Palavras Domesticadas

Palavras Domesticadas

sexta-feira, 31 de julho de 2015

Entrevista com Luiz Carlos Maciel, o Guru da Contracultura (1997) - 1ª Parte

Luiz Carlos Maciel foi uma espécie de guru para quem se ligava em contracultura e arte alternativa nos anos 70. Sua coluna no jornal O Pasquim, chamada "Underground", falava nesses assuntos numa época em que a imprensa brasileira tinha poucos representantes nessa área de interesses. Recentemente soube-se que Maciel estava vivendo em dificuldades, e sem trabalho -  um grande absurdo, em se tratando de um profissional como ele. Essa postagem traz um entrevista que Maciel concedeu ao jornal universitário Enfoque, em fevereiro de 1997. Na época ele trabalhava na oficina de roteiristas da Globo e dava curso de roteiro para cinema e teatro, no Rio. Na entrevista abaixo Maciel fala sobre cultura, contracultura, cinema, música, etc:
"Enfoque - Você trabalhou com cinema, teatro, escreveu livros, etc. Mas como começou a sua carreira?
Maciel - Eu comecei a fazer teatro amador em Porto Alegre quando tinha 16 anos, ao mesmo tempo em que tinha que fazer vestibular. Eu entrei para Filosofia mas continuei com o teatro, fiz algumas coisas como ator. Mas, ao invés de seguir carreira acadêmica, eu, tomado por um estranho instinto de aventura, fui para a Bahia por insistência de Glauber Rocha, que na época não era conhecido, não tinha feito nenhum filme ainda. Eu tinha conhecido o Glauber quando passei por Salvador após um festival de teatro estudantil em Recife. Ele me convenceu a ir para a  Bahia porque achava que iriam acontecer coisas, que na Bahia ia surgir o novo cinema brasileiro, o novo teatro brasileiro, a nova música. Aí, fui pra lá. Na Bahia, eu ganhei, na escola de teatro, uma bolsa de estudos da Fundação Rockfeller para ir estudar teatro nos EUA. Fui pros EUA, estudei direção, estudei playwriting, técnicas dramatúrgicas que até hoje utilizo em meus cursos. Quando voltei, dei aula na Escola de Teatro da Bahia, já voltei como professor, vim para o Rio, fui professor do Conservatório Dramático Nacional, dei aula na Martins Pena, dei bastante aula de teatro. Mas, ao mesmo tempo, não conseguia desenvolver uma sobrevivência muito satisfatória no teatro, eu já tinha casado, já era pai de dois filhos, então eu me dediquei também ao jornalismo. Comecei a arranjar emprego em jornal, em revista e, ao mesmo tempo, ia fazendo o que aparecia, minha vida foi assim. Foi assim que eu fiz cinema, televisão, jornalismo, participei do Pasquim, aí foi muita coisa durante muitos anos.
A sua coluna 'Underground' no Pasquim tinha como objetivo divulgar a contracultura. Qual era a importância e como era feita a divulgação da contracultura na época?
Olha, havia no Brasil, quando o Pasquim saiu, uma situação política muito particular. O Pasquim saiu em 1969 e 68 tinha sido aquele ano das manifestações estudantis e tudo o mais, que o Zuenir Ventura escreveu: 'o ano que não terminou'. Aquilo tudo foi reprimido, a ditadura militar estava muito forte, era um momento de repressão. As opções para superar esse estado foram várias. Foram ao extremo com a resistência armada, as guerrilhas, a clandestinidade e todas as coisas terríveis que aconteceram. E eu entrei no Pasquim porque o meu amigo Tarso de Castro, que era um dos fundadores, teve essa ideia com um grupo de amigos de fazer um jornal de humor. Durante a ditadura de Salazar em Portugal a única coisa que era livre era o teatro de revista, que podia criticar o governo, fazer gozação porque não era coisa séria, era brincadeira. Aí, eu fui na disposição de que a coisa a fazer era humor. E, realmente, os primeiros números do Pasquim têm matérias minhas pretenciosamente humorísticas. Mas começou a chegar notícias deste movimento contracultural, dessa revolução no comportamento que acontecia nos EUA e na Europa também, que aparecia como uma alternativa aos ideais políticos que tinham animado a minha geração. Ao invés de você mudar a sociedade que está aí, você passa a viver numa sociedade própria. É a ideia que depois passou a ser conhecida como 'sociedade alternativa'. Já que você não gosta dessa sociedade em que você vive, você inventa uma sociedade no interior dela, onde as pessoas possam viver de outra maneira. Essa ideia me encantou, eu achei que isso era um ovo de Colombo, anunciava uma imaginação criadora em face à realidade. Aí, eu passei a me informar sobre essas coisas. E o  Pasquim soube que eu estava me informando sobre isso e resolvemos fazer duas páginas sobre esse assunto. Foi aí que surgiu o 'Underground'. O Pasquim começou como um jornal de humor mas estava procurando outras formas de um comportamento independente. O Tarso era um editor muito talentoso, tinha um  instinto jornalístico muito acentuado, e aí ele viu que o Pasquim podia não ser só um jornal de humor mas podia ter características próprias, originais, podia ter uma personalidade diferente. Ele me estimulou e eu fiquei surpreendido com a repercussão porque comecei a receber muitas cartas mesmo, de pessoas que diziam que queriam mudar a maneira de viver. E, além dessas confissões pessoais, chegavam cartas dos EUA de brasileiros que estavam lá, de jovens que estudavam lá.  Tinha um menino que estudava em Berkley, na Califórnia, que vivia mandando revistas e livros, porque eram novidade e me mantinham informado. Aí, comecei a veicular essas informações na coluna, eu nem escrevia as duas páginas inteiras. Teve semana em que eu não escrevia nada porque publicava outros textos. Eu editava, na verdade, as duas páginas. Aquele assunto era novidade e não era comentado por mais ninguém, não havia nenhum outro jornal alternativo que falasse daquilo. Foi isso que chamou a atenção do Tarso, era um território virgem a ser explorado. Não que ele, Tarso, se interessasse por aquilo.
 Para ele, era interessante jornalisticamente falando, né?
É. Aí começaram a aparecer pessoas me procurando lá no Pasquim e os outros me gozavam dizendo que só vinha maluco atrás de mim (risos). Diziam que eu ia abrir um hospício (risos). Então eu fiquei, inicialmente, um pouco dono do assunto. Contracultura? Quem sabe disso é o Maciel. Não é que eu soubesse muito é porque ninguém sabia. Foi assim que escolheram esse epíteto de 'guru da contracultura' que me persegue até hoje (risos).
Mas você não gosta de ser chamado assim? 
Não, mas  eu nunca consegui me livrar. Apalavra 'guru' significa professor e eu nunca fui professor de ninguém."

(continua)                                         
                                                                                

quinta-feira, 30 de julho de 2015

Anos 70 - Ame-os ou Deixe-os - Revista HV (1986) - 2ª parte

"1970 foi o ano em que os Beatles e os Crosby, Stills, Nash and Young produziram seu último álbum de estúdio e se dissolveram. Houve o aparecimento de novas gravadoras independentes (Island, Charisma, Vertigo, Chrysalis), o maravilhoso LP Moon Dance de Van Morrison, a realização do quarto e último álbum Loaded dos inesquecíveis Velvet Underground, e a criação da etiqueta Tuff Gong por Bob Marley.
Precisamente no Brasil, com toda a repreensão e ditadura (Brasil ame-o ou deixe-o!) eram distribuídos, por incrível que pareça, os lamentos mais significativos da Europa e América. Agora em 86, se formos estabelecer paralelos, vivemos numa época de total pasteurização, ninguém pesquisa a informação correta, só existe embuste. Ou melhor, graças ao pioneirismo de poucos (raríssimos) jornalistas e ousados DJs, estão sendo divulgadas bandas que os mandarins das gravadoras, depois de anos, 'descobriram' nos catálogos de suas etiquetas (e lá vem outro pacote de new-resto).
A Barca do Sol
Voltando ao passado, você se recorda dos bailes, domingueiras e mingaus dançantes nos clubes Pinheiros, Círculo Militar, Banespa, onde de três a quatro bandas distribuídas em palcos pelos salões se alternavam e onde os hits água com açúcar nos arrastavam de rostos colados até o fim da noite? Os principais conjuntos eram: Memphis, Porão 99, Dimensão 5, A Tuco e dezenas de outros.
Em rádio tínhamos o trabalho pioneiro do legendário Big Boy na Rádio Mundial com o programa Ritmos de Boate; o desarvorado freak Jacques Kaledoscópio na Antena 1 e Rádio Excelsior. Em TV o programa Som Livre Exportação apresentado por Ivan Lins e o Sábado Som no Canal 5.
Nesse turbilhão de agitações uma enxurrada de tendências e estilos se formou no cenário do pop nacional. O Terço era o máximo. A Barca do Sol e o Som Imaginário eram representantes do progressivo que despontava.
Made in Brazil
O sonho, ideal supremo de toda geração, se resume na dialética montanha-mar, ter uma casa em Mauá ou São Lourenço e  outra em Trancoso ou Litoral Norte de São Paulo. Quem não fez a peregrinação pela costa brasileira indo aos lugares já citados e, também, Canoa Quebrada, Saquarema, carnaval de Olinda e Salvador, praia do Francês, e todos os outros points?
Muitas bandas psicodélicas vieram à tona com os inesquecíveis  Mutantes e a louca comunidade dos Novos Baianos. Edy Star e Serguei, responsáveis pela glitermania, estabeleceram o desbunde com os protopunks Joelho de Porco.
De Pernanmbuco vieram Quinteto Violado, Alceu Valença, Banda de Pau e Corda; do Ceará, nas luzes de Ednardo, fomos invadidos por Belchior e a sigla CBS (cearenses bem sucedidos) - Fagner, Zé Ramalho, Elba Ramalho - formando a Geração Zabumba.
Compacto de Cavalo Ferro - Fagner
Através do sucesso dos Secos & Molhados vieram Achados e Perdidos, Ponto e Vírgula, Tom e Dito e outros mongolismos. De autêntica importância revolucionária, a figura de proa é o grand-father Raul Seixas com seu carro-chefe, Let Me Sing. Nicuri é o diabo. Juntamente com Jorge Mautner, Luiz Melodia, Sérgio Sampaio, Jards Macalé e uma infinidade de ídolos que para citar seria necessária uma matéria mais extensa.
Na mídia escrita tínhamos o revolucionário Bondinho (Rio de Janeiro), que com os jornais politizados (Versus, Opinião, Movimento) esclarecia o que era boicotado pela grande imprensa na área de música e de comportamento. A criatividade andou a vapor. Quem se lembra do Geração Pop, Rock a História e a Glória, Música do Planeta Terra, Rolling Stone e as revistas de quadrinhos O Bicho, Grilo, Gibi? Certo!"

