Palavras Domesticadas

Palavras Domesticadas

sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Os Movimentos Pop

Um livro muito marcante em minha vida, e um dos primeiros que comprei, é um que faz parte de uma coleção que saía em bancas de jornal nos fins dos anos 70 e início dos 80, abordando diferentes assuntos. A coleção chamava-se Biblioteca Salvat, publicado pela Salvat Editora, e o volume a que me refiro era sobre os movimentos pop, o nº 41 da série. O assunto já me fascinava - eu tinha na época 20 anos - e através desse livro tive meus primeiros contatos com informações importantes sobre o universo pop.
O livro fala do conceito de pop, comunicação de massa, formas de comunicação em diferentes manifestações, etc. Para quem como eu se interessava pelo assunto, mas que na época só conhecia o conceito de pop um pouco mais profundamente através da música - rock mais especificamente, esse livro me mostrou pela primeira vez outras vertentes da arte pop como literatura, cinema, artes plásticas, quadrinhos, etc. Através desse livro fui apresentado a alguns personagens marcantes e novas formas de se entender a cultura e contracultura em diferentes épocas e manifestações artísticas.
O livro inicia com uma ótima entrevista com Umberto Eco, na época ainda pouco conhecido por aqui. Nessa entrevista Eco é apresentado como professor de Estética na Universidade de Turim, e com algumas obras publicadas. Em sua entrevista Eco faz declarações como:

Humberto Eco
"É um erro confundir arte popular e arte pop; diria mesmo que se trata de uma confusão de tipo anglo-saxônico, porque na tradição anglo-saxônica sempre se chamou popular art àquilo a que nós chamamos 'cultura de massas', e falava-se de popular art mesmo quando se fazia uma crítica aristocrática da cultura de massas, dizendo que a popular art não era arte.  A pop art nasceu precisamente como um jogo inteligente e irônico sobre a popular art, mas pela capacidade de identificar-se com ele acabou por ser o mesmo; os quadrinhos, por exemplo, eram popular art, enquanto a imitação dos quadrinhos de Lichtenstein era pop art. Porém, quando os desenhistas de quadrinhos começaram a imitar Linchenstein, evidentemente que as diferenças desapareceram e se voltou à situação anterior. A arte pop chegou a ser um  dos momentos, embora o mais crítico, da cultura de massas. Em contrapartida, quando a expressão 'pop' se refere, por exemplo, aos jovens que dançam o rock em Woodstock alude a produtos que já existiam antes da arte pop e que simplesmente evoluíram, ironicamente ou não. Os Beatles ou os Rolling Stones criaram produtos musicais que provavelmente permanecerão como testemunhos de uma época e talvez sejam até preferidos em relação a certas composições de música culta contemporânea. Creio ser pertinente distinguir entre a popular art que existia antes do pop e pop art, a nova popular art, posterior, consequência de uma espécie de integração dialética entre ambos."
Duchamp e Léger considerados precursores da arte pop
O livro busca as origens do pop, quando o termo ainda não existia, mas cuja arte já se manifestava em movimentos como o dadaísmo. Duchamp e Léger são, dessa forma apresentados como precursores da pop art:
"No dadaímo de Duchamp e em Léger encontramos os primeiros precedentes da arte pop. Pode-se afirmar que quando Marcel Duchamp pôs bigodes em La Gioconda e Léger interessou-se pelo urbanismo de Chicago, a arte pop encontrava-se então em avançado estado de gestação.
Efetivamente, mesmo que a arte pop deva sua força à situação existente em princípios da década de 60, é indubitável que tanto Duchamp como Léger contribuíram em grande medida para criar o ambiente de opinião que permitiria o posterior desenvolvimento do pop. Os ready-made de Duchamp em pouco se diferenciaram das denominadas mais tarde pinturas pop ou dos objetos de arte pop."
Andy Warhol, logicamente, merece um capítulo à parte. Considerado por muitos o papa da pop art, Warhol é definido no livro como "um dos mitos do pop... ou talvez seu anti-herói, e sua arte pop foi transcedida pelo ambiente mítico criado em volta de sua pessoa, de seu núcleo, de seu círculo. Warhol descreveu friamente o mecanismo de desumanização levado à prática pelos modernos meios de comunicação de massas. Como ele próprio disse: 'Quando vemos várias vezes seguidas uma fotografia macabra, acaba por não nos causar nenhum efeito.' "
Andy Wharol, um dos expoentes máximos da pop art
O livro, fartamente ilustrado, abrange ainda várias outras vertentes do pop, e destaca muitos representantes marcantes de arte vanguardista, ligados ao abrangente conceito de pop, como John Cage: "Muitos críticos norte-americanos designaram John Cage como inventor da arte pop. A estética de Cage, derivada da arte dadá e da filosofia zen, contribuiu para abrir o panorama cultural e artístico norte-americano. Cage incentivou os artistas a apagar as fronteiras entre a vida, atacando as opiniões preconcebidas sobre a função e o significado da arte e colocando perguntas como: 'Pode-se afirmar-se que o som de um piano de uma escola de música seja mais musical que o de um caminhão que passa pela rua?'. "
O rock também, logicamente, ganha um capítulo especial, principalmente analisando-se os grandes festivais que reuniram milhares de pessoas, e a capacidade de comunicação de massa que o gênero exerce até hoje sobre a juventude em todas as partes do mundo.  Hoje em dia a denominação "pop" é um pouco diferente da de décadas atrás. O conceito "pop" hoje é ligado mais a uma música mais comercial, de consumo mais fácil, diferente do que é enfocado no livro, que abrange as origens do termo.

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

A Última Turnê de B.B. King (Que Não Foi a Última)

A longevidade de certos artistas às vezes surpreende e desmente previsões. B.B. King é um exemplo.  As turnês internacionais são desgastantes, principalmente para aqueles que já têm um longo tempo de estrada, pois o cansaço é maior e bem mais pesado quando a idade vai chegando. Mas para o público, o fator idade não importa, pois ele sempre irá cobrar as músicas preferidas e performances sempre impecáveis, independente de idade. Por isso mesmo, em 2007, um dos guitarristas mais aclamados do blues anunciou sua turnê de despedida, pois aos 81 anos era chegada a hora de apenas tocar em shows esporádicos e sem o desgaste das turnês por diferentes países e continentes. Por isso aquela turnê tinha aquele caráter de despedida, pois já era o momento do merecido descanso de um dos guitarristas mais representativos do blues, o lendário B.B. King.
Mais do que um mero fator de promoção, o anúncio daquela turnê como a última oportunidade de se ver ao vivo no Brasil a grande lenda do blues, um dos últimos sobreviventes de uma geração de bluesmen que marcaram a história não só do blues como do próprio rock'n roll, que sempre bebeu naquela fonte, aquela derradeira oportunidade parecia mesmo ser única. Porém , para alegria de seus inúmeros fãs, que tiveram ou não a oportunidade de vê-lo ao vivo, o tempo provaria que aquela turnê de 2007 não seria a última oportunidade de se ouvir aqueles acordes e solos tão característicos de um dos guitarristas que melhor representam a alma do blues. O velhinho continua em atividade, e em setembro e outubro desse ano, B.B. King retornou a nosso país para se apresentar em  outros shows. Em fevereiro de 2007, a revista "Blues n'Jazz" trazia uma matéria sobre aquela turnê de despedida, que na verdade foi apenas mais uma do mestre do blues. Com o título de "A Última Turnê de B.B. King", a matéria, assinada por Helton Ribeiro, dizia:
"Era uma noite histórica. Apenas trezentas pessoas conseguiram ingressos para ver no Bourbon Street, em São Paulo, um dos últimos shows do rei do blues no país - depois de mais de cinco datas em três cidades, ele diria adeus ao Brasil.

