Palavras Domesticadas

Palavras Domesticadas

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

"Jimi Hendrix Está na Dele' - Luiz Carlos Maciel (O Pasquim - 1969)

Eu possuo muito material sobre Jimi Hendrix, entre recortes, livros, revistas, etc, mas de todo esse material impresso, somente um é do tempo em que ele ainda vivia.Trata-se de uma matéria publicada no jornal O Pasquim, em 1969, na coluna Underground, escrita pelo jornalista Luiz Carlos Maciel. Em sua coluna Maciel falava de contracultura, rock, comportamento e coisas ligadas aos movimentos ligados a uma nova corrente de pensamento, ligada ao movimento hippie, flower power, etc. E Hendrix era um importante personagem de toda essa corrente musical e comportamental que era destacada na coluna Underground, que hoje faz parte da história da contracultura no Brasil. A matéria tem por título "Jimi Hendrix está na dele':
"Para quem quiser saber como vai ser a música do futuro, da próxima década dos setenta, não conheço dica melhor do que os discos de Jimi Hendrix. Três deles já foram editados no Brasil: Smash Hits, Eletric Ladyland e Axis: Bold as Love. E outros certamente virão. Os quadrados torcem o nariz diante deles. Mas a garotada prafentex identifica neles o som  da nova Idade Elétrica na qual, segundo Marshall McLuhan, estamos inexoravelmente ingressando.
Hendrix é um crioulo americano de cara esquisita, cuja formação musical é claramente feita pelo rythm and blues que floresce no Harlem e em outros guetos negros dos Estados Unidos. Sem a sofisticação do jazz, que sempre foi uma manifestação musical superior, o R&B tem, porém, as suas inflexões negroides e força primitiva. Como o jazz, o R&B conheceu a sua variante branca, diluída e dirigida por interesses comerciais mais amplos. Chama-se rock and roll e, como se sabe, foi a origem da música dos Beatles e o canal adequado para que as guitarras elétricas manifestassem sua inédita sonoridade. Hendrix tocou guitarra com alguns conjuntos de R&B, viajou para a Inglaterra, sofreu a influência do trabalho dos Beatles e dos Rolling Stones e voltou aos Estados Unidos para formar o seu próprio conjunto: o hoje célebre Jimi Hendrix Experience.
O lendário Jimi Hendrix Experience
Hendrix não usa muitos instrumentos: o Experience é um trio que conta, além de sua guitarra elétrica, com um baixo e uma bateria. Ao contrário do esquema tradicional da base rítmica (feita pelo baixo e pela bateria, por exemplo), Hendrix cria uma rica polifonia de três linhas melódicas, usando cada instrumento como solista e harmonizando-os como muita inventiva. Ele retomou a orientação experimentalista dos Beatles e tenta levá-la ao seu limite. Recolheu também a contribuição de música oriental, o que veio a ser um dos elementos característicos de seu novo som.
Em que reside, porém, a originalidade desse novo som? Ao contrário da maioria de seus companheiros de viagem, Hendrix concentra suas experiências sobre o aparato elétrico de seus instrumentos. Excelente instrumentista, na verdade um músico de qualidade superior por qualquer critério, ele explora todos os sons conhecidos e alguns desconhecidos da guitarra elétrica. Até mesmo a distorção deliberada do registro elétrico de suas gravações, é amplamente utilizada. Basta escutar Eletric Ladyland, principalmente na edição original, que consta de dois LPs, para verificar que Hendrix já transformou, hoje, a eletricidade no seu verdadeiro veículo de expressão musical. O que a música eletrônica aspirou a fazer, Hendrix realiza a nível da música popular.
A diferença está no fato de que a música eletrônica, apesar da audácia, continua ligada à tradição racionalista, letrada - como diria McLuhan - da arte ocidental, enquanto a de Hendrix corresponde ao que o mesmo McLuhan chama de tendência à retribalização da juventude contemporânea. Ela envolve para ser devidamente apreciada, uma nova sensibilidade musical que os Beatles apenas insinuaram nos seus ouvintes. Hendrix a assume, na sua integridade, e a exige em seus próprios ouvintes. É por isso que digo que a guitarra elétrica, em Jimi Hendrix, não é apenas um novo som; é uma nova experiência existencial que exige, para que se estabeleça uma comunicação efetiva, uma alteração profunda na própria maneira de viver do ouvinte, nos próprios valores que norteiam seu comportamento e no seu próprio sistema nervoso. Sim: a música de Jimi Hendrix  exige uma readaptação certamente mais fácil aos jovens da nova sensibilidade. Esse é o segredo da sua força e de sua originalidade."

domingo, 21 de fevereiro de 2016

Raul Seixas e os Malditos - Revista Vizoo - 2005 (2ª Parte)

" A marca registrada dos chamados malditos sempre foi a rebeldia. Para Sílvio, Raul Seixas, era um ser à parte, único. Tom Zé, nunca se encaixou. 'Deu apenas uma amansada quando o inglês (o escocês David Byrne - ex-líder dos Talking Heads e proprietário do selo de world music Luaka Bop) o descobriu.
De uma forma geral, eram malditos aqueles que não se encaixavam no esquema mídia-gravadoras-mercado. 'A turma toda que foi caçada pela censura teve um retorno muito bom na mídia. Chico, Caetano, Gil... Depois, quando ela acabou, venderam muitos discos. O Jards e o Jorge Mautner até hoje não conseguem vender, entrar na mídia. Nem sei também se eles querem participar dela. 'Parece haver uma diferenciação entre os que compunham o que realmente sentiam e os que faziam isso objetivando outros fins, numa espécie de farsa. 'Talvez seja por isso que sejam malditos, por serem verdadeiros. Agora, o Chico é um cara verdadeiro...'
A prova disso é que eles continuam sendo as mesmas pessoas. O mundo mudou, e ainda são os malditos-benditos, coerentes com o que está dentro deles.
Lanny Gordin
Até hoje, sempre que possível, Pinhati procura estar presente fotografando quando algum dos seus malditos se apresenta em São Paulo. 'É difícil hoje a gente ver um show do Jards Macalé, do Jorge Mautner. O Luiz Melodia até se apresenta no Rio, mas aí fica difícil'. Emenda citando a efervescência musical do início dos nos 80, de gente que começou no teatro Lira Paulistana. Instalado em um porão da Praça Benedito Calixto, no bairro de Pinheiros, foi polo do movimento conhecido como Vanguarda Paulistana, que revelou nomes como o Ultraje a Rigor e os Titãs do Iê-Iê (depois conhecido como Titãs). Além das apresentações dos novos talentos da época, rolavam também shows de Macalé, Jorge Mautner, Arrigo Barnabé, Premeditando o Breque e Itamar Assumpção.
Mesmo após tanto tempo, Sílvio acha que ainda tem o que fotografar, que a história de seus malditos não acabou. 'Na época eu fiz muitas fotos. E hoje em dia ainda é muito gostoso, porque é prazer. Acho que só vai acabar quando a gente morrer'. E finaliza; 'Como o Jorge (Mautner) fala, 'é tudo coração'. Esse mundo é muito bacana, muito bonito e espero que apareçam novos que tenham essa coragem para viver esse caminho'.