quarta-feira, 29 de julho de 2015

Anos 70 - Ame-os ou Deixe-os - Revista HV (1986) - 1ª parte

Em 1986, a revista cultural alternativa HV (H de humor, V de Verdade) trazia uma matéria sobre os anos 70, assinada pelo jornalista Arthur Veríssimo. Abaixo, a transcrição:
"Em memória ao verdadeiro e único Caito Camargo (a eminência parda do rock paulista). 'Os gritos de gooolll da corrente pra frente abafavam os gritos de dor dos torturados nas masmorras do sistema.'
Fazermos um gráfico dos fatos e acontecimentos do universo pop entre 1º de janeiro de 70 e 31 de dezembro de 79 é uma tarefa um tanto delicada como nostálgica. Sem nenhuma preocupação de sequência cronológica, ponho mãos à obra.
Aqui no Brasil, com  a vitória no México e a conquista da Copa do Mundo de 70, todas as gerações subsequentes têm bem guardada em sua memória a escalação oficial da seleção. Mas alguém se recorda de James Brown pondo em parafuso o público no Teatro Municipal em 73, Carlos Santana no Palmeiras também em 73, Alice Cooper no Anhembi em 74, Miles Davis em antológico show no mesmo Municipal de São Paulo em 71? Pois é, desses acontecimentos alguém se lembra???????
Dando um voo de rastreamento por sobre a década passada, não nos esqueçamos da ebulição política dos 60, com  a ressaca de maio de 68, a experiência negativista do Vietnã pela juventude americana, a eterna ditadura no Brasil. As pessoas se voltaram para preocupações puramente pessoais, grande parte das elites convenceu-se de que o mais importante era o autoconhecimento psíquico, pesquisas sobre a sabedoria oriental, experiências dos ocidentais com novas (milenares) técnicas de terapia, culinária, meditação, gestalt, ioga, zen-budismo, tai-chi, dança-clássica-jazz-ventre, mestres espirituais, rolfing, acumpuntura, Instituto Esalém, lutas marciais e muita droga.
O objetivo era conhecer a si mesmo, sendo a outra extremidade a famigerada ideia fixa da egotrip. Nesse pequeno esboço percebe-se a importância dos anos 70, durante o qual o rock se expandiu por quase toda música à procura de novos moldes e fusões, do jazz com a música sinfônica, do rock com o psicodelismo, do pop com a tecnologia junto às produções faraônicas - era o momento de rock progressivo.
David Gilmour (Pink Floyd)
Não se esquecendo de que a força (vinha de fora) mais influente desta década se refletindo por inteiro nos 80 são os Velvet Underground, sem sombra de dúvida a banda mais importante da história do rock, junto com Marc Bolan, Bob Dylan, Beatles, Iggy Pop, Doors, David Bowie, Led Zeppelin (banda fundamental e marca dos 70), Stones, Roxy Music, Pink Floyd, Elvis Presley, New York Dolls, coletivamente responsáveis pela revolução que sofreu a música popular, liricamente. Mas isso já é outra história.
Vejamos o Brasil e suas manifestações decorrentes durante este efervescente período. Expressões e gírias re (inventadas) nos 60 se tornaram mantras e cantochões nos 70 e 80; e aí, bicho, super, massa, boko-moko, loki, morô, só, é uma transa mais de cabeça, joia-paca, fissura, jererê, bicho-grilo, jazzco, pedra, podescrer, mui loco, e muitas tantas arquivadas na memória coletiva e utilizadas no dia-a-dia dos delírios e relações humanas. Quem não se recorda do black-market das primeiras camisetas Hang-ten e Lightming Bolt e dos tênis All-star cano-longo, nas peregrinações pelos corredores da mitológica galeria Pajé, onde as autênticas (após minunciosa perícia) Levi's 501 e Cone Japoneza eram disputadas a porradas, os casacos militares e macacões puídos encontráveis nos primeiros 'Lixões' que são equivalentes aos 'brechós' que pipocam atualmente pela cidade? Estas peças e outras do vestuário (medalhões, cinturões, bocas-de-sino, calças e camisas bordadas de cogumelos, símbolos religiosos, veludo berrante, malhas de pelo de lhama, bolsa boliviana e, naturalmente, o nojento gorrinho encebado) eram o denominador comum de identificação entre elementos da mesma tribo.
Eu pessoalmente adorava o meu autêntico mocassim apache e minhas calças bordadas de cogumelos e recheadas de miçangas. O cabelo era ao estilo 'ninho de rato', visualmente um trash-glitter contemporâneo. O local de encontro entre os 'meus' eram os pastos de cogs, em Parelheiros e Marsilac (zona sul de São Paulo) e o circuito onde as bandas (tupiniquins) se apresentavam: teatros, Igreja São Pedro, Bandeirantes, Tenda do Calvário, Banana Progressiva (GV), não podendo me esquecer também daquelas grandes noitadas na extinta Be Bop a Lula, onde a fauna mais variada coexistia com a cult band Made in Brazyl em noites do balacobaco e, também, as tardes de domingo, em concertos variados na lagoa do Morumbi... you remember?
Retornando à música, as gravadoras habilmente, com seus espertos executivos, cooptaram a energia e rebeldia (como sempre) da contracultura, adocicando e desenvolvendo-as como inofensivos e lucrativos  produtos de consumo. Muitos destes discos, que não precisavam mais ficar restritos e confinados a audições nas garagens em precárias vitrolas, foram aceitos e executados na própria sala de visita da família."

(continua)

domingo, 26 de julho de 2015

Frank Zappa: "Eu Sou um Benevolente Ditador" - Revista Música (1976)

