Palavras Domesticadas

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terça-feira, 23 de julho de 2013

O Tempo dos Festivais - Quando Ainda Se Protestava - 1976 (2ª Parte)

"Com o FIC, a temática regional passou a segundo plano: preferia-se agora um tipo de canção de gosto supostamente internacional, como o próprio título do festival sugeria. Com isso, os intérpretes de presença forte, de tanto sucesso nos festivais da Record, foram substituídos por cantores balouçantes, ao estilo de Demmis Roussos, o grego de túnica longa, ou exóticos, como o francês Antoine, que corria pelo palco com uma camisa do Flamengo. O sucesso ficava geralmente para as cançonetas suspirosas, do tipo Love Is All, defendida pelo anti-séptico Malcon Roberts.
O ponto de encontro entre o público da Record e o do Maracanãzinho era a vaia. Festival que se prezasse  tinha vaia, muita vaia. Se o som vindo do público era igual nas duas plateias, visualmente elas eram diferentes: enquanto em São Paulo havia um maior número de faixas, o público carioca balançava para um lado e para o outro, nas arquibancadas do Maracanãzinho. Nos festivais da Record, as polêmicas giravam em torno dos movimentos musicais, emergentes ou consolidados. No FIC, o elemento gerador de controvérsias era sempre a premiação.
Esta, nos tempos da Record, parecia não ter importância suprema. Conta-se até que, em 1966, o primeiro lugar, dividido entre Disparada e A Banda, de Chico Buarque, seria só da composição de Chico. Este é que antes da divulgação do resultado, teria corrido aos bastidores e interferido junto ao júri para a divisão do prêmio, considerando que o público estava exatamente dividido entre a sua música  e a da dupla Théo-Vandré. Com o festival, o palco da Record voltava a apresentar a autêntica música popular brasileira, depois de longamente povoado pelos que faziam os programas da Jovem Guarda de Roberto Carlos. Revelava-se ou consolidava-se ali uma safra de compositores que nos 10 anos seguintes se afirmaria como das mais talentosas da história da nossa música popular. Esse grupo - lembra Edu Lobo - chegou a ser chamado de 'a geração da Record'.
No FIC, o panorama era outro:
- Para mim - confessa Nana Caymmi - participar do Festival Internacional foi muito bom. Não só por ter ganho um prêmio de primeiro lugar mas também porque tive a oportunidade de conhecer realmente o meio artístico. Eu estava muito desenturmada na época. De repente foi aquele negócio de repórteres, recepcionistas, artistas estrangeiros, discussões. Era, no mínimo, divertido e a gente fazia muitos contatos. Empresários estrangeiros sempre voltavam com partituras debaixo do braço. Mesmo quem não participava conseguia arranjar algum contrato.
Geraldo Vandré em 68
A internacionalização dos festivais trouxe atrações extras ao Maracanãzinho de arquibancadas lotadas e som sempre péssimo, apesar das promessas, renovadas anualmente, de uma aparelhagem mais eficiente. Toda uma engrenagem foi montada pela TV Globo para fazer que tudo funcionasse de modo rentável. Muitos artistas estrangeiros já vinham com contratos que incluíam apresentações em outros lugares (teatro, televisão, etc). Alguns deles, porém, na realidade não tinham em seus países o renome que se insinuava aqui, tanto que, passado o festival, se demoravam em férias nas praias tropicais, a demonstrar que não o esperavam na terra de origem os compromissos que fingiam ter adiado.
A essa modalidade de logro, juntavam-se pressões de vários tipos. As gravadoras, por exemplo, faziam tudo para classificar seus contratados e houve incidentes como este agora revelado por Dori Caymmi:
- Quando Saveiros ganhou, as coisas ficaram muito mal paradas. O Ministro das Relações Exteriores, parece, achou que repercutiria mal o Brasil vencer logo no primeiro ano e houve uma pressão sobre o júri, para que este fizesse nova votação. O Chico, que presidia o corpo de jurados, protestou. Mas houve nova apuração e Saveiros ganhou de novo. Acabaram, no entanto, anunciando a vitória da música alemã e deixando Saveiros em segundo lugar. A história me foi contada por três amigos de meu pai que faziam parte do júri: Jean Sablon, Amália Rodrigues e Pedro Vargas.
Jorge Ben canta Charles, Anjo 45 no FIC de 1969
Ainda assim, a saída era cantar. Parecia que o brasileiro se descobrira compositor e cantor. Festivais não faltavam. Às vezes, havia até 12 por ano: estudantil, universitário, interescolar, intercolegial (São Paulo, 4 mil participantes), fluminense, de Cataguases (onde a Equipe Mercado jogou carne na plateia), penitenciário da Guanabara, da cidade de Mendes, de Juiz de Fora, nordestino e de músicas de favela (o júri era o público e o primeiro prêmio um televisor), além do FIC. Neste, ter música incluída no balaio (como era chamada a primeira seleção das músicas inscritas) dava status a qualquer principiante. Só nos três primeiros festivais internacionais foram inscritas 10 mil e setecentas músicas.
Quem se via escolhido para fazer a primeira seleção musical sofria durante dias, a ouvir horas seguidas, fitas aos quilômetros. O crítico Sérgio Cabral - 'Duvido que alguém tenha sido jurado de mais festivais do que eu' - relembra:
- Brasileiro sempre achou que entende de música, que sabe fazer música. Selecionar as músicas para o balaio era terrível. Algumas eram de uma indigência incrível, como a de uma mulher que cantava:
Meu filho, meu filho, larga essa peçonha/ Meu filho, meu filho, pare de fumar maconha. E isso com voz de soprano. Aí, a gente começava a ficar com raiva. Quando de repente aparecia uma música boa, a gente sentia logo. Era praticamente impossível a música de certa qualidade ficar de fora do balaio."
(continua)

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