Breve Registro
Filho de músico, mas segundo ele mesmo com dificuldades nos tons e semitons, Sílvio Pinhati viu na fotografia, outra paixão da família, a chance de estar perto da música. 'Desde criança eu e meus primos fazíamos concursos. Cada um pegava uma máquina e ía fotografar alguma estória. Depois revelávamos os filmes em casa mesmo. Costumo dizer que não procurei a fotografia, ela me encontrou. Hoje não sei fazer nada que não esteja relacionada a ela.'
Passada essa época, Sílvio foi morar em São Paulo, onde a fotografia voltou com força total. Enquanto estava na escola de fotografia da irmã, dividia a casa que morava com um uruguaio, segundo ele, um mestre chamado Americo. Americo havia morado em Paris, era amigo de Dali e da turma do surrealismo. Para  Pinhati, ali a coisa realmente aconteceu. 'Juntei as artes plásticas à minha fotografia, que melhorou muito. Americo falava das cores em graus. Três graus do verde, dois graus do vermelho.' Segundo ele, o pintor ficava às vezes no Masp das oito da manhã às cinco da tarde em frente a um Van Gogh, só fazendo esquemas. 'Esse era um cara maluco, bem maluco. E tinha esse lance muito doido que o despertou: ele falava que tinha que haver uma troca, que o momento certo do clique é quando as coisas olham pra você, e não apenas você olha pra elas. Tem que estar com a mente aberta para captar essas coisas. ' "

sábado, 20 de fevereiro de 2016

Raul Seixas e os Malditos - Revista Vizoo - 2005 (1ª Parte)

Em 2005 a revista Vizoo trazia uma matéria de capa em que destacava Raul Seixas e os "malditos da MPB". Apesar de não ser considerado um "maldito", por seu trabalho ter feito sucesso e ter sido reconhecido pelo grande público, Raul Seixas é colocado entre esses artistas marginalizados pelo mercado musical por sua postura sempre contestatória. A matéria é assinada por Gustavo Frank, e destaca o trabalho de um fotógrafo, Silvio Pinhati, que costumava fotografar vários desses artistas. Todas as fotos que ilustram as duas partes dessa postagem são de sua autoria. A primeira parte da matéria é transcrita abaixo:
" 'Verdadeiros. Eles falam o que acham, sentimentos, coração, amor'.
Com essas palavras, o paulista Sílvio Pinhati, que entre o final da década de 70 e meados dos anos 80 fotografou de forma contumaz as apresentações de um grupo especial de compositores da música brasileira, define os nomes que até hoje fazem a sua cabeça, e que carinhosamente chama de malditos. A alcunha de maldito, no caso, é um verdadeiro elogio ao talento contestatório de Jards Macalé, Jorge Mautner, Tom Zé, Luiz Melodia, Lanny Gordin e Raul Seixas.
Enquanto fotógrafo, Sílvio não conseguia encontrar alguém que ampliasse suas cópias com os resultados desejados. Por conta disso, passou a revelar seus filmes e preparar as próprias ampliações. Hoje, seu laboratório fotográfico é considerado um dos melhores de São Paulo, tendo como clientes cativos nomes do quilate de Mario Cravo Neto e J. R. Duran, além de ser o único do país autorizado a manipular os originais do etnólogo e fotógrafo francês Pierre Verger.
Logo que chegou a São Paulo, em 79, Silvio passou a frequentar os lugares onde rolavam apresentações musicais. A insistência em registrá-los todos os dias fez com que passasse a ser reconhecido pelos artistas, como Gilberto Gil, Caetano Veloso, Itamar Assumpção, Egberto Gismonti e Hermeto Pascoal. Aí surgiu o conceito dos malditos. Músicos com os quais se identificava muito, e que obviamente, sempre considerou acima de tudo benditos. O termo foi cunhado por achá-los verdadeiros e por não se encaixarem no esquema comercial. 'Não sei nem se eles gostam desse termo', observa.
Raul Seixas e o guitarrista Lanny Gordin moravam em São Paulo. Já Jards Macalé e Jorge Mautner vinham da cidade do Rio de Janeiro para se apresentar. Luiz Melodia (um dos caras mais cariocas que conheceu) também, mas com menor frequência. Assim, foi normal que a convivência com alguns ultrapassasse a fronteira fotógrafo-fotografado. Considera Jorge Mautner e Jards Macalé como amigos. Lanny é um cara que vê até os dias de hoje. Com Raul, teve uma relação, em suas palavras, muito bacana. 'O Lanny é um maluco, o Jorge é um maluco, o Jards até talvez seja uma pessoa mais centrada hoje, mas não deixa de ser maluco'. Para Silvio essa convivência lhe transmitia uma coisa muito boa.
Capa de revista
Nessa época, Raul Seixas já era um mito. Apaixonado por sua música, Pinhati logo concluiu que a primeira pessoa que deveria fotografar era ele. E assim foi, ano após ano, show após show, até que um caso inusitado o aproximou do ídolo. Ao ir a uma passagem de som com o intuito de conseguir se credenciar para poder fotografar determinado show, Silvio, que estava meio duro na época, deixou para comprar os filmes em cima da hora, antes de chegar no local do evento. Acabou se atrasando e partiu sem filme mesmo, só com a câmera. Lá, durante uma pausa, Raul Seixas saiu do palco para atender a imprensa causando grande alvoroço, com todos fotografando ao mesmo tempo. Sem filme, Sílvio ficou parado, só observando, com a máquina pendurada no pescoço. 'Não é que acabei atraindo a atenção do cara? Foi o máximo, ele me chamou e disse que queria ser meu amigo. Ele nunca soube que naquele dia não o fotografei simplesmente porque estava sem filme. Mas o Raul é uma pessoa... O que dizer dele? Basta ouvir sua música.'
Nessa fase, o corpo de Raul Seixas já dava sinais de que os arroubos cometidos nos anos anteriores estavam cobrando a conta. Em alguns shows, as pessoas achavam que não se tratava dele, que era algum sósia em seu lugar. Quase foi linchado numa apresentação no interior de São Paulo. 'O que eu saquei na época era que o Raul fazia um teatro ali. Ele não tava tão doido, tão doente quanto parecia. Acho que no fundo era uma pessoa sempre muito consciente de tudo. Nessa loucura toda, não sei se ele estava tomando remédio, não sei que porra que estava acontecendo que fazia com que ele não conseguisse tocar, cantar as músicas. Não lembrava da letra, não conseguia fazer os acordes.' Havia uma pressão das pessoas mais próximas, provavelmente da mulher (Kika Seixas) e dos demais integrantes da banda para tentar domá-lo, acalmá-lo, tentando curar algo que não tinha cura, para qual não existia remédio. 'Afinal, o cara era o maluco beleza', diz Sílvio, encerrando o assunto.
Das histórias do convívio com os malditos, Jorge Mautner é um dos campeões. A mistura de excentricidade com bagagem cultural tornava-o capaz de fazer coisas como pegar o violino e tocar de ouvido os hinos nacionais de pelo menos 30 países. Em certa ocasião, ficou hospedado na casa do fotógrafo na mesma época em que escrevia um de seus livros. No meio da noite, bateu na porta do quarto de Pinhati dizendo que queria fazer umas fotos, e para montar o cenário revirou a casa toda.
Itamar Assumpção
Outro que deixa saudades é Itamar Assumpção, falecido em 2003. 'Foi uma pessoa que infelizmente só fotografei uma vez', lamenta Silvio. Aconteceu durante uma apresentação num colégio em São Paulo, quando eu estava começando a fotografar. Ao chegar no local da apresentação, Sívio perguntou ao produtor se poderia fotografar, pois tinha a ideia de fazer um livro um dia. Foi devidamente autorizado. Mas havia uma combinação na qual, durante o show, Itamar iria brigar com um fotógrafo. 'Como eu apareci lá na hora eles pá, me pegaram de gaiato. 'Chegou o otário, aí, vai ser esse mesmo!' Começa a apresentação e  Pinhati inicia seus cliques. Logo Itamar passou a interromper as músicas e falar para o fotógrafo que iria descer e dar umas porradas nele. Voltava a cantar e Sílvio recomeçava a fotografar. E dá-lhe esporro. 'Foi assim umas três, quatro vezes, até que mandei ele ele se foder, peguei minha máquina e fui saindo.' Nesse momento Itamar Assumpção  revelou que tudo estava combinado, que era uma brincadeira e que poderia fotografar à vontade. Ainda muito nervoso, Sívio não conseguiu fotografar mais nada."