Em 1976 a revista Música trazia uma matéria com Frank Zappa, um dos mais polêmicos e criativos músicos que o rock já produziu. Abaixo, a matéria:
"Frank Zappa e sua série de grupos de rock de avant-garde, The Mothers of Invention, não existem mais. Mas Zappa está mais vivo do que nunca, continuando a romper estruturas, atraindo milhares de pessoas aos palcos do rock - Felt Forum do Madison Square Garden e Palladium, em Nova York. Enquanto isso, avança nas paradas pop de sucesso com seu novo álbum pela WEA, Zoot Allures. E dividindo com Zappa esse renascimento de sua popularidade, seu novo grupo, chamado, simplesmente, Zappa.
Muitos fãs do Mothers, aborrecidos com o fim do grupo acusam Zappa de vendido, por tirar proveito de um som abertamente comercial. Zappa nega essa rotulação. 'Parece que ninguém pensa que os Mothers estavam com uma dívida de $10.000 quando se desfez', afirma durante uma entrevista em sua suíte no Mayfair House, em Manhattan. 'O que eu quero dizer é que eu continuava pagando aqueles salários não me importando com o que acontecesse e eu não podia continuar a pagá-los e fazer o tipo de música que eu queria.'
Esse tipo de música, a música do Zappa, é sério, música de influência classificadamente atonal, dissimulada em um rock repleto de ruídos das ruas e de dissonantes capazes de estourar os ouvidos. É o tipo de música que faz de Frank Zappa um compositor, produtor de filmes, vocalista, guitarrista líder e um músico inovador, com uma incrível aptidão para construir palavras e imagens visuais/musicais, atingindo a psyché dos adolescentes.
Nascido em Baltimore, Maryland, aos 21 de dezembro de 1940, criado na  Califórnia, auto-didata musical e prestes a tornar-se um milionário às suas próprias custas, Zappa fez várias trilhas sonoras para cinema, mais de 20 elepês, e também adaptações para o rock, indo desde a Sinfonia nº 40 de Mozart a The Planets, de Holst, e numerosos trabalhos do classicista moderno Edgard Varese. E também marca presença no mercado pop com hits de protesto, como Help I'm a Rock (Socorro, sou um rock) e The Return of the Son of Monster Magnet (A volta do filho do Monstro Magneto).
Mas Zappa, tendo resistido à ruptura de um casamento como à do Mothers of Invention, está mais sombrio, mais vivido e experiente do que quando começou em Los Angeles, há 12 anos. Mais tarde, seu sucesso Don't Eat the Yellow Snow (Não coma a neve amarela) torna-o popular.
Seu novo grupo está de malas prontas para uma turnê pelo mundo todo e já comprova sua popularidade através do comparecimento maciço às suas apresentações nos Eua.
Ele inspira confiança quando fala do novo Zappa, ele próprio e o grupo. 'Simplifiquei minha música em alguns pontos e a compliquei em outros. Mas nunca por motivos comerciais.' Insistindo, afirma que a música tem de ser simplificada devido ao tamanho dos locais onde está sendo apresentada. Ao mesmo tempo, o nível de seus músicos melhora cada vez mais, sendo que, dessa forma, eles podem trabalhar com arranjos mais elaborados. 'Mesmo tocando algumas músicas do repertório do antigo Mothers, qualquer semelhança entre meu novo grupo e o original Mothers é puramente conceitual. O novo Zappa pode fazer muito mais coisas que o antigo simplesmente não podia. Então, o destaque em nossas atuais apresentações deve ser dado mais ao futuro do que ao passado. Logo, com o devido respeito aos seus integrantes de agora - 50 ou 60 ao todo - penso que chegou a hora de colocá-los na sua perspectiva histórica, e dar mais atenção aos eventos apresentados a cada ano pelos grupos sucessivos.'
Suas performances ainda oscilam entre o surrealismo e a palhaçada, mas há uma emergente maturidade em Zappa, um músico sério que acha engraçado que seu maior sucesso popular, 'Don't Eat the Yellow Snow', aconteça apenas porque um disc-jóquei estava à procura de uma novidade.
'Amo o que faço e detesto o que eu tenho de fazer pelo simples motivo de ter de fazer alguma coisa.'
O que Zappa ama é fazer música que combine luzes e filmes, teatro e humor com uma mensagem mordaz. E o que detesta é tudo o que possa estar ligado ao mecanismo de levar sua música a uma audiência monumental, o que inclui as transações com fábricas de discos e entrevistas.
Isso porque ele não quer atender o gosto do público e não espera que seus músicos fiquem no seu grupo por muito tempo. 'Eles não entram a não ser que eu sinta algum desejo da parte deles em ajudar-me nas numerosas explorações musicais que faço, mas, mesmo assim, o nível de habilidade requerido para esse tipo de trabalho é tal, que a maioria dos músicos participantes do grupo estaria totalmente qualificada para um trabalho individual em qualquer parte e teriam muito sucesso. Eu sempre percebo, no momento em que um deles se junta a mim, que certo dia ele partirá e continuará fazendo outras coisas. Como um líder, há rumores que eu sou uma espécie de tirano. Tudo mentira. Eu sou um benevolente ditador, da mesma forma que um maestro é qualificado pra reger uma orquestra.
'O que venho fazendo pode ser rotulado de funk biônico. Há também um sem-número de seleções de excessiva beleza, de uma sensibilidade intoxicadora, de uma misteriosa divisão em zonas espaciais. E, ainda, há as palavras.
O senso de humor de Zappa sobrevém, entremeado por sua queda pelo absurdo e seu respeito pela música que faz. 'Eu gosto de minha música. Da mais simples à mais estranha. E sei que existem pessoas por aí que compartilham de minha esperança por tempos melhores. E pretendo continuar a dar-lhes a melhor música que eu sei que posso oferecer.' "

quarta-feira, 22 de julho de 2015

O Produtor Inglês que Ajudou Caetano e Gil no Exílio - 2ª Parte

"Graças à insistência de Mace, Caetano pela primeira vez tocou violão num disco:
- Era improvável que achássemos outro violonista que iria captar o estilo certo. E funcionou muito bem, tanto que desde então ele tem tocado violão em seus shows e gravações. Mas as sessões tiveram problemas. O primeiro disco foi uma mistura de um pouco de tudo. Duas das músicas fizeram muito sucesso no Brasil: 'Maria Bethânia', em que ele expressa a saudade de sua irmã, e 'London, London', que mostra os encantos que encontrou em muitos aspectos de sua nova cidade. As letras em inglês são meio estranhas em alguns pontos, mas expressam como ele se sentia.
Mace também trabalhou no segundo disco londrino de Caetano, 'Transa':
-É bastante profundo, e nos diz muito sobre o artista. Para mim, o ápice é 'Triste Bahia', um poema em tom épico de expressões musicais.
O trabalho com Gil teria apresentado mais problemas. Influenciado por Jimi Hendrix, ele queria comprar uma guitarra elétrica, mas o produtor fez questão de contar com o 'violonista de talento único'.
Mace também não via entre os músicos de estúdio de Londres gente que 'chegasse aos pés da virtuosidade exótica musical e técnica de Gil'.
- Precisávamos de músicos que pudessem improvisar e acompanhar a criatividade própria de Gil. Reservamos um estúdio, e, quando ele apareceu, havia um único banquinho e um microfone no centro da sala. Gil  ficou surpreso, mas eu lhe falei que em cada faixa, faríamos um take com ele cantando e tocando violão, depois poderia gravar um segundo violão por cima e assim continuaríamos acrescentando violões, vozes e muitos dos belos efeitos vocais de percussão que ele fazia. Gil respondeu bem, com desempenhos excelentes. No fim, usamos dois músicos para as gravações finais, o guitarrista Mick Ronson (cujo nome não consta nos créditos do disco) e um bom baixista, Chris Bonnet.
Recentemente, Mace leu a autobiografia de Caetano, na tradução para o inglês - É muito interessante e bem caetanesca!' - mas, após a volta dos baianos ao Brasil, teve poucos encontros com eles.
- Em 2000, vi Caetano no Vancouver Jazz Festival. Anos depois, estava em Londres, e ele tinha um show no Royal Festival Hall. Durante a apresentação, Caetano anunciou à plateia que, quando ele Gil estiveram em Londres, encontraram apenas uma pessoa que tentou ajudá-lo Seu nome era Ralph Mace, e estava na plateia naquela noite, a quem queria dedicar o show. Foi talvez o maior elogio que já recebi - conta Mace, que finaliza lembrando a letra de uma velha canção inglesa: 'Gostaria de ir ao Rio um dia, antes de envelhecer!'. "

terça-feira, 21 de julho de 2015

O Produtor Inglês que Ajudou Caetano e Gil no Exílio - 1ª Parte

Ao se verem obrigados a se exilarem do Brasil em 1969, e escolherem Londres com destino, Gilberto Gil e Caetano Veloso à princípio encontraram dificuldades para lá seguirem sua carreira, e sobreviverem de seu trabalho musical. Em Londres foi fundamental a ajuda de um produtor musical que lhes arranjou trabalho, e produziu seus discos londrinos. Seu nome é Ralph Mace, que foi lembrado em uma matéria em O Globo, de 04/10/09. A matéria, que é assinada por Emílio Pacheco e Marcelo Fróes, tem por título "Lembranças do produtor que deu a mão a Caetano e Gil":
"Em seu livro 'Verdade Tropical', Caetano Veloso lembra com carinho Ralph Mace, o produtor inglês responsável por seus discos, e pelo de Gilberto Gil no exílio londrino, entre 1969 e 1971. Atualmente vivendo em Vancouver, no Canadá, Mace, de78 anos, afastou-se da produção, mas presta eventuais consultorias e pratica piano todos os dias.
- Tocar Bach é uma ótima forma de meditação e, como Bob Marley falou uma vez sobre música, quando ela bate, não machuca - diz ele, que também se dedica a uma biografia do pugilista inglês Jam Mace, o primeiro peso-pesado campeão do mundo.
Bach e boxe, no entanto, ficaram de fora dessa entrevista, na qual Ralph Mace dá a sua versão sobre o período londrino da dupla tropicalista. Entre as curiosidades, a quase parceria de Caetano com David Bowie e a participação do guitarrista deste, Mick Ronson, no disco de Gil.
- Ainda que cheias de pensamentos e imagens fascinantes, as letras em inglês de Caetano não eram fáceis para o mercado britânico. Sugeri que Bowie trabalhasse nas letras, mas ele não se animou. Como Caetano também não gostou da ideia, ela foi descartada - conta Mace, que pouco antes de produzir Caetano, tocou, quase por acaso, num disco de Bowie. 
- Fui ao Trident Studio, onde ele gravava 'The Man Sold The World'. Tony Visconti tinha composto algumas partes para sintetizador Moog. Eles tentavam, mas ninguém da banda de David tinha dedos de tecladista, e todos os takes estavam sendo rejeitados. Eu tocava bem piano, então sugeri que, se quisessem chegar em casa antes do café da manhã, deveriam deixar que eu tocasse. Foi assim que me tornei um Spider From Mars e um verbete na biografia de Bowie.
Ralph Mace
No entanto, o que mais entusiasma o veterano produtor, quatro décadas depois, é o período com os baianos.
- Conheci Caetano e Gil no fim  de 1969, pouco depois de entrar para a divisão pop da Philips no Brasil. Mas a música brasileira não se encaixava nas ideias de sucesso dos ingleses, e fiquei com a responsabilidade de ajeitar as coisas para Caetano e Gil.
Mace lembra que Guilherme Araújo alugou uma casa para eles em Chelsea, que logo virou a base para muitos jovens amigos do Brasil.
- Visitei Caetano e Gil, e eles concordaram em tocar algumas de suas novas músicas para mim. Seus talentos foram imediatamente visíveis, mas eles estavam a meio mundo de distância das canções pop da Swinging London. Caetano detestou o frio de Londres, e foi difícil para ele se aproximar das pessoas. Mas se esforçou para aprender o idioma e logo começou a compor em inglês, que tinham um toque de e.e. cummings. E ainda que Caetano fose ávido fã dos Beatles, a música que então mais o influenciou foi o reggae.
Cartaz de um show de Caetano em Londres
Segundo o produtor, Gil era de natureza bem mais sociável e logo se entrosou com músicos britânicos.
- As influências africanas e jazzísticas de sua música eram mais facilmente apreciadas pelos músicos ingleses mais sofisticados. Gil era um músico a ser admirado por seus pares, mas seu talento era sofisticado demais para conquistar o público comum inglês.
Com as portas da Philips inglesa fechadas, Mace levou os dois para o selo Famous Music, após convencer deu diretor executivo, Lesle Gould.
- Começamos com Caetano. As sugestões de repertório na maior parte, ficaram a cargo dele. Combinamos uma lista de velhas canções em português e parte do material que ele fez em Londres, em português, inglês e uma mistura dos dois idiomas."

