou, A Rita, Você Não Ouviu) e o samba canção (Carolina, Com Açúcar com Afeto, Sem Fantasia) credenciavam-no como um poliglota purista do idioma, não fosse ele filho de um historiador e sobrinho de um dicionarista. Mas antes que a unanimidade se transformasse numa redoma, o próprio Chico detonou a imagem de bom moço da Tradicional Família Musical, como alfinetou o ensaísta Augusto de Campos no livro Balanço da Bossa. Além da suspeita de retrocesso diante dos avanços harmônicos da bossa nova em agonia, havia o confronto das torcidas dos festivais, que faziam colidir seu perfil acústico apolíneo com a algazarra dionisíaca das guitarras tropicalistas.
 Autor da trilha da montagem teatral do poema Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, foi de novo através da ribalta  - no texto da peça Roda Viva, uma alegoria sobre a fogueira das vaidades do show bizz - que  Chico Buarque deu o primeiro sacode na antiga imagem plácida. Era tão sólida a face comportada do jovem trovador de olhas verdes, que muitos que preferiram atribuir à selvageria da peça - com fígados expostos e sangue espirrado na plateia - apenas à montagem de Zé Celso Martinez Correa. Mas o compositor auto-exilado na Itália após o AI-5, logo daria um chute no lirismo e o tiro no sabiá, anunciados em Agora Falando Sério, numa alusão à sua parceria com Tom Jobim, vencedora vaiada no Festival da Canção em que o público preferiu o protesto de Caminhando, de Geraldo Vandré.
A ingênua sátira monetária de Tamandaré foi vetada ainda em 1966, mas Chico se transformaria num pesadelo para a Censura a partir de 1970, quando emplacou o petardo contra o ditador Médici Apesar de Você, como se fosse um samba de dor de cotovelo. O veto à peça Calabar (parceria com Buy Guerra) e a trechos de várias letras da trilha  levou Chico ao Sinal Fechado, em 1974, um disco inteiro de composições alheias, por falta de material próprio liberado. Para driblar os catões de plantão, inventou o pseudônimo Julinho da Adelaide ( o de Acorda Amor, Jorge Maravilha). Após este gol de Chico, os compositores foram obrigados a enviar à Censura documentos de identidade junto com  as respectivas letras.
 Boa parte das transformações sócio-políticas do país passou pelo filtro lírico-guerreiro do autor de Partido Alto, Meus Caros Amigos e Vai Passar. Dos menores abandonados (Pivete, O Meu Guri) à transformação da figura do vadio naive no corrupto engravatado (Homenagem ao Malandro). Tudo permeado por canções de amor de fatiar o coração (Atrás da Porta, Trocando em Miúdos, Eu Te Amo, Folhetim), sem patinar na breguice. O doublé de escritor, autor de tantas canções no feminino utilizou a legião de personagens de peças de teatro, filmes e balés como sismógrafo dos terremotos anímicos do tecido social (Gota d'Água) e dos mutilados da guerra conjugal (Se Eu Fosse o Teu Patrão, Pedaço de Mim).
Associado a parceiros de inclinações estéticas tão variadas (Tom Jobim, Edu Lobo, Francis Hime, Ruy Guerra, Caetano Veloso, Vinícius de Morais, Sivuca, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Toquinho, Vinícius Cantuária, Carlinhos Vergueiro), Chico pluralizou sua gramática emepebista. Da Bancarrota Blues ao Tango do Covil, o Baioque, o bolero Anos Dourados e o violeiro Cio da Terra. O criador substantivo, repórter de seu tempo, mergulhou no abstracionismo, num país de questões sociais cada vez mais fluidas (Pelas Tabelas, Estação Derradeira, Brejo da Cruz). Da terra em transe (Bye Bye Brasil) ao eterno retorno (Morro Dois Irmãos,  Futuros Amantes), o profeta cedeu ao filósofo."

sábado, 22 de agosto de 2015

Ray Charles no Free Jazz - 1986

Ray Charles, um dos músicos mais importantes da música mundial já veio ao Brasil algumas vezes. Creio que a primeira foi ainda nos anos 60, sendo que existe um dvd com as imagens dele se apresentando numa TV brasileira. Essas imagens foram preservadas porque a equipe de Charles fazia questão de registrar e preservar suas apresentações, não só em seu país, como em todas as suas viagens pelo mundo. Se dependesse da televisão brasileira, aquelas imagens raras estariam perdidas para sempre.
Tenho lembranças de outras passagens de Ray Charles pelo Brasil, uma delas numas das edições do finado e saudoso festival Free Jazz, que trazia sempre grandes nomes do jazz internacional, em todas as suas vertentes, assim como atrações nacionais. Ray Charles era um dos principais nomes, dentre tantos outros, a participar daquela edição, e na ocasião o Jornal do Brasil fez uma matéria especial com Ray, escrita por Carlos Leonam, com o título de "Ray, um personagem de lenda":
"Vi Ray Charles pela primeira vez, quando cantava no Olympia, ao fotografá-lo para  O Cruzeiro, em maio de 1963, há 23 anos.  Convivi com Ray Charles nos bastidores do Olympia, durante quatro horas, ao entrevistá-lo um dia depois. Muita coisa perguntei, muita coisa vi, muita coisa escutei. Não sei se posso dizer que conheci Ray Charles Robinson, preto, cego, cantor, compositor, saxofonista, pianista e organista. Perguntei, vi, escutei. Nos bastidores do Olympia, sem vê-lo, ouvia a sua voz rouca, seus gritos patéticos, por vezes alegres, e me perguntava qual seria a verdadeira personalidade desse homem cuja mensagem é compreendida há gerações no mundo inteiro.
Talvez Ray Charles Robinson ainda seja dos poucos personagens de lenda, num mundo que diz não mais acreditar em ilusões. De tudo o que se possa ter lido ou ouvido a seu respeito, é difícil distinguir a verdade da ficção. Chamam-no o gênio, o sumo pontífice; seus colegas até dizem:
- Cante, deus.
Então indaguei:
- Você acredita em Deus, Ray Charles?
- Eu acredito em Deus, eu sinto Deus ao cantar. Mas isso é um assunto íntimo. Prefiro não falar nessas coisas.
Ray Charles parara um instante e parecia me ver. O espetáculo do Olympia acabara e  o público, em delírio pedia mais, depois de escutar durante hora e meia músicas como Georgia on My Mind, I Got a Woman, Hit the Road Jack, Hellelujah, Careless Love. Os aplausos continuavam. Do piano, num salto, ele se aproximou do público. Ray Charles se abraçava como se abraçasse a plateia. Ria, gritava, quase chorava. Por um instante temi que Ray Charles pudesse cair. Ele foi mais à frente, repetiu o gesto, abrindo e fechando seus grandes braços, agradeceu, voltou como por instinto ao seu piano.
A alegria de Ray Charles me pareceu sincera, seu abraço o abraço a uma pessoa querida. Bem apertado.
Nascido em Albany, na sulista Georgia, Ray Charles Robinson cresceu num gueto de pretos. Uma favela urbana como as nossas. O glaucoma atacou quando tinha cinco anos e o menino Ray ficou cego para sempre.
- A última coisa de que me lembro é um piano. O piano negro da minha infância.
'Uma vez fui cego, mas agora vejo', diz a letra de Careless Love, o blues clássico de W.C. Handy. Careless Love, juntamente com Georgia on My Mind e I Got a Woman são as preferidas de Ray Charles. As músicas que ele sente. Músicas que fazem Ray Charles ver.
- Quando eu canto, vejo.
Com a doença, sua mãe colocou-o num colégio para meninos cegos. Aos 12 anos, já havia aprendido a aritmética musical: Do Fundo do Meu Coração. O  que canta Ray Charles? Na realidade, é um cantor de rhythm and blues. Mas ele canta rock'n roll, canta gospels, pop, country and western.
Alguns já tentaram negá-lo como jazzman, embora ele seja o primeiro cantor e músico popular a inverter a ordem das coisas: tornou-se, primeiro, famoso cantor de jazz e, depois, gravou coisas ditas comerciais. Um dos que condenaram seu estilo foi Big Bill Broonzi  ,talvez o maior cantor de  blues:
- Ele mistura blues com spirituals. Eu sei que isso é errado.
Não se pode misturá-los. Ele tem uma grande voz, mas é uma voz de igreja. Ele deveria cantar numa igreja. Ray Charles também compõe suas músicas. Essas músicas sempre viram sucesso. E sempre são gravadas  por outros cantores.
- Eu não aceito músicas impostas. Só gravo aquilo que sinto, só gravo aquilo que pode servir como mensagem. Não acredito que haja um conflito entre a música religiosa e a minha música. Canto com sentimento e o gospel song é uma música que tem sentimento. Frequentei a igreja, fiz parte do coro, e é natural que a minha interpretação seja um reflexo disso. Acho que qualquer tipo de pessoa pode ouvir e entender todas as espécies de música. Tento fazer com que sintam que Ray Charles é bom em qualquer tipo de música, e não que Ray Charles é só um cantor de rhythm and blues. Música é uma coisa grande e muito importante.
Isso me faz lembrar um disco de Ray Charles, gravado em 1956, no festival de Newport (disco raro: ele toca saxofone). Na última faixa, ouve-se sua voz rouca gritar:
- Agora eu quero cantar uma coisa que todos entendem. Falo do blues. Todos entendem o blues.
Sim, todos entendem o blues. Mas todos entendem mais Ray Charles. Nos bastidores do Olympia, lá se vão 23 anos, sua equipe o tratava como a um deus. Seria por sua personalidade impressionante, seu gênio indiscutível, o seu exemplo como ser humano? Ou era um tratamento estritamente profissional, a proteção de uma joia rara?
A cada minuto, pelo menos uma rádio americana toca uma música de Ray Charles. O menino preto, pobre, cego da favela de Albany, na véspera de seus 56 anos (nasceu no dia 23 de setembro de 1930), permanece uma lenda viva. Quem for ver, ouvirá."

