Palavras Domesticadas

Palavras Domesticadas

domingo, 13 de julho de 2014

Luiz Melodia – Histórias de Minha Vida de Moleque

Publicado no “Jornal do Disco”, que vinha encartado na revista Som Três, nos anos 80. Depoimentos dados ao jornalista Antonio Carlos Miguel

“Eu fui um moleque de morro, essa foi a minha infância. A minha família até que tinha um certo conforto, se comparada com  a situação de outros barracos do São Carlos, mas eu cresci no meio da garotada. Curtindo o morro e os asfalto, passeava pelo bairro do Estácio, ia à praia no Calabouço, ali no Flamengo, e jogava futebol na ‘barreira’, um campo que tinha mais barro do que grama. E foi na adolescência que eu peguei o violão do seu Oswaldo Melodia, e acabei ficando com o instrumento e o apelido do velho”

“Eu aceito o lance das fãs e até gosto, mas o que eu não curto é aquele tumulto, aquela coisa pegajosa demais, tem horas que fica terrível. Mas eu sei que é o meu trabalho que causa isso, as fãs são uma conseqüência da luz que lanço no ar. Durante o Projeto Pixinguinha (com Zezé Mota e Marina) eu consegui mostrar pras pessoas, em muitas cidades, que eu não sou somente aquilo que elas imaginam, não sou só a imagem que deve ser consumida, mas um cara comum. Eu sou uma pessoa como as outras e tento mostrar esse meu lado a toda gente. Isso de eu estar em qualquer lugar, de me misturar ao povo, grila muitos amigos, eles dizem que assim eu vou acabar com o mistério, quebrar o encanto... Só que não estou nem aí pra isso, quero continuar curtindo a vida normalmente..”

Melodia com Zezé Mota, no Projeto Pixinguinha
“Quando conheci Salvador eu fiquei louco, desbundei com a cidade, me senti em casa, muito livre. É a cidade com o maior número de negros no Brasil, o lance todo da África bate muito forte. Aqui no Rio as diferenças são bem marcadas: é o morro ou a Zona Sul. É uma falsa moral, as meninas são mais arredias, é uma coisa muito mentirosa, muito tensa. Em Salvador não há esse problema, me sinto mais aberto. Então, é por isso que de vez em quando eu dou umas fugidas e me escondo por lá, fico em Itaparica bebendo água de coco...”

“A crítica sempre implicou comigo, nunca me aceitou como sou. No início eles queriam que eu fizesse samba, não entendiam como um moleque do morro de São Carlos fizesse aquele tipo estranho de música. A partir do segundo disco eles passaram a não se conformar com as minhas letras. Não entenderam nada.
O que eu falo é a linguagem do meu tempo, da minha geração e do que eu vivi, desde o morro até o asfalto. O que eu canto não tem uma sequência muito rígida, não é uma historinha com princípio, meio e fim, são montagens onde eu vou associando as idéias. E tem tudo a ver... esta é a poesia.”

“E por falar em poesia, tem dois poetas que foram muito importantes para o meu início, Torquato Neto e Waly Salomão. Torquato foi a primeira pessoa a me entrevistar e falar sobre o meu trabalho, numa coluna que ele tinha na Última Hora, a Geleia Geral. E Waly foi quem levou Pérola Negra, meu primeiro sucesso, para a Gal. Conheci o Waly lá, no São Carlos. Morro é muito parecido com o interior, onde todas as pessoas se conhecem. Então, o Waly aparecia lá para visitar uma amiga, a Tineca, até que um dia eu, que também estava por lá, toquei umas músicas e ficamos amigos. Na época, 1971, eu já estava ligado à música, tendo, inclusive, participado do programa de Jair de Taumaturgo, com meu parceiro na época, o Volmir Lucena. Quer dizer, eu já havia feito a opção, só faltava um entrosamento maior.”