B.B. King no Bourbon Street - 2007
Apesar dos 81 anos de idade, B.B. King requebrava-se, fazia pose de roqueiro, depois tapava o rosto com as mãos fingindo vergonha das próprias molecagens. À vontade no palco da casa que inaugurou treze anos antes, parecia um garoto, contradizendo sua franqueza na entrevista coletiva à imprensa no dia anterior: 'Pretendo tocar até o fim. Mas já estou cansado para fazer longas viagens'.
Consciente disso,a plateia do Bourbon saboreava cada uma de suas brincadeiras e cada nota de sua guitarra Lucille. Dela saíam aqueles vibratos que ninguém consegue imitar, em Darling, I Love You e When Love Comes To Town, por exemplo.  Um pedal overdrive tornou o timbre mais agressivo.
O repertório foi mais alto astral que o da turnê anterior, de 2004, com várias músicas em ritmo pulsante, como Rock Me Baby, Bad Case of Love e até When The Saints Go Marching In. As lentas foram concentradas num set intimista, sem o naipe de metais e com os outros músicos sentados à sua volta. Ele não dispensou The Thrill Is Gone, e deu novo significado aos versos de Key To The Highway: "Quando eu deixar esta cidade, não voltarei mais. Então, adeus".)
Ao fim de quase duas horas de show, ele chamou ao palco o virtuoso guitarrista de jazz Stanley Jordan, que tinha assistido ao espetáculo na primeira fila. Não ocorreu uma jam session, como muitos esperavam, mas Jordan foi abençoado pelo rei: ' Fico com o de cabelo em pé quando o vejo tocar'. Nós também ficamos quando vemos (ou melhor, víamos) B. B. King."

sábado, 24 de novembro de 2012

Revistas Legais: Qualis - Alceu Valença

Alceu Valença é um artista que sempre me chamou muito a atenção. A primeira imagem dele que me lembro foi de um clipe para o Fantástico com a música Retrato 3X4, que era tema da novela O Espigão. Na época eu era um adolescente que estava descobrindo a música, e como sempre me liguei naquele tipo de música que corria por fora da indústria do disco, eu logo me liguei em seu jeito de cantar e compor. Logo depois saiu seu disco Molhado de Suor, e as críticas que eu lia sobre seu trabalho confirmavam a boa impressão que ele havia me causado. Naquele período Alceu começou a aparecer nas revistas especializadas em música, e assim eu fui conhecendo sua música mais pelo que eu lia, do que por ouvi-la propriamente, já que suas músicas não tocavam nas rádios (embora eu sintonizasse rádios menos comerciais) e eu não tinha grana para comprar discos. Às vezes ele aparecia na tv, coisa não muito comum, e eu sempre admirando sua música, que era algo novo pra mim.
Mas sem dúvida a imagem  mais marcante de Alceu pra mim foi quando se apresentou no Festival Abertura, da Globo, em janeiro de 75. Sua composição "Vou Danado Pra Catende", que fazia citações ao poeta pernambucano Ascenso Ferreira e trazia uma das primeiras fusões do ritmo nordestino com o rock. A interpretação de Alceu para sua música me causou muito impacto. Aquela foi uma das imagens mais marcantes na época para mim.

Nos anos 90, havia uma revista chamada Qualis, que trazia boas matérias, e às vezes trazia um cd encartado. Em um de suas edições a revista trouxe uma ótima matéria com Alceu, assinada por Ayrton Mugnaini Jr., falando de sua carreira, analisando sua discografia e trazendo curiosidades sobre sua vida e carreira. Abaixo destaquei alguns trechos da matéria:
"Lá por 1973 Alceu montou em Recife um show chamado O Ovo e a Galinha , cuja música-título dizia: 'Você deveria adivinhar que atrás do samba vam a África/que atrás de tudo havia o açúcar/que é doce, doce como o mel/que é doce/doce como o fel...' 'As pessoas até hoje me confundem com o Raul Seixas por causa dessa música', comentou Alceu na época. 'Parece que ele tem uma fala de fel também ('Eu Sou Egoísta'), mas eu acho que é só por isso.' "
Em seus shows de 1978 Alceu lançou Catrevagem, personagem que é uma espécie de Chaplin do interior pernambucano, homenagem de Alceu a uma pessoa desse nome que era o louco de São Bento do Una (sua cidade natal). O Catrevagem de verdade usava roupas esquisitas e cantava a dançava, satirizando o povo da cidade; ninguém se zangava porque, explicou Alceu na época, 'Catrevagem não pasava de um maluco' "
 
 
Alceu formou-se em Direito, mas jamais exerceu a profissão. Em 1978, disse que voltando à sua cidade natal seria reconhecido como doutor, 'só que nenhum doutor tem essa cara de maluco' "
"Ainda em 1978, Alceu divertiu-se com o movimento punk, lembrando-se de seu personagem no filme A Noite do Espantalho, numa entrevista à sua antiga casa, o jornal Ùltima Hora: 'Uma coisa engraçada é que agora pintou por aí essa moda punk e então descobri que sempre estive na moda, isto é, sempre fui punk. Não existe nada mais punk que o Espantalho e eu sou o Espantalho.' "
"Alceu não costuma perder oportunidade para brincadeiras. Como quando, nos anos 70, foi almoçar num restaurante japonês, no bairro paulistano da Liberdade. Imaginem Alceu entrando com seu cabelão, olhos esbugalhados e, para completar, uma calça de veludo vermelho das mais justas, a ponto de ele mal poder sentar. A garçonete já ficou olhando, e quase fugiu quando Alceu se apresentou a ela: 'Eu sou Jesus Cristo'."
"Numa de suas primeiras temporadas em Sampa, Alceu iria dar uma entrevista coletiva. Mas pegou uma gripe tão forte que indispoosto para sair, teve a ideia de dar a coletiva no próprio quarto. E lá estava ele deitado e cercado de jornalistas. Alguns disseram que Alceu imitou o 'bed-in' de Jonh Lennon, que, em protesto pela paz, ficou alguns dias sem sair da cama, inclusive atendendo repórteres. 'Não foi nada disso, foi gripe mesmo', disse Alceu."

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Os Malditos da MPB

Nas décadas de 60 e 70 a MPB produziu uma significativa quantidade de novos compositores, das mais variadas tendências musicais, carregando as mais diversas influências e propostas. A grande maioria desses novos autores surgiram através dos vários festivais de música que na época proliferavam pelo país. Dentre esses vários músicos e compositores, alguns deles se notabilizaram por apresentarem um trabalho mais carregado de experimentalismo e uma ousadia estética, e por isso mesmo, anticomercial.
Os grandes festivais, apesar de terem servido como um impulso para o surgimento de inúmeros talentos musicais, no fundo nada mais eram do que programas de tv, em busca de uma grande audiência que aqueles tipos de evento proporcionavam. E como todo espetáculo, o inusitado também chama a atenção, e atrai atenções. A reação do compositor Sérgio Ricardo, por exemplo, no Festival de TV Record de 1967, ao quebrar seu violão e jogá-lo contra a plateia que o vaiava, apesar de ter criado à princípio um grande problema para a organização do festival, na verdade serviu para aumentar a mobilização das atenções para aquele festival, além das ótimas músicas que concorriam.
Talvez muito pelo caráter do inusitado e para sair dos padrões normais, as apresentações mais ousadas e experimentalistas, sempre tiveram espaço nesses festivais. E eram aqueles compositores que fugiam da linha mais tradicional de se fazer música e de se apresentarem, que garantiam essa espécie de espetáculo, que passou a ser outra característica dos antigos festivais. Mais tarde, muitos daqueles músicos ganharam o rótulo de "malditos". Mesmo andando pela contramão eles iam conseguindo abrir seu espaço e conquistar uma fatia do público mais antenada com as novidades, e abriam olhos e ouvidos para o novo e o anticonvencional. Essa tribo maldita, viria ainda servir de inspiração para toda uma geração de novos músicos, e renovar seu público, mesmo tendo passado, a grande maioria, longe do sucesso comercial.

Um exemplo é Jards Macalé. Em 1969 ele escandalizaria o público do Festival Internacional da Canção (FIC), da Globo, com a inusitada Gothan City, de parceria com o poeta e letrista Capinan. Apresentando-se vestindo uma túnica colorida, Macalé recebia vaias enquanto gritava a letra que trazia o refrão: "Cuidado, há um morcego na porta principal/ Cuidado, há um abismo na porta principal". Gotham City serviu para chamar a atenção para seu nome, e colocar Macalé entre os músicos mais renovadores e surpreendentes do país. Macalé é um músico e compositor que sempre primou pelo efeito surpresa. Quando se espera dele um trabalho de vanguarda, ele aparece apresentando clássicos da MPB, para depois gravar um rock. Artista multimídia, já fez incursões pelo cinema, teatro e intervenções em artes plásticas. Mas é na música que ele melhor expressa seu fino humor e ironia, merecendo o título de artista marginal.
Talvez o compositor que melhor tenha encarnado a fama de maldito seja Walter Franco. Walter é um dos músicos que mais ousaram fazer experimentações sonoras inovadoras e polêmicas. Foi também no FIC da Globo, em 72, que ele ganharia destaque nacional, por apresentar a composição mais inusitada e experimental de todo o festival: Cabeça, na verdade uma colagem de frases, com ausência total de melodia, uma superposição de vozes através de sons pré-gravados - algo bem adiante de seu tempo, e que trazia influência de compositores vanguardistas, como John Cage. A música deixou o público e os jurados atônitos e meio perdidos. No mesmo ano Walter lançaria seu primeiro disco, Ou Não?, mais conhecido como "o disco da mosca", já que a capa trazia uma foto do inseto.
Outro maldito notório é  Jorge Mautner. Filho de um casal austríaco judeu, que fugiu para o Brasil na época do nazismo, Mautner desenvolve um trabalho muito pessoal, com letras bem criativas que trazem às vezes referências a filósofos e pensadores como Nietzshe e Goethe, dentre outros. Músico, poeta, escritor e cineasta, Mautner teve uma formação intelectual intensa. Isso tudo veio a refletir em seu trabalho - uma mistura do pensamento clássico europeu com o samba, o candomblé, o rock e ritmos latinos, num caldeirão de sonoridades emolduradas por letras repletas de imagens poéticas que extrapolam qualquer padrão estabelecido. Nos anos 70 Mautner morou em Nova York e depois Londres, onde conheceu Caetano e Gil. Começaria então uma parceria musical com os dois baianos, e lá seria rodado o filme O Demiurgo, dirigido por ele, que também atua ao lado de Gil e Caetano e outros brasileiros que se encontravam na capital inglesa. O filme, que foi elogiado por Glauber Rocha, entre outros, é considerado um dos melhores documentos sobre a contracultura e o movimento hippie já produzidos no Brasil. Sua composição Maracatu Atômico, em parceria com seu parceiro mais constante, Nelson Jacobina (falecido neste ano) é um verdadeiro clássico, e fez sucesso com Gilbero Gil, e ganhou inúmeras outras gravações, como a de Chico Science em seu disco Afrociberdelia.