terça-feira, 18 de agosto de 2015

Cazuza - Com o Fio da Lâmina Bem Afiada



Em sua edição de 08/07/90, um dia após a morte de Cazuza, o Jornal do Brasil trazia uma longa matéria sobre o compositor, que viveu uma torturante agonia em sua luta contra as AIDS, numa época em que a sobrevida à essa doença era bem menor, e o desgaste físico era bem mais nítido e visível. A batalha de Cazuza foi acompanhada por todo o país, já que ele sempre estava na mídia, que muitas vezes se comportava até de forma sensacionalista,e virou uma espécie de mártir e símbolo da luta contra a doença.
Naquela edição, dentre muitos depoimentos e análises de sua obra, o crítico Tárik de Souza publicou um texto que resume a personalidade e a obra de Cazuza, um dos mais respeitados e reconhecidos letristas surgidos na explosão do rock brasileiro dos anos 90. Abaixo a reprodução do texto, que traz como título "Com o fio da lâmina bem afiada":
"O exagerado Cazuza, com suas rasantes na poética da paixão dilacerada, rompeu as farpas da fronteira rock/MPB. Em letras de corrosão lupicínica, este Agenor, quase xará de Cartola, sorveu música ao mesmo tempo em que dissipava a vida em noites que nunca tinham fim (Por que a gente é assim?) lá pelos Baixos da vida. Bem Nelson Cavaquinho da geração rocker. Sempre auto-irônico, realizou a profecia de 'ganhar pra ser carente profissional'. Alguém capaz de explicar seduções intimas; 'Há dias planejo impressionar você/ mas fiquei sem assunto/ Vem comigo, no caminho eu explico.' Um Morrissey de pele dourada pela tropicalidade, à cata de 'um pouquinho de proteção ao maior abandonado, seu corpo com amor ou não, raspas e restos me interessam'. A devastação afetiva, a relação narcísica especular pós moderna, não podia ter gerado polaroide mais holográfica: 'Se todo alguém que ama/ ama pra ser correspondido/ se todo alguém que eu amo/ é como amar a lua inacessível/ é que eu não amo ninguém'. Sem arrego, ouché monsieur Lacan.
Em parcerias com o constante (Roberto) Frejat, o periódico doublé de letrista e crítico Ezequiel Neves e os demais barões vermelhos (Guto e os ex-integrantes Dé e Maurício Barros), Cazuza despontou como crooner e ponta de lança da classe de 82 do BRock, a da Blitz, dos Paralamas, do Kid Abelha, do Magazine a até do Herva Doce. A misturadeira do tempo já peneirou esses primórdios, o que só fez ressaltar o lastro do nosso Lou Reed de plantão, nos desvãos da sociedade amorosa: 'Ser teu pão, ser tua comida/ todo amor que houver nessa vida/ e algum trocado pra dar garantia.' Em carreira solo, Cazuza aprofundou os sulcos de suas obsessões, ampliou o leque de parcerias (Lobão, Leoni, Gil, Rogério Miranda) servindo-se com frequência da dialética das antíteses. 'O nosso amor a gente inventa pra se distrair e quando acaba a gente pensa que ele nunca existiu'. Mesmo no embalo de uma bossa nova, caso raríssimo de hit retardatário na comemoração dos 30 anos do movimento, ele enfia a faca da dor: 'Digo alô ao inimigo, encontro um abrigo no peito do meu traidor'. (Faz parte do meu show).
Acossado pela AIDs, Cazuza, nos últimos discos, afiou ainda mais o fio da lâmina. 'Eu vi a cara da morte e ela estava viva', lancetou ele  no estilete de Boas Novas, do LP Ideologia. 'Se você quer saber como eu me sinto/ vá a um labirinto/ seja atropelado por esse trem da morte', vomitou em Cobaias de Deus (em parceria com Angela Rô Rô), no duplo do testamento Burguesia. Mas o aço da navalha vinha sendo temperado ao longo de toda a carreira. A erosão de Só as Mães São Felizes, a que cita os pontos cardeais de sua cartilha poética, de Allen Ginsberg a Rimbaud ('você nunca sonhou ser currada/ nem transou com cadáveres'), data de 85. É contemporânea da autópsia de corpo vivo de codinome Mal Nenhum: 'Não me chamem a polícia/ Não me chamem o hospício, não/ eu não posso causar mal nenhum/ a não ser a mim mesmo.' O poeta terminal, cantor da garganta em chamas e voz sem apuro, sempre exorcizou a própria condição de passageiro da agonias. Quando voltou a lente para as mazelas do país, acionou morteiros no rock enredo Brasil (mostra a tua cara/ quero ver quem paga ficar ficar assim') ou abriu a metralhadora em O Tempo Não Para: 'transformam o país inteiro num puteiro/ pois assim se ganha mais dinheiro'. Escancarado, sem economizar consequências, locutor impune da indignação no país dos sequestros industrializados. A geração AI-5, comprimida entre o amor livre e a praga da AIDS, auto-imolou seu mártir a sangue frio."