(continua)



sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

Nara Leão - Eterna Musa (2ª Parte)

" Ao contrário do que pregava a letra da canção, o lobo Bôscoli não estava assim tão amarrado, apesar do noivado com Nara depois de quatro anos de namoro. Nessa época, 1961, Bôscoli fora excursionar pela Argentina, Chile e Uruguai na condição de diretor dos shows que a cantora Maysa  faria nesses países. Bôscoli e Maysa tiveram um caso durante a turnê e, na volta ao Brasil, ainda no aeroporto, Maysa anunciou à imprensa que iria se casar com Bôscoli - para inteira surpresa deste.
Nara soube da notícia pelos jornais e ficou esperando o desmentido que nunca veio. Bôscoli sumiu alguns dias na esperança que a história morresse. Depois procurou a ex-noiva, que se recusava a atendê-lo. Amigos comuns intercederam, mas ela permaneceu irredutível. Até que Bôscoli ligou para o apartamento do Champs-Elysées e conseguiu falar com Nara, ou melhor, tentou:
- Nara, aqui quem fala é Ronaldo Bôscoli.
- Quem é Ronaldo Bôscoli?, ela devolveu, desligando o aparelho, deixando o ex-namorado pendurado na linha completamente desconcertado.
Só a própria Nara poderia dizer o quanto doloroso foi o rompimento. Coincidência ou não, a partir daí sua carreira começou a deslanchar. Ela se reaproximou de Carlinhos Lyra, que havia rachado com a turma do apartamento. Lyra ajudara a criar o Centro Popular de Cultura (CPC), na praia do Flamengo, e vinha compondo músicas que falavam de pobreza, injustiça social e que batiam de frente com a temática sol, mar e barquinho dos ex-companheiros. Nara estrelou a comédia Pobre Menina Rica, de Vinícius e Carlinhos Lyra, e começou a namorar o cineasta Ruy Guerra, também ligado ao CPC. A surpresa veio com o lançamento do seu primeiro LP, em 1963. Nara, gravado pela Elenco, trazia compositores do morro como Cartola e Nelson Cavaquinho, os primeiros afro-sambas de Baden Powell e Vinicius e nada do que era considerado tipicamente Bossa-Nova - logo ela, musa do movimento.
No ano seguinte, ela gravaria o disco Opinião de Nara, que daria origem ao show Opinião. O país já estava sob o tacão dos militares. Eles não gostaram nada de ver pregação esquerdista do musical, em que Nara dividia a cena com os cantores João do Vale e Zé Kéti. Gostaram menos ainda quando Nara começou a expressar suas opiniões em uma série de entrevistas. Na mais famosa delas, ao Diário de Notícias, pedia o fim das Forças Armadas 'que não servem pra nada mesmo, como foi constatado na última revolução'.
Nara e João do Vale no espetáculo Opinião
A repercussão foi tamanha, que o assunto nacional passou a ser o provável processo que Nara sofreria dos militares. Muitos saíram na defesa preventiva da cantora. Entre eles o poeta Carlos Drummond de Andrade, que publicou no Correio da Manhã um poema-carta de 17 estrofes - com rima e tudo - endereçado ao general-presidente Castelo Branco. Começava assim:
Meu honrado marechal,/ Dirigente da nação, / Venho fazer-lhe um apelo: Não prenda Nara Leão (...) 
Nara não foi presa nem sofreu processo. Não seria preciso. Nos anos que se seguiram o ar ficaria irrespirável por aqui. A ponto de, numa entrevista em 1969, ao semanário Pasquim, dar por encerrada a carreira artística. Ela tinha 27 anos. 'No momento não há condições de trabalho, não há estímulo, não dá vontade de cantar.' Pouco depois, ela e o marido, o cineasta Cacá Diegues, se auto-exilaram em Paris. Foi na capital francesa, que nasceu a filha, Isabel, e que ela retomou o prazer de tocar e cantar. Ali gravou as bases do disco que celebrou sua volta à Bossa Nova e ao convívio do grande amigo Roberto Menescal. No Brasil, como diretor artístico da gravadora Philips, Menescal comandou a produção do LP duplo Dez Anos Depois, que trazia 24 clássicos da Bossa Nova.
Na metade de 1979, Nara estava tomando banho quando sentiu uma forte tontura e apagou. Parecia que havia sofrido um derrame, mas não era certeza. Recuperou-se, mas passou a conviver com dores de cabeça fortíssimas, tonturas, desmaios e períodos em que não enxergava. Os médicos não conseguiam descobrir a origem do problema. Eram os primeiros sinais de um tumor benigno no cérebro, que levaria tempo até ser diagnosticado. Mais uma vez, Nara mostrou a grande mulher que era. Continuou trabalhando, gravando discos, fazendo shows, enfrentando a doença. Foi uma batalha de 10 anos. Ela dava os retoques num disco só com standards da música americana - My Foolish Hart, lançado postumamente -, quando o tumor saiu de controle. Foi internada na clínica São José, no Rio, no dia 19 de maio, entrou em coma no dia 24 e morreu em 7 de junho de 1989, ao meio-dia. "

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

Nara Leão - Eterna Musa (1ª Parte)