Tom Zé também faz parte da tribo dos malditos. Sua música ainda causa estranheza por suas peculiaridades e altas doses de experimentalismo. Do grupo dos tropicalistas é aquele que foi mais ousado na busca por novos caminhos e sonoridades. Sua carreira sempre seguiu na contracorrente. Nos anos 70 lançou discos que hoje são cultuados pelas novas gerações que o redescobriram. Seu disco de 72, por exemplo, é uma obra-prima, que traz poesia concreta, na voz de poeta Augusto de Campos, samba e sons experimentais. Seu disco seguinte, Todos Os Olhos, de 74 é outra pérola, a começar pela capa polêmica. É outro disco que pode ser considerado uma grande obra, trazendo pérolas musicais repletas de ousadia e pesquisas sonoras inusitadas, por isso mesmo pouco compreendidas. Estudando o Samba, de 76, seu disco seguinte, além de ser um disco carregado de criatividade e inventividade, foi o grande responsável por seu retorno à cena musical, após o músico inglês David Byrne ouvi-lo nos anos 90 e ficar encantado, a ponto de lançar o nome de Tom Zé no mercado internacional, e dar o impulso que faltava para que ele voltasse a lançar discos e fazer shows. Mesmo com todo o reconhecimento, Tom Zé é mais um maldito da MPB.
Para terminar, e não tornar ainda mais longa essa postagem - outros nomes ainda poderiam ser lembrados - não poderia esquecer de Sérgio Sampaio. Nascido em Cachoeiro do Itapemirim/ES, Sérgio mudou-se para o Rio nos anos 60, e lá conheceu aquele que viria a ser seu grande amigo e incentivador: Raul Seixas. Com Raul, e ao lado do baiano Edyr Star e da sambista paulista Miriam Batucada, Sérgio participa em 71 do disco Sociedade da Grã-Ordem Kavernista Apresenta Sessão das 10, hoje um disco cult. Grava ainda alguns compactos, mas é no ano seguinte que Sérgio ganha um impulso em sua carreira ao participar do VII FIC, da Globo com sua composição Eu Quero Botar Meu Bloco na Rua. A música faz um sucesso retumbante, e seu nome pasa a ser conhecido em todo o país. Porém, o trabalho de Sampaio não se estabeleceu no sucesso que conheceu, ao contrário do que as gravadoras esperavam dele. Suas composições eram altamente inspiradas, trazendo letras poéticas e profundas, porém Sérgio jamais repetiria o sucesso que havia conhecido, e que ele na verdade, nunca procurou. Sempre viveu à margem do mercado musical, por isso mesmo gravou poucos discos, apenas três Lps e alguns compactos. Sérgio foi um "maldito" por natureza, mas com uma obra riquíssima, e que merecia ser mais conhecida.

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Shows de Santana no Brasil - 1973

"De repente, a escuridão é total. Aos poucos vão aparecendo luzes supercoloridas e brilhantes. Há um doce cheiro de incenso no ar. Santana está no centro do palco, em postura de meditação: 'Nós devemos repartir tudo aquilo que Deus nos dá. Por isso vamos fazer um minuto de silêncio para meditarmos e para que tenhamos luz em nossas mentes. Depois tocaremos quanto vocês quiserem.'"
Assim começa uma matéria que saiu na revista Pop, em sua edição de janeiro de 1974, descrevendo um dos shows que o guitarrista Carlos Santana e sua banda fizeram por várias capitais do Brasil em 1973. Não era a primeira vez que o guitarrista se apresentava no Brasil. Tenho notícias que ele havia se apresentado por aqui dois anos antes. Na ocasião, Santana já era um artista consagrado, com sete discos lançados e uma carreira vitoriosa. Sua vinda ao Brasil deve ter sido um grande acontecimento no meio musical, não só pelo grande artista que ele é, mas também porque na época não era muito comum artistas internacionais de seu porte tocarem por aqui. Abaixo, a matéria, escrita por Oscar Pitta:

"'Deus deu a você o dom da música, e você deve levar alegria a todos os seus irmãos. Esta é a sua missão.' Depois que ouviu e meditou sobre as palavras do seu guru, Sri Chinmoy, Santana mudou sua visão do mundo. E a mudança foi tão grande que acabou influindo na sua própria música. Por isso, o Santana que todo mundo esperava ver nas apresentações que fez em São Paulo, Rio, Brasília e Porto Alegre, não existia mais. Em seu lugar surgia um novo músico, muito mais consciente de sua responsabilidade como artista: 'Quando estou tocando só quero ver Deus. O estado mais alto que eu posso alcançar é quando estou junto com meu mestre, e não sinto meu corpo físico. Sinto-me como uma vela acesa e só tenho um propósito: iluminar meu cérebro e a mente de todos os meus irmãos'.

Inicialmente a turma estranhou o novo som de Santana, bem diferente do rock latino que o consagrou no mundo todo. Apertando a guitarra contra o peito, com os olhos fechados como se estivesse conversando com Deus, ele ia tirando sons incríveis do seu intrumento, criando uma atmosfera toda mística.
No centro do palco, junto a Santana, um porta-retrato mostrava as imagens de Jesus Cristo e do seu guru e líder espiritual, Sri Chinmoy. Na plateia, milhares de pessoas curtiam, como que hipnotizadas, o som sideral do grupo formado por Carlos Santana (guitarra e pandeiro), Mike Shrieve (bateria), José 'Chepito' Areas (tumbadora), Doug Rauch (baixo), Richard Kermode (piano), Tom Coster (piano e órgão) e Leon Thomas (vocal e percussão). De repente, a banda começou a tocar  Aquarela do Brasil, e foi aquela loucura. Todo mundo esquentou e passou a pedir rock. Aí, Santana soltou Soul Sacrifice (um dos pontos altos do Festival de Woodstock), e o delírio total tomou conta do público. O som inicialmente místico e contemplativo havia sido substituído pela batida quente e frenética do rock latino, todo mundo dançava e muitos tiravam as camisas para amenizar o calor. Os solos de guitarra de Santana flutuavam no ar docemente perfumado pelo incenso, 'Chepito' voava entre as tumbadoras como um louco, e Sherieve dava um show na bateria.

