Palavras Domesticadas

Palavras Domesticadas

quarta-feira, 28 de outubro de 2015

Torquato Neto - O Trágico Tropicalista

Texto não assinado, publicado na revista Música Brasileira nº 10, em março de 1998:
" 'Eu sou o que sou/ Pronome pessoal e intransferível/ Do homem que iniciei/ Na medida do impossível'
Musicados por Gilberto Gil, esses versos desesperados de um dos maiores poetas do movimento tropicalista brasileiro dão a dimensão do valor de Torquato Neto, um dos nomes mais importantes do movimento musical que neste 98 completa 30 anos, com pompa, circunstâncias e justa badalação.
Trágico e atormentado, Torquato Neto se matou no dia 10 de novembro de 1972, abrindo o gás do banheiro do apartamento onde morava no Rio de Janeiro, ao retornar da festa em que comemorava com os amigos os seus 28 anos de idade. Nascera em Teresina, cidade que depois inspirou Caetano Veloso a compor os versos 'Existirmos, a que será que se destina?/ Pois quando tu me deste a rosa pequenina/ Vi que és um homem lindo e que se acaso a sina/ Do menino infeliz  não se nos ilumina...' dedicados a Torquato e com os quais presenteou o pai do poeta, o promotor público Heli Nunes.
Em uma coluna jornalística que fez muito sucesso e deu muito o que falar no final da década de 60, nas páginas do extinto diário Última Hora, Torquato escreveu sobre tudo e sobre todo mundo que ocupava a mídia. A coluna chamava-se Geleia Geral, título que depois ele deu também a uma de suas letras, musicada por Gilberto Gil (O poeta desfolha a bandeira/ E a manhã tropical se inicia...). Gil, aliás, foi talvez o parceiro mais constante e mais afinado com  as letras do poeta trágico, e merece registro sobretudo as maravilhosas Louvação e Soy Louco por Ti, América.
Compôs em parceria com Caetano Veloso (Ai de Mim, Copacabana e outras), Edu Lobo (Pra Dizer Adeus - Adeus/ Vou pra não voltar/ E onde quer que eu vá/ Sei que vou sozinho...), Carlos Pinto (Três da Madrugada), Jards Macalé e com muita gente que sequer sobreviveu à efervescência do movimento tropicalista.
Torquato, Caetano e Capinan - anos 60
Nos últimos anos de vida Torquato Neto viveu momentos de profundas depressões, sempre balanceados com arroubos espontâneos de criatividade. Foi várias vezes internado no sanatório do Engenho de Dentro, no Rio, experiência utilizada na construção de poemas mais tarde reunidos no livro póstumo Últimos Dias de Paupéria. Lá está um poeminha que diz assim: "Quando eu nasci um anjo torto veio ler a minha mão/ Não era um anjo barroco/ Era um anjo muito louco/ Com asas de avião'.
O anjo torto do tropicalismo levantou voo muito cedo. Mas deixou uma obra muito bonita.

