Palavras Domesticadas

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terça-feira, 9 de junho de 2015

Kaya, de Bob Marley É Relançado - 1988

Kaya é um dos melhores discos de Bob Marley em minha opinião. Lançado originalmente em 1978, quando Marley começava a ficar famoso no mundo, o álbum teve alguns problemas com relação à arte gráfica, devido a alusões à maconha, como é o caso da ilustração que aparece na contracapa, com um enorme e frondoso pé de maconha, que chegou a ser censurada por aqui. Dez anos depois, não mais sob o jugo da censura imposta pela ditadura militar, o álbum foi relançado, com a arte gráfica original. Na ocasião, o jornalista e fotógrafo Carlos Albuquerque falou sobre o relançamento na seção "Rio Fanzine", de O Globo, no dia 07/02/88, num texto que tinha como título "À beira da eternidade":
"Se ainda estivesse vivo, Robert Nesta Marley teria completado 43 anos ontem. Suas células contudo, foram lenta e dolorosamente destruídas pelo câncer. Felizmente outras sobreviveram, no caso as  células do vinil, onde sua obra está registrada para a posteridade, a cada dia que passa provando ser absolutamente atemporal. Uma bela oportunidade de comprovar essa suprema resistência ao passar dos anos é ouvir 'Kaya', de 1978, relançado agora pela WEA.
Aquariano, místico com os pés no chão, Marley foi a ponta do iceberg que aportou nas praias de todo o mundo a partir da segunda metade da década passada: o reggae. Híbrido hipnótico entre ritmos caribenhos - como o calipso e a salsa - e sonoridades vindas da América - como a soul-music e o rhytmn'blues - o reggae influenciou decisivamente boa parte do panorama pop internacional e criou seus próprios ícones. Marley é o maior deles.
O reggae vinha embalado num insólito sentimento religioso. Insólito porque misturava confusas interpretações bíblicas, um intenso sentimento de orgulho racial e uma visão crítica de aparentemente todos os sistemas sociais estabelecidos, generalizados como 'A Grande Babilônia'.
Tais críticas eram um dos baluartes das canções de Marley, observador dos problemas de seu país, a Jamaica ex-colônia inglesa, com uma dura realidade; sendo os 'trenchtowns' (os miseráveis bairros de lata dos arredores de Kingston) um triste exemplo dessa situação.
Um pouco antes do lançamento desse 'Kaya', Marley já consagrado e respeitado no cenário jamaicano, havia participado de um concerto em favor do candidato social-democrata às eleições locais, Michael Manley. Esse envolvimento político direto trouxe alguns problemas para ele. O principal foi o atentado sofrido um pouco  depois, quando cinco pistoleiros tentaram, sem sucesso, matá-lo, e que inspirou uma de suas canções: 'Ambush In The Night' (Emboscada na Noite), do elepê 'Survival'.
'Kaya' nasceu assim: uma resposta quase budista, monástica, à agressividade que o cercava. No lugar de pedras, uma flor. Melhor, uma planta, a cannabis sativa, que não apenas dá título ao elepê, como também aparece frondosa na contra-capa (a primeira edição nacional suprimiu esta ilustração). Preciosos arquitetos do som de Marley, os Wailers mostram-se então em plena forma, principalmente o baixão de Aston Barret e os vocais das I Threes, inconfundíveis.
O texto é deliciosamente 'cool'. 'Easy Skanking' discorre sobre o uso da referida planta, enquanto a canção-título descreve os seus efeitos. Lá também está o mega-hit,  'Is This Love', uma das mais belas canções de todos os tempos. 'Sun Is Shining', por sua vez, é longa e hipnótica, a guitarra de Junior Marvin conduzindo o transe.
O elepê sofreu algumas críticas na época, pois setores mais radicais não admitiam ver Marley fazendo música aparentemente não engajada. Aparentemente, já que uma revisão mostra as sutilezas implícitas da algumas canções. Como por exemplo, 'Crisis' ('Dizem que o sol nasce para todos/ Mas em alguns lugares ele nem aparece'), ou em 'Running Away' ('Você vive correndo/ Mas você não pode fugir de si mesmo'). A profética 'Time Will Tell' encerra o elepê, seguida do lembrete; 'to be continued', escrita num canto. Que poderia muito bem ser substituído por um 'isso é eterno'. Nada mais justo, afinal."

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