A plateia de um dos shows de Santana no Brasil em 1973
O grupo mostrou as músicas do novo compacto, Bienvenido (Light of Live, Yours in the Night, Samba de Sausalito e When I Look into Your Eyes), mas foi com Oyé Como Vah? que o espetáculo atingiu seu clímax. Em meio a toda loucura, Santana deixou o palco, mas a gritaria foi tanta que ele teve que voltar e cumprir a promessa feita no início do show. E a zoeira continuou, deixando a turma cada vez mais ouriçada. Mas o show chegava ao seu final, depois de quase três horas de música e alegria, e Carlos Humberto Santana Bustamante, filho de mexicanos, criado em San Francisco, Estados Unidos, se retirava do palco, desta vez definitivamente, com a consciência de ter cumprido sua missão: 'Quando estou tocando, sei que as células de meus irmãos sentem os sons que saem de minhas mãos. Porque eu não sou eu, sou a própria música. E isto é oque eu quero mais do que tudo'."

terça-feira, 20 de novembro de 2012

Ronnie Von Psicodélico

Ronnie Von surgiu para a música em 1965, interpretando uma versão para a música Girl, do álbum Rubber Soul, dos Beatles. A música, que em português virou Meu Bem, foi um sucesso imediato, e Ronnie virou um novo ídolo da Jovem Guarda do dia para a noite. Com sua bela estampa e um jeito peculiar de cantar, com uma voz um tanto rouca, logo ele ganharia o apelido de "o pequeno príncipe", talvez um contaponto ao "rei" Roberto Carlos. A imprensa logo criou uma espécie de rivalidade entre os dois, a ponto de Ronnie receber o convite para apresentar  um programa de tv na Record, que se chamaria O Pequeno Mundo de Ronnie Von. Em seu programa Os Mutantes, que aliás, foram batizados por ele, que sugeriu o nome inspirado num livro que ele estava lendo na época: O Planeta dos Mutantes, eram atração constante. Mesmo antes do Tropicalismo existir como movimento, Ronnie já se aproximava de Gil , Caetano e os Beat Boys (que acompanharam Caetano em Alegria, Alegria).
Em 1967, Ronnie grava um disco ousado para sua carreira de astro da Jovem Guarda, com acompanhamento dos Mutantes em oito faixas, e participação de Caetano Veloso na faixa Pra Chatear. O maestro Rogério Duprat e o produtor Manoel Barenbein, ligados ao grupo tropicalista também participaram da produção do disco. O LP não foi compreendido por seu público, ainda ligado à estética da Jovem Guarda, e o disco foi um grande fracasso de vendas.

Capa de seu disco de 68
Em 1968, em vez de voltar ao velho estilo, como poderia se esperar, Ronnie resolve mergulhar mais radicalmente no rock psicodélico em seu disco daquele ano. O disco abre com Meu Novo Cantar e
Chega de Tudo, trazendo uma certa agressividade em letras que são meio que um desabafo, seguida por Espelhos Quebrados, que traz a letra meio surrealista,  e um rock com influências de Hendrix: Sílvia: 20 Horas, Domingo. Até um som incidental, uma espécie de jingle de um certo Bar Íris (provavelmente imaginário) foi usado entre as últimas faixas. Pode-se dizer que é um disco anárquico e ousado. Obviamente, tamanha ousadia não agradou aos diretores de sua gravadora, pois afastaria seu público-alvo.
O seu álbum seguinte, de 1969, sofreria algumas intervenções da gravadora, afetando sua liberdade criativa, mas mesmo assim ainda trazia toques de ousadia e experimentações, a começar pelo próprio título: A Misteriosa Luta do Reino do Parassempre Contra o Reino do Nuncamais. O grupo argentino Beat Boys participaria do trabalho, trazendo ecos de rock progressivo. Uma das melhores faixas, por exemplo trazia um quilométrico título:  De Como Meu Herói Flash Gordon Irá Levar-me de Volta a Alfa do Centauro, Meu Verdadeiro Lar. Até bossa-nova havia no disco, Dindi, e uma versão para Atlantis, de Donovan, que virou Atlântida, feita por Ronnie e Rita Lee.

Capa de A Máquina Voadora
Em 1970 Ronnie ainda buscava um som de vanguarda e antenado com as novas influências de um rock mais radical e livre, mas a intervenção da gravadora, insatisfeita com sua ousadia em busca por um experimentalismo anti-comercial, apesar de ainda ser um cantor popular, afetou a produção de seu novo disco, A Máquina Voadora. Como na época ainda não havia discos independentes, os artistas tinham que se submeter às gravadoras, que sempre visam o lado comercial. Ronnie Von, hoje lamenta não ter podido conceber seus álbuns como gostaria, tendo que ceder às pressões comerciais; "A partir daí, meus discos começaram a sair pra cumprir contratos. Eu me sinto triste até hoje por não ter levado meus projetos adiante. Tinha tanto para mostrar, tantas ideias interessantes..."

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

O Pensamento de Bezerra da Silva

Nascimento: "Quando eu nasci, o meu pai já tinha largado minha mãe. Segundo ela, eu nasci no dia nove de março de 1936. Ela anotou a data num papel, guardou num baú, e os ratos comeram. Meu pai me registrou no Méier, nascido em 23/02/1927. Então,eu faço aniversário duas vezes ao ano."
Rock: "Quando gravei com o RPM, eles me explicaram que a mensagem deles é igual à minha, só mudaram os sinônimos. A música era sobre umas latas. Não tinha entendido nada daquele negócio. Depois é que me falaram que era maconha que tinha aparecido boiando."
Compositores de  verdade: " Esse gênero que eu canto eu não sei compor. Eu comoponho mais coco. Tenho uma equipe de compositores, principalmente da Baixada Fluminense, que é o quartel general do samba. Eu não tou com esse futebol todo não, se soubesse fazer isso tudo já tinha comprado um avião, entendeu malandro?"
Drogas: "Não bebo, fumo muito pouco, não fumo maconha, nem cheiro cocaína. Ficam dizendo que o Bezerra dá dois, que o Bezerra cafunga. Eles ficam tudo instigados com as minhas letras. Dizem que eu dou dois, mas não ligo. É bom porque vende disco."
Sequestro: "Outro dia me perguntaram se eu não tinha medo de ser sequestrado. Eu nunca vi ninguém sequestrar crioulo. Se me sequestrarem, já avisei em casa, o meu resgate é um berimbau que eu tenho lá."
Pagode: Isso não existe como gênero musical. É um encontro, uma reunião. Agora virou uma etiqueta comercial. O que eu faço é partido alto."
Malandragem: "Não existe malandro no morro. Só pode dizer isso dos ministros, do presidente. Dizem que malandro é ladrão e maconheiro, eles são vítimas da sociedade. Nas quais eu me enquadro, só que escapei. Malandro de verdade, você encontra na Vieira Souto, tudo morando de frente pro mar. Malandro que mora no morro ou é débil mental ou maluco."
Morro: "O pessoal do morro não tem dinheiro pra comprar drogas. Eles ficam só segurando o flagrante e cheirando a rapa. Lá tem sempre um para segurar a descarga."
Negritude: "Se Deus deixasse eu fazer do jeito que eu quero, com a cuca que tenho, eu seria verde. Todo bonito. Ninguém ia ser igual a mim. Eu seria um sucesso com o cabelo todo de ouro. Ia ser tudo comigo mesmo, mas me fizeram um crioulo esquisito."
Polícia: "Eu morei vinte anos no Morro do Cantagalo. Entrei em cana uma porção de vezes para averiguações. Fui campeão de averiguações, mas nunca respondi processo. Meu boletim é nada consta. Um dia eles abriram a porta da viatura e eu sentei por minha conta. Só me prendiam para marcar ponto."
Começo de carreira: "Nasci em Pernambuco. Vim para o Rio de Janeiro com quinze anos de idade, correndo na frente de um boi zebu, só com a roupa do corpo. Já nasci músico, mas trabalhava em obra, era pintor."
Indústria do disco: "Acabei de renovar o contrato e foi aquele dá não dá. Eles têm medo de dar dinheiro pra crioulo, acham que o cara vai comer o papel. Crioulo sai logo gritando pela rua: 'Tô com dinheiro!'. Mas eu sei o que faço, pode me dar o meu."

domingo, 18 de novembro de 2012

Show do Vímana - Teatro Tereza Raquel - 1976

A banda Vímana hoje é conhecida por por na década de 70 ser formada por alguns dos principais astros do rock brasileiro a se destacar nos anos 80, como Lulu Santos, Ritchie e Lobão. A vida da banda não foi das mais longas, e nem chegou a gravar nenhum álbum, apenas um compacto, que hoje é considerado raridade. A banda seguia a linha do rock progressivo, muito em moda na época, e chegou a fazer vários shows, como o que foi resenhado abaixo, pelo jornalista Guerra, do Jornal de Música em sua edição de ouubro de 76. O show aconteceu no Teatro Tereza Raquel, no Rio de Janeiro, que era palco de grandes shows da época.  Na matéria, intitulada "Funky, Chorinho e Rock: Vímana", o crítico reclama do excesso de exibicionismo de Lulu Santos, elogia o jovem baterista  Lobão e faz críticas aos dotes vocais de Ritchie, principalmente sua dicção, talvez desconhecendo tratar-se de um inglês recém-chegado ao país. Abaixo a resenha:

"Com o mesmo repertório do show anteriormente apresentado no MAM, o Vímana fez uma série de apresentações bem razoáveis no Teatro Tereza Raquel (Rio), de 6 a 10 deste mês. Felizmente desta vez o som não estava embolado e podia-se distinguir perfeitamente os instrumentos e o vocal. Em termos de marcação de palco, os esforços de Ritchie e de Fernando Gama foram obscurecidos pelo exibicionismo particular de Lulu em sua mis-en-scêne-pra-fotógrafo. A produção do concerto foi bastante boa e com espanto vimos pela primeira vez na história do Teatro Tereza Raquel um show bem iluminado.