domingo, 25 de outubro de 2015

Belchior: Um Retrato 3x4 - Jornal de Música (1976) - 4ª Parte

" - Muita gente diz que essa informação prosaica vem de Bob Dylan. Se viesse, eu acharia muito bom, a referência é boa. Mas como estudei em colégio de padre, cantando gregoriano, adquiri naturalmente isso que ele eles chamam de desequilíbrio. As letras dos versículos enormes da Bíblia, encaixadas numa melodia pequena. E ouvir, a gente ouve tudo. Eu ouço Dylan, como ouço Hendrix e não posso atualizar a informação de Hendrix que tem dentro de mim.
- A comparação que foi feita pela Ana Maria Bahiana de Forever Young do Dylan com minha música Antes do Fim, para mim, é errada, porque no disco do Dylan ela tem dois arranjos e nenhum deles se parece com o meu. Quanto à letra 'sempre jovem' que eu também falo na música, isso não é privilégio do Dylan. O pessoal que procurava a fonte da juventude já desejava. É uma coisa muito superficial esse lance. Que fiquem sempre jovens e tenham as mãos limpas, eu dizia na música.
Mãos limpas é uma imagem bíblica, que o Dylan bebe nisso também, mas bebe no negócio francês, que o pessoal nem conhece. Agora, eu conheço tudo. Georges Moustaki, Georges Brassens, John Lennon. Do ponto de vista formal, eu podia citar inclusive João Cabral, Manoel Bandeira, Carlos Drummond e até Augusto dos Anjos. Eu sou também viciado em cinema. Assisto 3, 4 vezes `mesma fita. Tenho muito a ver com uma linguagem cinematográfica, do ponto de vista do corte, cenas, distanciamento. Também há um elemento teatral nas minhas músicas, de distanciamento muito característico, eu acho que é talvez uma memória brechtiana de leituras.
- As pessoas pensam que estou fazendo uma autobiografia individual, mas ela é feita do ponto de vista de uma geração. Quando eu mudei, em A Palo Seco, de 73 para 76, e mantive 'o rapaz de 25 anos' (N.R.: citação à Marginália II, de Gilberto Gil) era porque continua valendo para uma geração. É como eu também digo em Mucuripe: 'um rapaz novo e encantado, com 20 anos de amor'. Minha música também funciona como uma reflexão sobre a própria história, é um ensaio. Estou admirado desse aspecto ter sido tão pouco evidenciado na crítica. Citações de  Fernando Pessoa, Augusto dos Anjos, os intelectuais da rive gauche francesa, em 'Como o Diabo Gosta', e tal. Me parece que o pessoal tem pouco repertório para descobrir esse tipo de coisa. Mas como é uma obra artística, com o tempo ela vai receber outros níveis de leitura.
- Quanto à parte musical, quando você adota uma linguagem, assimila culturalmente uma coisa assim como o blues ou o rock, você está adotando todo um comportamento, que no caso do soul, sei lá, é um dado libertador do negro. Do mesmo modo que você adotar uma linguagem latino americana, você está adotando uma linguagem do oprimido, do humilhado, de pessoas em véspera de uma libertação. A informação rock é um dado natural, como na época de Orlando Silva havia a informação fox. Não sou do tempo das bossa nova, sou do tempo do rock. Minha preferência pelo blues vem da própria pungência do blues. E também porque eu morava vizinho de uns músicos negros descendentes de americanos que tocavam várias músicas nordestinas à  moda deles, no piano, no violino, instrumentos de sopro.
- Me preocupa muito as pessoas definirem para si mesmas um espaço muito pequeno de liberdade criativa. Elas querem uma forma de liberdade, quando a liberdade de criação são todas as formas. Acho uma verdadeira tolice a crítica que aparece em revistas e jornais definir raízes como uma coisa geográfica, folclórica. A raiz do homem é o homem mesmo. A informação toda que está dentro dele. Todos os estímulos sensoriais, de audição, visão, intelectuais, sexuais, todos, absolutamente todos. Daí é que vai surgir uma coisa nova. Não tenho preocupação nenhuma de nordestinidade. Não preciso enfatizar nada de nordestino, porque só sei ser isso. Não o nordeste místico dos livros, criado para enganar cada vez mais as pessoas.
- Falo do tropicalismo, da mentalidade 'divino maravilhosa', digo 'Veloso, o sol não é tão bonito pra quem vem para a cidade e vai viver na rua', estou fazendo com isso o mesmo que Caetano fez, a mesma dose de crítica. Eu acho que os artistas novos estão em natural contradição, em tensão dialética, criativa com os anteriores que, de tão bons, já se tornaram tradições na música brasileira. Se eu sentisse por eles apenas idolatria, eu estaria comprando os discos e ouvindo, não é? Não estaria aí trabalhando. "