Nara Leão foi uma figura ímpar dentro da MPB. Um dos principais nomes da Bossa Nova - dizem que o movimento surgiu em reuniões musicais no apartamento de seus pais em Copacabana - Nara não se limitou a participar somente daquele movimento musical que ganharia o mundo. Ainda no auge da Bossa Nova, Nara já buscava novas formas de se expressar musicalmente, e seu primeiro disco trazia composições de nomes mais identificados com as raízes do samba e da música de protesto. Ao longo de sua carreira Nara flertou com diversas outras manifestações musicais, sem contudo abandonar a Bossa Nova.
Em 2008, quando se comemorava os 50 anos do surgimento da Bossa Nova, a revista Contigo lançou uma caprichada edição especial sobre o movimento, com ótimos textos, mais de 70 fotos e um CD trazendo uma coletânea das principais gravações da Bossa Nova. Entre os artistas que ganharam uma resenha nesse volume especial, Nara não podia ficar de fora, e a ela foi dedicado um ensaio intitulado "Um leão chamado Nara", cuja primeira parte reproduzo abaixo:
"Seria uma tremenda injustiça Nara Leão ser lembrada somente como a dona dos joelhos mais cobiçados da Bossa Nova. O que lhe garantiu o título de musa do movimento. Natural que naqueles tempos pré-minissaia, a exibição de seu roliço par de atributos mexesse com a libido da rapaziada reunida no famoso apartamento da família Leão para fazer música. Eram, afinal, rapazes no vigor dos 18, 20 anos. Nara foi musa do movimento, sim, mas foi muito além. Inspirou a Bossa Nova e depois pareceu dinamitá-la, peitou os os militares numa época em que isso significava suicídio e, quando parecia que a Bossa Nova tinha se transformado numa lembrança na parede, retomou suas canções e brindou os ouvintes com gravações antológicas. Em resumo, Nara foi uma grande mulher.
Quem desse uma espiada na adolescente, porém, jamais imaginaria tamanha transformação. Aos 14 anos, em vez do sobrenome, a personalidade de Nara inspirava outros bichos, traduzidos nos apelidos pelos quais era tratada em casa: 'Jacarezinho do Pântano' e 'Caramujo'. A seu favor, diga-se: não era fácil viver à sombra da esfuziante irmã mais velha, Danuza Leão, em quase todo o seu avesso. Danuza era linda, chique, famosa e só namorava homens idem. A timidez de Nara beirava o patológico. O violão lhe salvava duplamente. Podia se esconder atrás dele e o instrumento lhe abria novos horizontes. O primeiro foi  presente do pai. Começou a ter aula aos 12 anos com Patrício Teixeira, cantor, instrumentista e compositor de Pixinguinha em diversos conjuntos.
A música entraria em sua vida graças a um vizinho de Copacabana, Roberto Menescal, com quem chegou a namorar. Menescal tinha uma academia de violão e uma turma que adorava tocar. Logo estavam todos espalhados pelo chão da sala do apartamento de Nara, o número 303 do edifício Champs-Elysées, bem em frente ao Posto 4. Os 90 metros quadrados da sala pareciam um latifúndio comparado ao palco das boates que muitos ali iriam enfrentar logo mais. Os garotos eram bem-vindos e bem tratados pelos pais liberais da anfitriã, a professora Tinoka e o advogado Jairo Leão. Numa entrevista, a cantora lembrou do clima reinante: 'Todo mundo ia à minha casa. O João (Gilberto), o Tom, o Vinícius, o Carlinhos Lyra, a Silvinha Telles, o Menescal. Era um apartamento amplo, na Avenida Atlântica, entre Santa Clara e Constante Ramos. Meu pai ficava jogando pôquer com o Millôr Fernandes, o Leon Eliachar e outros, enquanto a gente ficava cantando e tocando violão. De manhã, ele saía pra trabalhar, dava um oi pra todo mundo e a reunião continuava. De vez em quando, eu fazia uma macarronada para o pessoal comer'.
Na lista dos frequentadores ela omite uma das figuras centrais daquelas reuniões e de toda Bossa Nova: Ronaldo Bôscoli. É compreensível. Trazido por Menescal ao famoso apartamento da Avenida Atlântica, Bôscoli se encantou com Nara e a conquistou. ele tinha 28 anos, ela 15. Algumas canções da Bossa Nova com letra de Bôscoli foram inspiradas em seu romance com Nara. A mais explícita delas, Lobo Bobo, dizia: 'O lobo mau se derreteu/Pra você ver que lobo/Também faz papel de bobo/Só posso lhe dizer/Chapeuzinho agora traz/Um lobo na coleira'.

(continua)


terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

Jorge Ben Jor - Revista Vogue (1994)

Em 1994, a revista Vogue trazia uma edição especial em homenagem a Jorge Ben Jor. Em uma edição caprichada, com muitas fotos e depoimentos, a revista mostra várias facetas da carreira desse grande compositor e músico. Entre as muitas matérias, há uma que traz curiosidades a respeito de vários assuntos, como explicações sobre algumas de suas letras, que sempre trazem citações, ou trechos de entrevistas, que trazem revelações interessantes, como as transcritas abaixo:
"Como entrar no palco
Num desses momentos de descontração, apenas dez anos depois de ter iniciado, de modo fulminante, sua carreira, Jorge confessava a Silvio Di Nardo: 'Gostaria de ser apenas compositor, deixar de ser cantor. Mas sei que isto, tão cedo, não será possível. Quando me apresentava no Fino da Bossa e no Jovem Guarda , na Record, aprendi muito da vida. Como entrar, ficar e sair de um palco. Mas a lição mais importante foi aprender com quem ficar. Na vida musical é preciso, sempre, ir com muito cuidado. Existe muito lobo querendo engolir você. Mas graças a Deus estou resistindo bem'.
Tão bem que, vinte anos depois, á a maior explosão da MPB.

Modernizando o samba
Ao lançar seu vigésimo-primeiro disco, Benjor, Mario Cesar Carvalho assim definiu Jorge: 'Em 1964 com Sacudin, ele eletrificou o samba, inventando um ritmo próprio. Agora, ele traz os ritmos mundiais pra sua praia sonora, criando sua própria world music. É o único brasileiro residente aqui que conseguiu modernizar o samba'.

Tropicália e musas
Numa bela entrevista a Roberto Comodo, no início do ano, Jorge Ben Jor concordou que 'a minha musa sempre foi a mulher. E  as coisas doces e o futebol, que era uma coisa vista como como meio alienada pelas pessoas de minha geração. Elas gostavam, mas queriam uma coisa mais direta, uma música de protesto. Fiz parte da Tropicália, mas fui aceito pelo meu estilo de música, pela minha  filosofia urbana e suburbana. E  as crianças sempre gostaram. E agora eu acho que esta juventude cresceu ouvindo meus discos que estavam nas estantes dos pais e dos tios. Vejo isso nos shows que fiz em 92, nas faculdades todas do Rio, para a garotada'.

Enlouquecendo Paris
Quando Jean-Louis Barraut, o maior ator e diretor do teatro francês, foi convidado, em 1972, para organizar o show para a Exposição do Parc de la Defense, ele exigiu uma escola de samba brasileira e um cantor, Jorge, ainda Ben. Sabia o que fazia. Na noite de estreia, quando Jorge acabou de cantar, cinco mil convidados levantaram-se para aplaudir. Mais do que isso, aos poucos eles começaram a subir no palco. Era a elite parisiense contagiada pelo samba e pela batida de Jorge. Socialites misturavam-se aos passistas, no que foi descrito como um 'frenesi sem igual'. É uma festa que deveria terminar às 10 da noite só acabou às 3 da manhã.
Competição de decibéis
Alberto Dines, em 1979, ao comparar dois monstros da música popular, Cartola e Jorge Ben, assim definiu este: 'Jorge encontrou uma fórmula, um esquema, um meio. Mas não precisou procurar muito - estava nela. O volume ensurdecedor do seu instrumental não o incomodava, nem a sua plateia. Ele é como o dono daquele fusca, cujo cano de escape aberto e o aparelho de som no último volume não perturbam ninguém. A competição e a comunicação entre esses dois neomotorizados são feitas pelos decibéis. Jorge Ben Jor é a autenticidade e a pureza do samba. Ele está para a música popular como a Beija-Flor para as escolas de samba tradicionais'.

Cortar palavras
A separação de sílabas, a fragmentação das palavras, as frases incompletas são características que marcam fortemente Ben Jor. Além destas bossas, ele tem o costume de, na hora da gravação inventar uma palavra e colocar no meio da frase. Uma palavra cujo significado só Jorge sabe e que, mais tarde, acaba decodificada. Ele um dia revelou: 'A separação das sílabas surgiu por acaso em um show maravilhoso que eu mais Paulinho da Viola, Toquinho, Araci de Almeida, Trio Luís Melo e Trio Mocotó fizemos em São Paulo, no Teatro Cacilda Becker. Só os amigos viram  este show, mas para mim foi dos mais importantes. Uma noite, eu estava tão à vontade com o público que comecei a improvisar. Cortava a música toda. O pessoal gostou muito da ideia. Tudo surgiu assim, de repente, sem estudo.
Os alquimistas
' A minha filosofia é a do bem-estar, que procuro sempre, segundo o ditado dos alquimistas: 'Não conviver longe dos homens, mas morar longe dos homens que podem te prejudicar'. A minha filosofia é musical e através da música estou ligado à alquimia. É uma contribuição feita com consciência, nunca esquecendo que a alquimia é uma 'ciência com consciência' '.
A ótima repórter Miriam Alencar foi numa das primeiras jornalistas a extrair de Jorge certas revelações importantíssimas. Como: ' Comecei, ainda garoto, a ler, por curiosidade, os livros do meu avô que era rosa-cruz. Lia em francês e latim. Ao mesmo tempo, comecei a descobrir porque gostava tanto de vitrais. Era ali, nos vitrais das famosas igrejas da Idade Média, que os alquimistas colocavam suas fórmulas mágicas, representadas por desenhos. Foi na Europa que eu pude me aprofundar mais, não só por ter mais tempo, como também porque lá se encontram grandes alquimistas e os melhores livros. Passei a procurar os locais certos, como a casa onde viveu Nicolas Flamel, alquimista que viveu no século XV. É na Rue Morancy e tem uma placa relembrando o fato. Tem também a Torre de Saint-Jacques, que ninguém até hoje soube explicar a construção'.
Deste encontro é que nasceu um de seus discos mais singulares, o Tábua de Esmeraldas. "


quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

Caetano Veloso fala sobre o show de Chico Buarque e Maria Bathania em 1975 (2ª Parte)