O jovem Lulu Santos nos tempos do Vímana
Como destaque desta série de shows, podemos apontar Lobão, que indubitavelmente desponta como um dos bons bateristas da cena carioca de rock. Sua composição Zebra é a melhor música do repertório do grupo e foi a mais aplaudida pelo público presente. Quanto a Luiz Paulo, mais uma vez ele provou ser o melhor tecladista em ação pelas quebradas, mostrando um domínio absoluto de seus oito teclados. Sua peça Perece Um Chorinho foi outro bom momento do show, executado em um piano eletrificado, numa mistura de estilos Keith Emerson-Ernesto Nazaré. Encerrando a parte boa do repertório, Lulu interpretou com grande força Só Eu, música de sua autoria, demonstrando que possui mais dotes vocais do que Ritchie, que como vocalista é um ótimo flautista. Para encerrar, podemos dizer uma coisa: o funky pode ser a saída para o Vímana, mas o som dos meninos ainda está muito complicado. Por que não simplificar? Fernando, dispense a palheta e comece a tocar com os dedos! assim, o som sairá bem funky mesmo. E você, Ritchie, procure um curso de dicção o mais rápido que puder."

sábado, 17 de novembro de 2012

Gilberto Gil Lança Refavela - 1977

Em 1977 Gilberto Gil lançava o disco Refavela, um trabalho que reafirmava sua negritude, e buscava uma aproximação com o movimento Black Rio, muito em voga na época. Os setores mais conservadores da crítica não viam com muitos bons olhos o movimento, por trazer elementos da música black americana, e isso gerava críticas a quem buscasse essa aproximação. Caetano, com o disco Bicho, e agora Gil, com Refavela desafiavam a crítica radical, e lançavam discos com muito suíngue e balanço, com um pé na black music. As suas raízes negras se afloraram numa recente viagem de Gil e Caetano à Nigéria, para um festival de arte negra. O jornal Hit Pop trazia uma matéria com Gil, falando do lançamento de Refavela:
"Ano pasado foi Refazenda, agora é a vez de Refavela - um novo disco, uma nova e gratificante surpresa musical do irrequieto Gilberto Gil. Com o cabelo enrolado em trancinhas, um gorro de lã enfiado na cabeça, Gil vai falando mansinho, alimentando com malícia a polêmica que seu trabalho tradicionalmente deflagra. Agora a questão é basicamente esta: afinal, qual é a ligação do Gil/Refavela com o movimento Black Rio? E a resposta é ambígua e imprecisa, como convém: 'Pode até me chamar de incentivador do movimento Black Rio, que também pode ser Black Portinho ou Black Belô... Gosto da palavra black e acho que  o  movimento não existe. Mas não sou contra, porque não posso combater as coisas espontaneamente bonitas...'

Na verdade, Gil anda meio grilado com a interpretação que as pessoas têm dado às suas últimas declarações. Por isso prefere falar de uma vivência menos recente, mas muito intensa e marcante em todo o seu trabalho: a viagem que fez à Nigéria no começo deste ano para participar de um festival de arte negra. Antes mesmo de atravessar o oceano, ele já estava curtindo a viagem como uma espécie de volta às raízes. E foi assim que nasceu a canção Babá Alapalá, que está em Refavela, e é um estudo sobre a encestralidade negra.
Mas foi realmente lá, na Nigéria, que ele viveu com intensidade absoluta essa consciência de negritude. 'De repente', diz, 'eu estava numa terra só de negros, onde não há essa relação do negro sempre em função do branco. Uma relação em que o negro está em nível inferior, vem de uma condição de escravo... Lá, eu realmente me senti em casa'. Tanto que um dia, ao sair de um teatro, à tarde, depois de viver uma série de experiências culturais com várias comunidades africanas presentes ao festival, Gil viveu uma experiência muito bonita: 'Eu saí sozinho,  assim, caminhando por uma calçada para tomar um ônibus, e de repente, sem nem sentir direito, comecei a saltitar e a rir de felicidade. Foi uma coisa espontânea, maravilhosa, eu estava muito feliz por estar num lugar onde o negro vive em plenitude, onde todas as pessoas são negras como eu...'.
A essa constatação, juntou-se outra: 'Na verdade, há muita semelhança entre Lagos (capital da Nigéria) e as cidades brasileiras. Principalmente, com as capitais nordestinas, pois a maioria dos escravos que vieram para o Brasil pertenciam à cultura yorubá, a mesma que predomina na Nigéria. 'Então', diz Gil, 'do ponto de vista da dança, da música, dos costumes mais imediatos, do próprio andar das pessoas, tudo é muito Rio, muito Bahia, muito Recife'.


Refavela: revela, fala, vê
 Segundo Gil, na África a moçada das cidades transa os mesmos lances que os blacks do do Rio: 'Então eu não sei se é bom ou se é ruim. Mas acho bonito. Não sei se é prejudicial à tomada de consciência do negro como classe. Mas eu sou apenas um artista. Sei que existe o problema social, o problema econômico, o problema político, e que isso é relevante. Mas, a obrigação da gente, como artista, é mais com relação ao poético, às cores das coisas. E as cores dessa coisa black são bonitas.'"
Na capa interna do disco, Gil resume o conceito do disco;
"refavela, como refazenda, um signo poético.
refavela, arte popular sob os trópicos de câncer e de capricórnio.
refavela, vila/abrigo das migrações forçadas pela caravela.
refavela, etnias em rotação na velocidade da cidade/nação.
não o jeca mas o zeca total.
refavela, aldeia de cantores, músicos e dançarinos pretos, brancos e mestiços, o povo chocolate e mel
refavela, a fraqueza do poeta; o que ele revela, o que ele fala, o que ele vê."

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Descobrindo João Donato

Algumas imagens ficam presentes em minha memória, e permanecem para servirem de testemunha de um tempo, e trazerem de volta sensações boas, ruins e até indiferentes. Uma das tantas imagens de um passado distante que eu guardo até hoje, com alguns pequenos detalhes foi a primeira vez que vi João Donato tocando na tv. Eu devia ter uns 14 anos , e costumava assistir a um programa dominical na antiga TV Tupi, comandado por um apresentador chamado Mauro Montalvão. O programa não era voltado para um público mais selecionado, costumava trazer atrações mais populares, por isso a presença de Donato foi meio surpreendente. A importância daquela apresentação pode ser medida pelo fato de ser a primeira aparição de Donato na tv, após sua volta ao Brasil, já que morou alguns anos nos Estados Unidos. O apresentador deu ênfase a esse fato, enaltecendo aquele músico que eu nunca tinha ouvido falar.
Donato se apresentou com seu conjunto, com ele ao piano, uma cantora e alguns músicos. Apesar de adolescente, eu já me ligava num tipo de música mais diferenciada e de qualidade, mas a verdade é que não me liguei muito no que ouvi, mas aquelas imagens nunca sairam de minha memória. Lembro especialmente dele cantando (junto com sua vocalista) a música Cala Boca Menino, de Caymmi, que eu não conhecia. Nesse primeiro contato eu fui um tanto indiferente, mas ao ir conhecendo aos poucos sua música, logo virei um fã, e passei a me questionar porque aquela primeira apresentação não me chamou a atenção. No ano seguinte li uma entrevista de Donato no Jornal de Música, concedida à jornalista Martha Zanetti, que guardo até hoje, e aqui reproduzo alguns trechos:
" - João Donato, como você começou a se envolver com o grupo baiano ?
- (Procurando na agenda) Foi em abril. A Miúcha me chamou para ir à casa dela. Me disse que o Caetano Veloso, o Gilberto Gil e a Gal Costa estariam lá, se eu gostaria de ir. Eu fui. Aí nos conhecemos, falamos, cantamos, tocamos num violão que tinha lá. Eu pedi para o Gil pôr letra em uma música minha. Todos eles foram para a Bahia logo depois. Daí uns quinze dias mais ou menos, a Miúcha me telefonou e disse que estava trazendo a letra do Gil para mim. Fiquei emocionado; ele não tinha esquecido. A música era 'Lugar Comum'. Aí a gente começou a se ver.
- E as outras letras, como nasceram?
- Eu comecei ensaiando com a  Gal, vendo os arranjos. Um dia levei uma fita minha para o Caetano e a Gal ouvirem. Na primeira música Caetano perguntou 'O que é isso?' Eu disse: É uma besteira. Mas ele falou logo, '´uma coisa linda'. Ele foi para casa para fazer a letra da música que ficou sendo 'Que Besteira'. Mas como ele tinha o meu disco ele acabou fazendo a letra do Sapo, que ficou sendo 'A Rã'. Ele me disse: 'Tá parecendo águas de abril, mas eu tive vontade de fazer e fiz. 'Flor de Maracujá' fui eu que fiz para a Gal, dedicado a ela. É a primeira vez que eu ponho letra em uma música minha. Nesse tempo a gente já estava sempre se encontrando e eu pedi para o Gil fazer a letra de 'Que Besteira'. O Gil foi fazer uns shows em Minas e na volta trouxe a letra. 'Naturalmente' eu estava tocando e o Caetano fez a letra. Essas músicas vão sair num disco que eu vou fazer para a Philips, agora em dezembro. Vou pôr no disco músicas de outros compositores também.

