Palavras Domesticadas

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segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Caetano Veloso - Entrevista Rara - 1983 (4ª Parte)

"JNM - Você ainda se sente combatido?
Caetano - Eu me vejo combatido, mas não me sinto combatido.
JNM - Porque e por quem você se vê combatido?
Caetano - Pelas mesmas áreas que eu me referi. Áreas da imprensa, meios universitários mais...
JNM - Exigentes?
Caetano - Não, até um pouquinho menos exigentes. Mas, mais caretas pra essa coisa do que a gente faz. Mas é uma coisa que não tem peso hoje em dia. Hoje em dia, como eu falei na estreia do meu show (Uns), todo mundo fala bem de mim, eu faço sucesso no mercado. Tá ótimo. Eu fiz duas semanas de show aqui no Rio, e o show, você viu ontem, pra mim o show é lindo,mas a imprensa do Rio arrasou, falou mal, eles gostam. Aquilo não me ameaça, não tem peso pra mim...
JNM - Não tem peso, mas o tempo todo no show você fica falando...
Caetano - Mas eu falo assim, porque eu tenho um dever pedagógico de esclarecer e também de combater a mentira.
JNM - Você foi muito combatido pela imprensa aqui do Rio. E no show você falou na imprensa de São Paulo...
Caetano - Em São Paulo eles falaram bem do show e do disco e aqui eles falaram mal, então eu fiz uma brincadeira, eu agradeci a imprensa de São Paulo pelo realismo.
JNM - E como você vê a atuação da imprensa no Brasil?
Caetano - Eu na verdade, eu falo porque eu sou ousado. Eu não leio jornal quase, eu acho chato à beça. Não leio muito jornal, prefiro ler revista do que jornal, mas não leio sempre, tenho preguiça. Eu gosto de ler livro, eu só leio na hora que eu deito. Parar pra ler não, ou eu vou pra praia ou fico conversando com amigos. Eu só leio na hora que eu volto pra casa pra dormir. Aí depois que Dedé dorme eu pego um livro e leio um pouquinho. Então em vez de pegar um livro eu vou pegar a Veja? O Jornal do Brasil então, nem pensar! Às vezes de manhã quando eu acordo, se tiver uns desses jornais aqui em uma mesa... porque eu passei anos sem nem comprar. Porque um jornal é do tamanho de um livro, eu acho, e pra ler um livro eu levo três meses, então como é que eu vou ler um jornal?
JNM - Em que você se baseia para escolher o ano sim  e o ano não. Dizem que no ano 'não' você acaba trabalhando mais...
Caetano - É, por acaso acaba ficando assim. Esse ano é o ano não, e eu tô trabalhando à bessa. É porque no ano sim eu tenho trabalho marcado o ano inteiro, e você sabe que tá trabalhando e tá tudo organizado. No ano não você fica meio disponível, então mil coisas aparecem e você fica mais atrapalhado. Mas o que distingue o ano sim do ano não, é que no ano sim  eu faço excursão pelo Brasil inteiro, quer dizer, todas as capitais e cidades do interior de São Paulo. E no ano não eu só faço Rio, São Paulo e Salvador. Mas aí no ano 'não' aparece: Israel, Paris, Montreux, Nova York, Roma. Aí aparece milhões de coisinhas, e eu acabo trabalhando pra caralho.
JNM - Como a sua música é recebida na Europa?
Caetano - A música brasileira em geral tem um prestígio muito grande nas áreas sofisticadas de todos os países civilizados no mundo, seja no Japão, Itália... Eu tô meio no bolo, graças à eficiência dos meus colegas: Jorge Ben, Milton Nascimento, Gilberto Gil, Egberto Gismonti, Gal Costa... eu no meio do bolo também posso me apresentar, eles também querem me ouvir. E antes deles Tom Jobim e João Gilberto sobretudo.
JNM - Da América Latina a brasileira seria a mais bem aceita?
Caetano - Na minha opinião é a melhor. Tem a cubana, mas a cubana era assim boa, quando Cuba era um prostíbulo, hoje é mais pra quartel do que pra prostíbulo. De todo modo os americanos e a política dos países de direita da América bloqueiam o intercâmbio cultural em Cuba e a gente nem sabe em que pé está a música cubana. Mas o Djavan me disse que está muito bem, pelo que ele ouviu lá. Então fora a música americana a brasileira é a melhor.
JNM - Você acha que as pessoas ainda se interessam por uma música politizada?
Caetano - Como politizada?
JNM - Uma música mais voltada...
Caetano - Que a letra fale de assuntos sociais? Eu acho que as pessoas se interessam por isso também, e é bom, é natural que as pessoas se interessem.
JNM - O país está uma bagunça sob o slogan de 'Abertura' e ninguém, hoje, está fazendo música preocupado com isso. As pessoas estão mais preocupadas em ficar alienadas...
Caetano - Você acha? Preocupado em ficar alienado é muito, hein? Eu não acho. Eu acho que a abertura é mesmo abertura. Acho que é uma conversa fiada querer dizer que não. Eu me lembro do tempo do Médici muito bem. Eu sei o que o Geisel fez foi fundamental, foi profundamente importante. E espero que possa caminhar para uma coisa dignificante para o Brasil, não sei se vai, não sei se o Brasil tem o pique pra fazer uma coisa melhor. Espero que tenha, pelo menos a música popular se esforça há séculos pra fazer desses lugar um lugar digno e bonito. Vamos ver se o país corresponde à música que tem. Não sei o que virá agora, talvez fosse mais legal manter uma coisa militar, caminhando pra uma coisa mais bacana. Mas talvez agora passemos pra uma coisa civil e continuaremos assim muito atrasadamente brasileiros. Eu não sei.
JNM -  O que é 'muito atrasadamente brasileiros'?
Caetano - Ah, o Brasil é um país atrasado, onde as pessoas morrem de fome. Pô, isso é uma coisa horrorosa, horrorosa. A distribuição de renda é a mais injusta do mundo, nunca resolvem o problema da economia, que é uma coisa que eu não consigo entender, a inflação nunca para..."
(continua)

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