(continua)

segunda-feira, 20 de julho de 2015

O Som Elétrico de Miles Davis - Revista Música do Planeta Terra (1975) - 3ª Parte

" Há ainda 'Honk Tonk', uma faixa da época de 'Live- Evil', que dá oportunidade de ser criado um paralelo com  a atual banda de Miles, a evolução dos grupos possui uma inter-relação infinita, é uma cadeia orgânica. Nos teclados de Keith Jarret estão traçadas as rotas para o som de Miles, e na guitarra de John McLaughlin estão previstas as atuais experiências de Pete Cosey e Reggie Lucas. A ideia original, Calypso, engendrou Calypso Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique), que simplesmente é uma peça para ser digerida e assimilada nos próximos dez anos. Miles já havia revolucionado a harmonia, a tonalidade e a melodia, agora revolucionou o ritmo e todo seu conceito, dando em uma só peça toda história da percussão, numa miniatura, numa peça intrincada. Seu som é afro, o tribal cibernético, o caldeirão do diabo com ritmos em fogo, os metais em brasa, o grito dos blues espaciais sustentados pelo drive das percussões; é a direção além que ele nos aponta agora. 
O produtor de seus discos nos últimos vinte anos, Teo Macero, é formado em composição na Juliard School e atua no campo da música de vanguarda, já tendo trabalhado com John Cage e Donald Lybbert. O conceito dos discos de Miles é novas direções em música, e para eles dois produzirem esse trabalho, essa proposição Teo diz que tinha mesmo que de ser compositor e possuir um alto nível de conhecimento musical, pois assim ele pode sentir quando uma coisa é realmente nova em termos de música. Quando há realmente no trabalho de Miles uma nova direção, é aí que entra seu encorajamento. São novas mudanças, rumos, algo que nunca tenha ocorrido em música antes.
Este é o trabalho que Teo e Miles se propõem desde a primeira vez que resolveram imprimir na capa dos discos a máxima de seu trabalho, 'New Directions in Music'. Miles virou o jazz de cabeça pra baixo no mínimo quatro vezes; o Bop com Parker, o Cool Jazz, o Jazz modal iniciado no sexteto que incluía Coltrane e depois da virada total do século a abertura das fronteiras do jazz, para todas as linguagens musicais.
A colaboração de Miles e Teo é considerada pelo último como um casamento. Miles exige um trabalho total, desde a escolha dos músicos ao artista que fará a capa, pois para ele, cada capa é uma roupa mágica para um vinil atomatizado. Bitches Brew, Live-Evil e a trilogia de cartuns do On the Corner, In Concert e Bing Fun, todos possuem um significado próprio que Miles escolheu para guardar a sua linguagem, o seu disco, para ele um objeto total.
'Miles é a única super-estrela do jazz', disse Chico Hamilton. Mas ele não quer ser uma estrela. Ele quer o reconhecimento de seu povo, os negros, o criouleu da América. 'Eu gosto quando a rapaziada negra fala: Oh! homem, aquele é Miles Davis, como eles falaram de Joe Louis. Em Greensboro alguns gatos me falaram: 'homem, nós estamos agradecidos de você ter  pintado por aqui'. Isso foi uma das maiores emoções que tive'. Miles Davis é um homem que corre, ele não mede esforços para conseguir o amor do povo negro. Dinheiro, para ele não é o importante, ele quer a admiração de sua raça. Mas não é ligado à movimentos radicais. Miles é Miles, Selim Sivad. Uma figura especial, um cara admirado por gente finíssima.
 Para John McLaughlin, 'mais que um grande trompetista, Miles é um grande artista, minha dívida para com ele não cabe mencionar. Se não fosse ele eu poderia estar compondo e tocando por caminhos totalmente diferentes'. Chick Corea falou que Miles 'é um dos artistas que captam a consciência de sua época e através de sua estética alteram os valores de seus contemporâneos; a minha maior experiência foi ter tocado com ele, eu o amo totalmente'.
Miles também é pugilista, já foi heroínômano, tem paixão pela bateria e além do trumpete, ultimamente se aprofundou no órgão e piano elétrico. E ao ser perguntado sobre suas preferências musicais, certa vez,  ele respondeu que só ouvia Stockehausen; mas logo depois confessava que era fã número 1 de Al Green e Roberta Flack.
Suas declarações chocaram e revoltaram a vanguarda do free-jazz, quando ele malhou, numa entrevista publicada na Down Beat, Eric Dolphy e Cecil Taylor, dizendo que eles eram chatos e sem balanço. Já o pessoal da Mainstream não aguentou quando ele disse que Freddie Hubbard (que é considerado o maior trumpetista de Louis Armstrong) é um músico sem imaginação e talento.
Fala-se em carisma religioso. Os músicos tocam com Miles e depois explodem em todas as direções, como num conservatório mágico de onde todos saem mestres. Miles quando é perguntado sobre isso, sobre essa influência que exerce nos músicos que com ele tocam, apenas ri.
Miles até hoje está ligado ao trabalho dos músicos que tocam com ele. Toda vez que algum deles vai gravar um disco pede a opinião de M.D., ele próprio dá preferência aos discos de seus músicos, segundo ele, por uma questão de incentivo, para mostrar que eles fazem o melhor realmente.
Mas é sem dúvida uma das maiores figuras desse século. Revolucionário. Uma pessoa rara, como Ornete Colemam, John Coltrane ou Jimi Hendrix. Músicos que modificam, elevam a música para a frente, sem perder o calor, o sentimento, o balanço, essas coisas definitivamente negras, coisas que o branco passou a dar maior atenção a partir da década de 60, e que devemos assumir, Dionísios que gera toda a nossa musicalidade divinal, este Eros negro que habita cada um de nós.
E que homens como Miles Davis, com sua música, fazem despertar e ir dançar pelas ruas do mundo inteiro.
Eletrocutados, agradecidos.

Discografia da fase elétrica de Miles, das primeiras manifestações à suas últimas consequências:

1) Miles in the sky - (9/69)
2) Filles de Killimanjaro  - (3/69)
3) In a silent way - (10/69)
4) Bitches Brew - (6/69)
5) At Fillmore - (1/71)
6) Tribute to Jack Johnson - (72)
7) Live Evil - (1-72)
8) On the corner - (73)
9) In Concert - (73)
10) Big fun - (74)
11) Get up with it - (75) "

domingo, 19 de julho de 2015

O Som Elétrico de Miles Davis - Revista Música do Planeta Terra (1975) - 2ª Parte