"Quando nos reunimos na casa de Chico para bolar um espetáculo para o Canecão - Osvaldo Loureiro, Rui Guerra, Chico e eu - várias perguntas surgiram e todas procuravam um sentido ou uma justificativa para que Bethania e Chico se apresentassem juntos no Canecão. Quando eu disse que haveria milhões de razões para explicar isso e que eu, de minha parte, só podia dizer duas (1º: o fato de ser uma boa grana para os dois e 2º: o fato de Bethania ser de Gêmeos e de Chico ser de Gêmeos e do show estar programado para estrear em Gêmeos), isso não causou nenhum mal estar na sala.
Quando eu lembrei que eu era de Leão e Rui Guerra era de Leão, isso animou a sala. Mas Chico lembrou que tanto ele quanto Bethania estavam completando 10 anos de carreira profissional. Aí Rui Guerra falou em História e poesia e aí ele teve muitas ideias e Osvaldo decidiu coisas como transformar o Canecão em arena ou circo e botar passistas de escolas de samba. Osvaldo representava o Canecão porque o Canecão é que tinha sugerido o nome dele. Eu achei ele legal de cara e achei que ele era de Leão. Rui Guerra é muito bacana, muito apaixonado. Mas foi Chico que pegou um papel e uma caneta e armou um show. Já estava amanhecendo e Chico disse muito claramente o que queria cantar e perguntou o que Bethania queria cantar e eu só sabia que ela queria coisa nova do Chico e 'Foi Assim' de Lupicínio. Bethania estava em São Paulo representando a Cena Muda. Quando o show de Chico Buarque e Maria Bethania ia estrear, Gil esteve aqui no Rio e foi comigo ver o ensaio geral. Entre a noite daquela reunião na casa de Chico e essa noite do ensaio geral eu não sei o que se passou porque eu não acompanhei os trabalhos. Daí meu susto ao ler meu nome entre os créditos do show. Mas, vendo o ensaio, Gil e eu ficamos deslumbrados como diante de uma pedra muito grande como aquelas que ficam perto de Milagres. Bethania estava cantando com orquestra com desenvoltura, sem direção de Fauzi Arap, sem bom teatro, 'Sem Açúcar', lançada pelos astros e pelo dinheiro na verdadeira verdade da sua profissão. Chico estava lindo, sempre cantando sozinho a fluência de suas rimas, 'Flor da Idade', e Gil me disse encantado: 'que barato é a gente morar na Bahia e vir ao Rio de vez em quando porque a gente vê tão claramente'. Chico sempre sozinho, 'Gota D'Água', os seus olhos transparentes. Eu pensei em pedir para tirar meu nome da porta porque ali não tinha nada da minha 'autoria', mas depois me entreguei a Deus pensando lucidamente que ali não havia nada que fosse de autoria de ninguém. Quando o show estreou, Bethania estava achando ruim  a declaração de Rui Guerra no jornal, porque ali ele aparentemente tentava se desresponsabilizar do que quer que viesse a ser o show e deixava a 'culpa' escorregar para a escolha do repertório dela. O Canecão estava cheio de 'Rio de Janeiro', acho que nunca houve tanto 'Rio de Janeiro' no Canecão antes. Muita atenção para as aspas. O Acaso foi impiedoso: o 'desamparo' em que Chico e Berré foram lançados chegou até à falta de som e o 'Rio de Janeiro' presente se viu diante de um pobre rico palco giratório, uns ladrõezinhos estilizados, um arremedo de escola de samba e a evidência de Bethania cantando 'Gita' (sob uma evocação que não parece ter partido da mesma plateia que reclamava quando o show terminou) quando o show terminou Rui Guerra me deu um beijo e ele estava alegre e éramos dois leões numa alegria acima do ego, sem autoria.
Eu amo ver esse show. Amei na estreia e tenho assistido várias vezes. Acho que é porque é uma transa sem ego, digo, sem inteligência, digo, sem graça, digo, com alguma sabedoria. Sobre ego: há anos que eu penso em tentar fazer com Chico umas versões de canções de Bob Dylan pra Bethania cantar. Com Chico porque ele também é de Gêmeos como Bob Dylan e Bethania, e eu acho que ele escreve num ritmo parecido com o de Bob Dylan, deve ser por causa do signo. Vendo Bethania cantar 'Gita' eu senti que ela estava realizando por outros caminhos esse sonho meu. Um dos lances de Raul Seixas é ser uma tradução de Bob Dylan. Eu perguntei a Bethania de quem tinha sido a ideia e ela me disse: 'de Fauzi', Que lindo que também Fauzi esteja presente e ausente nisso na medida em que Rui, eu e Osvaldo estamos para que a luz pinte. Alguma luz.
Sobre sabedoria: o que Francisco fala com os pasarinhos não pode ser traduzido para a inteligência que fala sobre Francisco."

terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

Caetano Veloso fala sobre o show de Chico Buarque e Maria Bathania em 1975 (1ª Parte)

