O jornalista, escritor e dramaturgo Luis Carlos Maciel é um dos mais conceituados conhecedores da contracultura no Brasil. Durante anos foi responsável pela coluna semanal "Underground", no jornal O Pasquim, onde falava de rock, teatro, cinema e movimentos de vanguarda dos anos 70. Em junho de 1980 escreveu um perfil de Rita Lee para a revista Careta. Transcrevo aqui alguns trechos de seu texto, já que o mesmo é muito longo:
"Rita Lee, sempre foi, uma gracinha. Toda vez que penso nela, lembro logo do jeito que a conheci em pessoa. Foi um lance interessante, acontecido num daqueles Festivais Internacionais da Canção, o de 1970, se não me engano. Rita já havia entrado fantasiada de noiva grávida, com os Mutantes, num dos festivais anteriores: já havia encantado, portanto, a todo o mundo, e já era famosa. Naquele ano, se não me falha a memória, os Mutantes não concorriam, Rita ensaiava os primeiros passos para uma carreira solo e daí que fazia parte do júri.
Quando entrei no Maracanãzinho, daquele jeito, todo fantasiado, a primeira pessoa que encontrei foi o meu amigo Milton Temmer, jornalista e, no mínimo, um racionalista, muito elegante com seu terno, sua gravata e seus cabelos bem aparados. Nunca vi, em toda minha vida, uma expressão maior de perplexidade do que a que dominou seu rosto, assim que me viu em meus novos trajes. Ele ficou me olhando de boca aberta e olhos arregalados, incapaz de pronunciar uma palavra. Em nosso último encontro devíamos ter discutido, pelo menos, algo entre a dialética de Hegel e o existencialismo de Sartre - e, agora ele me via assim.
A segunda pessoa que encontrei foi Rita Lee. Não me lembro onde nem como, porque, assim que a vi, não enxerguei mais nada. Ela estava linda. Em primeiro lugar, também estava toda fantasiada, de camponesa, parece, mas bem estilizada, é claro, de trancinhas, parecia nem-sei-o-que de tão bonita. Assim que me viu, não ficou nada perplexa, pelo contrário, pareceu-me reconhecer, embora - ao que me conste - nunca tivesse me visto antes, e sorriu. Foi um sorriso ofuscante, um sorriso de mil watts que, realmente, iluminou a sala muito mais do que a luz do refletor. Retribuí esse sorriso sentindo que, quando você encontra uma pessoa em tais condições, o silêncio basta, você não precisa de palavras, nenhum papo, para saber quem ela é, pois naquele momento, na luz ofuscante de seu sorriso, eu fiquei sabendo quem era Rita Lee, ela era minha irmã.
Lembro que nos divertimos bastante naquele festival. Brincamos, botamos os dedinhos em V para o público, fomos apoiados pelos meninos de um grupo europeu de rock (todos cabeludos, claro) que viera para a parte internacional do Festival e cujo nome não me lembro no momento, e rimos de tudo. Não precisávamos de papo para sabermos que víamos aquelas coisas - e o resto! - mais ou menos da mesma maneira e que a nossa visão era nova e mais livre, mais alegre, mais verdadeira. Percebíamos que ambos havíamos resolvido, naquelas circunstâncias, aproveitar a mesma brecha nas couraças da seriedade vigente para uma nova, mais pura, consideração sobre o significado da vida humana. A nossa política era a mesma, o nosso lance era parecido. Reconhecíamo-nos, portanto.
A visão nova era a visão juvenil, o terceiro olho espiritual do rock, que marcou toda uma geração e que animou a carreira de Rita por cima de todos os obstáculos e além de todas as circunstâncias desfavoráveis, até o seu presente, indiscutível e absoluto sucesso. O segredo da arte de Rita Lee é a sua saúde irresistível - e o segredo dessa saúde é a sua pacificada fidelidade à visão juvenil da vida, àquela Grande Recusa da visão adulta que deve ser reconhecida como a intuição básica de toda a sua geração. Rita, portanto, como dizem as más línguas, é roqueira. Não é, em sentido estreito, porque sua arte livre e portanto, original, está além de toda imitação; mas é, em sentido profundo, essencial. O que ela possui é a visão do rock, o seu espírito, o terceiro olho.
Acompanhei toda a carreira de Rita, em certas fases ouvindo-a mais em outras menos, mas reparando sempre no sentido de sua evolução que se movia. Quando Rita surgiu, com os Mutantes, já se revelava uma encarnação plena do espírito do Rock. Suas possibilidades de expressão eram então limitadas: as canções não eram suas, ela não tocava guitarra e nem sequer era a principal vocalista do grupo. Mas o espírito já estava lá, nas suas criações visuais para as apresentações dos Mutantes - figurinos, caracterização, mise-en-scene - e na simples presença. Rita é sempre a encenadora ideal de seus shows - este foi o primeiro especto evidente de seu múltiplo talento.