sexta-feira, 23 de outubro de 2015

Belchior: Um Retrato 3x4 - Jornal de Música (1976) - 3ª Parte

"Midani fala de particularidades do contrato - de 3 anos - que assinou com seu pragmático empregado. Há um sistema de percentuais progressivos, que torna o artista 'sócio da companhia': 'Até uns 20 mil discos, a empresa perde dinheiro, mas aí  é o lado capitalista da coisa, que é só nosso. Até uns 50 mil vendidos, nossos lucros chegam a uns...digamos... 10%. Então o artista recebe essa porcentagem sobre disco vendido. No caso do Belchior há ainda os direitos sobre composição, que dão uns 18% no total. A partir daí vão aumentando as percentagens e confesso que esperamos vender uns 80, 100 mil discos dele'. Há outra cláusula que estipula que a cada disco corresponderá um show, com investimento da companhia na montagem. 'A quantia está estipulada, não quero dizer os números exatos por causa... bem... existem outras gravadoras... Além disso a gravadora prevê uma verba para o caso do produtor não ter o suficiente para a montagem do espetáculo: esse investimento será recuperado através de participação na bilheteria'.
Outro detalhe importante, já que Midani diz não ter havido 'qualquer adiantamento' para o artista mudar de gravadora, é a 'manutenção de uma assessoria constante em termos de veiculação, imagem, roupas', checada em encontros quinzenais. Midani comenta que seu contratado atraiu  imediato e espontâneo interesse da que classifica imprensa universitária. 'Mas precisamos atingir também o público de Capricho, Sétimo Céu. Por exemplo, a mulher da revista Cláudia é uma dona de cada de uns 35, 40 anos que já desistiu da maior parte da sua vida. Onde haveria apelo, no trabalho de Belchior, para ela? Fomos ver e acabamos nas letras, naturalmente: 'Viver é melhor que sonhar' (N.R: eu não disse, leitor?). Então aí estaria um tema para uma matéria na revista Cláudia, onde Belchior mostraria a essas mulheres que ainda há coisas por que viver, por que lutar.'
Ainda à procura da possível extensão do público a atingir, Midani afasta a classe média ('ela já se mostrou muito interessada em trilhas de novelas e sambões de branco') e reconhece que não poderia mudar muita coisa em Belchior, para não desfigurá-lo e perder o público universitário. Acaba descobrindo para ele, além deste, o público do operário urbano. O que estaria fazendo Belchior, coberto por um sobretudo e boné negros, charuto entre os dedos e um reluzente broche na roupa, nas páginas da aristocrática Vogue, de agosto, que define seu 'vestir' como 'clássico, de bom-gosto'? Midani, que acredita também num lançamento internacional do cantor, via WEA, faz um longo silêncio, antes da resposta: 'Pessoalmente acho que qualquer coisa é melhor que a Vogue. Mas o Bel provavelmente diria que a soma de pequenos públicos que ele atinge, inclusive o da Vogue, é que forma o público total que ele quer atingir.'
- E Belchior, o que pensa de aparecer nas páginas de Vogue? perguntou o repórter Paulo Ricardo.
B- Só o fato de, na Vogue, serem escritos meus pensamentos, fiquei satisfeito. O que importa é a mensagem, não me importa o veículo. O que vale é a obra do artista, não ele. Esse tipo de pensamento do sujeito, por fumar charuto, ser um grande capitalista, não tem nada a ver. Assim como apareço na Vogue, canto na Globo, canto em colégios e apareço na revista Rock. Chico Buarque começou no programa O Céu É o Limite (N.R.: Esta Noite  se Improvisa) apertando botão e cantando sambinhas para ganhar geladeiras e eletrodomésticos. Esqueceu isso? Isso nunca interferiu no seu trabalho, apenas contribuiu para torná-lo conhecido. O Caetano também.
P- Como você tem sido recebido pelo público depois do sucesso?
B- Tenho feito shows no interior de São Paulo, Fortaleza, em teatros, escolas, quadras de colégios. Faço porque sou chamado e me pagam. Vou por minha conta e risco. Às vezes, sozinho, com o violão e um roteiro que faço um pouco antes. Conto histórias, leio críticas de jornais e meu respeito. As pessoas têm recebido bem, os lugares estão sempre superlotados. Se cabem 300, têm 600 e até 800, como num subúrbio de São Paulo, onde as portas foram arrombadas pelo público. Recebo cartas diariamente. (Mostra uma que diz: 'Obrigado por você existir, obrigado pelas palavras de Veja eu te adoro'. Roberto, de Recife). Essa comunhão com o público reforça a minha afirmação de que sou apenas um reflexo desse mesmo público. Se os artistas não fizerem as coisas, quem vai fazer? Mas não nos esqueçamos que dependemos deles também. Eu faço a música e eles vendem.
P- Você tem alguma ideia para o próximo disco? Músicas prontas? Quais?
B- Vou seguir a mesma linha Belchior, a linha de Velha Roupa Colorida. Trabalho diariamente, me considero muito serio. Tenho inclusive algumas músicas na gaveta, que é preciso rever, porque acredito que a música que farei em 76 não é a mesma que farei em 77. Me considero um reflexo do momento. Não posso dar nomes de músicas, porque ainda não se fechou o ciclo. Ainda tenho que pensar, viver. Vou gravar em março de 77. Até lá, não sei.
(N.R.: Numa longa entrevista que me concedeu em junho, Belchior esclareceu também alguns pontos que estavam sendo criticados logo que foi lançado o disco Alucinação).
- Defino meu trabalho ao nível da canção mesmo, sou um cancioneiro. Não sou instrumentista nem letrista, mesmo que digam que eu tenho preferência pelas palavras. Sou um cara preocupado com  a forma musical que contenha letra, esse é o meu espaço criativo. Minha letra é discursiva, não poética, esse é o dado novo que as pessoas acham uma deficiência, porque ainda o analisam com padrões antigos.'
(continua)