Em 1975 Chico Buarque e Maria Bethania fizeram uma temporada de shows de muito sucesso no Canecão, no Rio, e que acabou, inclusive, sendo transformado em um disco ao vivo, de também muito sucesso. Na ocasião, Caetano Veloso escreveu sobre esse encontro na revista Música do Planeta Terra nº 1:
"Os mais velhos nada me contaram sobre como talvez Oxalá tenha dirigido o destino de minha gente pelo lado branco. Maria Bethânia é a brecha aberta pelo raio de Iansã, através da qual nós entramos em contato com o lado vermelho. Hoje em dia todos sabemos que sem esse acontecimento nós não seríamos capazes de vislumbrar o que significa a existência de Olorum porque não estaríamos caminhando com a dificuldade necessária para sentir as forças reais que dançam sobre esse planeta. assim é essa estória contada do modo certo, mas o surgimento de Maria Bethânia entre nós já era uma presença vermelha entre nós antes do tempo do seu surgimento no tempo porque a gente intui que tudo se repete sempre e sempre está sempre se repetindo no amor de Olorum, assim é essa estória do surgimento de Maria Bethania entre nós como uma luz vermelha se repetindo no amor de Olorum.
Quando André Midani, chefe da empresa gravadora onde eu trabalho, me falou para trabalhar um espetáculo para Chico Buarque e Maria Bathania, eu aceitei sem medo, sem planos, sem euforia, sem psicanálise, sem julgamento. Quando Chico me disse que a gente já tinha falado nisso antes, eu lembrei da Bahia e de Rony e disse que sim que a gente já havia falado nisso. Quando pensei no espetáculo, decidi que ele abriria com o 'Sinal Fechado' e fecharia com uma música a ser composta por Chico e por mim, tendo como tema a serena e brutal alegria de poder que coisas como Chico e Bethania estarem aí repetidamente surgindo eram incuráveis, invencíveis, indestrutíveis. Quando pedi a Chico para cantar 'Quem te viu, quem te vê' ele entendeu a achou bonito. Quando pedi a Chico para cantar 'Carolina' ele se recusou e eu entendi e achei muito bonito.
Quando o Canecão fez a proposta a Bethania e Chico, eles aceitaram a proposta do Canecão, eu apaguei todas as ideias de espetáculo que eu tinha na cabeça e no coração e tudo o que eu já contei antes, mas continuei religiosamente aceitando o que eu já não sabia o que era. Quando fui ao Canecão para ver o local e o público, Dedé estava comigo e estávamos os dois sozinhos e era a última apresentação do espetáculo 'Brasileiro, Profissão Esperança' e Olga do Alakêtu estava lá e eu senti a severidade do olhar de  Iansã quando ela respondeu secamente ao cumprimento que eu tentei lhe dirigir num tom demasiadamente carinhoso para as poucas relações que eu tenho com ela - que beleza!  que majestade! que força de sinceridade tão profunda que me encheu de sabedoria sobre o que em psicanálise tanto se chama de aceitação das frustrações - e isso depois de ter visto emocionado o espetáculo 'Brasileiro, Profissão: Esperança' (vimos o espetáculo e não o local e o público, uma vez que o público era atento e silencioso e o local bem equipado: o Canecão não é um lugar onde gente barulhenta come e bebe enquanto um show tenta se dar, mas um feio edifício onde uma gente não muito bonita mas muito aplicada se dedica com enorme seriedade ao que se chama diversão, uma gente incrivelmente real, um lugar talvez demasiadamente real).
 Quando saímos do Canecão, eu e Dedé estávamos com dor de cabeça de tanto chorar, por causa do modo como a gente sentiu estranhamente o tempo, vendo esse avesso do Cassino da Urca, um Rio de Janeiro dos anos 50 (as canções tão lindas de Dolores Duran e Maria - que Deus os tenha em bom lugar) apresentando à moda dos 60 (opiniosamente) por e para um Rio de Janeiro demasiadamente real (um impressionante Paulo Gracindo da Rádio Nacional à TV Globo, uma linda Clara Nunes da Rádio Globo, um público como paulistas olhando para o Rio, uns filmes lindíssimos de surfistas do Arpoador)."

(continua)

sábado, 6 de fevereiro de 2016

Yoko Ono Lança It's Alright (1983)

Yoko Ono sempre foi vista como uma espécie de vilã. Alguns fãs dos Beatles não a perdoam até hoje, por considerá-la a principal responsável pela separação dos Beatles. Na verdade poucos a levam a sério como cantora, função, aliás, que com certeza ela nunca teria exercido, não fosse seu envolvimento com John Lennon. Era até de se esperar que após a morte de Lennon, sua carreira musical fosse sepultada junto com ele, mas a verdade é que Yoko não desistiu de continuar gravando e lançando discos. E assim foi com It's Alright, álbum que ela lançou em 1983, que recebeu uma resenha do jornalista José Emílio Rondeau, publicada na revista Pipoca Moderna nº 4 (março de 1983). O texto tem por título "Yoko desperta de seu pesadelo", e é reproduzido abaixo:
"Yoko sempre foi muitas coisas para muitas pessoas - uma bruxa insidiosa que dinamitou os Beatles e tirou John Lennon do mundo; uma pretensiosa de língua solta, espaçosa o suficiente para capitalizar a fama do marido; uma herege que se atreveu a enfeitar a capa de um de seus discos com os óculos ensanguentados de John. Mas só agora, 15 anos depois de de ter-se unido a Lennon, Yoko consegue começar a ser vista como sempre quis, ou como sempre deveria: mulher e artista.
Não que tivesse sido fácil digerir sua discografia anterior a 1980, quando Double Fantasy catapultou-a ao segmento mais popular do mercado fonográfico e à adoração dos críticos. Sua obra musical jamais fora chamada de música; popular, menos ainda. Invariavelmente seus discos eram reduzidos, nas críticas e na boca do povo, a 'guinchos insuportáveis', 'devaneios auto-indulgentes' ou coisa pior. E o único a se importar com essa saraivada de xingamentos sempre foi John. Yoko nunca pretendera o apelo popular, queria fazer Arte.
Mas se Double Fantasy representou uma guinada radical na carreira fonográfica de Yoko - nele surgiriam canções acabadas, pop, facilmente reconhecíveis, bem trabalhadas - Season of Glass, o álbum seguinte, confirmou a capacidade de Yoko ser uma artista popular bastante bem dotada. De bruxa malvada, Yoko passou a inovadora do rock'n roll. Ela mostrava-se, enfim, uma visionária utópica, mas talentosíssima compositora.
A capa de It's Alright
It's Alright não chega a ser uma  obra-prima pop. Mas está bem perto disso. Em todo os aspectos - seja pela instrumentação bem dosada e soberbamente contemporânea, seja pela simplicidade honesta e contundente das letras, seja por seu irresistível ritmo - esse é seu melhor disco. E nele Yoko acopla o pique de 'Walking On Thin Ice' e transforma a raiva, a ira cega desta faixa numa reflexão mais serena sobre o estado de solidão. It's Alright é de um otimismo a toda prova, uma talvez não tão inesperada profissão-de-fé na humanidade e nos ideais em que Yoko e John sempre acreditaram: paz, compreensão, ajuda mútua.
O otimismo está em toda a parte, no álbum, a partir dos títulos - 'Está Tudo Bem', 'Deixe as Lágrimas Secar', 'Sonhe o Amor' - até a faixa final, 'I See Rainbows' ('não quero ser terrorista/ não quero saber dessa história de holocausto limitado/ esse é o nosso mundo e ele é lindo/ eu quero sobreviver junto'). Yoko dá a impressão de que, aos poucos, mas resoluta, ela se afasta do fantasma da dor primeira da perda de John e da resignação e da vingança com que se atirava à viuvez. Ela aceita, agora, a ausência de John e quer, mais do que nunca, sobreviver inteira a seu holocausto particular. Talvez John não quisesse que fosse diferente.
Curiosa, porém, é a maneira como ela se refere a John, ou a 'meu homem, o melhor do mundo'. Por vezes, ela fala como se ele estivesse ali, presente não só em espírito, mas também em corpo ('My Man' é o exemplo típico). Outras vezes, Yoko despede-se de John, aceitando sua transformação num 'grão de poeira que flutua sem parar entre um trilhão de estrelas' ('Spec Dust'). As feridas são profundas, ainda: 'existem muitas coisas na vida que eu posso suportar/ pobreza... praticamente tudo/ mas solidão é algo que eu não posso suportar', diz ela em 'Loneliness'.
Yoko, Lennon e Julian, em 1969
Mas a intenção básica de It's Alright é a volta por cima, o renascimento, a recuperação dos sentidos. Por isso, o disco abole a melancolia dos álbuns anteriores e mergulha num prenúncio de paz interior sem precedentes. Assim, Yoko se dá a invenções prazerosas. Dessa maneira, 'Wake Up' é a coisa mais próxima de um reggae japonês que se possa esperar e 'Tomorrow May Never Come', embora fatalista ('o ontem nos assombrar para sempre/ o hoje pode decorrer no medo/ o amanhã pode nunca vir'), é quase uma homenagem aos grupos vocais femininos dos anos 50, tipo Ronettes.
Ver uma mulher como Yoko Ono, que passou o que ela passou, levantar-se com tanta disposição, acreditando, mais do que nunca, 'no poder de sonharmos juntos', já bastante estimulante. E as músicas de It's Alright dão a pista para um dos talentos a serem observados nesses anos por vir. Afinal, em seus bem vividos 50 anos, Yoko é uma artista jovem e seu casamento com o rock'n roll para as massas acabou de começar. Ela não é mais - se algum dia foi - a 'viúva alegre' de John Lennon. Como ele, ela é agora uma mulher do mundo. Benvinda."

