Palavras Domesticadas

Palavras Domesticadas

domingo, 28 de junho de 2015

A Fúria dos Titãs - Revista Roll (1986)

Em 1986 os Titãs deram uma virada em sua carreira, e surpreenderam o mercado do rock lançando um disco que pode ser considerado um verdadeiro clássico do rock brasileiro, não só dos anos 80, mas de todas as épocas - "Cabeça Dinossauro". Depois de terem lançado dois discos, que apesar de trazerem boas composições, não os qualificavam como uma banda que pudesse representar o melhor do que o rock nacional viria a produzir, em 86 eles mudaram o panorama do nosso rock, e continuariam a lançar discos da melhor qualidade. Na ocasião a revista Roll fez uma matéria com a banda, falando de sua trajetória até então, e sobre o impacto que o ainda recém-lançado "Cabeça Dinossauro" vinha causando. A matéria, intitulada "A Fúria dos Titãs" é assinada por Niel Martins:
"Na mitologia, os titãs eram aqueles escabrosos monstros que existiam somente para serem derrotados pelos Teseus e Jasões da vida. Apesar dos tamanhos descomunais, seus planos para um futuro tranquilo caíam por terra ante espadinhas enfeitiçadas, flores azuis e porções mágicas.
Nos dias correntes, os 'titãs' não são nem monstrengos nem escabrosos. Na verdade, eles são os maiores heróis da resistência que se estruturou no país contra a sintomática e perniciosa linha de pensamento que taxava o rock nativo como 'não-emplacável'. E maiores por várias razões: são grandes músicos, já foram censurados, presos, injustiçados por isso e por aquilo e, principalmente foram os responsáveis pelo melhor disco de rock dos últimos tempos - Cabeça Dinossauro.
Titãs, de 84, foi o que se pode chamar de um pontapé inicial numa bola meio murcha. 'Sonífera Ilha' ficou sendo a música mais conhecida, e trazia no título um adjetivo que ficava na memória após uma audição da bolacha. Com exceção de 'Querem Meu Sangue' (bem melhor com o arranjo atualmente apresentado nos shows), todas as músicas eram bem bobas e estavam mal distribuídas num mosaico de tons pasteis, o qual sofria uma exígua incidência da luz diurna.
Capa da revista
No ano seguinte, Televisão sintonizou a banda numa proposta (um pouco) mais dirigida. Apesar de abominações como a faixa-título(*), 'Dona Nenê' e (eca!) 'Insensível', havia a ótima 'Pavimentação', a poesia simples e bonita de 'Sonho com Você' e o desbunde apocalíptico de 'Massacre', uma luz no fim do disco.
A partir daí os, Titãs, como 'o homem cinza', não seriam mais os mesmos.
Um disco conceitual, de crua sonoridade e viscerais mensagens, foi com o que nos brindaram Branco Melo (voz), Arnaldo Antunes (voz), Sérgio Britto (voz e teclados), Paulo Miklos (voz e teclados), Nando Reis (voz e baixo), Marcelo Fromer (guitarra), Toni Bellotto (guitarra) e Charles Gavin (bateria) no ano passado. Cabeça... emplacou praticamente todas as músicas nos tímpanos da massa. Das FMs, só ficaram de fora 'Bichos Escrotos', por razões censórias (**), e 'A Face do Destruidor', por razões... bem, quem ouviu sabe porque. Um disco fundamental para alicerçar a estrutura do rock brasileiro, há dois anos de pilhéria e atualmente maduro a ponto de ser digerido sem contra-indicações (desde que seja colhido nas árvores certas).
Paulo Miklos
É gratificante perceber como esse octeto burla a mesmice que assola as ideias de pseudo-reinventores da 'linguagem rock'. Tendo sobrevivido a 'era glacial' que marcou o início do trabalho, a qual revestiu sua musicalidade de um frio siberiano, os Titãs conseguem , sem muita dificuldade e com resultado, estar a um passo além do que se veicula - até o limite do tolerável - num determinado momento no cenário musical guarani. 'O Que' foi o primeiro rap composto por aqui, o que, no que pese a importação, não deixou de ser uma ousadia, pois, se mal feita fosse, resultaria num atestado de compartimentação estilística. Entretanto, com uma letra de um minimalismo contundente e uma métrica perfeita (em seu livro 'Psia', Arnaldo Antunes explicita essa qualidade formando, com a letra, um círculo perfeito), a música entrou pelos ouvidos e saiu pelos pés de todos os habitués de todas as danceterias e afins da pátria.
Se duas cabeças pensam melhor que uma, imaginem oito.
Mas assinando um cheque em branco - e foi isso o que fez a banda atingindo tal amadurecimento - eles se colocaram no paredão. Claro que, após o conceitualismo de Cabeça..., talhado com mãos de ourives, o grupo pode inovar com toda disposição e competência que lhes são inerentes, mas um ponto é pacífico: num nível desses, a qualidade é imprescindível. Ou seja, não se dá ponto sem nó. O público agora vai esperar, cada vez com mais secura, por trabalhos classudos, estonteantes e, principalmente, de vanguarda (dê-se a essa palavra o conceito mais positivo e cooperativista que ela possa ter).
Claro que, nesse público, não incluo aquela parcela pré-histórica que depreda teatros (como aconteceu recentemente no Carlos Gomes, no Rio) e luta por seu espaço distribuindo socos e pontapés durante as apresentações da banda; refiro-me apenas àqueles que curtem, consomem e querem ver o rock nacional despido de sua quase definitivamente no ostracismo, condição marginal.
E para isso, Cabeça Dinossauro mostrou ao que veio. Como, na versão (faixa-título) para um canto dos índios do Amazonas, o qual é entoado para espantar maus espíritos, os Titãs estão exorcizando os espíritos-de-porco que insistem em estagnar o nosso rock.
Sejam eles certos empresários de comunicação, certos músicos, certas parcelas do público e da imprensa, todos merecem apenas uma coisa: PORRADA! PORRADA! PORRADA!"
Branco Melo

(*) Discordo da opinião do jornalista. Considero "Televisão" uma excelente composição. Outra música pré-Cabeça Dinossauro que eu considero boa é a versão para "Ballad of John and Yoko", dos Beatles.
(**)" Bichos Escrotos", apesar de à princípio ter tido sua execução nas rádios proibida, acabou sendo muito executada, quando as primeiras rádios começaram a ignorar a proibição, e outras emissoras começaram também a tocar, e acabou virando um dos maiores sucessos do disco.

Nenhum comentário:

Postar um comentário