segunda-feira, 17 de agosto de 2015

Ednardo - O Voo do Pavão Misterioso - 1976

Em 1976 Ednardo fazia um grande sucesso com" Pavão Misterioso", embora a música tenha sido lançada dois anos antes. Ao ser escolhida como tema de abertura da novela Saramandaia, a música alcançou um grande sucesso. Na ocasião, Ednardo já havia lançado seu segundo LP solo -" Berro", mas o compositor cearense ficaria conhecido para o grande público com a música da novela.
Na ocasião a revista "Rock, a História e A Glória" nº 19 trazia uma matéria com Ednardo, assinada por Carlos Gomide, e intitulada "Ednardo - O Voo do Pavão Misterioso":
"Por trás das plumas do Pavão Misterioso ainda está escondida a aridez do canto cearense de Ednardo; esta foi a primeira impressão que me passou pela cabeça no Teatro Nídia Lícia, ao deparar com o enorme pavão, luxuosamente montado, ocupando uma área de uns 15 metros no fundo do palco. E as minhas suspeitas foram se confirmando: ao lado do luxo do pavão, caixotes de madeira, onde mais tarde sentariam os músicos, e estes mesmos caixotes se prestariam a um dos momentos mais agrestes do show, quando são usados como percussão na abertura do espetáculo. Toda essa contradição foi planejada  em cima da própria situação de Ednardo com o repentino sucesso do Pavão Misterioso, após dois anos de seu lançamento.
'Na verdade não fiquei sabendo de imediato da inclusão do Pavão na trilha sonora da novela. Depois soube; na época eu estava gravando o segundo disco, e achei ótimo porque penso que o artista brasileiro deve acabar com esse falso pudor de não tocar em trilha de novela; principalmente porque em termos de promoção, a novela repete a mecânica que antes era provocada pelos festivais.'
'No começo eu fiquei com medo que o sucesso de Pavão abafasse o o lançamento do Berro; mas parece que esse sucesso abriu os olhos do público para todo o meu trabalho, e, inclusive, atualmente os dois discos são tocados no rádio.'
Este show foi o primeiro que Ednardo fez com uma montagem de espetáculo e foi produzido por Miriam Muniz.
'Antes eu só preparava apresentações artesanais, onde tudo era improvisado e a aparelhagem emprestada como na Feira de Música do Teatro Aplicado, que eu fiz no ano passado. Mas isso tudo foi muito legal pois me deu uma vivência incrível. Até a apresentação de Vaila no (festival) Abertura, foi ótima, apesar da proposta inicial da Globo de colocar coisas novas no esquema de televisão ter sido totalmente estereotipada.'
'Agora, este show foi transado com muita pressa, e em cima do sucesso do Pavão Misterioso, por isso em alguns momentos eu não fico à vontade no palco, tenho que obedecer à sequência das músicas e isso me tira a liberdade de me envolver com o público, o que pinta na hora. Outra coisa que me distancia da identificação são as roupas brilhosas cheias de lantejoulas; então o momento que eu acho mais impressionante é a hora que nós tiramos essas roupas e ficamos com os trapos que nós vestimos por baixo. O mais incrível deste momento é que esta cena provoca um choque incrível no público deixando-o mais aberto para entender toda a transação das músicas.'
O momento mais comunicativo do show acontece depois disso quando Ednardo canta o Pavão Misterioso com o público acompanhando a melodia que já é do conhecimento de todos.
'Parte do meu primeiro disco foi feita ainda no Ceará e mesmo o Pavão Misterioso, que foi feita em São Paulo, tem uma transação baseada no cordel, o negócio da história contada em versos, que os cantadores vendem em livretos nas feiras do Nordeste.'
Um dos aspectos principais das músicas de Ednardo é o choque entre o regionalismo (a sua formação nordestina) e o urbanismo (a realidade sufocante de São Paulo).
'Não existe música universal, toda e qualquer música é resultado de emoções de um momento. Não preciso romper com as minhas origens para fazer um som universal porque sempre haverá influências dos lugares onde eu vivi, e também influências do lugar onde eu estou vivendo. No Brasil todo acontecimento musical tem um ponto convergente: a bossa-nova por exemplo, era tipicamente regionalista e a máquina publicitária do Rio e de São Paulo impuseram-na ao resto do país.'
Compositores como Ednardo viveram na marginalidade do mundo do disco desde que o sistema comercial de músicas brasileiras começou a mudar em 1969, com o esvaziamento dos festivais e o recesso dos compositores que dominavam o mercado da época. Depois dessa vazante, a promoção de artistas novos que criavam dentro de um esquema fora do catalogado comercialmente nas gravadoras, se tornou quase impossível; essa problemática gerou uma verdadeira geração de músicos que se auto-produziam e se empresariavam. Durante esse período compositores que eram chamados de 'o grupo cearense' tentaram furar o esquema rígido de promoção, sem muito sucesso; mas este ano Belchior e Ednardo alcançaram um pique de vendagem muito bom, desorientando as gravadoras que agora procuram aproveitar o material que anos antes haviam rejeitado. No caso de Ednardo, o LP Pavão Misterioso teve de ser reeditado e a música lançada em compacto.
'Na época do lançamento do Pavão, o ambiente era desfavorável para a gravadora promover o disco, em virtude da restrição da matriz em termos comerciais; o que realmente provocou essa reviravolta  foi a vendagem em função da novela. Essa brecha para um artista novo é ótima, não se deve perder. Quando você percebe isso não pode ser romântico, afinal essa transação musical toda é um operariado, você tem que ter consciência da situação atual. Eu me desenvolvi à margem do esquema de vendagem por isso acho importante o artista levar ao público esse costume de ouvir o que não é permitido.'
'A minha história com o grupo cearense foi a seguinte: em 69, 70 mais ou menos eu, Belchior, Rodger & Teti, nos reuníamos num bar em Fortaleza, depois de vários shows amadores e algumas tentativas de fazer algo concreto viemos para cá aos poucos, primeiro para o Rio de Janeiro depois para São Paulo. Minha primeira apresentação em São Paulo foi na TV Cultura; Walter Silva me levou para a Continental onde eu, Rodger & Teti gravamos o LP Pessoal do Ceará que de certa forma nos limitou, pois as pessoas achavam que a gente era um conjunto quando na verdade nosso único ponto em comum era o fato de sermos cearenses. Tivemos até que fazer vários shows limitados; em consequência, saímos logo dessa porque cada um já tinha suas ideias pessoais.'
O grupo cearense surgiu quase como uma determinação da crítica musical que necessitava de uma corrente opositora ao trabalho dos baianos. Apesar de alguns artistas tomarem partido dessa ideia, os fatos provaram que na verdade esse dito grupo cearense não formava uma e sim várias correntes dentro da música brasileira. O que prova esta teoria é o fato de cada cearense estar fazendo sucesso individualmente.
'No meu caso nunca houve intenção de opor meu trabalho ao dos baianos, pelo contrário; nas minhas músicas você pode encontrar influências de Gil, principalmente no que diz respeito ao uso de certos instrumentos nordestinos. O meu show no dia oito, dia seguinte da prisão de Gil, foi dedicado a ele.'
Com o lançamento do LP Berro e o relançamento do Pavão Misterioso, Ednardo se viu às voltas com um dilema: qual dos dois discos deveria ser mais promovido?
'Quando eu tomei consciência que  o Pavão havia vendido dez mil compactos em uma semana, eu tive que pensar em uma forma de equilibrar a saída dos dois discos; pelo menos nas apresentações dar um jeito de mostrar os dois lados do meu trabalho, porque na verdade eles se completam: enquanto um tinha muita transação do Ceará, o outro já foi um resultado de vivências mais poluídas. Esta apresentação aqui no Teatro Nídia Lícia veio solucionar este problema, uma vez que eu apresento, na maioria, músicas do Berro que foram feitas em São Paulo.'
Ednardo está  apresentado as músicas do Berro, entre elas uma chama a atenção da plateia, em especial: Artigo 26, cujo refrão em francês fala em 'fraternitè, igualitè e libertè', do meu lado perguntam se é uma música de protesto, mas na verdade ela é apenas uma sátira social. A única música que talvez se aproxime desse gênero é Passeio Público devido à sua trágica letra.
O show termina com uma modesta distribuição de pão entre o público, e um senhor perguntando aos músicos do grupo um pouco assustado e inquisidor: - O que vocês estão distribuindo aí?' 'Esta é mais uma ideia para o padeiro amassar'. "

quinta-feira, 13 de agosto de 2015

Black Crowes Traz o Melhor dos 70 para os 90 (1992)