quinta-feira, 22 de outubro de 2015

Belchior: Um Retrato 3x4 - Jornal de Música (1976) - 2º Parte

" 'Ele pintou por aqui em 74, trazendo debaixo do braço um LP de capa azul que tinha gravado para a Chantecler', lembra Roberto Menescal, diretor artístico da Phonogram, e homem que, em boa parte decide quem vai ser contratado por lá. 'Ouvi e não gostei. Admito até que estava com muita coisa na cabeça e não pude ouvir com calma. Mas continuo achando que o trabalho dele na época era indefinido,  só depois ele conseguiu uma unidade de mensagem'.
Menescal na segunda ouvida, mais de um ano depois, achou diferente:
'Não se estava dizendo mais nada na música popular brasileira. Belchior veio constatando o que houve, o que está havendo e que deve aparecer algo de novo.'
Boa parte do sucesso, que está em 40 mil cópias ('uma média bastante regular, de 2.600 discos por semana'), Menescal atribui ao 'batalhador' Belchior que saiu por aí 'disposto a acontecer de qualquer maneira'. Outro tanto ao produtor Mazola que resolveu boa parte dos 'problemas musicais' do cantor: 'Puxamos a voz dele pra frente na hora da mixagem, para não perder as palavras e ainda foi preciso equalizá-la um pouco, por causa do tom anasalado.' Belchior levou a Menescal uma fita com 20 músicas, que foram escolhidas, 'através de um processo que parece muito primário, até colegial'; as músicas foram mostradas a 12 pessoas de diferentes setores da companhia, e cada uma delas atribuiu uma nota a cada faixa. 'O resultado foi apresentado a ele como sugestão. Belchior fez uma ou outra modificação, mas em geral, as músicas do LP foram as que escolhemos.'
Quanto ao sucesso e à rescisão do contrato ('que ainda prevê quatro músicas e ele garantiu cumprir até o fim, em novembro'), Menescal se mostra apreensivo. 'Sempre disse a ele que o sucesso ia ser uma barra! Acho Belchior um cara muito preparado, menos para o sucesso. E nessa de vai ou não vai ser uma barra, acho que ele já foi.' Menescal explica, com naturalidade, a passagem de seu ex-astro para a WEA, 'onde ele vai ser a estrela principal do cast'. Comenta que, em geral, se reserva 5% do cálculo de prévia de vendas para ser aplicado em divulgação: 'Belchior  foi um dos maiores orçamentos de artistas recém-contratados. Não digo quanto porque os outros podem ficar chateados de não terem recebido tanto'. Menescal, porém, é definitivo, assinando a lápide do ex-produto: 'Nós continuamos investindo no disco, não na imagem de Belchior. Não vamos investir a longo prazo. Agora existe apenas um produto que merece atenção, enquanto estiver rendendo. Sob o ponto de vista da companhia, Belchior não existe mais'.
 Mazola, aliás, Marco Aurélio da Silva, 29 anos, o produtor que fez Belchior e o levou para a WEA, conta uma história mais emocionada. 