- O seu comportamento no palco é planejado? Você já tinha experiência de palco? Você fica à vontade?
- Antes eu só tinha trabalhado em boate. As pessoas ficam bebendo e conversando, mas a gente não deixa de estar exposto. Até hoje eu fico nervoso, principalmente cantando. Se eu pudesse só tocava no palco. Mas o pessoal todo me anima muito. Quem primeiro me animou a cantar foi o Agostinho dos Santos. Uma vez na casa de Marcos Valle, um pouco antes do Agostinho morrer, ele me convenceu a pôr letras nas minhas músicas, assim até ele mesmo iria cantá-las. Aí eu tive que pôr letras. Tenho letras de Paulo César Pinheiro, Geraldo Carneiro e meu irmão Lísias, desse tempo. 'Até Quem Sabe' já tem umas três gravações. Nos shows de Rosinha de Valença as coisas aconteciam, sabe. É como estar num baile de carnaval e acabar saindo dançando. É assim.
- Como era o seu relacionamento no exterior com o João Gilberto?
- Era uma coisa muito pitoresca. Ele me telefonava às quatro horas da manhã, por exemplo, para tomar uma média com café. Eu argumentava ao telefone que estava muito frio, que estava nevando, mas acabava indo para o frio e a neve. A gente falava um pouco, mas acabava sempre no violão, no piano, tocando, cantando... O João é uma pessoa única, não há adjetivo pra ele não.
- E dinheiro, você está ganhando?
- Tô.

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

The Last Waltz - O Último Concerto de Rock

Um dos grandes documentários sobre rock já produzidos para o cinema foi sem dúvida The Last Waltz, dirigido por Martin Scorsese. O filme, que no Brasil ganhou o título de O Último Concerto de Rock , foi exibido em 1978, mas eu só o assisti pela primeira vez na telona em 1981, em uma programação especial, já que na época de seu lançamento os cinema aqui da cidade não o exibiram. Mas na verdade o concerto de despedida da The Band, reunindo um time de estrelas do rock aconteceu em 1976.
O grupo canadense The Band, se notabilizou por durante muitos anos acompanhar Bob Dylan em shows e em discos históricos, como Basement Tapes. Mas a banda teve uma carreira própria, e foi um dos grandes grupos da cena do rock nos anos 60, quando lançou excelentes discos. A The Band era formada por Robbie Robertson (guitarra e vocais), Richard Manuel (vocal, teclados), Levon Helm (bateria, vocais), Garth Hudson (teclados, vocais) e Rick Danko (baixo, vocais). Como se vê, todos os membros da banda tinham participação vocal, o que era um diferencial. Depois de uma longa carreira, iniciada ainda no Canadá no início dos anos 60, a banda resolve sair de cena, e decide por fazer um grande show reunindo alguns de seus grandes amigos que conquistaram na estrada do rock. O resultado é um show grandioso, reunindo gente do peso de Bob Dylan (uma presença óbvia), Ronnie Hawkins, Eric Clapton, Muddy Waters, Paul Butterfield, Van Morrison, Dr John, Stephen Stills, Neil Young, Joni Mitchel, Neil Diamond, Ringo Starr e Ron Wood. O concerto histórico aconteceu no teatro Winterland, em San Francisco, onde a banda realizou seu primeiro show com o nome The Band, em 1969.

O número de encerramento, comandado por Bob Dylan
Um time de peso como esse não poderia ser reunido sem que fosse devidamente registrado.  Robbie Robertson então procura Martin Scorsese, que era um grande fã da banda, e ele topou a empreitada, e assim nasceu The Last Waltz. Trazendo cenas de bastidores, entrevistas e números musicais, o filme traz toda a atmosfera daquele concerto de despedida. Algumas performances vieram de material filmado depois do show. Scorsese levou a banda até um outro palco e filmou as canções 'Evangeline', com Emmylou Harris e 'The Weight', com as Stapples Singers. Eles também tocaram 'Theme From The Last Waltz' no mesmo local.

Dr John e Eric Clapton tirando um som nos bastidores
Os shows mostrados  são excelentes. A The Band canta alguns de suas principais músicas, e apresenta seus convidados, como Joni Mitchel, com seu som folk elétrico, Dr John, canta 'Such a Night', numa performance memorável, Muddy Waters, talvez o maior responsável pela eletrificação do blues, canta seu grande clássico 'Mannish Boy', Neil Young e Van Morrison, outras duas lendas do rock também fizeram ótimos shows. A última atração da noite fica por conta de um dos grandes responsáveis pelo sucesso da The Band -  Bob Dylan. Saudado como a grande atração da noite, mesmo em meio àquele time de estrelas, Dylan interpreta 'Baby Let Me Follow You Down' e 'I Shall Be Released', com todos os convidados de volta ao palco, encerrando o grande show. O documentário deixa registrado um grande concerto, daqueles que ficaram marcados e que teriam de ser registrados, e Scorsese, melhor do que ninguém, realizou um trabalho digno de todas aquelas estrelas que subiram no palco naquela noite. Ainda bem que aquela reunião fantástica ficou registrada. 

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

João Gilberto - Um Garimpeiro de Decibéis

A Revista do CD nº 1, de abril de 1991, falava sobre o lançamento de mais um disco de João Gilberto, e trazia o seguinte depoimento do maestro  Júlio Medaglia:
"Ouvi João Gilberto pela primeira vez em 1959, durante férias na cidade de Franca, no interior paulista. Percebi que naquele som havia uma mensagem cultural nova, sobretudo compreendendo a fase que a música brasileira atravessava: o baião, a sanfona, o samba-canção abolerado, os vozeirões de Cauby Peixoto e Dalva de Oliveira.
Nesse contexto, João Gilberto representava a antivoz, a antiorquestração, o antiarranjo. Sua música era concentrada, de uma economia astronômica: dois ou três acordezinhos aqui, uma frasesinha de violino ali. O Samba de Uma Nota Só resume essa economia de elementos. Ele buscava a música pura, sem enfeites ou artifícios além da expressão enxuta, colocada à flor da pele. A ordem era diminuir as notas e aumentar a tensão. Não havia desperdícios. Essa foi a mais fina música da câmara que se fez no Brasil. E acho também que que a Bossa Nova foi mais cool do que o cool jazz. Embora fosse influenciado pela música americana, os músicos de lá quase não conseguiram reproduzir aquele nosso som. É que os músicos americanos já não tinham o estado de espírito necessário para chegar àquele despojamento absoluto. Mesmo que a Bossa Nova tenha assimilado componentes do jazz americano, João Gilberto usou tudo de uma forma brasileira.
Na verdade, a ideia da erudição, entendida como aperfeiçoamento da técnica, está presente na obra de João Gilberto. Tendo convivido com ele, sei que consome seu tempo exercitando formas de executar sua voz, o seu equipamento sonoro e vocal, aperfeiçoando cada vez mais o jeito de colocar palavras, letras, sílabas, até atingir uma expressão muito sutil. Passa dias e noites trabalhando a mesma música, extraindo novas sonoridades do violão. Lembro que uma vez ele estava tocando para mim Foi na Lapa que Eu Nasci... De repente parou e disse: 'Você notou que aqui a segunda corda não se ouviu bem?' Eu não tinha percebido nada. Devia ser uma diferença de um milésimo de decibel.
João Gilberto é um pesquisador em permanente aperfeiçoamento da sensibilidade. Se ele quisesse, por exemplo, empostar a voz, poderia cantar à maneira Silvio Caldas. Canta concentrado por opção. E como ocorreu com Mozart, quanto mais João simplifica sua música, mais fica difícil de tocá-la.
Quando comecei a tocar violão, aprendi os chamados acordes perfeitos: dó maior, fá maior, sol maior, correspondentes à primeira, à segunda e à terceira posições. Com tais acordes básicos de uma harmonia, teoricamente seria possível tocar tudo. Só que, com a Bossa Nova, eles não eram mais usados. Todos os acordes tornaram-se verdadeiros 'cachos' sonoros, enriquecendo as harmonias, permitindo novas modulações, influenciando todos os músicos brasileiros. A música de João Gilberto possui essa refinadíssima qualidade, um elevadíssimo nível de concentração de elementos e sofisticado tratamento sonoro."

