Palavras Domesticadas

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quinta-feira, 5 de abril de 2012

Hermeto Pascoal - Um Músico Simples


Em 78 a jornalista Ana Maria Bahiana escreveu um belo texto sobre Hermeto Pascoal. Com o título de "Um Músico Simples", a jornalista expressa sua admiração por um de nossos melhores músicos:
"(A Mauro Senise, Itiberê e Jovino, os campeões do campeão)
A lembrança mais remota que tenho de Hermeto Pascoal é o Quarteto Novo. Não pode ter sido da TV, tocando 'Disparada' no Festival de Record, porque ele não estava lá. De onde seria? De disco? De alguma apresentação fugaz? Uma foto? Não sei, mas certamente é dessa época. Há uma outra lembrança, também, mais próxima: ouvindo 'Andei' no rádio, com Airto e Hermeto aprontando, um som muito seco e muito corante, indo procurar o disco, só importado 'Seeds On The Ground'. E também um momento Costa assustada, microfones mudos. Uma brincadeira no 'Abertura', em 75 -'esta é uma história de um porco que deixou todo mundo louco', - e finalmente, lá estava eu diante do crazy albino (apelido que Miles Davis lhe deu), encantada por histórias fluentes e pensamentos exatos que brilhavam tão absurdos e fecundos e luminosos como sua música.
A lembrança mais remota que Hermeto Pascoal tem dele mesmo é a luz que vinha das árvores enfeitadas nas noites de forró em Lagoa da Canoa, Arapiraca, Alagoas, onde o vendeiro Pascoal José, seu pai esperava a madrugada com cocos e emboladas, a mulher na zabumba, o filho arriscando um triângulo encantado. É essa a raiz que explica a maravilha de Hermeto Pascoal, o encanto que não cessa de me aturdir e me encher de esperança: Hermeto Pascoal de Lagoa da Canoa, com Pascoal José é o mesmo Hermeto Pascoal do Filmore East de Nova York, com Miles Davis. O Hermeto Pascoal da casinha marrom e amarela de Senador Camará é o mesmo Hermeto Pascoal dos estúdios atapetados de Los Angeles. Só há um Hermeto Pascoal. Mesmo porque, dois, o mundo não comportaria.

Tenho a petulância de me considerar, não uma amiga, mas, digamos assim, uma fã muito próxima de Hermeto. Tomei o café de D. Ilza, em Senador Camará, e viajei a caravana para vê-lo reencontrar sua velha amiga, a feira; estou sempre lá, na plateia, para ficar tonta e feliz e espantada com sua música perpétua. Só não mestive (ainda!!) na estrada com ele, mas da estrada seus músicos me contam sempre com uma gargalhada amorosa no canto da boca.
Porta aberta, cabeça aberta, coração aberto: esse é o Hermeto Pascoal uno e insubstituível que tenho seguido nos últimos anos, por profissão e paixão. Esse é o Hermeto Pascoal que nos salva a todos de nossa triste condição de colonizados, eternamente condenados a discutir a salavaguarda (êpa!) de nossas raízes, a digestão do que vem de fora, tão ocupados às vezes nesse exercício de resistir e procurar o inimigo e cercar pelos sete lados que nos esquecemos de ser, de criar, de pensar sem tramelas. Porque ele é realmente o único e verdadeiro Hermeto de Arapiraca, Nova York, Senador Camará e Los Angeles, sem a menor sobra de conflito entre seus componentes, porque de seus dedos coruscantes só sai pura música de acento brasileiro, porque de sua cabeça desimpedida só flui a criação mais espontânea e mais complexa, porque ali, na sala de ensaio cor de rosa, ao lado da cozinha onde D. Ilza faz uma peixada e Seu José pica um rolo de fumo, ele faz sem resistir e sem pensar, como respira, a música mais avançada e simultaneamente mais brasileira.

Hermeto Pascoal está voltando à estrada, seu segundo habitat natural depois de Senador Camará/Arapiraca, territórios já no domínio do mítico. Mas diz que está com dificuldades de gravar como quer, ele que só tem dois Lps lançados o Brasil, um em 72pela Phonogram e o 'Slave Mass' da WEA, no ano passado (e mesmo assim esse foi gravado nos Estados Unidos). Seremos mesmo assim, meu Deus? Mereceremos viver na tão chorada condição de colônia para sempre? Estaremos aqui sossegadamente jogando fora o que temos de ouro? Aos bandidos, mais uma vez? Será que não merecemos Hermeto Pascoal? Tememos tanto assim o alegre risco da invenção?
Campeão, se não der, não deu. Vamos à luta."

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