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016

O Cinquentenário de Caetano Veloso - Jornal do Brasil - 1992 (2ª Parte)

" Um tímido, na opinião dos outros sete irmãos, assustou-se com a badalação nacional e viajou para fora do Brasil. O espanto com  as dimensões dos 50 anos contagiou os amigos mais próximos, como o poeta Waly Salomão. 'Meu Deus, querem santificar o Caetano! Desse jeito, a canonização dele sairá antes do que a da Irmã Dulce', professou Waly, fazendo Maria Bethânia dar risadas iguais à da  irmã Irene, homenageada por Caetano na canção Irene.
A romaria de músicos e amigos beira a idolatria. Afinal, as canções de Caetano Veloso fizeram muitos dos mais jovens se decidirem pelo caminho musical. Um exemplo confesso é o compositor Djavan. 'Tudo o que ele fazia me chocava. Eu ouvia Coração Vagabundo, aquela poesia tão precisa e tão doce. Baby, eu adorava, e mesmo Alegria, Alegria. Eu já disse isso a ele. Foram Caetano, Chico Buarque e Milton Nascimento os responsáveis por eu ter me tornado um músico', diz. Para Djavan, 'Caetano é um cavalo', diz. Não o cavalo do Candomblé, no qual montam os espíritos de outro mundo. 'Ele é o cavalo do Brasil. O cavalo, além de ser um belo animal, conduz o homem. Ele não tem feito outra coisa. Caetano conduz o Brasil', explica. Hoje, Djavan apresenta, no Rio Show Festival, no Rio Centro, uma de suas parcerias com o amigo, Linha do Equador.
Caetano Veloso não escapará, porém, da festa, desde hoje à sua espera em Santo Amaro da Purificação. ele avisou a dona Canô que chegará à Bahia na segunda-feira, quando certamente cantará o dueto preferido de mãe e filho: No Tabuleiro  da Baiana, de Ary Barroso. 'Esta é a que a gente mais canta. Ele até já quis que eu gravasse com ele, mas eu não quis. Mas eu gosto de cantar muitas músicas dele. Gosto muito de Objeto não Identificado, Luz do Sol, de Leãozinho, de Você É Linda, de Trilhos Urbanos, de Onde Nasci Passa um Rio, de todas as que ele fez em Santo Amaro. A cabeça já não lembra tantas músicas. Como é aquela que o Roberto Carlos gravou? Ah, Força Estranha. Essa é muito forte', diz dona Canô, a voz-matriz do clã Veloso. A imprensa chegou a noticiar que ele poderia aterrissar hoje de surpresa na Bahia. 'Isso para mim é novidade', comenta dona Canô. 'Se ele viesse eu saberia', diz Rodrigo. 'Caetano vem para cantar com Gal, Gil e Bethânia na festa de Jorge Amado, dia 12, no Pelourinho. Será que ele vem de surpresa? Quem disse? Em todo caso, vou avisar à minha mãe', rebate a irmã Mabel.
As suas únicas mulheres, a atual Paula Lavigne e a ex-Dedé Veloso, têm em comum a ressaltar a integridade de Caetano Veloso, como ser humano e, portanto, como artista. 'O Caetano é íntegro. Ele faz no interior do país o mesmo show, com  a mesma sofisticação, que o que o apresenta no exterior', diz Paula. Dedé revela que passou estes dias pensando justamente na integridade do ex-marido. 'Os 50 anos me fazem lembrar de toda uma geração e também na integridade de Caetano. Como ele é íntegro! Ele é bom para o Brasil', comenta. Ela prefere não falar de Caetano Veloso. 'Tudo seria muito pouco. Porque o amor é muito.' "

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

O Cinquentenário de Caetano Veloso - Jornal do Brasil - 1992 (1ª Parte)

No dia 07/08/92 Caetano Veloso completou 50 anos. A data foi lembrada em vários órgãos de imprensa. O Jornal do Brasil trouxe uma bela matéria no Caderno B. Com o título de "Hoje é dia de São Caetano", a matéria-homenagem, que trazia muitas ilustrações, com fotos do compositor em várias fases de sua carreira,  é escrita pela jornalista Márcia Cezimbra:
"Hoje, 7 de agosto, dia de São Caetano no calendário católico, dona Canô Veloso cumprirá, religiosamente, um ritual de quase meio século. Vai à missa no Convento de Nossa Senhora dos Humildes, em Santo Amaro da Purificação. Desta vez, a motivação é especial: a celebração dos 50 anos de seu filho mais ilustre, o cantor, compositor, poeta e cineasta Caetano Veloso. 'Minha maior alegria é ver Caetano chegar a esta idade. Uns a gente não vê nem crescer, mas hoje, Caetano chega aos 50', diz dona Canô, a mãe que passou para os oito filhos, entre outros carinhos, o prazer de cantar. O Convento dos Humildes receberá ainda 'uma merenda' para os órfãos criados ali pelas freiras - outra prática que dona Canô faz questão de preservar desde que o autor de Alegria, Alegria completou um ano de idade. O homenageado não estará lá. Fugiu da efeméride para Nova York com a mulher, Paula Lavigne, e os dois filhos - Moreno, de 19 anos, e Zeca, de seis meses. 'Só vai mesmo à missa quem frequenta todo dia os Humildes, mas Caetano me disse que viria para os 80 anos de Jorge Amado', comenta dona Canô. Antes de embarcar para os Estados Unidos, Caetano agradeceu a série de homenagens que marcam seu aniversário em todo o país: 'Sou leonino. Gosto muito de saber que estão comemorando meus 50 anos.'
O 50º aniversário de Caetano Veloso revelará ao Brasil um lado até agora oculto do artista: o pintor de paisagens da Bahia - telas coloridas de igrejas, de casarios e de ruas coloniais. Ele, quem diria, era um pintor-menino, que, na década de 50, chegou a apresentar a sua obra numa mostra coletiva de Santo Amaro, ao lado do escultor Emanuel Araújo. Essas imagens da Bahia vieram antes, portanto, do dia em que Caetano foi embora tentar a vida como crítico de cinema em Salvador. Antes que a música e a poesia fizessem folia em sua vida. 'Caetano tem quadros lindos. Eu tenho os mais coloridos, os mais modernos. Tem um enorme, lindo, da Igreja do Amparo, que fica na rua da nossa casa, onde todos crescemos, a Rua do Amparo', conta Rodrigo Veloso, o irmão mais velho, de 57 anos, que aparece de samba no pé, ao som de Águas de Março, numa das cenas do último longa-metragem de Caetano, Cinema Falado. Estas telas estarão novamente em exposição, agora individual, como parte das homenagens promovidas, a partir do próximo dia 14, pela prefeitura de Santo Amaro da Purificação.
A festa ficou então fora da ordem. dia 14 de agosto é o aniversário de 52 anos de outro irmão mais velho, Roberto - que está na capa do LP Uns, de 1983, um dos preferidos do autor. Será Caetano Veloso, no entanto, o aniversariante oficial deste dia, com presença garantida nos eventos da prefeitura de Santo Amaro. Além da mostra de pintura, haverá uma exposição de tudo o que a família conseguiu reunir de Caetano: as roupas de todos os seus shows, fotos, troféus, livros e cadernos de infância. 'Caetano é fogo. Não guarda nada, mas a gente juntou o que pôde. Só não tem os brinquedos, porque criança pobre, do interior, brinca com lata, pau, arame', diz Rodrigo Veloso.
Alguns lançamentos ficaram fora da ordem da festa dos 50 anos de Caetano Veloso: os três livros sobre o artista previstos para este ano. Apenas a coletânea de entrevistas de Caetano Veloso, esse cara, organizado pelo crítico de música Héber Fonseca para a editora Revan - tem publicação marcada para o fim do mês. O ensaio biográfico Caetano, por que não?, dos professores Ivo Luchesi e Gilda Dieguez, está ainda no forno da editora Francisco Alves. O terceiro, um livro-surpresa de memórias de seus sete irmãos sobre sua infância, uma ideia de Rodrigo Veloso, não chegará, por enquanto, sequer a circular. 'Não deu tempo de organizar tudo. Foi o carnaval, foi o nascimento de Zeca e até o Caetano que não queria muita confusão no aniversário, explica Rodrigo.
 Nestas lembranças, uma estava na cabeça de todos os irmãos mais velhos - Rodrigo, Roberto, Clara Maria, Nicinha e Mabel (Bethânia e Irene vieram depois). O dia 7 de agosto de 1942, quando Caetano nasceu na casa do padrinho de Rodrigo, Joãozinho Cardoso, na Rua Direita, porque a da família Veloso, em frente, estava pintando, Caetano vestia vermelho e, na falta de um berço, dormia num bercinho de brinquedo, de uma das bonecas de Clara Maria. 'Este negócio de vestir bebê de vermelho é coisa de minha mãe. Ela gosta de cores alegres para crianças. Vermelho é sangue. É vida. Zeca, no segundo dia de nascido, já estava de vermelho. Foi presente dela', lembra outra irmã famosa, Maria Bethânia. A alternativa mais rápida - lançar as suas cartas de dois anos de exílio político em Londres, de 1970 a 1972 - também foi recusada pelo artista.