O caminho de Rita parece encontrar o verdadeiro rumo quando ela forma o seu próprio grupo, o Tutti-Frutti, e vai para a estrada, como todo roqueiro de boa formação tem de fazer. Nessa fase, ela se desenvolve em todos os sentidos, mas principalmente como compositora e autora de suas canções.
No que me diz respeito, pessoalmente, a personagem de Rita que costuma acusar minha presença e parece gostar de conversar comigo é a Gungum. Ela tem uma péssima fama. Órfã, com cerca de quatro anos de idade, está permanentemente à procura de um casal de novos pais, mas ninguém quer, ou tem coragem de adotá-la, porque Gungum é muito chata, insuportável mesmo. Mas atesto que é uma menina esperta, o que descobri numa festa durante a qual sentei ao lado de Rita e Gungum juntou imediatamente para ficar conversando comigo durante um bocado de tempo. Perguntou-me sobre o mistério da vida e o significado de tudo, na mais autêntica perspectiva infantil, sem fazer antes artes ou malcriações. Respondi a tudo como pude e, posto que Gungum é órfã, ofereci de coração a mim mesmo para ser seu novo pai, e minha mulher para ser sua mãe - o que ela aceitou alegremente, sem pensar.
Na verdade, gosto da Gungum porque, como Rita, ela é uma ovelha negra. Gosto de ovelhas negras. Posso dizer até que, se há alguma coisa que eu goste neste mundo, é de meninas rebeldes. Aliás, deve ser por isso, decerto, que gosto de Rita Lee."
A visão nova era a visão juvenil, o terceiro olho espiritual do rock, que marcou toda uma geração e que animou a carreira de Rita por cima de todos os obstáculos e além de todas as circunstâncias desfavoráveis, até o seu presente, indiscutível e absoluto sucesso. O segredo da arte de Rita Lee é a sua saúde irresistível - e o segredo dessa saúde é a sua pacificada fidelidade à visão juvenil da vida, àquela Grande Recusa da visão adulta que deve ser reconhecida como a intuição básica de toda a sua geração. Rita, portanto, como dizem as más línguas, é roqueira. Não é, em sentido estreito, porque sua arte livre e portanto, original, está além de toda imitação; mas é, em sentido profundo, essencial. O que ela possui é a visão do rock, o seu espírito, o terceiro olho.
Acompanhei toda a carreira de Rita, em certas fases ouvindo-a mais em outras menos, mas reparando sempre no sentido de sua evolução que se movia. Quando Rita surgiu, com os Mutantes, já se revelava uma encarnação plena do espírito do Rock. Suas possibilidades de expressão eram então limitadas: as canções não eram suas, ela não tocava guitarra e nem sequer era a principal vocalista do grupo. Mas o espírito já estava lá, nas suas criações visuais para as apresentações dos Mutantes - figurinos, caracterização, mise-en-scene - e na simples presença. Rita é sempre a encenadora ideal de seus shows - este foi o primeiro especto evidente de seu múltiplo talento.
O caminho de Rita parece encontrar o verdadeiro rumo quando ela forma o seu próprio grupo, o Tutti-Frutti, e vai para a estrada, como todo roqueiro de boa formação tem de fazer. Nessa fase, ela se desenvolve em todos os sentidos, mas principalmente como compositora e autora de suas canções.
No que me diz respeito, pessoalmente, a personagem de Rita que costuma acusar minha presença e parece gostar de conversar comigo é a Gungum. Ela tem uma péssima fama. Órfã, com cerca de quatro anos de idade, está permanentemente à procura de um casal de novos pais, mas ninguém quer, ou tem coragem de adotá-la, porque Gungum é muito chata, insuportável mesmo. Mas atesto que é uma menina esperta, o que descobri numa festa durante a qual sentei ao lado de Rita e Gungum juntou imediatamente para ficar conversando comigo durante um bocado de tempo. Perguntou-me sobre o mistério da vida e o significado de tudo, na mais autêntica perspectiva infantil, sem fazer antes artes ou malcriações. Respondi a tudo como pude e, posto que Gungum é órfã, ofereci de coração a mim mesmo para ser seu novo pai, e minha mulher para ser sua mãe - o que ela aceitou alegremente, sem pensar.
Na verdade, gosto da Gungum porque, como Rita, ela é uma ovelha negra. Gosto de ovelhas negras. Posso dizer até que, se há alguma coisa que eu goste neste mundo, é de meninas rebeldes. Aliás, deve ser por isso, decerto, que gosto de Rita Lee."
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