'Quando ele apareceu na Phonogram, estava desmotivado da vida artística, ninguém lhe dava atenção. Convidei-o a gravar um disco, e ele ficou tão surpreso que chorou, dizendo que eu era o primeiro a sacar o trabalho dele'. Outra coisa que aguçou o interesse do experiente Mazola (produtor na Phonogram, do MPB 4, Elis Regina, Jair Rodrigues, Raul Seixas, Rita Lee) foram as diferentes opiniões que despertavam a voz 'parecendo aço' de Belchior: 'Uns diziam 'puxa, que voz ruim', enquanto outros achavam fantástico. A ideia inicial foi fazer um disco só ele, violão, baixo e guitarra. Mas, no estúdio, 'quando pintou uma bateria, piano, atrapalhou a dicção dele, porque ele precisava prestar atenção aos instrumentos e se desconcentrava'. Mazola chegou a mixar cinco vezes o LP Alucinação ('ia se chamar Populus, por causa de outra música, mas era tão complicada que não conseguimos gravar'). Com  a intenção de 'vender tudo junto, som  e mensagem', o produtor acabou optando por uma mixagem americana, 'onde a voz nunca tem destaque, ela é misturada ao conjunto'. (NR.: O que contradiz as informações de Menescal.) 'O disco saiu por Cr$ 200 mil, acrescentou Mazola. 'E precisa vender uma base de 27 a 30 mil cópias, pelo ponto de equilíbrio da Phonogram, para cobrir os gastos.'
Reconhecendo alguns erros, 'a bateria às vezes sufoca a voz', Mazola compara seu trabalho de produção a 'cuidar de um filho'. Para o LP de estreia na WEA, promete carinhos realmente paternais: 'Vou trazer o melhor engenheiro de som dos EUA,  o Umberto Gatica, que grava Rod Stewart e todo o pessoal da pesada. Vou buscar lá também um microfone caríssimo que as gravadoras brasileiras não podem ter, usado pelos grandes astros como Sinatra e James Taylor, projetado especialmente segundo a elaboração da curva de voz de Belchior'. Apesar de reconhecer parte importante na passagem de seu produzido de uma para outra gravadora ('pela afinidade que ele tem comigo'). Mazola desvincula-se do êxito de Belchior: 'O charme dele é ele mesmo, só lapidei um pouco as coisas. Ele já chegou pronto e é um tremendo cara organizado, o que facilita muito as coisas'.
Em  sua nova trincheira de trabalho - ele também passou-se da phonogram para a WEA, aliás, fundou a nova empresa - André Midani diz porque escolheu Belchior para  'primeiro contratado nacional': 'Da mesma forma que Tom Jobim (que veio para nós via Warner americana) representou uma ruptura, um marco, um ponto para onde confluíam todas as descobertas de harmonização e orquestração, embora fossem descobertas de outros, de Johhny Alf, João Gilberto, João Donato, e Belchior é uma ruptura no tempo presente. É a pessoa que reúne mais fatores capazes de torná-lo marcante na música de hoje, no Brasil. É um puta profissional. Não tem aquela vergonha, que a maioria dos artistas tem, de ganhar dinheiro com música. Esse pudor, vem da bossa nova, música era uma coisa de marginal, prostitutas, não ficava bem gente como Nara Leão, menina de classe média, de família, recatada, ganhar dinheiro com música. Belchior faz discos para vender, sabe que merece receber o máximo possível como paga pelo seu trabalho. Me lembra muito o Gil, que foi o artista com quem eu mais discuti, na Phonogram, os aspectos todos do fazer música. Mas Gil tinha sido administrador de empresas, via a coisa de outro modo, era uma contestação muito violenta, frequentemente extrapolava para um lado extremamente filosófico. Com Belchior a coisa é concreta, imediata, clara. É uma pessoa forte, no bom sentido ' "
(continua)