(continua)

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

João Gilberto Lança "João" - 1991 (2ª parte)

Nessa segunda parte, são transcritos o depoimento do jornalista Moysés Fucks, e uma resenha do disco, que não traz assinatura. Abaixo o texto do jornalista:
" Quando ouvi 'Eu Sambo Mesmo', a primeira faixa do novo disco de João Gilberto, pensei em trocar 'sambo' por 'canto'. A letra da música de Janet de Almeida ficaria assim: 'Há quem cante muito bem/ Há quem cante por gostar/ Há quem cante/ Por ver os outros cantar/ Mas eu não canto/ Para copiar ninguém/ Eu canto mesmo com vontade de cantar/ Por que no canto eu sinto o corpo remexer/ E é só no canto/ Que eu sinto prazer'.
Ficou perfeito. Ficou 'João Gilberto', que se deu até ao luxo de gravar composições pouco familiares a muitos ouvidos das mais variadas idades. Na realidade, esperava que João regravasse alguns clássicos da bossa nova com uma outra roupagem (bossa?) porque a bossa nova é João Gilberto e João Gilberto é bossa nova. E no entanto não encontro em 'João' nenhum dos hits que marcaram a bossa nova há 30 e poucos anos. Mas o mito pode se dar ao luxo de não gravar nada daquilo que se espera. Uns vão odiar, outros vão amar, mas é difícil alguém ouvir João Gilberto e dizer simplesmente 'é, gostei'. Nada de mais ou menos. Ou você ama ou você odeia.
Se você mostrar esse disco para quem nunca ouviu falar de João Gilberto - garotos de 15, 16 anos, a 'turma' do rock, do funk - certamente eles vão dizer: 'o que é isso, que ritmo é esse, quem é esse cantor?' Quer dizer, João Gilberto causa ainda a mesma sensação de estranheza que ele provocou há mais de 30 anos. As pessoas se mobilizam. É por isso que eu digo; 'João', o disco, é uma constatação. Ele é gênio, ele é diferente. Mas gostaria de ouvir agora aquilo que foi gravado em 78 rotações, como 'Chega de Saudade', do Tom Jobim e do Vinícius de Moraes, e 'Bim Bom'? Simples curiosidade de alguém que participou de certa forma do lançamento da bossa nova.
João Gilberto com o compositor Denis Brean
João continua intimista. E acima do bem e do mal. Ouvindo o disco, a gente se sente como se - dando um verdadeiro drible no tempo - estivesse na casa da Nara Leão (saudades, musa) sentadinho no chão, tomando cuba libre, ouvidos e olhos atentos. Ou, para ser mais atual, é como se você estivesse em Caracala, onde houve o encontro de Luciano Pavarotti, Placido Domingo e José Carrera. Você ouve a respiração, a batida do coração do João, tal a intensidade, a sinceridade artística que só os gênios conseguem transmitir. E como todo gênio é excêntrico, esse também é um disco excêntrico - no repertório. O trabalho homenageia alguns nomes da velha guarda da música popular brasileira, ao mesmo tempo em que inclui 'Sampa', de Caetano Veloso, um compositor cada vez mais atual. É um disco de homenagens, em que João Gilberto vai agradecendo não só às pessoas como às situações e aos lugares que fizeram dele um artista único. São Paulo é um deles. Embora a bossa nova tenha nascido na Zona Sul do Rio de Janeiro, João Gilberto estourou em São Paulo.
João consegue transformar canções tipo kitsh, como 'Que rest-t-il de nous amours', de Charles Trenet e Leon Chauliac, numa peça importante a até contemporânea. Ele puxa a música - gravada apenas na versão em CD - para a atualidade, através do talento, aliado à voz, ao ritmo e aos arranjos. Talento aí é sentimento. Todo mundo é um pouco kitsh e um pouco contemporâneo. Essa combinação se nota principalmente nas músicas estrangeiras, como a do Charles Trenet. Pena também que não tenha sido incluído no LP 'Sorriu pra Mim', de Garoto e Luiz Cláudio. A bossa nova deve muito à batida do violão de Garoto.
Fiquei com gosto de quero mais. E isso é bom. Com o disco em casa, João Gilberto pode ficar resfriado, afônico, indisposto, dizer que não vai cantar. Tudo bem. Com este 'João', o show está garantido."
Abaixo, a resenha do disco:
"Demorou quase um ano mas saiu. Parecia obra de igreja, cujos trabalhos se arrastam cuidadosa e lentamente. Sem a pressa que incomoda os mortais e com  a inspiração dos gênios, o novo disco de João Gilberto, intitulado apenas 'João', está finalmente pronto.
A aventura começou em maio do ano passado. Entre os dias 16 e 18, sempre à noite, João Gilberto cantou 12 músicas acompanhado apenas do violão Di Giorgio, no estúdio da PolyGram, na Barra da Tijuca. Em alguns casos, ele gravou a mesma canção em várias versões, takes diferentes, para escolher. Comenta-se nos bastidores que o samba 'Rosinha', de Jonas Silva, recebeu nada menos que sete registros; e 'Eu Sambo Mesmo', de Janet de Almeida, ganhou seis. Houve quem jurasse, como o Diretor Artístico Mayrton Bahia, que todos eles estavam perfeitos.
Mas João é obsessivamente perfeccionista. Acha defeito onde os outros não veem. Ele chamou o mesmo maestro americano Claire Fisher para fazer os arranjos, depois da recusa de Johnny Mandel e Claus Ogermann. Apesar do lançamento ter sido marcado para agosto passado, o disco só foi mixado no mês seguinte, em São Francisco, Califórnia (EUA). Depois de tanto folclore sobre a excentricidade do artista e os sucessivos adiamentos, 'João' vai estar ao alcance de todos a partir do dia 3 de abril, contendo dez canções em formato LP e cassete, e 12 em CD. "