"Seu disco seguinte, Live-Evil, é de um ecletismo total, intercalando pequenas baladas, joias preciosas, à longas peças experimentais. O flautista Hermeto Pascoal participou desse trabalho e acusou Miles de ter posto nome em composições suas (Igrejinha - Little Church). Em uma entrevista que deu à Donw Beat, Miles disse que nem quer saber. O crioulo é o diabo, um imoralista, um anjo caído. Na época de Live-Evil, muitos dos músicos que haviam tocado com ele já estavam na estrada com grupos incríveis desenvolvendo ad infinitum a linguagem dessa nova música, o chamado jazz elétrico. Chick Corea tinha eletrificado totalmente o grupo Return To Forever, com o extraordinário baixista Stanley Clarke. Joe Zawinul e Wayne Shorter desenvolveram seus trabalhos individuais em uma unidade elétrica, o Wheater Report, considerado um dos mais importantes grupos da nova música.
E ainda a Mahavishinu Orchestra, os grupos de Herbie Hancock, Larry Young, o Lifetime de Tony Williams, apenas para falar dos mais conhecidos, que estraçalharam as barreiras que restavam entre Pop, Jazz, Rock, Música Erudita e Oriental.
É então que Miles conhece o músico negro Sylvester Stewart, Sly Stone, e fica completamente chapado com  o trabalho de um dos maiores inovadores do soul negro. E foi baseado nos elementos da música de Sly que Miles se lança na esquina dançando ao som  do Juke Box atômico. 'On the Corner' recebeu uma chuva de maldições, o próprio Stan Getz disse que até John Mclauhlin parecia um epilético naquela gravação.
Agora, passados três anos sabe-se que este retorno à raiz soul, ao ritmo incendiário da música popular negra, foi o início para a conquista de galáxias distantes, a extrapolação em qualquer linguagem até então praticada. Criando a mais fértil corrente surgida na música do planeta Terra desde os primeiros batuques e uivos do homem da caverna, naquilo que um teórico de vanguarda definiu como como sendo the brown cage (o casamento da música de James Brown com John Cage), uma música progressiva, ritmada, espacial, batuqueira que é praticada em elevadíssimos níveis, não só pelos músicos americanos e europeus, como Larry Coryell, Steve Marcus, Carla Bley, Mick Taylor, Klaus Doldinger, Wolfang Dauner, Alfonse Mouzon, Dudu Pukwana, Soft Machine, Nucleus, Isotope, etc... Dos músicos que tocaram com Miles, apenas Keith Jarret, James Mtume e Dave Holland não aderiram completamente a esse boogie woogie aleatório espacial eletrônico e continuaram fazendo um jazz de alto nível em caminhos acústicos, mais ligados à tradição de Coltrane e Coleman. E há ainda, o Airto Moreira que lança agora um som mais adiante, o brown-cage, mais a magia dos ritmos brasileiros.
 Miles passou algum tempo sem preparar um disco, deu então licença para a companhia utilizar antigos tapes, que foram realizados como 'Big Fun', feito com sobras de 'Bitches Brew', 'Live-Evil', e 'Jack Johnson'. Miles não leva este disco em conta. A crítica elegeu como um dos maiores discos dos últimos tempos; são sobras e restos de Miles, simples migalhas, verdadeiras obras-primas, como 'Great Expectations', ou 'Lonely Fire'. Pois para ele não basta a obra-prima, a musicalidade, o nível quase irreal da  performance dos músicos, Miles procura New Directions, o novo, o porvir. E 'Big Fun', ele diz que poderia lançar uns cinquenta pelo menos, com as sobras das sessões de 'In Silent Way' à 'In Concert', mais as gravações de seus concertos de 69 para cá.
Ele falou que as novas direções não estavam em 'Big Fun', mas viriam em uma peça que se chamaria 'Calypso' e que ocuparia os quatro lados de um disco. Desta ideia até a produção de um álbum, faleceu Duke Ellington, um dos maiores jazzman que a história conheceu e Miles resolveu modificar seus planos.
O disco chamou-se 'Get Up With It', e pode ser uma espécie de resposta dos anos 70, para o jazz dirty, o som jungle de Ellington. Ele ama Duke loucamente, e este é o título de uma das músicas, um tema belíssimo com um lindo solo de flauta de Dave Liebman."

(continua)


sábado, 18 de julho de 2015

O Som Elétrico de Miles Davis - Revista Música do Planeta Terra (1975) - 1ª Parte

Em 1975 a revista alternativa musical Música do Planeta Terra trazia uma ótima matéria sobre a fase fusion de Miles Davis, em texto escrito por Júlio Barroso. Abaixo a transcrição da matéria:
"Foi na velha cidade de Alton, Illinois, onde no dia 25 de maio de 1926 nasceu Miles Davis.
Seu pai era dentista, e a família Davis gozava de certa tranquilidade financeira, coisa rara para os negros em geral.
Com 10 anos ele começou a aprender trumpete com um professor de música que tratava os dentes com seu pai. Foi esse homem que aconselhou a Miles o toque sem vibrato, uma das características principais de seu estilo no período Bop.
Aos 16 anos o saxofonista Sonny Stitt ao passar pela cidade de Alton, ouviu-o tocar e quis levá-lo para Nova York, pois achou a sua sonoridade muito próxima do estilo de Charlie Parker. Mas a mãe de Miles disse não, ele tinha que completar seus estudos, fazer curso superior.
Mais tarde a banda de Dizzy Gillespie e Parker tocou na cidade e Miles teve a oportunidade de tocar para seus mestres. Um contratempo com o segundo trumpete da banda foi a chance de Miles, foi convidado para substituí-lo e embarcou para Nova York, com a condição dada pela mãe de que continuasse seus estudos.
Ele já havia decidido seu caminho, seria músico; entrando para a bem conceituada Juliard School of Music. Em trajes finos ele tocava ao lado de Parker e de 1945 a 1948, junto com Bird fez parte da grande virada do jazz que foi a revolta angustiada do Bebop.
Em 1958, conheceu o arranjador Gil Evans, e deste encontro nasceu a Capitol Orchestra, o primeiro passo na introspecção que foi chamada cool jazz. O cool foi o esforço do jazz na tentativa de desvencilhar-se da falta de técnica que o rebaixava perante a música europeia de concerto. É o impulso físico regulado pelo racional, o discurso do solista de cool jazz é algo mental, controlando a emoção. Miles Davis, um dos pioneiros da maneira cool, é porém, também um dos maiores improvisadores da música negra. Em qualquer contexto.
De 1957 a 1958, ainda com Evans ele iria experimentar as grandes orquestras, criando clássicos como Sketches of Spain. O ano de 1958 vê a face do jazz novamente alterada, renovada pelo sexteto de Miles, com John Coltrane e Bill Evans, um religioso, emocional, o outro dono de um perfeccionismo quase científico. Para muitos músicos da vanguarda e críticos este foi o último conjunto do jazz, pois a partir daí Coltrane começa a radicalizar cada vez mais a sua sonoridade, o que o levaria a se unir com a vanguarda musical de Nova York e levar avante a revolução que decodificou toda a linguagem, o free jazz.
Miles Davis contudo não aceitou completamente a atonalidade do free. Reformando seu sexteto, sempre com músicos jovens, levando às últimas consequências o jazz tonal. Em 1969 ele uniria definitivamente a eletrônica à sua música e ao jazz. Nesta época ele gravou o LP 'In a Silent Way', onde demonstra a primeira transformação num sentido da ampliação completa de seus horizontes utilizando elementos do blues rock inglês, via John McLaughlin além do pioneirismo na múltipla utilização de teclados eletrônicos. Em seguida ele cria a direção do novo jazz com seu disco 'Bitches Brew', a ampliação da proposta elétrica e mais, a modificação de todo sentido do jazz moderno.
A partir daí começa a reestruturação das linguagens vanguardistas que já haviam feito do free jazz uma instituição e abraçado a atonalidade com a mesma cegueira com que os antecessores de Coltrane haviam abraçado a formalidade.
Miles é acusado de não participar da luta negra, pois pratica uma música rock, e portanto, branca, capitalista.
As declarações de Miles são ainda mais instigantes, quando ele diz que falta soul e vanguarda, e que Eric Dolphy é um chato.
Heresias elétricas, correndo todo o vodu para baixo, Bitches Brew é o jazz eletrocutado, Miles aderindo à estética do grito, assumindo todas as linguagens, restando do jazz praticamente apenas o  improviso. Nota-se em sua música a presença do fraseado de Don Cherry, do lirismo free de Bill Dixon. Mas é ele que vai tudo decodificar, derrubar as barreiras, indicar os novos caminhos. Em 'At Fillmore', ele projeta mais além o elemento free dentro do mundo eletrônico, a justaposição de elementos musicais divergentes, a percussão de Airto corroendo as melodias como microtons parasitários, tensão-relax é a sua tônica principal. Os turbilhões de elementos projetados pelo duo Corea-Zawinul em Bitches Brew, são ampliados pela pesquisa de Keith Jarreth, e o sax soprano vital, fraudulento de Steve Grossman, exortando um free rock total.
Quase todos os ídolos de Miles são pugilistas, e foi para um pugilista que ele dedicou 'Tribute to Jack Johnson', o grande lutador e playboy que conquistou Paris. Neste disco ele homenageia também a uma de suas maiores admirações no campo da  música, Jimi Hendrix, em um trecho onde John McLaughlin evoca toda uma frase de Jimi, pontilhada pelo trumpete  de Miles (contam inclusive que Miles foi chamado para reformular a banda de Hendrix, e trabalhar em conjunto com ele). Esta citação em 'Tribute' é a homenagem que ele presta ao grande pioneiro no uso dos novos acessórios eletrônicos que inspirou Miles em muitos rumos elétricos."