“A inspiração está sempre aí, em todos os momentos. ‘Juventude Transviada’ eu fiz para uma pessoa que eu conhecia na época, mas a letra tem abertura pra falar com todo mundo, tem momentos que eu tô falando pra toda essa juventude. Não há um só caminho, uma só leitura, as coisas são sempre mais amplas. Já ‘Pérola Negra’ foi surgindo aos poucos, eu já tinha a música mas não estava acabada, então pintou uma menina que foi muito importante e eu completei. Ela foi composta em 1970 mas acho que tem a ver com 80, é uma linguagem muito forte e que ainda está em cima...”

“Já aconteceu de, numa blitz no Baixo Leblon, os homens chegarem e invocarem comigo por eu ser um artista. Então, nessa noite, os caras me levaram preso por eu ser o Luiz Melodia. Os caras me olharam dos pés à cabeça, me agrediam com coisas imbecis, tentando me humilhar, mas de repente eu senti que aquilo era uma espécie de amor, era a forma de comunicação deles, era o único meio que eles tinham de chegar até ao ‘Melodia’. Eles me odiavam ao mesmo tempo em que me adoravam. Mas mesmo sentindo isso, eu temo eles, pois a maioria dos caras é muito burra e burrice é uma coisa perigosa, que eu não admito.”

 “Eu nunca tive muitos problemas com a minha voz, nem me preocupo com isso, apenas abro a goela e mando brasa. Na excursão do Projeto Pixinguinha, por exemplo, a Marina passava os intervalos todos gargarejando, não tomava nada gelado, cheia de cuidados e mil lances e enquanto isso eu só lá na Brahma. Quando chegava a hora de entrar no palco eu mandava ver e cantava. A única vez que tive grilos foi uns anos atrás em Brasília quando deu um branco total e a voz sumiu. O clima do Planalto Central é muito seco e deve ter dado alguma alteração no metabolismo. Foi nesse lance que surgiu a frase ‘Eu quero é mel’, na música Questão de Posse.”

“Eu nunca desisti de bater as minhas peladas e, quando pintou um torneio no campo do Chico Buarque, eu resolvi formar um time com a rapazida do morro, o Estácio Holy Futebol Clube. Então eu chamei o Nelson, o Carlinhos, Coutinho, Roberto, Tadeu, todo um pessoal que cresceu jogando bola comigo. Eu sabia que com essa patota nós estaríamos na final com certeza. Os outros times eram integrados na maioria por artistas e músicos, então eu deixava o pessoal do Estácio dilatar o placar pra depois botar em campo as estrelas musicais, eu, o parceiro Ricardo Augusto, o Macalé, que às vezes aparecia... Assim chegamos ao vice-campeonato, só perdendo a última partida...”

sábado, 12 de julho de 2014

Rio Jazz Monterey Festival (1980) - Hermeto na Bronca

Durante quatro dias, entre 14 e 17 de agosto de 1980, aconteceu no Rio, no ginásio do Maracanãzinho, o Rio Jazz Monterey Festival. O evento trouxe nomes de peso, nacionais e internacionais, como Baby Consuelo, John McLaughlin, Weather Report, Banda Black Rio, Al Jarreau, Hermeto Pascoal, Victor Assis Brasil, Pat Metheeny, Egberto Gismonti & Naná Vasconcelos, George Duke, Stanley Clarke, Airto Moreira e Jorge Ben, entre outros.
Com um time de convidados desse quilate, não tinha como tinha o festival ter aspectos negativos, isso teoricamente, pois uma das maiores atrações nacionais do festival, Hermeto Pascoal, teve muitos problemas durante sua apresentação. Nesta entrevista publicada no jornal quinzenal de música, Canja, em setembro daquele ano, Hermeto desabafou:
“Hermeto já começou a ficar invocado de tarde. O pessoal do equipamento de som chegou nele assim, numa péssima:
- ‘Ô Hermeto, você não vai tocar até tarde hoje à noite, né?’
Outro vinha e advertia:
- ‘Cuidado com os instrumentos. Se quebrar, paga!’
Papo mesquinho pra cima de um músico (e que músico!) que inclusive cedera seu piano pra a apresentação do Al Jarreau – no Festival não tinha um piano que prestasse. Mas deixa pra lá.
Ele entrou em cena na boca da madruga. O astral não estava grande coisa no Maracanãzinho tomado pela metade, uma platéia inquieta como só, mas dava pro gasto. Antes dele entrou o violonista Heraldo do Monte, que tirou uma música que a folhinha não marca.
- ‘Um dos maiores do mundo, mesmo’, proclamou Hermeto ao entrar, se babando com a apresentação do amigo.
Começou levando um papo muito amoroso com a platéia, chegou a tocar uns vinte minutos e, de repente, aquele ouriço quando ele estava ao piano e ameaçou parar pela primeira vez se não fizessem silêncio.