Nos anos 90 surgiu uma banda que trazia em seu som todo aquele clima dos anos 70. Um rock que trazia em seu DNA a marca incontestável de bandas que surgiram ainda nos anos 60, e se estabeleceram na cena do rock nos anos 70. O Black Crowes conseguiu agradar a muitos fãs saudosistas daquela fase mais rica do panorama do rock, mesmo assim, alguns puristas viam em seu estilo algo de oportunista ou uma cópia mal feita. Mas a verdade é que havia ali uma autenticidade e um envolvimento com aquela atmosfera setentista, que leva muitas bandas que fazem covers de bandas dos anos 70, incluírem em seu repertório algo do Black Crowes - Remedy, principalmente.
Abaixo transcrevo uma matéria publicada no sessão "Rio Fanzine", que saía aos domingos no jornal O Globo, assinada por Carlos Albuquerque, no  26/07/92:
"Culpa demais escurece o raciocínio. Tome 'Atração Fatal' como exemplo. Trata-se de um filme conservador? Sem dúvida. Do começo ao fim ele é tradição, família e propriedade. É um filme cínico, não é? Claro (afinal.como esquecer a cena final com um close no porta-retrato da família unida e feliz... depois de tudo aquilo!). É um filme previsível? É, é previsível sim. É isso tudo. - conservador, cínico e previsível. E é muito legal também, se você não se preocupar tanto com essas coisas e quiser apenas se divertir e levar um susto aqui e outro ali. Afinal, não custa lembrar, aquela brincadeira do 'politicamente correto' já saiu de moda até mesmo nos Estados Unidos.
Com o Black Crowes acontece a mesma coisa. Desde o lançamento do seu primeiro disco, 'Shake Your Money Maker' (4 milhões de cópias vendidas, só nos EUA), o grupo dos irmãos Robinson (Chris, o vocalista, e Rich, o guitarrista) tem ouvido poucas e boas. Que são uma cópia de quase tudo que se fez (de bom) nos anos 70. Que são uma xerox bem definida de Faces, Stones, Humble Pie, Bad Company e até mesmo Led Zeppelin. Que Chris Robinson imita descaradamente Rod Stewaart e Mick Jagger. Que isso e aquilo. Estaríamos dessa forma, diante de um Frankstein de bom coração.
E quer saber? Essa turma toda está certa. Os Sherlock Holmes do pop (ou seriam Matraca Trica e Fofoquinha?) descobriram mesmo todos os crimes do grupo. O Black Crowes - cujo segundo disco, 'The Southern Harmony and Musical Confort', acaba de sair aqui via PolyGram - é mesmo um saladão de referências, um painel de recordações do passado. Legal. O próximo passo qual é? Prendê-los? Processá-los? Não. O próximo passo é ouvir o disco. Porque aí todos os crimes (e culpas) serão perdoados. É que o Black Crowes é muito, muito bom. E, convenhamos, é isso o que interessas no final das contas.
'The Southern Harmony and Musical Confort' é o melhor disco dos anos 70 lançado nos anos 90. O clip de 'Remedy' - a música de trabalho - é emblemático. Nada de 'viagens', fantasias cinematográficas ou espetaculares efeitos especiais. Apenas a banda tocando. E aí fica claro a paixão de Robinson por Jagger e Stewart. Magro, longos cabelos, usando calça de veludo boca de sino e colares pendurados no peito, ele rebola e dança exatamente como Jagger fazia quando era jovem. Um sample de carne e osso. E ótima voz.
E antes que alguém diga que é preferível ouvir o original do que uma cópia, por melhor que ela seja, é bom lembrar que os Black Crowes estão em situação privilegiada. Como não beberam na fonte de apenas um grupo, eles se beneficiam da variedade de sons absorvidos (repare bem, absorvidos e não copiados). A sua originalidade se dá exatamente na habilidade em costurar todas essas influências em benefício do conjunto. Afinal, não é chegando na clínica de um cirurgião plástico e pedindo os olhos dec Sharon Stone, aboca de Isadora Ribeiro e o nariz de Madonna que uma mulher vai se transformar numa deusa.
Os Black Crowes evitaram essa cirurgia musical e se deram bem. A formação da banda é clássica e ajuda: vocal, duas guitarras (uma solo, outra base), baixo, teclados (de Ed Hawrysch, resgatando timbres e sonoridades que pareciam perdidos no tempo) e bateria. Completam o time - e dão o imprescindível acento soul - duas vocalistas (Barbara e Icy) resgatadas de um coro gospel de uma igreja de Georgia (terra dos Crowes).
Gravado sem maiores frescuras em apenas oito dias, 'The Southern...' tem 10 faixas que valem o quanto pesam. De 'Sting Me' (uma declaração de amor ao Facces) à releitura acústica de 'Time Will Tell' (de Bob Marley), o rock aparece na sua melhor cartilha - pesado, musculoso e bem tocado (há quanto tempo isso não era importante?). Lá estão temas pesados que se transformam em baladas e baladas que se transformam em temas pesados. Lá estão solos de guitarra precisos e pouco exibicionistas . Lá está, enfim, o rock and roll - esse garotão de 40 e poucos anos - se olhando no espelho e descobrindo que o seu passado é motivo de orgulho. E não de vergonha."

segunda-feira, 10 de agosto de 2015

Chico Science - Revista General (1994)