terça-feira, 13 de novembro de 2012

The Rolling Stones Rock'n Roll Circus (1968)

É curioso como algumas obras-primas acabam virando projetos arquivados, ficando esquecidas e sem que cheguem ao público durante quase toda uma vida. Quando por algum motivo essas obras são encontradas e recuperadas, e finalmente lançadas é que se vê o quanto de tempo foi perdido em não serem postas no mercado. Falo de um especial para a televisão, não um programa qualquer, mas Rock'n Roll Circus, um super especial para a tv, em que os Rolling Stones eram os grandes protagonistas, trazendo convidados que eram o que de melhor havia no rock dos anos 60. O programa, gravado em Londres nos dias 10 e 11 de novembro de 1968, trazia além dos próprios Stones, convidados de peso como John Lennon e Yoko, Jethro Tull, The Who, o bluseiro Taj Mahal e Marianne Faithfull. Esse especial nunca foi levado ao ar, o projeto abortado e esquecido durante 28 anos, até ser finalmente lançado comercialmente como cd e vídeo em 1996.
Os motivos que levaram à não exibição do programa são controversos. Vão desde problemas de uso da imagem dos diferentes artistas, a insatisfação por parte dos Stones de sua performance, até pelos protagonistas se sentirem ofuscados pela performance arrasadora do The Who. Mas a verdade é que o mundo do rock ficou privado durante anos de uma reunião do que de melhor o rock produzia naqueles revolucionários anos 60. 

O especial é exibido, como o próprio nome indica, em uma atmosfera circense, com Mick Jagger caracterizado de mestres de cerimônias de um grande circo, onde os grupos convidados se apresentam entre números de circo. O Jethro Tull, ainda em início de carreira toca Song For Jeffrey, de seu disco de estreia, This Was, com o fato curioso de ter na guitarra Tommy Iommi, do Black Sabbath na guitarra (vide recente postagem sobre o Jethro). O The Who, que na época já era uma banda com uma certa estrada (já estava em seu quarto álbum) faz uma apresentação memorável, com o número A Quick One While He's Away. O bluesman Taj Mahal também faria uma apresentação de peso, trazendo seu blues pesado e elétrico, bem ao estilo dos demais convidados. Outra convidada, Marianne Faithfull, que na época namorava Mick Jagger, cantaria Something Better. Apesar de ser considerada apenas uma protegida dos Stones, Marianne tinha uma bela voz, e fez parte da cena do rock inglês daquele período. John Lennon faria uma participação arrasadora com Yer Blues, do Álbum Branco dos Beatles. Yoko também cantaria ao lado de John, e destoaria daquele time de talentosos músicos, mas ela fazia parte da viagem de Lennon naquela época, e logicamente não ficaria de fora.

O The Who no Rock'N Roll Circus
Os números musicais dos Rolling Stones, traziam performances arrasadoras para Jumping Jack Flash, Parachute Woman, No Expectations, You Can't Always Get Want, Sympathy For The Devil e Salt Of The Earth. A banda, no auge, ainda trazia a participação de Brian Jones, que não mais faria parte da banda no ano seguinte, e pouco tempo depois seria encontrado morto em sua banheira.
Felizmente as imagens e o áudio do programa puderam ser recuperados, após serem dados como perdidos, já que o tape original só foi encontrado em 1989, e após passar por um minuncioso processo de recuperação pôde ser lançado, já com a aprovação dos Rolling Stones alguns anos depois. São, sem dúvida, imagens históricas que testemunham uma época em que o rock vivia seu período mais criativo, e as bandas e artistas que se apresentavam viviam o seu auge criativo. 

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

O Tetra do Flu

A rodada de ontem do Brasileirão definiu o campeão, com três rodadas de antecedência. Um campeão que todos esperavam, mas que nem por isso deixou de tornar emocionante a partida que fez o Flu se sagrar campeão. Uma partida dramática no segundo tempo, com direito a uma quase virada de um Palmeiras disposto a tudo para não cair para a série B, e onde prevaleceu a estrela do craque, do homem que busca o gol, e por isso é artlheiro, o magnífico Fred.
Se fôssemos olhar somente a frieza dos números contidos nas duas campanhas, diríamos que era seria uma partida desigual, entre o líder incontestável e um time que fez uma campanha bem abaixo das tradições do Palmeiras. Uma diferença de 40 pontos na tabela. Mas o futebol não funciona à base de números, da lógica e do provável, e por isso mesmo é fascinante. O jogo começou equilibrado, com o Palmeiras buscando o gol a todo momento, e o Flu procurando conter o ímpeto palmeirense, principalmente explorando a velocidade de Wellington Nem e o faro de artilheiro de Fred. E o Palmeiras levava perigo, principalmente nas jogadas aéreas. O gol do Atlético/MG sobre o Vasco, num penalti inexistente, cobrado por Ronaldinho Gaúcho parecia adiar o título para as próximas rodadas. E o jogo se encaminhava para terminar o primeiro tempo no 0x0, quando já nos acréscimos, aos 48 minutos, Wellington Nem recebeu a bola pela direita e bateu cruzado, com força, obrigando o goleiro Bruno a rebater, e a bola sobrar nos pés de Fred, que inapelável, mandou para o fundo das redes.
No segundo tempo, os times voltaram com a mesma disposição. O Palmeiras, no desespero, precisando da virada a todo custo, partia com tudo, mas o sistema defensivo do tricolor oferecia um bloqueio difícil de ser transposto. Aos 9 minutos, numa jogada em que Fred tentava um cruzamento para a cabeçada de Rafael Sóbis, a bola foi desviada pelo zagueiro Maurício Ramos, a bola acabou cobrindo o goleiro palmeirense e caindo no fundo do gol. A vitória e o campeonato do Flu pareciam certos àquela altura, já que o Vasco havia empatado a partida com o Galo mineiro. Mas aos 16 Barcos diminuiria para o Palmeiras numa jogada que começou num lance de bola parada em que numa confusão na área do Flu, a bola sobrou para ele mandar para as redes tricolores. O gol parece ter reavivado o ímpeto palmeirense, e três minutos depois, novamente num lance que se originou num lance de bola parada, Patrick Vieira empatou a partida, e o gol mudou a cara da partida. Impulsionado por sua torcida que ainda acreditava numa virada, e o time necessitando desse gol para ainda se manter vivo na série A, o Palmeiras partiu com tudo, e o Flu parecia acuado e levando uma forte pressão, como aliás, foi a tônica em grande parte de suas vitórias, onde o fantástico goleiro Diego Cavalieri se destacou com defesas memoráveis. E mais uma vez, a atuação de Cavalieri impediu o gol da virada palmeirense numa defesa monumental num tiro à queima-roupa de Maurício Ramos, que tinha endereço certo. A essa altura, a conquista do título parecia estar adiado, pois o Grêmio havia virado o jogo com o São Paulo, passando o Atlético em um ponto. Mas aos 43 minutos, a estrela de Fred novamente brilhou, após receber um cruzamento de Juan pela direita, e pegar de primeira, com a precisão dos grandes artilheiros, e se isolar ainda mais na artilharia do campeonato, com 19 gols. Daí foi se segurar na defesa, e esperar o apito final, para comemorar mais um título.