- Qual foi a bronca, Hermeto?
- ‘No momento eu não sabia o que estava acontecendo no auditório. Não sei se você sabe que eu enxergo pouco, e quando estou no palco só vejo os instrumentos e a música. Depois é que me contaram em casa: tinha gente sendo presa porque tava fumando maconha. Do meu lado esquerdo o público fazia barulho porque tinha uma câmera na minha frente e o pessoal gritava; ‘Sai daí, palhaço!’ No dia seguinte ele fez a mesma coisa, o tal do cameraman, e o baterista do conjunto do George Duke deu-lhe um soco no meio da cara, segundo me contaram. Bom, aí eu comecei a ficar nervoso. Não estou me retratando. Acho que o público devia silenciar. Apenas culpo a confusão, inclusive soube que tinha gente dançando de patins no fosso, perto da orquestra. Mas de qualquer forma, senti uma coisa estranha, porque tinha um grupo encomendado pra fazer barulho na minha hora. Você viu que eu saí e voltei. O barulho sempre começava de uma parte do lado direito. Meus filhos me falaram aqui em casa depois que era o pessoal com a camisa do Festival, a coisa partia sempre do lado deles. Um grupo encomendado pra fazer barulho na minha hora, não partiu do público que sempre me aplaudiu. Na hora eu falei que eram dez por cento fazendo barulho, que estavam ali só pra fazer zorra. Fã-clube desses cantores de merda que as gravadoras enfiam no festival. Festival de música não é de bicão. Até em festival tem jabá: tão botando os bicões pra tocar com a gente, inclusive a minha gravadora, que é outra bosta. O pessoal veio me dizer aí que aquilo não era público pra mim. Que é isso, rapaz! Já toquei na rua e tudo. Em todo festival que vou tocar tá assim de gente. Por isso, no próximo festival, eu peço pras pessoas que quiserem escutar uma coisa: fiquem em silêncio para deixar bem visível o pessoal da bagunça.’ 
Fazendo um gesto não muito amistoso para a plateia

O pessoal da bagunça causou um estrago maior do que pensa. John McLaughlin, por exemplo, só estava esperando clima para entrar e tocar Nem Um Talvez, música de Hermeto que os dois tocaram juntos num disco de Miles Davis.
Mas nem tudo está perdido. Antes mesmo do próximo festival, daqui no máximo a duas semanas, Hermeto vai fazer um show de graça ao ar livre e, sem gravadora e sem patrocinador, para o distinto público que quiser curti-lo. Enquanto não fizer isso, ele não sossega. Por isso também não aceitou o convite pra um show de quatro dias semana passada no Teatro Galeria, no Rio.
- ‘Não é retratação. É vontade de tocar’.
Dias depois do lamentável incidente que envolveu Hermeto Pascoal durante sua apresentação no Rio Jazz Monterey Festival, as opiniões dos críticos, músicos e público ainda continuam divididas. A favor ou contra o artista, de forma geral elas mostram uma coisa: são totalmente emocionais. Hermeto, manifestando-se contra o excesso de luzes, de barulho, de câmeras de televisão, abandonou o palco, para depois voltar, ser vaiado e abandoná-lo definitivamente.
No entanto, para quem conhece bem Hermeto, mesmo reconhecendo que ele é um artista imprevisível, principalmente em termos de sensibilidade e criatividade, o infeliz episódio não pode ser encarado como mero fato isolado e uma explosão de momento, mas sim como ápice de um processo que deve merecer profunda análise e reflexão.

