A classe musical, na época da ditadura foi uma grande combatente contra o regime autoritário, através de músicas que denunciavam as mazelas e os horrores da política dos militares. Disso todos sabem, mas um músico considerado insuspeito, cujas músicas não eram alvo dos censores, e não incomodava a direita, teve uma ação bem mais direta na luta contra a ditadura, fato que só foi revelado somente há dez anos em um livro escrito sobre a era dos festivais, no auge da ditadura militar.
Numa matéria do jornal O Globo de 15 de junho de 2003 o fato é comentado, num texto de Hugo Sukman:
"Que Chico, Caetano, Vandré, Gil e a turma dos anos 60 foram símbolos na classe artística da luta contra a ditadura até as paredes do Dops sabiam. Mas que Gutemberg Guarabyra - o cabeludo inventor do rock rural ao lado de Luiz Carlos Sá e Zé Rodrix - foi o secreto protagonista de uma das aventuras mais eletrizantes dessa luta, isso foi revelado pelo recém-lançado 'A era dos festivais - Uma parábola'. O livro, do musicólogo Zuza Homem de Mello, revela que o compositor da doce 'Margarida' - canção romântica inspirada em cantigas de roda, vencedora do Festival Internacional da Canção de 1967 - foi o idealizador do célebre movimento que, em 1971, quase detonou o festival ao promover a inscrição de canções-fantasma de grandes compositores (Tom, Chico, Marcos Valle, Edu Lobo, Sérgio Ricardo e outros) que na hora H retiraram sua participação e divulgaram um manifesto contra a censura.
Pois tal aventura subversiva - reforçada por ele ocupar na época o cargo de diretor artístico do festival - não foi novidade na vida de Guarabyra, filho de uma família de comunistas baianos.
- Desde criança estava acostumado a esconder gente no meu quarto - diz Guarabyra ao Globo.
- Cheguei a guardar armas da ALN (Aliança Libertadora Nacional, movimento liderado por Carlos Marighella) em meu apartamento em Copacabana.
Como simpatizante ativo do grupo, revela Guarabyra, ele cumpria missões como trocar o dinheiro dos roubos a banco. E fazia isso no bar da moda de Ipanema, o mítico Zepelin. Ele entrava no bar, distribuía obas e olás para frequentadores assíduos como Jaguar e o pessoal do 'Pasquim' e dirigia-se ao caixa. Pegava o saco de dinheiro, em notas miúdas, e entregava. Recebia de volta a mesma quantia, só que em notas maiores.
- Uma vez enquanto eu trocava dinheiro no Zepelin, a perícia examinava a agência do lado, de onde o dinheiro saira pouco antes - diz.
Guarabyra, entre Chico Buarque e Milton Nascimento - FIC 67 |
Livrar-se do dinheiro miúdo dos assaltos (ou como se dizia, expropriações) não era nada para esse frequentador, ao lado de Paulinho da Viola e Sidney Miller, das rodas de samba do Teatro Jovem (também núcleo comunista), em Botafogo. A grande aventura foi quando ele juntou a vida clandestina de militante de esquerda com a civil, do homem ligado à música. Foi em 1971, auge da repressão do governo Médici. Ele era diretor artístico do FIC e arquitetou e executou um bem-sucedido plano para burlar a censura e protestar contra a ditadura no pior momento dela.
- A censura estava cortando tudo e, o que era pior, a polícia passou a exigir da direção do festival a ficha completa, carteira de identidade registrada na Censura e todos os dados dos participantes previamente enviados para Brasília para averiguações. Além disso, as imagens do festival transmitidas pela televisão estavam sendo usadas como propaganda positiva da ditadura no exterior, uma falsa imagem de nós que éramos contra o regime - diz Guarabyra, justificando sua ideia arriscada.
Ao lado de Chico Buarque, a quem ele procurara sigilosamente e que logo aderiu à conspiração mesmo em pleno ensaio do show 'Construção', no Canecão, Guarabyra teve que levar vida dupla: de dia batendo ponto na sede do Festival, na TV Globo, e até em reuniões com a Censura e o Dops, que pressionavam o festival e a emissora sem parar, e à noite convencendo seus colegas, secretamente, a inscrever falsas músicas no Festival - Tom e Chico mandaram 'uma canção meio sombria', 'Que Horas São?', que nunca existiu.
Antes de a Censura perceber, o manifesto foi publicado no jornal 'Última hora' e chegou às agências estrangeiras. Virou caso internacional. A ditadura se desmoralizou onde não esperava,
Guarabyra teve que enfrentar desconfianças mesmo entre os colegas. Alguns, com Torquato Neto e Ruy Guerra, consideravam-no um 'vendido' ao sistema, pois não sabiam do jogo duplo.
- A experiência me preparou para agir quieto, até ouvir ofensas sem me incomodar.
Segundo ele, valeu a pena. Já que foi publicado o manifesto dos artistas contra a ditadura, disfarçado numa carta em que se retiravam do festival: 'As razões são públicas e notórias: a exorbitância, a intransigência e a drasticidade do Serviço de Censura (...), afora exigências burocráticas inconcebíveis, tais como cadastramento e carteirinha dos participantes (...). Sem esquecer sempre a desqualificação dos que exercem uma função onde a sensibilidade e o respeito pela arte popular são prioritários'."
Desconhecia a história.
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