Em janeiro de 1994, a revista "General" trazia uma matéria de capa com Chico Science, que estava prestes a lançar seu primeiro disco, Da Lama ao Caos, e ainda não se previa o rebuliço que causaria no panorama musical brasileiro, com o surgimento do movimento mangue beat. Sua morte precoce em um acidente automobilístico, em 1997, deixou uma imensa lacuna. Felizmente sua banda de apoio, Nação Zumbi, continua dando prosseguimento a seu legado, lançando bons discos e fazendo shows de qualidade, embora sem a genialidade de seu mentor.
Na matéria, assinada por Pedro Só, Chico fala de assuntos variados, e da concepção de seu  disco. Abaixo, a matéria:
" 'E aí, trankilo?, manda Francisco de Assis França, ignorando a alteração fonética. Traduzindo: Chico Science, uma das mais festejadas revelações do pop brasileiro dos últimos tempos, saúda o jornalista que chega para entrevistá-lo no estúdio Nas Nuvens, no aprazível bairro do Jardim Botânico, no ocasionalmente aprazível balneário de São Sebastião do Rio de Janeiro.
Trankilo? Que mané tranquilo, brother! Já é a terceira vez que o mané repórter baixa na área e ainda não deu para ouvir porra nenhuma da esperadíssima estreia fonográfica de Chico Science & Nação Zumbi.
Na verdade, o disco está numa fase empaca-soda (faltando confeitar vozes, algumas guitarras e sampleagens) e qualquer cego pode ver que os caras estão regulando mixaria. Não querem nem falar direito sobre as músicas. 'Quando escutar, tu vê', despista em confusão sensorial o Chico Pernambucano, com um sorrisinho gaiato pra lá de mineiro. Tudo bem que o bicho esteja numa trip carangueijo, mas assim já é exagero. O mangeboy recolhe as patolas, as puãs, os zoinhos, não quer entregar nada. Pois sim...
O negócio é fazer como ele mesmo e seus companheiros preconizam no manifesto/obra-prima 'Da Lama ao Caos': se organizar para desorganizar e, desorganizando, organizar. Em outras palavras, falar bobagens para zapear o que é que ferve nesta panela de siri.
Elogiados por Arto Lindsay, disputados por gravadoras multinacionais, produzidos por Liminha e babados por todos da imprensa que os (ou)viu, estes tais de Chico Science & Nação Zumbi são uma história e tanto.
Uns garotos não tão garotos (Chico tem 27 anos) do Recife que conseguiram fazer um barulho danado país afora a partir de uma saudável confusão de ritmos tradicionais e alienígenas: pop, hip hop, funk e outras influências exóticas temperadas com   a raiz forte de maracatus, cocos e emboladas, sem esquecer a bastardeira do samba-reggae. Tudo isto e o céu parabólico, também. Sem disco nem demo, mas com um esperto senso mercadológico, os caras souberam vender seus crustáceos e tiraram o pé da lama.
 Agora estão sendo lançados com pompa, circunstância e uma bela verba pela poderosa Sony Music. 'Fudeu... Entrou no show business, tem que arrebentar. A ideia é massificar mesmo', raciocina Chico, determinadíssimo. Pronto para encarar o lado prostituto da divulgação, mangueboy? Topas um programa do Clodovil? 'Aí é foda, né?', discrimina, com toda razão. Mas papo de medo do sucesso e de peso da responsabilidade não rola.
'Trankilo', sorri nosso heroi, à boca pequena. É verdade que as pretensões iniciais são modestas. 'A gente queria fazer uma coletânea, mas fomos atingindo a mídia no sul... O negócio agora é detonar a abrir espaço para o resto do pessoal'. Por pessoal entenda-se Mundo Livre S/A, Loustal e Lamento Negro, uma curriola de bandas amigas que, organizada em forma de cooperativa cultural, driblou a paupéria do curto circuito underground do Recife.
Formada a partir da necessidade e da amizade no começo do ano passado, esta panela tratou de  ideoligizar seus laços arriscando um manifesto chamado ‘Caranguejos com Cérebro’. O texto ajudava a vender o projeto do álbum de compilação da tal cena mangue, amarrando com inteligência um conceito estético que misturava a fertilidade e a riqueza biológica do habitat, sua sujeira e seu papel no conturbado processo de urbanização do Recife (quarta pior cidade do mundo em qualidade de vida).
‘Caranguejos com Cérebro’ falava da realidade virtual, teoria do caos e modernidades diversas. Mas vá perguntar a Chico o que ele entende de matemática quântica... ‘Não saco porra nenhuma, mas me interesso.’ Caos de Chico está mais para aquilo que Bezerra da Silva e os dacunhas franceses da retaguarda chamam de ‘le caô’. Ele não passou de cinquenta páginas de leitura sobre o assunto. ‘Não me aprofundo nestas coisas’, admite, antes de emendar um blá-blá sobre o grande barato de se antenar. Na verdade, sua parabólica coletiva. ‘Tenho muitos amigos. Eles vão me dando os toques, e a gente desenvolve’, conta.
Foi assim, de ouvidos abertos e palpites, influências e ingerências diversas, que o garoto que pulava a janela para ir escondido dançar breack cresceu e multiplicou seu universo cultural. De tanto proclamar seu amor pela tecnologia, Chico que era Vulgo (‘tipo aqueles nomes  de marginal, Galeguinho do Coque, Bill do Olho Verde...) virou Science. A ciência que o seduz, contudo, é ‘mais de alquimista, mais mágica, mais intuitiva’. Mas sem cabecismo, por favor.  ‘A galera gosta de viajar, só que sem essa coisa cabeça’, ressalva, antes de cunhar uma grande frase. ‘O raciocínio é a mágica das ideias.’ Ca-bbêê-ça!! Cabeça legal.   
Mas pinta uma dificuldade nesta história: Chico acha 'um barato do caralho' usar máquinas para descobrir sonoridades e descobrir timbres, mas ainda não é capaz de mexer nos equipamentos. 'Ele não sabe operar, mas sabe conduzir', socorre o tamborman e guitarrista Jorge do Peixe, amigo há quase uma década e do Peixe, porque sempre criou peixe, ora bolas. 'Já criei até casal de piranhas lá em casa', conta, sem perceber a barbaridade da frase.
Mesmo não tendo a menor ideia sobre como se aperta aquela botãozada toda, Chico e a Nação Zumbi chegaram com ideias bem ajambradas no estúdio e selecionaram o que Chico Neves iria samplear e implantar em suas músicas. Disquinhos de James Brown e do Dead Can Dance foram vistos no local do crime, mas os meninos juram que não usaram. Nem os horns do grande James Brown, ouvidos por este repórter em alto e bom som durante uma session.
Supervisionando tudo estava Liminha, que não era a primeira opção na lista de possíveis produtores do disco, mas que agradou em cheio. 'A ideia inicial era o Arto, porque já sacava o som  da gente e por causa das ligações com Eno, Bill Laswell e David Byrne, mas foi ótimo trabalhar com o Liminha. Ele deu altos toques sobre guitarra, baixo e samplers. Mas nada que alterasse o curso natural das coisas. Porque o que precisamos mais é de alguém que conduza nossa trip', explica  Chico.
Pouca experiência no estúdio, um tempão longe de casa... haja saco para gravar. O guitarrista Lúcio que o diga. No melhor da festa, ele ele pegou uma caxumba das brabas. A maldita resolveu descer e o deixou duas semanas fora de combate. Deu mole, hein, garoto? 'Rapaz, isso aí o médico disse que eu era independente', rebate ele. Jorge do Peixe se queixou das saudades dos dois filhinhos. Pai zeloso, ele gosta de ouvir Elnstürzende Nëubaten e Youg Gods antes de dormir, mas manera em respeito aos pimpolhos: 'É relaxante mesmo, só boto baixo por causa dos guris.'
Jorge é o principal parceiro de Chico nas composições e um dos maiores ideólogos da Nação Zumbi. 'Ele passou um tempão das gravações vendo MTV enquanto a gente ralava, mas dá ideias sensacionais para as músicas', conta  Chico, que conheceu  o amigo dançando breack e fazendo escambo de discos  do Suggarhill Gang e... bem, Rick Springfield (um zé buceta australiano que encheu o saco no começo dos anos 80).
Mas, e a tal estreia fonográfica dos mangueboys? Para pegar os caras vale tudo. Até brincar de 'Cara a Cara'. 'Me Marília Gabriela, you Jane', proponho. E lá vai... Ideologia? Chico refuga: 'Ih, já vem com frescura... Assim é foda.' E sai imitando Cazuza. Aids? 'Xô ver... É uma coisa até que legal, as pessoas se reservam mais. Mas muita gente está mal informada', afirma, sem medo do escorregão politicamente incorreto.
Ano 2000? 'Afrociberdelia'. Chico Science? 'Supermanguecallfragilyboy', diz o próprio. O amigo do Peixe não perdoa, marca: 'Esse frágil no meio é coisa de viado!' Som, que é bom, nada. O bicho pega, mas o Chico não entrega. Antes de descer para finalmente mostrar o embrião de 'Risoflora', que fala da paixão de um pescador de carangueijo por uma lavadeira, ele pega o velho baixão acústico do Nas Nuvens e belisca 'Insane in the Beain', do Cypress Hill. Lá embaixo, na sala secreta, ouço uma quase balada com guitarra gótica no meio (parece coisa de Billy Duffy) e percussividades pernambucanas. Estranhamente bonita.
Já é tarde da noite. Chico levanta os braços, chega perto do engenheiro Vitor Farias e pergunta: 'Tá vencido meu Avanço?' Todos acham melhor não responder. Eject Time. "                                                 