(continua)

sexta-feira, 17 de julho de 2015

Luiz Melodia - Revista Mixtura Moderna (1983)

No início dos anos 80 começou a ser editada uma revista musical chamada Pipoca Moderna, que após 5 números, passou a chamar-se Mixtura Moderna. Em seu primeiro e único número com essa denominação, em 1983, a revista trouxe uma matéria com Luiz Melodia, assinada por Antônio Carlos Miguel, e intitulada "Rola de novo a pérola do Rio Zona Soul":
"Luiz Melodia está de volta. Reciclado por mais uma temporada na Bahia, ele encantou as plateias do Rio e de Sampa. Pérola negra. Como consequência das apresentações, em março e abril, um contrato com a Ariola, através do produtor Ronaldo Bastos, onde gravará o quinto LP de sua carreira.
Melô chegou feliz, com muitas músicas novas e uma banda baiana superafiada - Ricardo Augusto, guitarra, violão e arranjos, Zé Maria Freitas, piano; Cesário, baixo; Guino, bateria e Paulinho Andrade, sax e flauta - afim de acabar de vez com  a fama de irresponsável. 'O problema é que tenho uma concepção própria. O Liminha, por exemplo, produtor da WEA, me exigiu músicas comerciais ou que desse as minhas letras pro Fausto Nilo reescrever. Estes absurdos são típicos de gente assalariada, eu prefiro a minha liberdade'.
Com o desentendimento com a Warner, no ano passado, foi interrompida a gravação de um disco de Melodia e Zezé Motta, que já tinha seis faixas prontas. Já o seu atual empresário, o ex-novo baiano Gato Félix, nega qualquer dificuldade. 'Melô é super-eficiente, não deixa furo. E é incrível que sem lançar disco há três anos - Nós, o primeiro e último para a WEA, saiu em 1980 - e sem música nas rádios ele consiga tanto público'.
O criador de sucessos como 'Estácio Holly Estácio', 'Pérola Negra','Ébano', 'Juventude Transviada' e 'Passarinho Viu' se diz pronto. 'O negócio do sucesso tem que chegar devagar, senão a gente pira'.
Ele também diz que não voltou a Salvador atrás de purificação ou injeção de vitalidade, mas fala de uma mistura de afoxé com o morro de São Carlos, onde nasceu. 'A origem é a mesma, a África. Já a minha poesia, que sempre provocou polêmica, é uma coisa intuitiva; ou melhor, acho que é mesmo uma coisa sagrada, às vezes também surpreende'.
Outra cobrança que este negro gato sempre foi alvo é a de ser um crioulo carioca que que se restrinja ao samba. Na verdade, mais uma prova da burrice da kríptica que não percebeu  em seu trabalho precursor o retrato de um Brasil contemporâneo. Os obscuros anos 70 já se foram e hoje seus LPs são disputados a tapa nos sebos de discos. A Polygram, um pouco mais esperta, já reeditou duas vezes o álbum de estreia Pérola Negra (1973). Em pleno 1983, completando 10 anos de carreira oficial, já que em 1965, aos 14 anos, ele cantava no programa de rock de Jair de Taumaturgo, no Rio, Luiz Melodia ainda é o artista carioca mais significativo desses anos. Rio Zona Soul. Mesmo assim ele  diz que continua com receio de sua cidade. 'Tanto o público como a imprensa do Rio partem para coisas danificantes em relação a mim. Ao contrário de São Paulo, onde me sinto em casa'.
Para o novo disco ele vem cercado de de parceiros - Ricardo Augusto, Papa Kid, Cardan Dantas, Perinho Santana e Beto Marques - e da certeza de que está de bem com  a vida. Aos 32 anos, o capricorniano Luiz Carlos dos Santos, o filho de Oswaldo Melodia, quer é curtir a mulher, Jane, o filho, Mahal, de 4 anos - 'que é muito afinado' - e mostrar sua música. Em paz."

quinta-feira, 16 de julho de 2015

O Rock Brasileiro, do Início até a Década de 70 - Revista Especial Rock Vol. 2 (1978) - 2ª Parte

"E assim era para a maioria dos músicos pop. Arnaldo Baptista refere-se ao que foram os Mutantes com muita nostalgia: 'Os Mutantes foram um grupo muito bom e muito importante para a música pop. Certamente será uma lacuna difícil de se preencher. Rita tomou seu caminho, eu estou me preparando para algumas excursões, e Sérgio continua firme com a ideologia dos Mutantes. Uma pena a separação.'
Mas nem tudo é pessimismo no cenário pop brasileiro. O Terço, mudando sua linha musical, com a incorporação de novos músicos, vê com otimismo o futuro do grupo: 'Vamos fazer o que chamamos som urbano, música da cidade, o que não deixa de ser rock. O problema todo é que fazemos um som brasileiro que se caracteriza e identifica com o rock. Mas quando o pessoal vê a gente com uma guitarra na mão, já pensa logo em rock pesado, o que limita o trabalho e a criação do grupo.'
Raul Seixas
Assim também acontece com o Made In Brazil, cujo líder Oswaldo explica: 'O Made não se definiria como sendo punk, mas isso não nos afeta. Nossa preocupação é com o ritmo, letra fácil de ser assimilada e principalmente que seja boa para  a moçada dançar Já perdemos nossas influências, só conservamos o ritmo, a cadência. Afinal, somos brasileiros, e o Brasil é diferente de qualquer lugar do mundo.'
Talvez seja Raul Seixas, entre todos os músicos, o que melhor se utiliza das letras para mandar sua mensagem; 'aprendi, com o tempo, que tenho que estar com um pé na terra outro no céu. Faço um embrulho bonito do que eu quero dizer. A música é uma embalagem do que sei fazer. Poderia ter sido escritor, mas canalizei tudo para o rock.'.
Enfim, os pobres grupos brasileiros nunca puderam sair de um submundo artístico por falta de um apoio publicitário, de verbas e até criatividade. Nomes como Sindicato, A Chave, Bixo da Seda, A Bolha, Urubu Roxo e tantos outros viveram apenas meses de alegria e sucesso. Restam apenas Rita Lee e Tutti Frutti, Joelho de Porco (estes impulsionados pela máquina global), O Terço e Mutantes."
Lendo a matéria, podemos ver que o texto é bem resumido, já que a própria revista não tem muitas páginas, e outros assuntos são levantados. Em apenas duas páginas, com bastantes ilustrações, realmente não se poderia fazer uma matéria mais abrangente, mostrando outras facetas do rock nacional. Faltaram, por exemplo, citações aos Secos & Molhados, um grupo que revolucionou não só o rock, como também a MPB de uma forma geral, fazendo um sucesso estrondoso entre 1973 e 1974 com seus dois LPS de estúdio. Outro ícone de nosso rock, e que expandiu outra tendência para o nosso rock também não foi citado, o trio Sá, Rodrix & Guarabyra, que lançou o rock rural. Também os Novos Baianos e sua fusão de rock, samba e chorinho não são citados, assim como tantas outras bandas e artistas que hoje são reconhecidos e lembrados em qualquer referência que se pretenda mais abrangente da história do nosso rock, como Casa das Máquinas, A Barca do Sol, Veludo, Ave Sangria, etc.
Bixo da Seda
Mesmo assim, achei interessante reproduzir a matéria por ela ser de época, de uma fase em que o rock brasileiro atravessava um período um tanto difícil em termos de mídia, já que na época (1978) o grande sucesso comercial era a disco music, e por isso as gravadoras se preocupavam mais em promover lançamentos mais voltados para esse segmento.
O final do texto cita alguns poucos grupos, que segundo o autor,ainda sobreviviam, dando a entender que o nosso rock passava por um período de ostracismo e falta de renovação. É interessante observar que diante de um quadro desanimador revelado pela matéria, uma nova geração já ensaiava uma renovação no panorama do nosso rock, e que viria a acontecer alguns anos depois. A geração dos anos 80, formada por garotos ainda amadores e atentos a tudo que se produzia em termos de rock internacional, estavam prestes a entrar em cena mais amadurecidos e com novas propostas, e à sua maneira ganhar a mídia, despertar o interesse das gravadoras, e criar uma geração de ouvintes, que ainda estava começando a ouvir música, e buscando identificações, transformar o rock nacional em um estrondoso sucesso comercial.

quarta-feira, 15 de julho de 2015

O Rock Brasileiro, do Início até a Década de 70 - Revista Especial Rock Vol. 2 (1978) - 1ª Parte

