O documentário "O Filho do Holocausto", sobre Jorge Mautner, e dirigido por Pedro Bial, está trazendo à tona o nome de um de nossos mais inquietos e brilhantes artistas. Trazer o nome de Mautner para a atual geração, que não teve a oportunidade de conhecer a obra desse mestre da palavra e da cultura nacional torna esse documentário um registro histórico dos mais importantes, e redime Bial de ter seu nome associado a um dos símbolos da pobreza mental que invade a tevê brasileira: o Big Brother Brasil.
Em 1976, o Jornal de Música e Som, que vinha encartado na revista Rock, A História e a Glória, trazia uma matéria com Mautner, escrita pelo hoje colunista de O Globo, Joaquim Ferreira dos Santos. Abaixo, a trancrição dos principais trechos da matéria:
"Embasbacados, os repórteres que procuram Jorge Mautner para entrevistas sobre rock, marchinhas e afins costumam ouvir raras citações de Lamartine Babo e Chuck Berry abafadas por montes de Hegel, Nietzshe e Goethe, encerrando suas anotações com Mc Luhan: 'o supersofisticado é como o tribal aparentemente primitivo, os dois são ideogrâmicos'. Se houvesse um caderno de impressões na saída do cineclube em que Cacá Diegues assistiu a 'O Demiurgo', de Mautner, ele teria escrito: 'Nunca vi um filme tão casto'. O seu braço direito passava sobre os ombos da esposa, a cantora Nara Leão, que deve ter se lembrado dos idos de 67, quando ouviu 'Radioatividade', canção de Mautner, e comentou com Caetano Veloso: 'Que temos nós brasileiros a ver com a bomba atômica?' Alguns anos depois, o Brasil assinava um acordo atômico com a Alemanha e o crítico Ezequiel Neves via um show em que Mautner dançava com a inspiração de uma foca bêbada num trigal: 'É o Buster Keaton dos trópicos', escreveu na finada 'Rolling Stone'. Na mesma banca de jornais, Millôr Fernandes expulsava Mautner Pasquim afora depois que o cantor assinou um artigo relacionando músicas de Noel Rosa a anti-semitismo. Os amigos protegeram-no e Caetano Veloso lhe fez uma homenagem a seu jeito: 'Ele não tem medo do ridículo. Escreve clichês com a originalidade de um marciano.' Não menos baiano e sem jeito para hosanas, Gilberto Gil afirmou: 'É uma criança distraída e tola'. E mesmo Mautner fez questão de que ficassem bem grandes e visíveis as letras que compõem o título de um de seus livros, para que não restassem dúvidas sobre o que pensava de si próprio: 'O Vigarista Jorge'. Em 1976, visto no palco com um ligeiro colete que descobre farta pelosidade torácica e acionando um violino eletrificado muitos decibéis acima de sua frágil voz, as dúvidas sobre o valor artístico de Mautner permancem. Chamam-no, às vezes de um vago 'maldito'. Mas é justamente o contrário, refuta, 'Nunca vi pensamentos mais positivos que os meus. Como chamar de maldito
um cara que diz que a fauna flora grita de amor, faz esportes, toca
violino e dança frevo?'
Talvez uma campanha negativa contra o supremo amante do mal, o diabo, que na lenda sempre foi visto acionando o violino de um de seus mais célebres e clássicos executantes, o italiano Paganini. Ou algo ligado à sobrenatural capacidade de Mautner em imitar portas se abrindo, telefones tilintando, o cricrilar do grilo e liquidificador fazendo creme de abacate, como se de repente essas coisas se humanizassem na forma de um ser com olhos claros e cavilosos, geralmente escondidos por lentes escuras.
Quem sabe se parte desse preconceito contra os eflúvios da cultura negra que o acompanham desde os 6 meses de idade, apesar da mãe iugoslava, o pai judeu vienense e o padrasto alemão? Pois dessa época até os 7 anos, Mautner teve o crescimento acompanhado pela negra babá Lúcia, que aproveitava as viagens dos seus pais para levá-lo ao terreiro de candomblé onde era mãe de santo."
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