Uma campanha fabulosa, em que os números dizem tudo: melhor ataque, maior número de vitórias, melhor defesa, menor número de derrotas e artilheiro, e ainda faltando três rodadas para o encerramento do campeonato com uma diferença de dez pontos para o segundo colocado. Uma bela campanha, de campeão. Um título incontestável, numa partida em que não poderia faltar emoção, e aquele sufoco que nós torcedores tricolores nos acostumamos a sofrer em várias de nossas vitórias nesse campeonato. Parabéns Flu. A torcida agradece.

domingo, 11 de novembro de 2012

Gravadora Elenco - Um Marco na MPB

Uma gravadora que foi fundamental para os artistas revelados na Bossa Nova, e uma geração imediatamente posterior, de novos músicos e autores que surgiam no início dos anos 60 foi a Elenco, criada pelo produtor Aloysio de Oliveira (1914-1995). A gravadora, que lançou discos de 1963 a 1967, além de trazer em seus lançamentos o que de melhor a música brasileira  da época, ainda trazia um trabalho visual revolucionário para época, e que as gravadoras não se atentavam tanto. Basta olhar algumas das capas reproduzidas acima. A forma como o nome de Nara  é grafado, por exemplo, com as letras formando linhas retas e enviesadas, com setas apontando para lados opostos , ou a fusão de letras da capa do disco de Vinícius e Caymmi, com o ponto vermelho do logo da gravadora servindo de ponto das letras I, ou ainda a fusão do colorido e preto e branco da capa do disco de Edu Lobo. As fotos sombreadas, como nos discos de Nara Leão e Tom Jobim, também eram marcas das capas da Elenco.  A Revista do CD nº 4, de julho de 1991, falava sobre a Elenco, num texto do jornalista e pesquisador Sérgio Cabral:
"Quando Aloysio de Oliveira resolveu criar a gravadora Elenco, em 1963, ele já tinha uma experiência de 30 anos na música popular brasileira, como integrante do conjunto vocal Bando da Lua - com o qual viajou, em 1939, para os Estados Unidos, acompanhando Carmem Miranda. De lá voltou em 1956, para assumir a direção artística da gravadora Odeon, onde permaneceu até 1961.
A Elenco foi uma resposta que Aloysio de Oliveira pretendeu dar à Odeon, quando a gravadora dispensou alguns artistas muito ligados a ele, como Silvinha Telles e Sérgio Ricardo. Foi uma resposta difícil, pois ele não tinha dinheiro para montar uma empresa. Naquela época, porém, o Brasil ainda vivia a euforia do governo desenvolvimentista de Juscelino Kubitschek e não seria impossível encontrar quem desejasse investir num empreendimento como aquele. E Aloysio saiu à cata de dinheiro com os amigos. Dois deles foram fundamentais na composição do capital inicial: Celso Frota Pessoa, padastro de Tom Jobim, e Flávio Ramos, empresário da noite e proprietário de boates onde Aloysio de Oliveira já realizara, como diretor, antológicos espetáculos com o pessoal da Bossa Nova. O passo seguinte foi o de encontrar a empresa para fabricar e distribuir discos, tarefas entregues à RCA Eletrônica Brasileira S.A. (...)"

 Na mesma revista o criador da gravadora, Aloysio de Oliveira (cuja foto ao lado aparecia em todas as contracapas dos discos da Elenco), que na época morava na Califórnia, deu um depoimento sobre a Elenco:
"A Elenco foi realmente uma coisa muito boa em minha vida. A despeito de tudo, dos problemas e das dificuldades, deu certo porque tinha de dar certo. A história da Elenco todo mundo conhece. E foram tantos os seus discos, que para mim é difícil dizer qual foi o melhor. Embora a ideia de juntar grandes atistas - como, por exemplo, Caymmi e Vinícius - tenha sido elogiada, a mim parecia uma coisa óbvia.
Eu entendia o disco como um show, mais do que qualquer outra coisa. Talvez essa percepção seja influência do meu contato com o show business norte-americano desde os tempos do Bando da Lua. Como já disse muitas vezes, resolvi criar a elenco porque queria fazer aquilo de que gostava. Não tinha a pretensão de tomar conta da praça. E tive a felicidade de trabalhar com o primeiro time.
Tenho saudade de todos. Do Caymmi, que não vejo há cinco anos, do Edu Lobo, que não vejo a três, desde a última vez que estive no Rio; do Baden, que não sei por onde anda. O Tom tem falado comigo pelo telefone; sempre que vem aos Estados Unidos, ele me telefona. Aqui na minha casa, na Califórnia, não tenho ouvido música - nem toca-discos eu tenho. Mas a verdade é que a saudade do Brasil é muito grande. Eu gostaria de voltar para ficar, é lógico. Meus amigos estão aí, e é aí no Brasil que eu posso conversar. Eu queria voltar, mas, pensando bem, não tenho nada para fazer no Brasil. É saudade mesmo."

sábado, 10 de novembro de 2012

Airto Moreira e Hermeto Pascoal Falam de Miles Davis

Miles Davis foi sem dúvida, um gênio musical. Seu estilo de tocar criou escola e influenciou uma geração de músicos. Mudou a história do jazz mais de uma vez, ao ajudar a criar o be-bop, e mais tarde o jazz-rock. Tocar com Miles era um aprendizado, e quem teve esse privilégio sabe o quanto a experiência foi enriquecedora. Dois músicos brasileiros viveram essa experiência - o percussionista Airto Moreira (de quem falei recentemente nesse blog) e o multiinstrumentista Hermeto Pascoal, outro gênio da música.
Quando Miles morreu, em setembro de 91, os dois músicos deram depoimentos sobre o que foi tocar e conviver com Miles Davis, um músico genial, mas uma personalidade difícil. Segue abaixo os dois depoimentos:
Hermeto Pascoal: "Eu o conheci em 1970. Foi Airto que falou de mim a ele. Um dia, Miles ligou para a casa do Airto, onde eu estava, nos EUA, e disse: 'Leva esse albino lá em casa'; fui e toquei umas dez músicas. Rapaz, ele chorou, disse que era uma pena não poder gravar todas. Há nele - pois não posso dizer que morreu - uma enorme espiritualidade, uma energia muito grande. Em sua casa, depois que lhe mostrei as músicas, ficamos brincando, lutando boxe, eu que enxergo muito mal acertando socos nele. Miles praticamente não escreve, é um compositor de poucas músicas, os arranjos dele são escritos por outras pessoas. Mas também não lia as músicas, ia tocando. De repente ele tocava com uma orquestra, mas não lia a partitura, ia criando. As duas músicas que gravei com ele (Nem Um Talvez e Igrejinha, no disco Live Evil, 1970, Columbia/CBS), foi muito bonito aquilo. Eu assoviava e tocava órgão, e ele, em milésimos de segundo, ia atrás, em cima do tema, criando ali mesmo no estúdio. Houve entre nós algo muito forte. Há uns três meses, eu estava tocando no Blue Note, em Nova York, e ele estava atrás de mim, me telefonando. Sei que queria que fizesse alguns arranjos para algumas músicas; mas ele teve uma recaída e não pôde falar comigo. Seu carisma era divino, bonito. O cara realmente musical que tocasse com ele sentia isso, essa força."
Airto Moreira: "Trabalhei com Miles quase três anos, de 1970 a 1972. Gravamos Bitches Brew, At The Fillmore, Miles At The Island of Wight, On The Corner e outros. Naquela época estávamos sempre com Janis Joplin, Jimi Hendrix. O Jimi apresentou a ele o pedal Wha-Wha ( que introduz distorções no som produzido pela guitarra elétrica); ele gostou e começou a usar.
Digo a você, nas três primeiras vezes em que toquei com ele, eu não sabia o que estava fazendo. Tocava por intuição, não sabia sequer o tempo forte da música, o um da música. Boa parte das vezes aquilo soava para mim como uma grande confusão. Porque era uma música livre, com três, ou quatro, e às vezes, apenas um acorde. Como cada um tocava o seu lance, eu ficava perdido no meio. Mas, intuitivamente, tocava certo, ele me olhava e sorria para mim. E, quando ele fazia isso, olhava aprovando, a energia que vinha em seu olhar era desbundante, melhor, muito melhor que dinheiro. Agora, quando olhava desaprovando, seu olhar era pior que um tapa na cara! Com ele não se lidava facilmente. Eu tinha de ser um lobo num covil de lobos, e ele era o lobo-mor. Na época, sua música era um tema corrente nos EUA. E ele estava envolvido com a Máfia. Tocamos muitas vezes em clubes de mafiosos, todos aqueles italianos, com as armas pressentidas sob os paletós. Contraditoriamente, também andava com os Black Panters. E suas raízes não eram de gente pobre, vinha de uma família de classe média alta.

Mas odiava os brancos. Virava para a gente e dizia: 'O que é que você sabe? Não sabe nada, é um branco filho da puta!' Respondíamos  que ele era um negro filho da puta, e ele ria, se divertia. Não podia haver vacilo com ele.
Quando comecei a trabalhar com ele, usava drogas, mas depois parou. Tinha uma grande preocupação com o físico, a aparência. Malhava em academias, treinava boxe, fazia massagens e sempre levava seu cabeleireiro nas turnês. Era o mesmo que havia trabalhado com Jimi Hendrix. Nós tocávamos cores, não sons. Se fechar os olhos, você poderá ver as cores da música. O blues é algo escuro, as tonalidades bem graves, que se arrastam, quase sinistras. Se se está tocando em cima, nas notas mais altas, num ritmo mais vivo, com sons matálicos, a música fica mais iluminada, clara. E Miles estava mais para Van Gogh que para Goya.
Miles Davis nunca ficou nas bordas da própria loucura. Mergulhou fundo. Foi o único superstar do jazz que jamais existiu."
Assim era trabalhar com Miles, nos depoimentos dos dois músicos. A troca de experiências, musicais e pessoais, eles levarão para sempre, assim como para sempre ficará a música de Miles.