quarta-feira, 5 de agosto de 2015

Raul Seixas: "Eu Sou o Meu País" - Revista Pop (1974)

Em sua edição nº 29, em 1974, a revista Pop trazia uma entrevista com Raul Seixas, que estava no auge de seu sucesso. Na época Raul estava muito envolvido  filosofia e Sociedade Alternativa, e já estava às voltas com as gravações do seu terceiro trabalho-solo, Novo Aeon, que segundo a entrevista teria primeiramente o título de Eu. A entrevista foi feita a Carlos Caramez:
"Pop - Você ainda não conseguiu se acertar com nenhum empresário. Como é que fica o seu esquema de trabalho?
Raul- Agora eu estou trabalhando comigo mesmo. Decidi ser meu próprio empresário. Abri meu boteco, que se chama R.S. Noveon Ltda., onde trabalham pessoas que não são empresários nem homens de negócios. São pessoas que sabem que a técnica já mudou, que os negócios hoje são uma guerra de inteligência, e não aquela coisa velha de guerra de capitais. Tudo é um grande jogo de xadrez. É assim que funciona o meu boteco: todo mundo é partidário de uma mesma concepção e todo mundo está a fim  de uma mesma coisa. As pessoas são todas diferentes umas das outras, mas se equilibram dentro do mesmo valor. Porque é necessário haver o sim, para haver o não. Aquele velho equilíbrio cósmico das coisas.
Pop - Seu parceiro Paulo Coelho não trabalha mais com você. O que houve?
Raul - Nada. Acontece que minha linha agora é o egoísmo, ou Raulseixismo. Tenho meus próprios valores, sou meu próprio país. Não sou melhor e nem pior que ninguém porque sou único. Às vezes Paulo e eu começávamos a fazer uma letra, e as ideias se chocavam. Então saiu um cada um para um lado.
Pop - E a Sociedade Alternativa, em que pé está?
Raul - Ela existe, mas não é palpável. Ela está aí, no ar, dentro deste momento.
Pop - Mas ela pode crescer sem ter nada palpável, visível? Vivendo só dentro da cabeça de cada um?
Raul - Eu tenho recebido cartas que nem consigo responder. Gente que pergunta quanto deve pagar para fazer parte da Sociedade Alternativa. É o maior barato! Cartas de sociólogos, convites para palestras. Uma vez fui contratado por uma universidade pensando que ia fazer um show; cheguei lá, era uma palestra sobre sociologia para quinhentos estudantes - o tema era Sociedade Alternativa. Adorei.
Pop - Você viaja muito para os Estados Unidos. Quais são as suas perspectivas profissionais por lá?
Raul - Talvez eu grave na Warner Bros., com a ajuda de John Lennon, que está me ajudando muito. Ele é um cara fantástico, está dentro do mesmo esquema nosso, na base do 'não adianta lutar com guarda'. Mas nosso relacionamento é extra-musical. Ele é um egoísta incrível, um grande individualista. Mas um individualista alternativo, social, coletivo. Ele é muito lúcido e gostou da explanação das minhas ideias, das minhas letras. É um cara que sabe escutar, não fala muito e quer saber tudo o que está acontecendo no mundo.
Pop - Dá pra comparar a sua Sociedade Alternativa com as outras que estão espalhadas pelo mundo?
Raul - Não há comparação, porque o Brasil é outra cultura, todo um processo civilizatório diferente. Então, temos aqui uma Sociedade Alternativa brasileira, dentro do campo e do limite em que ela pode se estender. E quando ela pintar como realidade, obviamente o Brasil vai entrar nessa, porque não tem saída.
Pop - A música e os compositores são os principais responsáveis por muitas mudanças que ocorrem no mundo?
Raul - São. Antes, o maior valor era do intérprete. Mas a arte está morrendo e cedendo seu lugar à expressão. Quer dizer: a arte é o espelho social de uma época, de um momento. Então, não existe arte, e sim, a própria pessoa se expressando.
Pop - Assim, não há distinção de público para você. Todos os públicos são seu público...
Raul - Eu faço boleros, tangos, e canto para quem curte isso também. Minha música é para todo mundo. Não é hermética, porque não complico.
Pop - Você está meio sozinho no panorama artístico brasileiro. Isso não pode prejudicar o seu trabalho? Quer dizer: você só se alimenta de você mesmo?
Raul - A verdade é prenúncio de um momento, o caos é prenúncio de um momento. Quando eu digo que sou a luz das estrelas, não estou falando de mim. O pedreiro lá da frente de casa, que está construindo um edifício, canta essa música como se fosse ele. Isso porque nós somos o verbo ser. É só isso, nós somos o verbo ser. Sendo o que você tem vontade de ser, não existe mais nada. Nós somos, está acabado. Tudo é. Então, o eu é fortíssimo. Você tem que ter primeiro a consciência do eu para poder respeitar terceiros e então fazer o que você quer, que é tudo da lei, da sua lei.
Pop - E sobre os novos shows ou um novo disco, o que é que há de novo?
Raul - Vamos fazer muitos shows por aí, e já estou gravando um novo LP para lançar em maio. O disco vai se chamar EU. De músicas novas, tem Noveon, Para Cada Buraco uma Rolha, Eu Sou Egoísta, Não Me Pergunte Porque... É um disco muito legal, estou apaixonado por ele.

