Palavras Domesticadas

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quinta-feira, 25 de abril de 2013

Alceu Valença Em Busca do Trem Universal - 1975 (1ª Parte)

Em 1975 Alceu Valença era considerado uma das grandes revelações da MPB, apesar de já gravar desde 1972 (seu primeiro disco, ao lado de Geraldo Azevedo), e de ter um disco solo lançado em 1974 (Molhado de Suor). Na verdade o grande impulso para torná-lo mais conhecido foi sua participação no Festival Abertura, da Rede Globo, quando sua composição "Vou Danado Pra Catende" foi um dos grandes destaques do festival. Naquele ano, a revista Ele Ela fez uma entrevista com Alceu, onde ele falou para o jornalista Luis Ricardo Leitão, numa matéria intitulada "Alceu Valença em busca do som universal":
"Revelado no festival Abertura, com a música Vou Danado Pra Catende, ele apareceu no cenário prometendo colocar um pouco de molho no panorama sem sal da música brasileira atual. Embora sua música parta de raízes nordestinas, sua visão de mundo ultrapassa o regionalismo e parte em busca de uma cultura brasileira de sentido mais amplo. Como se pode ver nesta declaração: 'Os sons do Nordeste foram uma base para permitir que eu cubra as distâncias para o Norte, Sul, Leste e Oeste. O que está aqui é o meu centro. O resto está no mundo.'
Sobre ele, as opiniões divergem. Há quem o considere o mais talentoso dos compositores nordestinos que despontam agora para o Brasil inteiro. Outros o identificam como um excelente ator que, só acidentalmente, faz música e canta. E há ainda os que negam qualquer valor nele, defendendo com unhas e dentes a preservação e o culto das 'raízes da música popular nordestina'. Contudo, se os conceitos se contrapõem, um só comportamento se estabelece: não se fica alheio à arte de Alceu Valença, pernambucano, 28 anos, ex-bacharel em Direito e ex-repórter, revelado nacionalmente à procura de um trem no Abertura, da TV Globo. 
Seu avô, Orestes, tocava viola e de vez em quando reunia violeiros no terraço da casa-grande em São Bento do Una, interior de Pernambuco. O menino Alceu era ouvinte atento dos desafios, como também 'curtia calado' os aboios do vaqueiro Luís e o sistema de alto-falante do 'Doutorzinho', espalhando pela cidade um vasto repertório de Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro. Além disso, havia os sons do campo, os passarinhos, o chiar do carro de boi. Com quatro anos fez seu primeiro show, no Cineteatro Rex, em São Bento do Una. Com 12, mudou-se para o Recife e descobriu o rock. Dez anos depois começou a ganhar os primeiros prêmios em festivais regionais. Hoje, com dois discos gravados e participação destacada em três outros, ele estranha o sucesso: 'Às vezes, não é bom ser parado na rua por alguém desconhecido, que pergunta pelos seus planos. Ou ser tratado como um 'artista', um ente excêntrico, original, que as pessoas querem possuir e exibir como uma raridade'.
Ele Ela: Quando nasceu em você a necessidade de compor?
Alceu: A partir de 1966, com a fase áurea dos festivais, quase sem querer. Eu escrevi poemas, mas me achava incapaz de fazer música, até que um dia, contrariando os planos da família, que me queria advogado, comprei um violão. Não me recordo quando surgiu a primeira música. Sei que gostei, e daí em diante participei de festivais regionais, do Festival Universitário de São Paulo e do FIC de 1969. Mas era trabalho esporádico. E ainda havia o curso de Direito, de que um dia cansei e desvencilhei-me. Acho que estava no quarto ano, fazendo um estágio e me encarregaram de fazer uma cobrança judicial. Mas o camarada estava numa situação tão ruim que eu desisti do processo e abandonei de vez a carreira. Tentei por algum tempo o jornalismo, sem sucesso. Meu negócio era mesmo música, poesia. Os primeiros shows no Recife apressaram a decisão.
Ele Ela: Profissionalmente, como você começou?
Alceu: Em 1971, quando viajei para o Rio, cheio de planos. Ia sem contatos e pontos de apoio além de Geraldo Azevedo, compositor pernambucano que trabalhava comigo e resolveu dividir o desafio da cidade grande. Com ele gravei o disco Alceu Valença e Geraldo Azevedo, que não aconteceu, a gravadora só preocupada com bolerões. O Rio, com toda sua carga de neuroses, me transtornou. Num instante eu estava numa tremenda barra pesada, sem nenhuma condição de sobrevivência. Inesperadamente, foi desse caos que a minha música começou a criar relações com sons nordestinos, som de pífanos e bandas do interior. Sem eu querer procurar as raízes, elas surgiram aí, claras. E o meu trabalho, que era bastante lastreado no rock, passou a expressar uma série de sons da infância que vieram à tona, uma consequência da comparação inevitável da vida que eu levava no Rio com a de São Bento do Una.
Ele Ela: Assim, é certo pensar que se não fosse a viagem ao Rio a sua música demorasse ainda um pouco mais para assumir relações com sons nordestinos...
Alceu: Certo. Na verdade, cedo ou tarde essas relações surgiriam. Mas a viagem ao Rio apressou o processo. E eu achei importante que elas se mostrassem. Porque se você vive numa região nova, tem de se adaptar, entender outro povo e outra realidade, fazer novas descobertas que refletem no seu trabalho. E então, para que nessa nova vida você não se perca, é necessário um ponto de orientação, uma espécie de pontos cardeais, para onde, inevitavelmente, se atiçado, o seu inconsciente se volta para ordenar os caminhos. Os sons do Nordeste foram nesse tempo os meus pontos cardeais. E hoje ainda são, embora isso, em nenhum tempo, tenha me impedido de abrir-se em outras direções. O que eu quero é ter uma base, um pé no chão, para permitir que o outro cubra as distâncias para o Norte, Sul, Leste ou Oeste. O que está aqui é só o meu centro."
(continua)

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