Palavras Domesticadas

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sábado, 28 de agosto de 2010

Gonzaguinha Hardcore


É interessante como certos artistas ao longo da carreira mudam de postura, de comportamento e de imagem. Muitas vezes essas mudanças são sugeridas por seus empresários, visando angariar uma nova faixa de público. Em alguns casos a mudança de postura e temática de sua obra é algo natural, movida por mudanças pessoais, amadurecimento, etc. Um caso típico de artista que viveu fases distintas de postura e temática de sua obra é Gonzaguinha.
Meu primeiro contato com a figura de Gonzaguinha foi quando eu tinha dez anos, e assisti ao Segundo Festival Universitário da Canção, que era transmitido pela Tv Tupi. Nesse festival ele foi o vencedor com a música O Trem. Sua composição era uma elaborada e difícil canção, com uma melodia cheia de nuances, e uma letra cheia de imagens e mensagens um tanto complicadas, sendo totalmente anticomercial. Logicamente o público não assimilou e as vaias foram inevitáveis. Eu, nos meus 10 anos naturalmente não compreendia nada daquilo, mas observava atento. Estava torcendo por uma música chamada Nada Sei de Eterno, que tinha letra de Aldir Blanc. Não exatamente porque a música me tocou de alguma forma, mas sim porque quem a interpretou foi Taiguara. Minha música preferida ficou em segundo. Lembro da imagem séria e até desafiadora daquele cara magro e mal encarado, que nem parecia que havia acabado de sair vencedor do festival. Alguns anos depois, lançou seu primeiro lp, ainda com o nome artístico de Luiz Gonzaga Jr ( o nome Gonzaguinha só seria adotado a partir de seu quinto disco, de 1977). Reconhecido como um compositor de inegável talento, mas de músicas elaboradas e anticomerciais, sua imagem artística era marcada por um grande mal-humor, um jeito sério, cara de poucos amigos, etc. Nesse paríodo - início dos anos 70 - ele chegou a ganhar o apelido de "cantor-rancor".
A foto que ilustra essa postagem é da capa de seu primeiro disco, que tinha por título apenas seu nome. É uma foto estranha. Seu rosto, pintado de branco com filetes vermelhos escorrendo por seu cavanhaque, lembrando sangue, e com uma expressão cadavérica, mais parece um cartaz de filme de Zé do Caixão. Nunca consegui interpretar aquela foto. As músicas são bem diferentes daquelas que o consagrariam muitos anos depois. Uma das letras poderia muito bem fazer parte do repertório de bandas estilo punk ou hardcore, aquelas músicas bem barra-pesada. A música se chama Página 13. Cheguei até a mostrar essa música a um cara que tocava numa banda hardcore, e dei a sugestão de fazerem um arranjo dentro do estilo. Teria tudo a ver. Eis a letra:

Até que ele era um rapaz muito bem educado/ Até que ela tinha um bom coração/ Até que ele era um rapaz muito bem comportado/ Até que ele era um poço de boa intenção/ Não creio que ele fosse complexado/ Meio calado, talvez esquisito, mas batalhador/ Eu creio que ele era muito inteligente/ Eficiente, honesto, honrado e trabalhador/ Por mais de dez anos foi meu excelente vizinho/ Subia comigo às vezes no elevador/ Por certo sabia direito no seu cantinho/ Escuro, tranquilo, com jeito de um sonhador/ Até que hoje à noite pegando e relendo o jornal/ A foto no canto da esquerda me despertou/ Matou a mulher e as crianças a golpes de pau/ sem um bilhete, sem explicações se suicidou/ Se bem que a patroa falava "esse cara não presta"/ "Tem cara de anjo mas nunca qu'ele me enganou"/ Até que ele era um rapaz muito bem comportado/ Mas não, eu nem sei o seu nome, ele nunca me falou/ Um preto sereno com jeito de sonhador/ Até que ele era um rapaz muito bem educado/ Mas não, eu nem sei o seu nome, ele nunca falou

5 comentários:

  1. Oi, Marcio!

    Também tenho uma imensa admiração pelo artista Gonzaguinha. Tenho boa parte da obra dele. E teho este disco.Interessante que a leitura que fiz da foto (que apesar de poder ser, sim, cartaz de filme do Zé de Caixão) é de são "raízes de arvores" brotando de sua mente, disseminando idéias e, como tudo que expomos de "dentro" sangra ao sair. Daí, penso, a diversidade de músicas do álbum. Quanta coisa temos em nossa mente? quão diverso é cada um de nós?

    Acho que acertou na sugestão a se amigo. Ele aceitou? É mega atual a "pagina 13". Por ela vejo um Gonzaguinha visionário... Será que há quase 40 anos éramos, assim tão indiferentes aos outros? sei lá... acho que era o que a alma sensível dele previa para o futuro próximo. Ó nós vivendo ele agora!
    Nesse disco tem a melhor interpretação, arranjo de "Palavras" - que adoro! - pra mim. Fora as "cínicas" "Comportamento Geral" e "A Felicidade Bate à sua Porta" que acho o máximo!

    Ah, tava pensando em fazer um "Mas Sarau..." no dia 22/09 (quando ele completaria 65 anos se ainda "sofresse" por aqui) lá no MPBar, com participação do Lolô - que além de gostar dele tem a voz mega parecida. E podiamos mesclar com vinil. O que acha?

    bjo

    Auci

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  2. Sua interpretação para a foto da capa é bem pertinente, principalmente se levarmos em conta que normalmente o primeiro disco de um artista é um acúmulo de ideias que já vinham se formando, e sentem a necessidade de aflorar. A ideia do Mas Sarau... e Noite de Vinil em homenagem a Gonzaguinha é boa. Podemos conversar.

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  3. Ah, o amigo a quem apresentei a música ouviu e achou que podia ser trabalhada por sua banda, mas não retornou ao assunto.

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  4. Eu amaria ter visto a participação dele neste festival. Como todo material em vídeo desta época, é muito difícil de encontrar. Se existe, está escondido ou arquivado em algum lugar.
    Quanto à capa do LP, eu sempre pensei que se tratasse dele se olhando frente a um espelho quebrado. A maquiagem é que eu nunca decifrei, mas pensava que fosse pra dar um proposital ar sombrio, soturno. Eram anos de chumbo.
    Parabéns pelo artigo!

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