Palavras Domesticadas

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sexta-feira, 16 de julho de 2021

A Balada de Janis Joplin

Num livreto vendido em bancas, chamado Histórias do Rock, em que quatro autores falam sobre diferentes experiências pessoais e histórias envolvendo o rock, um dos textos, escrito por René Ferri, fala de Janis Joplin. Nele o autor relata sua experiência com a música de Janis Joplin, e fala inclusive da lembrança que ele guarda do dia em que Janis morreu. Daí o subtítulo do texto: “Onde Você Estava em 4 de Outubro de 1970?” “Há 15 anos mais ou menos escrevi um texto curto sobre Janis Joplin que deveria ser publicado num fanzine ou algo parecido. Prevendo que um dia voltaria ao tema, guardei o texto que reproduzo a seguir, tal e qual foi escrito. ‘Quando Janis surgiu, logo fiquei sabendo quem ela era. Ou melhor, o que a imprensa e a Columbia queriam que, todos pensassem o que ela era. Esperei com ansiedade ouvir seu disco e quando ouvi (Cheap Thrills, cópia americana), tive uma grande decepção! Ela não foi nada, exceto uma caricatura grotesca de cantora negra. Ao vivo, pelo que vi nos filmes e fotos era sensacional, eletrizante, a imagem era perfeita. Mas a voz, o feeling eram um zero. Se Janis tivesse a pele negra, estaria no máximo, cantando nos bares de Port Arthur até hoje. Mas era branca e um dia sonhou que podia cantar como Aretha Franklin e o mundo todo sonhou com ela. Não duvidei de sua sinceridade, Janis foi honesta consigo mesma até o fim, ela mesma não se sentia realizada como cantora, apesar de toda aquela adoração, nunca compreendeu o próprio sucesso. Quem sabe se não foi isso que a matou?
Nada como o tempo para pôr as coisas no lugar? Vamos encarar os fatos por esse ângulo: - nós quisemos forçar uma revolução esquecendo que, a vontade pelas mudanças tem que vir naturalmente do desejo de todos – quebramos a cara, claro e terminamos traídos pelos nossos pares também. Os ‘artistas de rock’ que pela nossa ótica ingênua eram incorruptíveis, foram os primeiros a nos dar o bolo e passar para o ‘outro lado’, de Mercedez Benz, casaco de peles e tudo, como Janis Joplin, por exemplo... Outro profeta de revolução, Jerry Garcia, do Grateful Dead, hoje é dono de uma das maiores fortunas pessoais dos EUA. Claro, que quando escrevi o textículo (jargão em jornalismo para texto curto) sobre Janis, eu ainda estava roído pelo ressentimento, mas a minha verdade estava lá. Quando ouvi Cheap Thrills fiquei mesmo decepcionado. As revistas falavam maravilhas sobre a moça – até a Playboy: que antes de virar o açougue que é hoje; não era tão careta assim, elogiou Janis, deu espaço para ela falar de si mesma... e da banda Big Brother & Holding Company e ela comunicava, sem meias palavras, que estava abandonando os caras: ‘... preciso de espaço, novas direções and all that shit’. Achei o máximo, era como se (na época) Mick Jagger chutasse os Stones! Fiquei ainda mais aceso para ouvir Cheap Thrills, mas toda a ansiedade se diluiu na primeira ouvida na primeira ouvida, foi uma broxada daquelas! Tinha na época (1968) dois ou três LPs de Aretha Franklin e pensava saber tudo de música. Só depois, muito depois, vim saber e compreender que Janis se ligava mesmo no folk blues de Odetta e no blues tradicional de Bessie Smith e Billie Holyday e mais tarde ainda, que pegou o jeito ‘machona’ de se movimentar no palco de Willie ‘Big Mamma’ Thorton. Hoje tenho certeza que Aretha era apenas uma referência para Janis, alguém que admirava, certamente, mas que nem pensava em imitar.
Também compartilhava da opinião distorcida que Janis se aproveitava dos pretos, sem a menor cerimônia, como era comum nos anos 50, quando um Elvis ou um Pat Boone pegava um disco negro, copiava dando uma ambranquecida e ganhava um rio de dinheiro,enquanto que o coitado da gravação original recebia uns níqueis. Esse estereótipo odioso nos foi vendido durante anos e não é, nem nunca foi bem assim. Quando Janis, amada por milhões de jovens brancos dizia: ‘Oh, Otis (Redding)... my man!...’ naquela sociedade ferozmente racista, ela fazia mais pela comunidade negra que uma dúzia de passeatas e outros tantos discursos de Eldridge Cleaver. O Big Brother & Holding Company era bagunçado, caótico, mas funcionava, tinha (pelo menos na fase com Janis) uma ‘pegada’ que é raro de se ouvir. Cheap Thrills com todos os seus defeitos, é um clássico, já que os discos posteriores de Janis com a Kosmic Blues Band e a Full Tilt Boogie Band são polidos demais para uma cantora como ela, forjada em botecos, perdendo muito da espontaneidade que sobra em Cheap Thrills.