domingo, 2 de agosto de 2015

Entrevista com Luiz Carlos Maciel, o Guru da Contracultura (1997) - 3ª Parte

"Naquela época existiam líderes como o Glauber, o Caetano. Hoje nós não temos mais isso, hoje não há mais um referencial...
Mas hoje você ainda têm o Caetano, ainda tem o Zé Celso, só não tem o Glauber porque ele morreu. Eu acho que é ainda muito cedo para essa renovação acontecer. Esses líderes foram líderes na juventude deles. Hoje em dia eles estão na maturidade. Então esse ciclo tem que se completar. Você não pode dizer que havia Caetano. Caetano taí, tá compondo, tá fazendo música, tá dando palpite, tá fazendo filho, tá ficando pelado na peça do Zé Celso (risos). Eles estão aí, aprontando as coisas deles. A transformação, a mutação radical da que veio depois. Mas uma mutação radical exige uma certa passagem de tempo, que você não pode prever. Então, é certo que vai ter um momento em que vão acontecer coisas até mais agitadas talvez, e, certamente, mais surpreendente do que as que houve em nossa juventude. A gente só não sabe o que e quando vai ser.
No caso do Brasil, na época vocês tinham um inimigo comum, que era a ditadura militar. Hoje, a coisa está mais diluída, mais mascarada. Os jovens dos anos 90 não sabem pelo que brigar. Como você vê essa questão?
É. Ficou mais difícil para vocês (risos). A gente lutava de uma maneira mais geral contra uma coisa que pode ser chamada de 'o Sistema'. Era uma coisa meio abstrata, que não era só a ditadura militar, era aquilo que a ditadura estava representando no poder. Então o 'sistema', um termo típico dos anos 60, aprendeu com aquela experiência. Ele ficou mais sutil, ele é mais inteligente, mais esperto. É um sistema de dominação, dominação essa que é exercida hoje de maneira menos bruta, menos palpável, menos evidente. Portanto, muito mais eficiente.
Mas você não acha que vocês eram muito ingênuos em acreditar que poderiam mudar alguma coisa? 
Pelo menos tanto quanto vocês são de acreditar que não podem mudar nada (risos).
(Risos) Puxa, agora derrubou a nossa geração inteira. E o que você acha desse famoso 'neo-liberalismo globalizante', que hoje em dia, tanto se fala? Alguns falam do neo-liberalismo e da globalização como coisas positivas e inevitáveis. Você concorda com essa opinião?
Não, isso é uma arte do sistema. Isso é um instrumento de manipulação e controle social, isso é uma ideologia. Numa conferência do linguista Noam Chomsky, que é um cara dos anos 60, disseram: 'Tudo tem que ser privatizado, tem que desestatizar tudo porque o Estado não funciona'. Pois é, mas na Suíça funciona. Lá o Estado funciona. É o país mais eficiente do mundo e é tudo estatal. O que dizer?
Não é tão simples assim, né?
Exatamente, não é tão simples como parece. Todas essas ideias são formulações ideológicas. Eu não quero dizer que essas mazelas estatais não existam. A burocracia é uma coisa terrível, acabou com União Soviética, é uma coisa que você não pode negar. Mas não é essa coisa simplista de dizer: 'Privatiza tudo que dá certo'. Privatiza-se tudo, faz-se uma economia radicalmente liberal... A visão econômica neoliberal é mais radical do que a visão liberal tradicional. Então, um radicalismo destes não tem necessariamente nenhuma garantia de que vá funcionar do mesmo jeito que um extremismo estatal, do tipo socialista. Não há como acharmos que a solução para os problemas da sociedade seja uma dessas formas radicais.
Como era conviver com pessoas tão articuladas e interessantes como as citadas no livro 'Geração em Transe', no caso Glauber Rocha, José Celso Martinez Correa e Caetano Veloso? 
Não sei, talvez eu fosse tão interessante quanto eles (risos). Nunca achei que fossem casos excepcionais, eu achava que eles não faziam mais nada do que a obrigação em serem interessantes e articulados. Na verdade, quando conheci o Glauber, o Caetano, eu não podia prever que eles seriam tão famosos e tão considerados como são hoje. Eu conhecia eles como eu conheço você, é a mesma coisa. Eram meus amigos, a gente falava sobre as coisas, discutia e tal, quer dizer, eram pessoas normais, não tinham esta áurea mítica que depois o talento e o trabalho deles conquistaram.
Você acha que houve uma supervalorização destas pessoas?
Não sei, só se vocês estão supervalorizando de alguma maneira porque, por exemplo, no caso desses dois, do Glauber e do Caetano, eu acho que é natural valorizar porque que cineasta apareceu no Brasil que tenha tido uma obra tão audaciosa, que mexeu no cinema do jeito que o Glauber mexeu? Que compositor tem a inspiraçãso do Caetano como poeta lirico e tudo mais? Quer dizer, são artistas realmente talentosos que com justiça se destacaram durante todos esses anos. Mas não precisa haver endeusamento, agora a admiração é natural.
Você lutou tanto pela contracultura e hoje está na Globo. O Caetano hoje está mais clean, hoje é 'Fina Estampa'. O Zé Celso, por outro lado, que mantém a postura dos anos 60, faz um teatro, dizem, muito datado, que já não tem muita razão de ser. Como é isso? Pode-se dizer que vocês, você e o Caetano, no caso, aderiram ao sistema?
(Risos) Não sei. Eu não aderi ao sistema, eu trabalho na Globo para ganhar a vida. Eu já estive em alguns debates onde disseram: '... antes do Maciel se vender pra a Globo'. Se eu não me vender para a Globo, eu vou ter que me vender para alguém. Eu sou de origem pobre, classe média e tive que trabalhar a minha vida inteira, se eu não trabalhar eu morro de fome, não vou ter onde morar. Eu gosto de morar bem, gosto de morar no Leblon, gosto de comprar meus CDs, gosto de pegar meus vídeos na locadora, preciso de um dinheirinho, não é pecado (risos). Isso não quer dizer que você se vendeu para o sistema. Eu tenho que ser hippie e morar embaixo da ponte? Você tem que se adaptar aos tempos. O Caetano era um jovem artista rebelde, agora ele é um grande senhor da Música Popular Brasileira.  O Zé Celso é que parece que quer ficar garoto pra sempre, forever (risos). Ele não quer abandonar a juventude, ele quer aquela coisa sempre. Eu acho válido. Hoje, umas das experiências que tenho na minha vida, particularmente, como indivíduo, é a de você respeitar a liberdade dos outros e as escolhas que eles fazem de como eles querem viver suas vidas. Em 'If 6 was 9', Jimi Hendrix diz: "eu sou aquele que vai morrer portanto me deixe viver como eu quero'. Você vai morrer, por que você vai viver como os outros querem? Você tem que viver como você quer. Então, se o Caetano quer viver 'clean', que viva 'clean'. Se o Zé Celso quer viver como um desbundado até hoje, ótimo, que viva. As pessoas não precisam ter padrão de comportamento. A originalidade de cada um é diferente do outro.
Mas se vocês que eram referenciais estão onde estão... 
Ah, então acho ótimo porque você não pode pegar este referencial para repetir esse referencial. Eu sempre acho muito esquisito quando dizem que tem um grupo de neo-hippies. Não é para ser neo-hippie porque esse negócio de hippie já foi feito na minha geração, vocês vão fazer de novo? Que falta de imaginação! Que falta de criatividade! Vocês têm que fazer uma coisa diferente, original. Tem que se fazer sempre um gesto surpreendente. O zen diz: 'A cada momento, um novo momento'. Você tem que estar sempre criando e este é o grande segredo da vida, da existência, é esta criação permanente. Tem uma estória do mestre Zen que diz que todas as perguntas que faziam para ele, ele espetava o dedo para o céu. E ele tinha um discípulo que começou a imitar ele. Quando perguntavam alguma coisa ele fazia o mesmo gesto, apontando para o céu. Aí, o mestre chamou o discípulo para dar-lhe uma lição. Ao lhe fazer uma pergunta, o discípulo espetou o dedo pra cima. O mestre tinha uma faca nas costas e tchum!, cortou fora o dedo do discípulo. Aí o mestre lhe fez outra pergunta e o discípulo foi espetar o dedo mas não pôde porque, agora, só tinha um toco. A estória nos diz que quando ele levantou o dedo, teve uma luz. Ele entendeu que, desta forma, tinha feito um gesto original. Um gesto que o mestre nunca tinha feito, que era levantar um cotoco de dedo (risos).
Então qual seria a mensagem para esses jovens de fim de milênio?
Há um momento em que vocês vão encontrar o que não foi feito como minha geração encontrou. Não sei como se passa porque nós não fizemos nada pra isso, cai do céu. Você só tem que reconhecer que aconteceu e é uma  experiência fantástica. Eu acho que é uma experiência fundamental da vida você descobrir a originalidade da sua vocação e a originalidade da sua presença.
Você já identifica algum movimento surgindo por aí?
Não, prefiro terminar falando de forma generalizada sem me comprometer com nenhuma manifestação em particular (risos)."

