Palavras Domesticadas

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quarta-feira, 7 de julho de 2021

Gal Costa - Dez Anos de Carreira - O Globo (1977) - 1ª Parte

Em 1977 Gal Costa completava dez anos de carreira. Debutando em disco em 1967, ao lado de Caetano Veloso no álbum Domingo, ainda em uma fase pré-tropicalista, Gal viria a cada ano firmando seu nome entre as grandes vozes da MPB. Seus álbuns, sempre muito bem produzidos, atestavam a grande artista, de voz bela e afinada, que um dia encantaria o ídolo João Gilberto, e depois, o Brasil. Na edição de 06/11/77 o jornal O Globo trazia uma matéria e entrevista com Gal, assinada por Ana Maria Bahiana, que falava justamente sobre sua trajetória na música naqueles dez anos. A matéria trazia como título “Gal Costa – a estabilidade, aos dez anos, de uma carreira feita de riscos”. Postarei a matéria em duas partes. Segue a primeira: “Para qualquer apreciador médio de música popular – até e principalmente o fã, essa espécie preciosa jamais extinta – parece claro que Gal Costa, como seus companheiros e companheiras de geração, está atravessando uma crise. No bom sentido: um impasse, uma encruzilhada, um momento de decisões. Gal pertence, mais que isso, é figura de proa de uma geração de criadores que construiu os caminhos por onde a maior parte da música brasileira passa até hoje. Nela, há mais um elemento atraente: ela foi figura polêmica, alvo de paixões e ódios no nível mais emocional, modelo de muita garota, uma espécie de Janis Joplin tropical, estrela rock-funky brasileira.
Gal, agora está com 32 anos, dez de carreira e sucesso. O cabelo continua imenso e crespo e bonito ‘como a juba de um leão’, como dizia a letra de ‘Cultura e Civilização’. Mas ela não grita mais, não urra, não pula pelo palco, possessa. Muito confidencialmente, seu empresário Guilherme Araújo delineia a futura Gal Costa: uma cantora de alto nível, fazendo um espetáculo apenas por ano – ‘para manter o prestígio’ – com uma produção cuidada, quiçá luxuosa. (‘Como Sarah Vaughan, Ella Fitzgerald, não é mesmo?’) Concertos, recitais para ela entrar e cantar, apenas. Porque, ele diz, ‘na verdade não há nada de completamente novo que Gal possa fazer, a essa altura de sua carreira, com dez anos de trabalho.’ Vestida de branco (porque era sexta-feira), pálida (porque está trabalhando continuamente há vários meses, excursionando com seu show ‘Com a boca no mundo’ remodelado por Wagner Tiso), Gal falou mais do que costuma, com a calma que é comum nos baianos. Falou do tropicalismo, de seus dez anos de carreira, das explosões passadas, da maturidade, dos Doces Bárbaros, de política e, é claro, de música. Não usou nem uma vez a palavra ‘crise’ e disse não ter dúvida alguma sobre nada. Mas falou muito em ‘risco’ e ‘estabilidade’. Na verdade, o tempo todo a conversa oscilou entre esses dois polos. Gal Costa, risco e estabilidade: retrato de uma estrela amadurecendo. -Seria bom fazer, um retrospecto do seu ponto de vista, das coisas que você sentiu, desses últimos trabalhos seus. Desde ‘Gal Canta Caymmi...
- A ideia do trabalho com Caymmi não foi minha, você sabe. Na realidade foi uma proposta da Phonogram, através do Roberto Menescal como uma coisa diferente que eu poderia fazer dentro da minha carreira. Não aceitei na hora. Eu não via muita relação entre eu e Caymmi a não ser o fato de sermos baianos, termos a mesma raiz, e tal. Mas ele pertencia a todo um outro tipo de visão, de trabalho, tinha outro tipo de público, inclusive. Confesso que tive um certo receio de fazer esse trabalho, pensei muito sobre ele. Acredito que foi um risco muito grande que eu corri, porque era um tipo de coisa a que meu público, as pessoas que sempre me curtiram, não estava acostumado. Mas eu gosto muito de riscos, de me expôr a riscos, está na minha natureza. Depois eu ouvi atentamente vários discos de Caymmi, inclusive muitos que o Hermínio Bello de Carvalho me emprestou, e, senti que Caymmi tinha aquele lado todo forte, negro, que eu podia aproveitar dentro de minha linha de trabalho, aquele lado de ritmos, funky, que é muito forte em mim. Então foi a partir daí que eu aceitei fazer esse trabalho. E foi muito bom no palco, foi quando eu comecei a amadurecer mesmo como intérprete, ficar inteiramente relaxada com relação ao público, inclusive. E Caymmi é um amor de pessoa, foi muito estimulante e sem grilo trabalhar com ele. Mas eu gostaria que você fizesse perguntas mais específicas, se não eu vou ficar a vida discursando sobre Caymmi e tudo e vou me perder.
- Então eu lhe perguntaria especificamente sobre os Doces Bárbaros, se aquilo funcionou como um ‘revival’ pra você, se marcou sua carreira, se houve algum tipo de problema para adaptar as quatro personalidades num trabalho de grupo. - Foi ótimo, o melhor de tudo foi o encontro de quatro personalidades fortes depois de dez anos de carreira e separadas. A ideia era essa mesma, o encontro, fazer com que desse encontro de quatro cabeças surgisse uma só, que era o grupo. E surgiu, eu acredito que surgiu. Não houve nenhum problema interno, nenhuma diferença a contornar, nada. – Foi mesmo uma coisa de amor, a gente se entregou com amor a esse trabalho, então não houve nenhum problema. Agora, acho que a crítica não entendeu bem isso. Muita gente ficou esperando de Doces Bárbaros um pronunciamento político, uma coisa assim, mas o político, o forte, o bonito era a nossa união, o nosso encontro, o fato da gente estar ali no palco cantando, se amando e se divertindo, isso era político, era um toque, uma coisa forte... Em muitas entrevistas ultimamente têm me perguntado essas coisas de arte e política, por causa do envolvimento de Caetano e tudo... Eu defendo a liberdade de criar. Eu crio, sou uma cantora, quero ter liberdade de criar, quero fazer o canto, a arte pela arte, mesmo. Para fazer política temos políticos, não é nesse sentido que eu vejo a arte sendo política. A arte é política quando, como Caetano faz e sempre fez, propõe uma coisa nova, forte, uma renovação formal, violenta, de linguagem. Isso é político e não é, porque a arte tem mesmo que ser o principal para o artista. Eu falo assim, mas não é pra pichar ninguém. Tem muita gente sincera, verdadeira. Chico é sincero e verdadeiro em tudo que faz, ele faz as coisas de um modo bacana porque ele é assim mesmo, é sincero. Agora, tem muitos oportunistas, gente já fazendo coisas num determinado sentido pra agradar as plateias de estudantes, pegar o momento e tal.” (continua)

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