A revista Violão & Guitarra lançou em 1978 dois volumes de uma revista contando a historia do rock. O segundo volume trazia um texto falando do rock brasileiro, desde seus primórdios até aquele momento. Abaixo, a transcrição da matéria:
" Desde 1955, época de Bill Halley e seus Cometas e Little Richard, a música popular no Brasil começou a sofrer transformações. Primeiro, aconteceu na classe média rica, que podia vir a importar esses discos ainda não consumidos em larga escala. Com isso, vieram os primeiros bailes, regados a cuba-libre, muito papo e a tradicional luz negra. Nada de muito original, nada de muito complicado, nada de comprometedor. Apenas algumas parcerias, alguns vocais mais ousados ou algum maneirismo tipicamente importado. Mas nada de significativo.
Tudo viria a estourar mesmo em setembro de 1965. Uma música chamada 'O Calhambeque' modificaria todo o cenário da música popular brasileira pois trouxe consigo um líder. Era Roberto Carlos e seu programa Jovem Guarda, certamente um marco e um acontecimento para os jovens brasileiros, que ainda estavam se preparando para receber os Beatles e os Rolling Stones. Junto com Roberto vieram Erasmo Carlos e Wanderléa,  o trio mais famoso, além de conjuntos como Os Incríveis, Renato e Seus Blue Caps, os Beatnicks, Trio Esperança, Golden Boys, Dino & Deni e os Vips. 
Roberto Carlos
Quem pode se esquecer daquele programa da TV Record aos domingos? Roberto com maneirismos típicos - abaixando-se e lançando uma nova granada imaginária, tapando os ouvidos, levantando o polegar, tapas nas coxas para acompanhar o ritmo, passos curtos e rápidos, balançando sensualmente o corpo, fazendo caretas e frases de efeito: 'É uma brasa', 'tudo legal', 'papo firme, mora', 'barra pesada', 'tudo legal', 'bidu', 'bolha', 'estar por fora', 'lenha' - conseguiu angariar um público semanal de aproximadamente dois milhões e meio de espectadores.
E também havia a marca Calhambeque, que produzia calças, botas, saias e  roupas jovens, o primeiro uniforme da juventude brasileira. A partir daí vieram os movimentos mais de vanguarda, principalmente com os festivais de música da TV Record.
E num destes festivais apresentaram-se Os Mutantes e Gilberto Gil cantando 'Domingo no Parque', já no movimento chamado Tropicalismo, que teve como líder Caetano Veloso, com a música 'Alegria, Alegria'. Foi outro fenômeno que chegou a se equiparar com a Jovem Guarda: a invasão dos baianos na música brasileira. Chegaram a São Paulo e ao Rio de Janeiro, além de Gil e Caetano, Gal Costa, Maria Bethânia (irmã de Caetano), Macalé (*), Tom Zé, Novos Baianos, Raul Seixas e todo um pessoal disposto a ganhar a vida a chacoalhar um pouco o marasmo que então tomava conta do palco nacional.
Caetano acompanhado pelos Beat Boys
Neste ponto, quem muito colaborou com o movimento tropicalista foi o apresentador Chacrinha que, de um modo mais popular e escrachado, mostrava que nem tudo era o falso requinte de Silvio Santos e Flávio Cavalcanti nos programas de auditório. Chacrinha praticamente apadrinhou todos os baianos e seu movimento.
A respeito disto, falam os Mutantes: 'O tropicalismo surgiu num disco chamado Tropicália, onde a gente resolveu fazer ver aos brasileiros que o barato legal era tentar imitar um programa americano, mas era fazer uma coisa brasileira. Então, a gente ficava revoltado e fez a Tropicália: papagaios verdes, árvores, bananas, todas aquelas coisas'.
Outro programa que marcou a música pop brasileira foi 'Som Livre Exportação', uma tentativa de reviver o sucesso da Jovem Guarda, liderado desta vez por Ivan Lins, mas que fracassou estrondosamente, pois já não havia o elan de Roberto Carlos. Mas, por seu lado, deu um ar mais underground a alguns grupos pop, como A Bolha, O Terço, etc.
Joelho de Porco
 Mas, já a partir de 1973/74, os grupos de rock começaram a proliferar pelo Brasil. Em São Paulo havia os Mutantes, na liderança; o Joelho de Porco, que estava começando e já tinha uma faixa de sucesso, chamada 'Se Você Vai de Xaxado, Eu Vou de Rock'n Roll'. Próspero, cantor e então baterista deste grupo, lembra a situação: "Naquele tempo era tudo uma curtição, a gente tentava há muito fazer shows em teatros, mas não conseguia, por falta de aparelhagem, de oportunidade, de público, etc. Mas o Joelho tinha uma meta a alcançar e era, principalmente, uma alegria para nós apresentar aquele repertório pequeno, mas incrível, ao público.' "
(*) Macalé está relacionado entre os baianos, mas ele na verdade é carioca 

(continua)

sábado, 11 de julho de 2015

Muddy Waters - Entrevista Jornal Melody Maker - 1976

Muddy Waters foi sem dúvida um dos nomes mais importantes do blues. Muddy é considerado o pai do blues elétrico, e influenciou toda uma geração de músicos de rock e de blues que surgiram nos anos 70. Em 1976 o jornalista  Max Jones, do jornal Melody Maker o entrevistou, e abaixo transcrevo a tradução da matéria:
"Muddy Waters tinha provado mais uma vez que era uma das maiores autoridades - senão a maior - dos blues urbanos. Imediatamente após o show no New Victoria (Londres) rumei para seu camarim para conseguir uma entrevista. No palco ele se anunciara como Muddy Mississippi Waters (seu nome verdadeiro é McKinley Morganfield), e eu tinha vibrado com  a tremenda reação do público jovem ao poder mágico de suas velhas canções do Delta(1). É um mestre até o fim. Ele me avisou que tinha que ir logo para o hotel dormir ('Cê sabe que essa idade pega a gente, né Maxie?'),  mas fomos papeando, e a entrevista foi surgindo...
Max Jones: - Nesse show você preferiu tocar músicas antigas, como Hoochie Coochie Man, Trouble no More, Got My Mojo Workin, e Rollin' Stone (2). A única música dos anos 70 é Can't  Get No Grindin, que mesmo assim, é uma adaptação de uma música antiga do Mississippi. Por que essa escolha?
Muddy Waters: - Os fãs pedem essas músicas. De vez em quando eu volto pras velhas, sabe. As pessoas ficam gritando e é nessas que eu mando brasa.
MJ: - Por que você não vem à Inglaterra desde 72?
MW: - Não tive tempo. Não sei porque, mas agora que tô velho tem mais gente querendo me ver do que quando eu era moço.
MJ: - Em 72 você me disse que passou muita fome mas que sempre viveu tranquilo. Agora as coisas devem ter melhorado, né?
MW: - Bem, tá melhor do que há alguns anos, mas não faço isso por dinheiro. Gosto de cantar pro povo. O blues é o que sempre tive e a única música que sei.
Desde aquele papo em 72 muita água desceu o velho Rio Mississippi. Muitos músicos de blues morreram. Lembrei de Victoria Spivey. A primeira vez que a vi foi em 63 e eu estava com  Muddy Waters, procurando algo para beber num hotel de South Kensington antes de partir para uma noitada com Alexis Korner. Muddy Waters desistiu e falou: 'O jeito é procurar a Queen Vee (Rainha Vê). Ela sempre tem uma coisinha'. Dito e feito, Spivey fez jus à sua fama. Bebemos os três, no gargalo.
Lembramos de algumas gravações de Victoria Spivey com o grupo de Muddy Waters, que teve que atuar sob pseudônimo devido a problemas de contrato. O último disco dela que recebi foi gravado em 69 por Victoria e Ottis Spain como homenagem à mãe de Otis, Mrs. Spain e muito amiga de Victoria. Comentei que Victoria tratava Otis como um filho, e que pra mim Otis e Muddy eram como irmãos.
Quando ele ia responder isso chegou outro admirador de Muddy Waters, que nunca tinha ouvido falar da Mrs Spain e cortou completamente o nosso papo. Muddy nunca foi muito a fim de entrevistas, e nem interessado em papos críticos sobre o significado dos blues. O jovem mancebo teve a audácia de perguntar: 'O que é o blues?' Antes do show Muddy já havia me dito que estava cansado. Agora estava mesmo cansado e a expressão do seu rosto mostrava claramente. 'Tá na hora de dormir, e você me faz uma pergunta dessas?'
Mas explicou, mais uma vez, que o blues era a sua vida, não só um meio de vida apesar de que pra viver a gente precisa ter meios, mas uma coisa que estava dentro dele desde que era 'um pirralhinho'. Quando tinha três anos, mal sabia andar e roubava as bacias da vizinha pra fazer batucadas, suas 'musiquinhas'. 'Então eu amo o blues, ponto final.'
Nós dois voltamos a mexer nas lembranças e falamos do Folk Blues Festival de 63, quando Muddy tocou com Lennie Johnson, Willie Dixon, Memphis Slim e Big Joe Williams. Ele me mostrou um retrato a cores de Big Joe tocando seu violão de nove cordas. Na noite anterior os dois haviam dado um show juntos na Alemanha.
Muddy Waters obviamente está situado entre a Velha Guarda do blues. Sua voz não está tão rica e profunda como antes, e hoje sai do palco exausto, depois de entregar à plateia o que me descreveu como 'blues pesado, blues verdadeiro, do tipo tira-as-calças-e-enfia-lá-dentro'. Mas quando começa a tocar sua guitarra, o battleneck no dedo mindinho, e cantar as frases semi-místicas da maravilhosa Hoochie Coochie de Willie Dixon (feita especialmente pra ele) tem a mesma força de quando era 'o segundo filho homem' de Ollie Morganfield, trabalhador da fazenda Stovall, quando o folclorista Alan Lomax o gravou para os arquivos da Biblioteca do Congresso em 1941 (3).
Faz muito tempo que não sai nenhuma gravação nova de Muddy Waters ('desde Woodstock', ele diz). Mas em janeiro lança um novo disco com Bob Margolin (guitarra), Willie Perkins (piano) e James Cotton (gaita). Devido a seu gênio e criação Muddy Waters sempre teve muito orgulho de sua raça. Bob Margolin é branco, e nos conjuntos de Muddy já houve dois gaitistas brancos. A entrevista recomeça desse ponto.
MJ: - Você já teve vários músicos brancos nos seus shows, né?
MW: - Passei por muito preto e muito branco. (E não disse mais nada).
MJ: - Por que você saiu da Chess Records?
MW: - Aí você já tá falando de política. (Outra resposta curta).
Mas notei que ele se interessa pelo fenômeno da juventude branca europeia estar transando com o idioma de negros americanos da classe baixa. Orgulha-se disso e confessa que é essa juventude que tem mantido o blues, tocando as músicas e indo a todos os concertos dos bluesmen. '99% do meu público é branco,e a maioria é de jovens.'
Certa vez Muddy Waters me disse que ficava feliz de ver músicos jovens e brancos tocarem suas músicas, mas quando via pessoas faturando em cima disso, às vezes ficava uma fera. Agora sua raiva parece ter abrandado um pouco. Quando perguntei sobre isso, disse que não o incomodava, que essas pessoas só aumentavam seu próprio faturamento. E os Rolling Stones? 'Gosto deles porque significam mais sucesso pra mim.'
Hoje Muddy mora numa vila a uns 50 km de Chicago. 'Não dá pra viver naquela cidade'. Raramente vai a Chicago e nunca mais voltou aos clubes da barra pesada onde batalhava pela vida.
MJ: - Muddy Waters, você agora é outro?
MW: - Vivi duas vidas. Fiz coisas que muita gente nunca vai poder fazer. Comecei tocando pra minha raça, só pra pretos, em lugares que as pessoas tinham medo de ir. De uns 13 anos pra cá meu público foi na maioria de brancos, universitários, por aí. Então vivi duas vidas.
O jovem mancebo repetiu um comentário de Muddy de que um branco não consegue cantar o verdadeiro blues.
MW: - Ainda acho a mesma coisa. O que é que você acha?
Mancebo: - Sim, mas...
MW: - Ei, diga a verdade. Você acha que um branco pode cantar o blues como eu?
Fim de papo.
Na saída perguntei sobre a recepção na Europa.
MW: - Muita gente não fala inglês mas entendem o que tamos tentando fazer.
MJ: - Tá sendo melhor do que sua primeira excursão à Europa? (1958)
MW: - Ah, Max, aquilo foi uma zorra (ri). Ninguém entendeu aquele amplificador imenso que eu trouxe. Cara, as manchetes de Leeds falavam dos gritos da minha guitarra (dá longas e sonoras gargalhadas). Aí quando voltamos todo mundo tava com o palco lotado de amplificadores. Porra, tava alto pra caralho. Aí passaram a tocar mais alto que eu.