Afinal, Hermeto Pascoal é reconhecido internacionalmente como um dos maiores gênios da música brasileira contemporânea e um dos mais – se não o mais – criativos. Sua música não é, nem de longe, de fácil assimilação, mas apesar disso seu prestígio é incontestável. Como líder, Hermeto é dos que mais valorizam todos os que com ele trabalham, como mostrou ao destacar com carinho e respeito incomuns os componentes de seu grupo no Festival, antes do incidente. Como intérprete, é um instrumentista que se equipara aos maiores do mundo, ao piano, flauta, saxes e outros instrumentos, como mostrou também no Festival, ao piano e flauta em momentos de grande beleza e impacto, antes do incidente. Como homem, Hermeto é extremamente sensível às injustiças, tem extraordinário sentido humano e é possuidor de uma personalidade cativante, e também totalmente não convencional.
Apesar de todos os lances inusitados que marcam suas apresentações, jamais Hermeto dotou atitudes tão drásticas, inclusive em festivais como os dois de São Paulo e o de Montreux, e não é fácil se aceitar como mera coincidência que isso tenha acontecido justamente num festival em que prevaleceram quase que só aspectos negativos e discriminações, de que foram vítimas principalmente músicos brasileiros. Até porque tudo indicava que Hermeto se preparava para fazer uma apresentação menos exótica, menos ‘hermética’, como atestam a inclusão do guitarrista Heraldo do Monte, músico notoriamente discreto, e o próprio início do programa, com interpretações muito mais sóbrias e menos inusitadas.
Em conclusão, a hora é de uma reavaliação, porque há problemas que o próprio Hermeto vem apontando, inclusive em recente entrevista em que se queixava da pouca difusão de sua música pelo rádio, problemas esses que afetam e poderão ainda afetar a maioria dos artistas sérios brasileiros e comprometer seriamente ainda mais a nossa cultura já relegada a um plano cada vez mais baixo.”
 




quinta-feira, 10 de julho de 2014

Walter Franco - Revolvendo, Muito Leve (1976)