quarta-feira, 21 de outubro de 2015

Belchior: Um Retrato 3X 4 - Jornal de Música (1976) - 1ª Parte

Em 1976 Belchior vivia um momento de grande popularidade e prestígio. Seu disco Alucinação emplacou vários sucessos e vendia muito bem, alcançado diferentes classes sociais, desde as mais intelectualizadas às com menos estudo, mas que entendiam sua música e suas mensagens.
Em sua edição nº 22, de 09 de setembro de 1976, o Jornal de Música trazia uma ótima matéria/entrevista com o ídolo do momento, assinada por Tárik de Souza. Segue abaixo, a primeira parte:
"Pelo tempo de convivência com esta publicação, e mais especialmente pela leitura constante das cartas e votos  (Melhores de 75) dos leitores, acredito que conheço um pouco aquele que está diante deste texto. Basicamente é uma pessoa não apenas interessada em música, mas participante ativo: não importa se compra, ou somente ouve os discos, ou até mesmo acompanha a música pelo rádio e pela TV. Mas discute, é capaz de apaixonar-se ou odiar compositores, cantores, músicos - e a crítica que aqui se faz - com intensa adrenalina. Daí a útil necessidade desta matéria. Até um ponto raramente alcançado antes, ela desnuda o mundo em sonhos em que o nosso leitor acostumou-se a embarcar, quem sabe abstraindo seu cotidiano principal, nem sempre tão faiscante, ou nem sempre com  a mesma aparência de compreensão imediata e calorosa.
'Viver é melhor que sonhar', me fornece um ambíguo lema (vocês verão porque) o próprio centro da matéria, o compositor e cantor Belchior. Ele foi entrevistado, juntamente com  as eminências (nem tão) pardas (assim) que constituem os bastidores de quase todos os ídolos do Brasil. Waldemir Marques, do Jornal de Música de São Paulo, ouviu o primeiro produtor de Belchior, Marcus Vinícius, que, por acordo com o artista, não consta como autor deste trabalho de estreia. Na Chantecler, onde o LP foi gravado, Caito Gomide, também em São Paulo, entrevistou Salatiel Coelho, 'gerente de artistas e repertório' da empresa. O diretor de repertório da gravadora seguinte de Belchior, a Phonogram, Roberto Menescal, falou, no Rio, ao nosso repórter Aloysio Reis. Encarregado da produção deste disco Alucinação - devidamente creditado por isso - Mazola, ex-Phonogram, atual WEA (Warner-Elektre-Atlantic), conversou com Liana Fortes. E contou, entre outras coisas, como levou o ex-artista maldito e atual superastro (Alucinação já vendeu 40 mil cópias e deve chegar a 80 mil, segundo Menescal) para sua nova empresa. Não foi pequena porém a participação do diretor desta, o ativo André Midani, na transação. Estimulado por duas caipirinhas, no requintado restaurante Le Mazot, ele abriu o jogo para Ana Maria Bahiana: só não falou de cifras, para não ferir o novo contratado, ou alertar demais concorrentes. Outros números que aparecem no decorrer da matéria, no entanto, servirão para mostrar ao nosso leitor como, quanto e o que custa a um rapaz latino-americano, 'sem dinheiro no banco/sem parentes importantes/e vindo do interior' tornar-se ídolo nacional.
Belchior é quase um modelo, protótipo, do artista desta geração de briga que não teve a TV ou qualquer máquina de sucesso rápido a favor: quase teve contra. As diferenças entre o caso dele e o de João Bosco, por exemplo, entre ele e Fagner, ou Gonzaguinha, ou Alceu Valença, ou Walter Franco, ou Luiz Melodia, ou Ednardo, ou Raul Seixas, ou Sérgio Sampaio são pequenas. Ficam por conta das reações características de cada personalidade. O quadro de dificuldades, loucura, baixos  e altos instintos, pelo menos é praticamente o mesmo para todos. Afinal, não é por acaso que Belchior é o autor do hino desta geração de briga; 'Tenho vinte e cinco anos/de sangue e de sonho/e de América do Sul'.
