Palavras Domesticadas

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domingo, 14 de junho de 2015

Nelson Sargento, o Intelectual do Samba - O Pasquim (1978)

Em setembro de 1978, o jornal semanal O Pasquim trazia uma matéria falando em Nelson Sargento e na Mangueira, sua escola. A matéria, escrita por Marília T. Barboza, se intitulava "Nelson Sargento, o Intelectual do Samba", e trazia a ilustração acima, feita por Chico Caruso, aliás, a estreia de Chico como colaborador d'O Pasquim:
"O ano de 1948 não estava fácil para o pessoal de escola de samba. Imaginem só! Se hoje em dia o 'tri' da Beija-flor já incomoda tanta gente, naquele ano os sambistas estavam matando cachorro a grito - a Portela há sete anos seguidos jantava o título de campeã. Repito: sete anos. Não dava pra mais ninguém.
Em todos os morros da cidade a palavra de ordem era - acabar com a Portela! Assim já era demais!
Há trinta anos atrás julgamento de escola era um troço muito menos complicado. Havia só cinco quesitos: enredo, harmonia, bateria, samba e bandeira. Os jurados, apenas três, normalmente dois jornalistas e um milico. Por dedução, se os quesitos eram poucos, cada um valia mais.
A velha Mangueira, onde pontificava Cartola, tratou logo de reforçar suas trincheiras, colocando gente para dividir com o 'divino mestre' a responsabilidade de fazer seu samba.
Foi aí que apareceu aquele crioulo, magrinho, de vinte e poucos anos, músico das letras de seu padrasto lusitano, enfaticamente chamado de Alfredo Português, que, àquela altura, já era parceiro de outro Nelson muito falado, o do Cavaquinho. Cavaquinho morou três anos na casa de Sargento. Já viram que estágio?
A dupla Nelson Sargento - Alfredo Português disputou com a dupla Cartola-Carlos Cachaça o samba para o enredo daquele ano, 'O Vale do São Francisco'.
Além disso, a Mangueira inaugurou seu sistema de som (foi a primeira escola a sair com 'som' na avenida, antes o negócio era mesmo no gogó) e Cartola jamais se esqueceu do impacto de ouvir a própria voz pelas ruas da cidade.
Sargento em 2012
Apesar de todos os esforços da Mangueira, quem acabou com a pose da Portela foi a Império Serrano, que aparecia pela primeira vez com pinta de Beija-Flor, disposta a deixar suas irmãs mais velhas sorrindo amarelo - foi a campeã de 1948, interrompendo a série dos '7 anos de glória' portelense.
Houve briga, desmaios, tiros e até dois desfiles nos três dias seguintes, um oficial, na Avenida Rio Branco, onde sempre ganhava a Império, e outro, extra-oficial, na Praça Onze, o do povão, onde os troféus se dividiam entre a Estação Primeira e a Portela.
Mas em 49 e 50, a campeã do carnaval carioca foi mesmo a Mangueira, as duas vezes cantando sambas do soldado Nelson Sargento.
Em 1951 a Portela voltou a vencer, mas o samba vitorioso dentro da Mangueira era também do Nelson.
Logo, vocês já viram que o nosso amigo faz samba pra ninguém botar defeito.
Quando secretário da ala de compositores da Mangueira, Sargento para lá levou Hélio Cabral, Darci,, Cícero, Pelado, Comprido, todos nomes de grande peso para nossa cultura popular.
Seu carro-chefe é o samba 'Cântico à Natureza' também chamado de 'As Quatro Estações do Ano' ou simplesmente, 'Primavera', samba-enredo da Estação Primeira em 1955.
Fora do cenário das escolas de samba, sua grande oportunidade surgiu  em 1964/65, quando foi convidado por Hermínio Bello de Carvalho para integrar o nunca suficientemente louvado musical 'Rosa de Ouro', que revelou Clementina de Jesus, redescobriu Aracy Cortes e iniciou a carreira dos 'Cinco Crioulos', cuja formação era, modéstia à parte: Paulinho da Viola, Anescarzinho do Salgueiro, Elton Medeiros, Zé Keti e Nelson Sargento.
Paulinho, Anescar, Elton e Zé Keti, juntamente com Zé Cruz e Oscar Bigode (ritmo) e Jair (cavaquinho, da Portela), haviam integrado, antes, o conjunto 'A Voz do Morro', cujo LP, 'A Voz do Morro nº II', 'contém duas belezas de Nelson Sargento, que na verdade jamais foi sargento,  mas ganhou o apelido no tempo em que servia no 1º BCC, na Derby Club, além de compositor e cantor, toca um bom violão, é um excelente papo, cozinha bem (talento herdado do pai, seu Olimpio, cozinheiro de profissão!), é pintor de quadros e de paredes. Assim sobrevive. É um cara lúcido, inteligente, fino. Não fosse crioulo e pobre, poderia ser chamado de intelectual, com todas as marcas do título, inclusive a dificuldade de encontrar mercado de trabalho.
Tem músicas maravilhosas, novíssimas, que vimos há poucos meses num show que fez em Niterói com 'Os Carioquinhas' e que, ao tentar trazer para o Rio não encontrou teatro nem patrocinador. Nós é que perdemos!
Com humor e arte, faz 'blague' das próprias dificuldades.
Nelson sabe o que andam fazendo com o samba. Mas não 'chia'. Lamenta em música.
Sua última composição, a sair no próximo disco de Beth Carvalho, mostra-nos a lucidez do autor, atualmente afastado da Mangueira, que vê assim o samba, hoje:
'Samba, agoniza mas não morre,
Alguém sempre te socorre
Antes do suspiro derradeiro.
Samba, negro forte, destemido,
Foi duramente perseguido
Na esquina, no botequim, no terreiro.
Samba, inocente, pé no chão,
A fidalguia do salão
Te abraçou, te envolveu,
Mudaram toda tua estrutura
Te impuseram outra cultura
E você nem percebeu' "

2 comentários:

  1. Adoramos o texto!!!!! E principalmente o presente que é ter acesso a essa caricatura do Nelson, na estreia de Chico Caruso . Temos uma correção a fazer no texto: Nelson foi sim Sargento, terceiro Sargento. Livea, nora e equipe de produção do mestre Nelson Sargento

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  2. Obrigado pelo comentário e pela correção. Reproduzi o que estava no texto original. Um abraço

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