Em sua edição nº 26, de novembro de 1976, o Jornal de Música em sua coluna de resenha de shows, chamada Ao Vivo, trazia uma matéria sobre um show de Walter Franco, após um longo tempo fora dos palcos. O texto de chamada: "Sem maldição, sem escândalos, sem hermetismo e com muita simplicidade, a volta de Walter Franco", dava uma ideia do retorno de Walter aos palcos. 
A matéria, assinada por Waldemir Marques é transcrita abaixo;
"Depois de um ano e quatro meses afastado dos palcos, Walter Franco apresentou-se nos dias 18 e 19 de outubro no Teatro Aquarius, em São Paulo, com seu espetáculo Revolver ( e não Revólver, pois no princípio era o verbo, como ele mesmo insiste em dizer), que reúne as composições de seus dois LPs: Walter Franco (aquele da mosca, lembram?, muito convenientemente relançado, agora, pela Continental) e Revolver.
A indiscutível qualidade musical da obra de Walter foi apresentada com o melhor nível possível num teatro (improvisado) como o Aquarius (que era um antigo cinema). Os sintetizadores e as câmaras de eco, utilizados de forma consciente, conseguiam transmitir o clima que o show exigia. Esse resultado sonoro de boa qualidade sem dúvida se deve também ao ótimo grupo que acompanhou Walter Franco, formado por Diógenes, na bateria; Maurício Nassif, na guitarra; Maurício Pedrosa, nos teclados; Édson, no baixo; e Roberto e Ivo, que realizaram um extraordinário trabalho na percussão (sem dúvida nenhuma o ponto alto na parte instrumental).
A finalidade principal do show foi desmistificar a grande comoção que Walter Franco causou desde que surgiu no FIC com Cabeça, que lhe vale até hoje o incômodo rótulo de 'maldito'. A significativa presença de público foi prova suficiente de que existe um imenso mercado aberto à nova linguagem que esse compositor tenta propor com seu trabalho, faltando somente um maior cuidado por parte de sua gravadora em não permitir que os discos de Walter se tornem raridades de colecionador, impossíveis de ser encontrados nas lojas de discos, como aconteceu com seu primeiro LP.
Músicas consagradas, como Muito Tudo, Cachorro Babucho, Feito Gente, Mamãe D'Água e Me Deixe Mudo,  conseguiram causar espanto e admiração na plateia. Músicas dos Beatles, Macalé, Caetano e outros completaram o espetáculo, ao lado de algumas canções de Walter ainda não gravadas, como Respire Fundo, sua criação mais recente, com Diógenes.
Walter Franco continua a mesma figura serena de sempre, e nem se abala com o grande número de pessoas que vem assisti-lo. A proposital primariedade infantil de seu canto (Walter dedicou seu trabalho às crianças), aliada à força de gritos primais e à respiração cadenciada, conseguiu estabelecer um clima de respeitoso silêncio e transmitir uma atmosfera de tranquilidade e simplicidade, oposta ao suposto hermetismo de seu trabalho.
Lamentável, apenas, a impossibilidade de continuação desse show, devido à falta de teatros em São Paulo. Moracy do Val, produtor do espetáculo, desabafa: 'Produzir esse espetáculo foi um aglomerado de dificuldades e de obstáculos muito duro de vencer. Existe uma séria  dificuldade em se trabalhar com artistas que são rotulados de malditos, porém essa resposta recebida com a afluência do público, e que surpreende até as gravadoras, é facilmente obtida desde que seja realizado um trabalho bem feito. É uma pena que não conseguimos sequência com esse show, mas ele continuará sendo apresentado em São Paulo, com a assiduidade que as circunstâncias permitirem, e depois irá para outros estados'
E você, Walter, o que tem a dizer? Algum grilo?
- A coisa é isso, revolver, apesar de tudo, muito leve..."

quinta-feira, 3 de julho de 2014

Jorge Mautner: "A MPB está uma bagunça" (1977)