(1) Delta - região da foz do Rio Mississippi
(2) Toque pra quem não saca a importância desse cara. Os Rollings Stones começaram tocando músicas de Muddy Waters e o nome do conjunto foi tirado dessa música.
(3) Alan Lomax saiu de gravador em punho, dormindo em fazendas, bebendo em botequins, visitando prisões, e fazendo um trabalho admirável de coletânea de canções do povo. Esse projeto era financiado pela Biblioteca do Congresso e as melhores gravações saíram numa série de discos."


sexta-feira, 10 de julho de 2015

Nove Anos de Soul no Brasil - Jornal de Música (1977)

Em sua edição nº 30, de fevereiro de 1977, o Jornal de Música trazia uma extensa matéria sobre o movimento Black Rio e a soul music brasileira. Um dos tópicos da matéria falava sobre as origens da black music brasileira, e destacava como o ano de 1968 o início da produção do soul no Brasil, trazendo como marco zero a volta de Tim Maia ao Brasil, depois de uma temporada nos Estados Unidos, quando ele trouxe toda a influência da música negra americana. A matéria é assinada por Dom Gabriel, que eu creio se tratar do jornalista e músico Gabriel O'Meara:
"Soul music é um gênero musical aceito no Brasil desde 1968. Foi em 68 que Tim Maia voltou dos Estados Unidos - onde morou muitos anos - com quilos de discos e informação. Começou então a compor e tentar sintetizar o que, hoje, é conhecido como 'soul brasileiro'. Uma das músicas favoritas de Tim era uma canção gravada pela dupla Don & Juan, chamada What's Your Name. Esta canção tinha um apelo todo especial com suas harmonias vocais em 1/3, relaxadas e cheias de vibrato, facilmente copiáveis. (Na verdade, uma dupla pioneira do soul no Brasil, Tony e Frankie, baseou suas vocalizações neste estilo).
Na mesma época em que Tim testava seu estilo, outro cantor-compositor entrava na onda do soul: era Genival Cassiano, ou Cassiano, um músico da Paraíba que já tinha tocado bossa nova e que também estava compondo (talvez inconscientemente) 'soul brasileiro'. Ao contrário de Tim Maia, que era fascinado pelos ritmos sincopados do soul, Cassiano recebia maior influência dos lados mais suaves do gênero, principalmente de Stevie Wonder. Cassiano se tornou um mestre em arranjos vocais e corais de apoio, fazendo muitas vocalizações ao estilo dos Temptations e Delfonics com o grupo Os Diagonais, integrado por seu irmão Camarão e seu amigo Amaro. Eles fizeram os vocais nos primeiros discos de Tim Maia, e Cassiano compôs Primavera e Padre Cícero para o primeiro álbum de Tim, que foi lançado em 1970. (Mais tarde os Diagonais se tornaram Achados & Perdidos, um grupo que terminou após um breve sucesso). Este primeiro disco de Tim era uma mistura perfeita de soul e música nordestina, mas pouco a pouco ele iria abandonar esta última em favor de baladas acentuadamente americanas.
Cassiano
Quase na mesma época, no lançamento do Tim, Ivan Lins também apareceu em cena alegando influências soul, mas tudo o que ele fazia era forçar sua voz a ser rascante e gutural (a la Wilson Pickett), o que não convenceu ninguém, inclusive ele mesmo. Logo ele abandonou o estilo e começou a cantar melhor e mais naturalmente.
Paralelamente à eclosão de Tim (e Cassiano), outros cantores e músicos apareciam nos subúrbios do Rio (que hoje se chamam Black Rio), influenciados pelo estilo gospel, gritado, de James Brown. Os dois maiores nomes desse cenário foram Tony Tornado e Gerson Cortes. A história de Gerson é muito movimentada. Ele conseguiu conhecer James Brown através do empresário das Supremes, quando pulou no palco em um dos seus shows. Excursionou com James Brown, voltou ao Brasil e, com seu irmão Getúlio (autor de vários sucessos de Roberto Carlos, com Negro Gato e Pega Ladrão) trabalhou basicamente com material de Brown, cantando com Wilson Simonal e como crooner da Banda Veneno do maestro Erlon Chaves. Agora com o nome de Gerson Combo, lançou seu segundo LP pela Polydor.
O principal atrativo de Tony Tornado era sua routine de dança, também inspirado em James Brown, aliada à sua boa aparência. Tudo isso escondia uma voz medíocre, que mal conseguia se manter dentro da afinação. Seu maior - e quase único - sucesso foi BR-3, vencedora de um festival da canção, de autoria de Antonio Adolfo e Tibério Gaspar. Depois ele teve algum sucesso com  a música Tá Falado, Bicho (*), sumiu, e, em 75, voltou com o cabelo descorado, cantando em inglês, com uma voz um pouco melhor. Em 76, após outro sumiço, reapareceu cantando bem melhor na TV e, principalmente, nos bailes de subúrbio, no Rio. Para ser justo com Tony, deve-se dizer que ele influenciou milhares de jovens adeptos do soul com sua dança e seu jeito de vestir.
Tony Tornado, entre Tibério Gaspar e Antonio Adolfo
O trio que acompanhou Tony na BR-3, sobreviveu por algum tempo como um quinteto, o Quinteto Ternura, no estilo de Jackson Five. Atualmente as duas lindíssimas garotas e seu irmão Robson (que não é Robson Jorge) estão radicados em São Paulo. Eles são provavelmente o melhor grupo vocal em atividade, e trabalham muito em gravações.
Outros músicos amadureceram em suas carreiras até deixarem marcas na cena brasileira de soul. A maioria começou trabalhando e aprendendo os segredos do soul com Tim Maia ou Cassiano. Entre eles estão Robson Jorge, Renato, Dom Charles, Carlos Da Fé e Hyldon.
Robson, autor do sucesso Fim de Tarde, na voz de Cláudia Telles, se tornou uma espécie de mago de estúdio, tocando diversos instrumentos com um talento especial para escrever canções que ficam no ouvido, ao estilo dos Styliscts e Van McCoy. A essa altura deve ser mencionado um cavaleiro que desempenhou um papel importantíssimo no soul brasileiro, não como músico, mas como produtor e gerente da Polydor e, agora na CBS: Jairo Pires, responsável pelo lançamento de Tim Maia e pelo sucesso de Robson Jorge.
Renato, irmão de Robson, é um baterista de estúdio procuradíssimo, tendo desenvolvido um  genuíno estilo soul. Dom Charles é uma espécie de maestro de todo esse grupo, capaz de construir orquestrações no estilo da Filadélfia, na tradição de Gamble & Huff.
Hyldon
Hyldon é o mais regional do grupo. Foi guitarrista de Tim e produtor de discos. Em 74 gravou Na Rua, Na Chuva, Na Fazenda e depois o álbum Deus, A Natureza e a Música, num estilo mais Gil & Caetano, mas retendo sua base soul. Da Fé está, atualmente, acabando o seu álbum de soul-samba para a WEA.
Dentre os músicos que compõem a corrente de soul no Brasil, Paulo Cesar Barros (irmão de Renato, de Renato e seus Blue Caps se tornou O baixista soul. Outro baixista excelente ligado ao gênero é Jamil Joanes (por coincidência os dois são fãs do grupo Tower of Power há anos). O baterista Nelsinho (que trabalhou com Osmar Milito) aderiu completamente ao soul enquanto o guitarista Claudinho Stevenson e o reedman Oberdan se inclinam cada vez mais para o funk e o soul.
E na corrente considerada como MPB compositores com Luiz Melodia, Gilberto Gil, Macalé e Jorge Ben estão assimilando, indiscutivelmente, elementos de soul em seu trabalho."

(*) O título correto da música é "Podes Crer, Amizade"