Estamos contando a história de Antônio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes, cearense de Sobral, nascido em 1946 numa família de 23 irmãos, filho de uma cantora de coro de igreja e um modesto bodegueiro. (À revista Vogue, ele falou em 'coronel do sertão'). Depois de estudar com os padres Capuchinhos, num convento perto de Fortaleza, tanto filosofia quanto literatura francesa e dicção, ele abandonou tudo. Moleque de recados desde os 10 anos, cantador de feira, criador de galinha e pombo, fabricante  de máscaras de carnaval, alfabetizador de adultos, Belchior acostumara-se  desde  muito cedo à liberdade. Foi tentar medicina. Mas caiu fora, segundo diz, quando percebeu que o curso 'reciclava a opressão do conhecimento'. Agora, professor de cursinho, passou a cantar na TV de Fortaleza. Acabou expulso do colégio por causa da dupla atividade e, em 68, tomou a decisão histórica: 'Ia viver ou morrer de música.' Mandou-se para o Rio, num avião da FAB, obrigado a cortar os cabelos, para viajar de graça.
Chegou com 70 pratas, muito tempo poupadas, graças à ajuda dos amigos. Confessa que não teve coragem de mostrar aos destinatários as cartas de apresentação que tinha trazido do Ceará. Mas não se recusou a enfrentar a barra pesada. Morou em Caxias, Marechal Hermes, 'vi tiroteio na Lapa', trabalhou na Tijuca, num hospital, em troca de almoço e jantar. Quando mudou para São Paulo, tomou conta de uma casa que ia ser demolida, trocando sua cama de quarto em quarto, até só lhe restarem quatro paredes e a poeira do reboco.
Ele chegou confiante e até convencido, do Ceará: 'Na condição em que está a música brasileira', pensou na época, 'com esse trabalho vou sensibilizar diversas áreas'. Parecia que ia dar certo: ganhou logo o festival universitário, com sua música Na Hora do Almoço ('No centro da sala/diante da mesa/no fundo do prato/comida e tristeza'). Mas depois veio um longo silêncio de quatro anos, até conseguir gravar o primeiro LP, A Palo Seco, em janeiro de 74. Marcus Vinícius, produtor, consentiu que seu nome ficasse apenas como diretor musical. Conta que Belchior 'estava por aí morrendo de fome e buscando uma chance para gravar'.
Marcus tinha seu próprio disco, Dédalus, engatilhado: 'Fizemos uma força, demos até uma de trombadinha lá dentro da Chantecler, para que saísse o disco dele'. Segundo o produtor omitido (e pela entrevista, um pouco zangado também), Belchior 'tinha aquela voz de vaqueiro', 'informação nordestina bem densa, bem rica', mas 'não era nada de novo, como não é até hoje'. Sentencia Marcus: 'O que existia mesmo era um suporte de letra importante, para uma música primitiva.'
A Palo Seco, segundo Salatiel Coelho, gerente de artistas e repertório da Chantecler, 'não vendeu nada'. Meio assustado, demorando a responder, Salatiel disse que o próprio Belchior pediu rescisão de contrato. Lamenta-se o funcionário: 'Ele já estava com um novo repertório a ser lançado, e não conseguiria divulgar suficientemente por aqui. Este problema é muito sério: leva muito tempo para se formar um bom divulgador. Os que estão trabalhando por aí já têm 20 anos no ramo e as gravadoras não soltam de jeito nenhum. Doce ironia: a Chantecler, agora, depois do sucesso de Belchior, prepara o relançamento de suas gravações na empresa. Primeiro, 1000 compactos e, depois, 1.500 LPs vão às lojas."
(continua)