Em 1977, a edição nº 23 da revista Música trazia uma matéria com Jorge Mautner, na qual ele desabafa sobre sua insatisfação com relação a um suposto boicote a seu trabalho, considerado de difícil assimilação. Sua fama de "maldito" o perseguia e trazia prejuízos a sua carreira. Abaixo, a transcrição da matéria, assinada pelo jornalista Luiz Antônio S. Chagas:
"Os estudantes que subiam a rua Joaquim Eugênio de Lima, em São Paulo, rumo ao Colégio Objetivo, nunca iriam imaginar que Jorge Mautner estava hospedado naquele casarão antigo e bagunçado, cheio de quadros enormes e coloridíssimos nas paredes. Discutindo com seu empresário, caminhando pela casa de tanga ou brincando com  a filha Amora, Mautner conserva seu indefectível ar de profeta e louco poeta.
Mautner, que acabava de apresentar o show 'Coração, Coração, Coração', no teatro Cenarte, está enfrentando uma nova onda de incompreensão, desta vez caracterizada pelo boicote, segundo ele, ideológico.  Havia uma proposta de se juntar Mautner e Gil para o 'Projeto Pixinguinha', feita pelo diretor Kleber Santos, mas as respostas foram evasivas. No festival Abertura havia uma linha contrária, nitidamente apriorística, no sentido de barrar 'Bem te vi, Bem te viu', que apresentou ao lado do maestro Júlio Medaglia. No final do ano passado houve uma nova proposta de dupla, desta vez com Adoniran Barbosa, mas este foi levado a desistir na última hora sob a alegação de que Mautner 'não tem nada a ver com ele'.
Com os cabelos mais curtos, partindo para um trabalho de autoprodução e sobrevivendo 'graças a três horas de kung-fu' por dia, Mautner declarou-se 'em guerra aberta e plena, da qual só sairá morto, jurando perseguir seus inimigos até o fim da vida'.
Jorge Mautner nasceu no dia 17 de janeiro de 1941. Natural do Rio, mas criado em São Paulo, Jorge aprendeu violino dos sete aos quatorze anos com seu padrasto, violinista do Teatro Municipal. Aos quinze já tinha feito o 'Movimento do Kaos' e, em 62, lançava o livro 'Deus da Chuva e da Morte', em cima de um piano, no extinto 'João Sebastião Bar', cantando a música 'Olhar Bestial', incluída no elepê 'Para Iluminar a Cidade' (1972). Logo passou para o bandolim por ser mais popular e ter a mesma afinação em quintas (sol-ré-lá-mi). Em 63 lançou 'Kaos' e, em 65, 'Narciso em Tarde Cinza' e 'Vigarista Jorge', além de um compacto com as músicas 'Rádio Atividade' e 'Não, Não, Não'. Jorge relembra que na época 'até Nara Leão' comentou que a bomba atômica não tinha nada a ver com a realidade nacional, mas hoje ela está pra gravar umas músicas minhas.'
Nessa época (65), Jorge lançou os Mutantes em um show que fez no restaurante 'Urso Branco', em São Paulo. Em seguida, foi para os Estados Unidos, onde ficou sete anos viajando muito, mas sediado em Nova Iorque.
Já no Brasil, em 1972, fez um show no Teatro Opinião do Rio, gravado e lançado sob o título 'Para Iluminar a Cidade', cuja novidade era o preço: Cr$ 15,00 (na época e média era de Cr$ 25,00). As lojas não concordaram e o disco virou peça de colecionador. Desse disco saiu 'Quero Ser Locomotiva', gravada por Wanderléa, e "Agora Você', por Beth Faria, já com arranjos de Nelson Jacobina, seu parceiro, músico e amigo até hoje. Seguiram-se a Phono 73 ('Rock da Barata', lançado em compacto) e a gravação de músicas suas por Marília Pera ('Samba dos Animais'), Edy Star ('Olhos e Raposas'), Gil ('Maracatu Atômico', 'O Heroi das Estrelas, 'O Relógio Quebrou' e 'Rouxinol', entre outras). Em 1974, saiu o elepê 'Jorge Mautner' pela Phonogram, com arranjos de Gil e, em 1976, o 'Mil e Uma Noites de Bagdá', que segundo Mautner, 'colidiu com o lançamento de Balchior'.
O Festival Abertura foi sua última aparição naquilo que chama de 'grande mídia'. 'Fragmentos de Sabonete' o último livro esgotado nos shows, 'Negro Blues' seu  último show antes de 'Coração, Coração, Coração'. Norton (do Burmah) e Sérgio Kera são os integrantes de sua última banda. Jorge tem material para um elepê e um novo livro, 'Panfletos da Nova Era', com artigos sobre 'a guerra cultural dos baianos', Sérgio Cabral, Einstein, Marx e Luiz Melodia.
'Coração, Coração, Coração' é uma música romântica, como o é também 'O Samba da Suzete', que conta um assassinato, sendo música chinesa, ritmo afro, bossa-nova, soul, discotheque e muito blues. Mautner tem ainda uma música de 120 versos 'O Filho Predileto de Xangô' (cuja versão integral aparecerá no 'Panfletos'), muito ligada a Jorge Ben e Gil que, por sinal, é filho de Xangô.
Apesar de toda a sua disposição e o kung-fu diário, Mautner está um pouco desiludido com o ECAD e a situação legal do músico brasileiro. Já chegou a procurar Macalé para ver o que está acontecendo e desabafar: 'Todas as mercadorias brasileiras têm benefício de lei, menos artistas que parecem ser os inimigos. Ao invés de apoio, recebem anti-apoio. A caução adiantada paga aos teatros é contra o artista, principalmente o novo. Antigamente, o que era pago era uma porcentagem da renda. A MPB hoje está ótima porque reflete toda essa bagunça."