 


sábado, 1 de agosto de 2015

Entrevista com Luiz Carlos Maciel, o Guru da Contracultura (1997) - 2ª Parte

" Você falou de sua convivência com o Glauber. O Cinema Novo pretendia ser um cinema feito com recursos de terceiro mundo, com uma estética de terceiro mundo...
É, quando o Glauber começou a fazer os primeiros filmes, o cinema dito sério brasileiro estava praticamente desaparecido porque não tinha condições de sobrevivência. Tinha havido um movimento de cinema em São Paulo, uma tentativa de se fazer um cinema de categoria internacional através da companhia Vera Cruz. Isso era um fenômeno tipicamente juscelinista, correspondia àquele momento em que o Brasil estava querendo se desenvolver, queria sonhar em deixar de ser parte do terceiro mundo e começar a ser do primeiro. A Vera Cruz teve uma concepção hollywoodiana de filmes, de construir estúdios, de importar câmeras, o cineasta brasileiro que tinha feito sucesso na Europa, Alberto Cavalcante, voltou para o Brasil, vários diretores e técnicos foram importados, o cinema brasileiro era muito tosco. Mas isso tudo resultou num fracasso, quebrou. Então, que cinema se podia fazer no Brasil? O único cinema que dava pra fazer aqui era a chanchada carioca, principalmente filmes que eram feitos na época do carnaval. Quando chegava perto da época, saía um filme com as músicas de carnaval daquele ano. Eram aquelas chanchadas com Oscarito e tal, carnavalescas, aquilo dava dinheiro, mas não satisfazia aquela geração de novos cineastas. Houve um cineasta chamado Nelson Pereira dos Santos que fez o filme 'Rio 40 Graus'. Era um filme sobre o Rio de Janeiro e parecia um filme neo-realista italiano. Era um filme muito bonito, ele fez com pouco dinheiro. E esse filme inspirou esses jovens, o Glauber em muitos sentidos pode ser considerado como discípulo de Nelson Pereira dos Santos. 'Rio 40 Graus' inspirou Glauber a formular essa tentativa de fazer um cinema sério, responsável e com poucos recursos, uma ideia que acabou sendo traduzida na sua famosa declaração de 'uma câmera na mão e uma ideia na cabeça' ou 'uma ideia na cabeça e uma câmera na mão', né? Foi uma coisa estratégica, tática do Glauber. Anos mais tarde, eu até falo isso no livro ('Geração em Transe'), eu perguntei a ele se queria fazer Super 8 e ele respondeu: 'Eu gosto é de cinemascope' (risos).
Mas você admite que o Cinema Novo era coisa mais para intelectuais...
Sim, o Cinema Novo não conseguiu conquistar o grande público. A principal influência do Cinema Novo, como concepção, estrutura, e mise-en-scène é europeia. E o cinema europeu tem uma comunicação mais difícil do que o cinema americano porque, de uma maneira geral, é um cinema mais sofisticado, mais intelectualizado, um cinema mais épico do que dramático. O cinema americano é dramático, é feito para se comunicar com  as massas. O público brasileiro já naquela época estava completamente obstinado pelo cinema americano. O Glauber sabia disso e a grande luta dele era saber como destruir isso. E ele não conseguiu. Então, a grande glória, a grande conquista do Cinema  Novo era ganhar prêmios no exterior, nos festivais de cinema. O cara fazia o filme, no Brasil ninguém assistia, era um fracasso de bilheteria, mas ganhava prêmio não sei onde, um ganhou prêmio em Veneza, o outro em Berlim. Era um urso de prata, não sei o quê. Atualmente, parece que não ganha mais. Eu não sei, ainda existem festivais no exterior?
Existem.
Pois é, mas parece até que não tem porque não sai mais no jornal. Naquela época saía no jornal porque os brasileiros iam lá e ganhavam os prêmios. Então eu acho que o Cinema Novo embora não tenha cumprido esse objetivo que é fundamental, a conquista do público, do mercado, ele serviu para levantar a moral daqueles cineastas. A visão política do Cinema novo queria o público mas havia a coisa dele ter sido alimentado pela visão juscelinista, daquela coisa da arte nacional ser do primeiro mundo. E isso eles conseguiram com os prêmios lá fora.
Maciel nos anos 70
Ao mesmo tempo em que surgia o Cinema Novo, surgia o Tropicalismo na música, tinha o Zé Celso no teatro. Você considera que uma arte verdadeiramente brasileira estava surgindo? Qual era o objetivo desta arte?
Não acho que tenha sido a primeira arte brasileira, a arte brasileira tem sido feita há muitos anos, há muitas décadas. José de Alencar é arte brasileira, o Modernismo é arte brasileira.
Mas com influência europeia...
É, e continua tendo. O Cinema Novo, por exemplo, teve influência do 'Cahiers du Cinema'. O Tropicalismo teve influência americana, do rock, europeia, via  Beatles. O próprio Modernismo que foi uma coisa bem brasileira teve influência europeia, do Futurismo. Em primeiro lugar o Tropicalismo foi um movimento de superação da condição de colonização, de ser de terceiro mundo e de fazer arte de qualidade inferior. Isso era o que todo mundo queria. Porque Villa-Lobos era um compositor reconhecido internacionalmente, Oscar Niemeyer era um arquiteto reconhecido internacionalmente. Portinari também, agora não se fala mais tanto, mas na época era considerado de categoria internacional. Todo mundo queria fazer isso, a Vera Cruz queria, a Bossa Nova quis tanto que se lançou num show no Carnegie Hall, em Nova Iorque, para dizer que era terceiro mundo. Isso foi um primeiro momento. Depois, foi a coisa da arte interferir na vida social, de ter uma dimensão política, no caso do Cinema Novo, etc. E teve depois uma interferência no comportamento das pessoas, como no caso do teatro do Zé Celso, no caso do Tropicalismo. O Tropicalismo tem essa coisa de querer captar o Brasil mas também essa tendência contemporânea na época de revolução no comportamento, que acompanhou a contracultura e o rock. Então, primeiro tinha a coisa de ir para o primeiro mundo, depois tinha a coisa política, e , finalmente, essa coisa de modernidade, de atualização, de estar na vanguarda, de não fazer uma arte atrasada em relação ao que estava sendo feito na vanguarda internacional.
Muitos ideais dos anos 60/70 se perderam hoje. O que você pôde ver que se concretizou? Alguma coisa ficou?
Aquilo não era uma coisa para ficar, era uma coisa para transformar. Transformações aconteceram. Mas elas não foram na extensão, na profundidade, da natureza que se queria. Você não pode cancelar a experiência histórica. Ela é modificadora e vai sempre se modificar. Então, dos movimentos artísticos e culturais dos anos 60, você tem consequências, você tem efeitos. As coisas não seriam hoje da maneira como são se eles não tivessem existido. As coisas foram também moldadas pelo que eles fizeram. O que não quer dizer que seja como eles queriam que fosse hoje. Tudo aquilo teve um resultado real e não um resultado ideal que estava na nossa cabeça."
 (continua)