Pelos dados biográficos, bastante explorados de forma até sensacionalista, Janis foi uma garota com sérios problemas, se sentindo ‘feia’ e ‘rejeitada’ na adolescência, foi crescer agressiva, com desprezo pelas pessoas ‘normais’; acabou achando sua turma depois que deixou a conservadora Port Arthur, Texas, sua terra natal (nasceu em 10/01/43) trocando-a pela liberal San Francisco na Califórnia, onde tudo acontecia e onde mergulhou prazerosamente na contracultura da literatura, das comunidades hippies e das drogas – do ‘inofensivo’ ácido lisérgico à perigosa heroína. Participou ativamente da prática do amor livre, da revolução sexual, deu vazão à sua (possivelmente) reprimida libido homossexual, mais ou menos superou os seus traumas de infância e adolescência infeliz, se entregando totalmente ao delírio do palco. Foi a criança mais passional da sua geração, mas dava muito mais do que recebia do público e chegou num ponto em que não havia mais nada para dar, tinha esprimido tudo que era possível e voltou a se sentir a antiga menina infeliz. Um sintoma desse estado emocional ‘para baixo’ foi a sua cisma com Bessie Smith – Janis foi incapaz de se livrar do fantasma da grande cantora – não que tenha lutado para isso, ao contrário, embatucou com Bessie, pagou uma lápide para o túmulo dela, numa boa ação exageradamente divulgada, parecendo, no final, mais um golpe publicitário que uma ação benemérita, e a toda hora, Janis vinha com a ladainha sobre Bessie: - a bendita lápide, sua condição de alma triste e explorada 'pelos brancos’ etc., numa fixação mais do que mórbida.
O filme ‘Janis’, que é um excelente documentário, mostra essa fase ‘terminal’ da cantora, um jeito de abandono, garrafa de Southern Confort na mão, e o sentimento de profunda angústia e depressão no rosto. Críticas ao seu trabalho e ao seu comportamento partiram de todo lado da imprensa e embora Janis tivesse reações mordazes às críticas, isso tudo a machucava muito. Foram meses de agonia e, pode-se dizer, de auto-destruição, ela largava e retornava o hábito da heroína conforme mudava seu humor. Em setembro de 1970 Janis teve sua primeira overdose, que não a matou por milagre; socorrida a tempo, teve paradas cardíacas seguidas e foi ressuscitada seis vezes, nesta fase sua aventura com a heroína e whisky, em quantidades impossíveis era seu jeito de se recompensar. Em menos de um mês depois da primeira overdose, morreu como ela mesma estava prevendo, pois chega a fazer e refazer seu testamento. Outro acidente com heroína foi fatal, desta vez estava sozinha, e foi fulminante, não houve tempo sequer para se defender na queda, bateu o rosto no chão, achatando o nariz. Morria assim, miseravelmente só, um dos ícones da cultura pop dos anos 60, em 04/10/70.
Lembro que neste dia fui, à noite, ver um show de rock num teatro descolado, que existia na rua Frederico Steidel, no centro de São Paulo – toda semana eram promovidas reuniões de rock no teatro, que sempre lotava. Teatro pequeno, a fumaça era tanta que que todo mundo acabava ficando alto, antes do show começar. Naquele dia lembro que os pequenos cartazes de divulgação do show foram colados nas paredes internas do teatro, formando a palavra JANIS várias vezes, mas ninguém até então sabia o que tinha acontecido. As luzes se apagaram, entrou o primeiro grupo do programa (que nem imagino qual era, mas gostaria de lembrar) e o vocalista deu a notícia mais ou menos assim: ‘Hoje é uma data triste, morreu Janis Joplin’. Não sei porque nenhum de nós, e éramos tantos, esboçou qualquer reação. Acho que não tínhamos então consciência do quanto Janis Joplin representava para todos nós, naquela hora, ou mesmo naquela época. Só fomos perceber e sentir a perda tempos depois, quando pudemos olhar pra trás e avaliar tudo o que foi feito, sonhado, realizado, e também perdido pela nossa geração. Adeus Janis, a pérola imperfeita que era só nossa, você que tão generosamente continua a nos dar tanto.’ “

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