"Com o Festival da Record transformado em Bienal do Samba, e os multíssimos outros festivais sem maior expressão, o FIC - o quarto - dominou 1969. Mas já dava os últimos suspiros. Os compositores inscritos eram, de uma maneira geral, jovens desconhecidos. Se isso era um dado positivo, por proporcionar o aparecimento de novos valores, tinha sua contrapartida: a ausência de grandes nomes significava em termos comerciais, um perigo.
Nesse ano em que o homem chegou à Lua, o FIC já tinha um caráter espacial. Começava com a contagem regressiva do locutor Hilton Gomes, acompanhado por um coro de 25 mil espectadores: 'Cinco...quatro...três...dois...um, boa sorte, maestro!' Os resultados eram dados por um computador eletrônico e as músicas transmitidas ao vivo, via satélite, 'do Maracanãzinho para o mundo'. Mas quando tudo acabou, um espectador saiu gritando, a parodiar uma canção popular da época: 'Socorro, o festival está morrendo'.
E vinham as críticas, construtivas ou não. Algumas pediam a rápida mudança da estrutura, igual desde o primeiro ano. A parte comercial estava mais do que comprometida: firmas co-patrocinadoras, uma indústria de tecidos, até a Loteria Federal. Levantaram-se também hipóteses de falso resultado dado pelo computador eletrônico: Cantiga Por Luciana, de Edmundo Souto e Paulinho Tapajós, interpretada por Evinha, não teria ganho. A vencedora teria sido a música norte-americana Eve, de Jimmy Webb. Membros do júri confirmaram o erro do computador, mas houve quem dissesse que nem havia computador: as contas eram feitas na ponta do lápis, o painel servia apenas para decorar. Apesar de tudo, o Galo ficou mesmo com Luciana.
A internacionalização do festival foi pródiga em situações excêntricas: nesse ano, a embaixada israelense não reconheceu a cantora de Israel, que morava há dez anos em Paris, como representante do país; o trio paraguaio viera de Madri, o cantor boliviano era de Buenos Aires, a música da Grécia era a mesma canção que no ano anterior concorria pela Holanda - e a da Austrália, Out of This World, foi feita pelos brasileiros Candinho e Lula Freire.
Os Mutantes cantam Caminhante Noturno |
A essa altura, a TV Globo já armara uma infra-estrutura que absorvia os primeiros colocados. Um programa com Ivan Lins, por exemplo, quase desgastou completamente a imagem desse compositor. O mesmo ocorreu com Antonio Adolfo (BR-3):
- Eu estava envolvido num esquema comercial complexo. Quase fundi a cuca. O festival estava competitivo demais. Era uma guerra. Para sair disso tudo tive de viajar para me recuperar, não só musical mas fisicamente também.
O público não vaiava, apenas. Sabia até cantar. E foi regido uma vez por Ray Coniff, em 1970. O maestro, surpreso com as 35 mil pessoas que surpreendentemente cantavam no tom, passou a reger a plateia, esquecendo-se do coro e da orquestra. Simonal, com Meu Limão, Meu Limoeiro fez o público levantar e baixar a voz, sem um erro, várias vezes.
Em 1970, para evitar o esvaziamento já patente, os organizadores do concurso resolveram classificar vários compositores automaticamente: Tom Jobim, Vinícius de Moraes, Paulinho da Viola, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Sérgio Ricardo, Ruy Guerra, Capinan, Baden, Marcos e Paulo Sérgio Valle, Milton Nascimento, Egberto Gismonti, Chico Buarque, Edu Lobo.
- Justamente esse - conta Chico Buarque - foi um ano duro em termos de censura. Nós nos reunimos e resolvemos não participar do festival, em sinal de protesto contra a ação dos censores. Todos os que estávamos nos Rio assinamos um manifesto. Fomos então intimados pelo DOPS a prestar depoimento, como se tivéssemos praticado um ato de subversão. Participaram do interrogatório um funcionário da TV Globo, o Secretário de Segurança, General França, e o inspetor Sena. Queriam enquadrar a gente na Lei de Segurança Nacional. O nosso caso não era com a TV Globo, mas claro que ela se sentiu prejudicada. Saímos do interrogatório ameaçados de enquadramento. Foi um dia muito agradável.
Tom Zé premiado com São Paulo, Meu Amor em 68 |
- Alguma outra história do gênero?
Chico ri: 'Que eu me lembre, agora não. Essa foi a mais empolgante.
Nesse mesmo festival, 25 das 36 músicas classificadas foram censuradas. Na presidência do júri, Elis Regina foi substituída pela atriz de telenovelas Regina Duarte. A vencedora da parte nacional foi Kyrie, de Paulinho Soares e Marcelo Silva.
João Araújo, diretor-geral da gravadora Sigla, que seria inaugurada no ano seguinte, fala das dificuldades subsequentes à saída dos compositores censurados e dos que se solidalizaram com eles:
- Foi uma corrida para abrir inscrições novamente, isso sete dias antes do festival começar. Virávamos dia e noite para ouvir as músicas que estavam se inscrevendo e ver se poderiam se classificar ou não. No final, muitos dos compositores, não do grupo que não entrou no balaio, quiseram voltar. Aí sobrou gente. Foi uma loucura."
(continua)
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