Palavras Domesticadas

Palavras Domesticadas

segunda-feira, 24 de junho de 2013

Gilberto Gil - Revista Ele Ela (1974) - 1ª Parte

Em 1974 a revista Ele Ela trouxe uma boa matéria/entrevista com Gilberto Gil, feita pelo jornalista Ernesto Fernandez, chamada "Gil, o cantador". Reproduzo abaixo:
"Ele vive procurando. Na vida e na música. Às vezes se engana, dá meia-volta e começa de novo. Em muitas, acerta. O tempo suficiente para encontrar um novo caminho. Um homem alerta para tudo - da ecologia à parapsicologia e as transas do astral - simples como o Vale do Ituaçu, onde passou a infância, complexo como Lunik 9, que compôs e cantou. Gilberto Gil: um homem do planeta Terra e do século vinte.
Gilberto Gil é um sujeito muito entrevistável. Fala muito, e sem problemas, fala bonito. E o papo começado nos camarins do Teatro Teresa Raquel, onde fez um show, pode ter todos os cenários por onde andaram os seus pés e sua música. Astros, estrelas, galáxias, Londres ou simplesmente  a Bahia.
Nos olhos dele brilham umas luzes que não são exatamente as do flash do fotógrafo. E ele fala:
- A música é hoje a minha grande mãe. Já fiz e faço muitas coisas na vida. Mas hoje, fazer música só me basta. Me dá a satisfação do eu agente, da ambição do intelectual, do saber, da transmissão. A música me oferece toda a nutrição necessária. É como se ela costurasse tudo na minha vida. É o fator de equilíbrio entre as coisas que faço. É como se me oferecesse um espelho de mim mesmo. E cada vez esse processo se intensifica e aflora mais no nível da consciência tranquila. Tem momentos na vida de um cara classe média como eu (que teve acesso a informações e formações) em que ele acha que pode fazer uma porção de coisas.
Hoje sei que, fazendo música, estou trabalhando, pintando, escrevendo. É como se fosse a arte total.
Gil é mulato, de ginga bem brasileira, mas seus dedos sabem dedilhar uma guitarra com a mesma presteza com que seus irmãos americanos tocam blues. Ou com o mesmo sentido de ritmo com que os irmãos africanos tocam atabaques.
- Quando digo que minha música é preta, falo basicamente do problema rítmico, aquela sonoridade onde o ritmo é, ao mesmo tempo, harmonia e melodia. Aquela coisa negra que vem do próprio modo negro de linguagem. E talvez exista aí também um elemento índio. O negro é que tem a responsabilidade na música americana e, de certa forma, na brasileira também.
Gil é bonito, mas diz que não é.
- Sempre fui menos aceito mesmo. E aí entra uma porção de coisas. Eu não sou tão relaxado como Caetano. Eu não sou tão bonito. Eu olho de uma forma mais dura e tudo isso vai do meu corpo. Desse veículo que Deus me deu. Deus me deu essa aparência menos saudável.. E é por isso que eu tenho de fazer com a minha alma um trabalho mais difícil. Tenho de ser uma coisa mansa, dentro dos padrões da beleza.
Quem já viu Gil tocar e cantar deve ter percebido que, quando toca, ele parece tomado por qualquer coisa, em transe. Como se tivesse sido possuído por um enlevo poético, diria parte de seu público. Ou como se tivesse se esquecido do mundo, diria outra. E ele mesmo explica o processo.
- A sensação de que sou um instrumento da natureza vem do sentido de uma totalidade da música.
De repente, você perde a divisão de sentimento e pensamento  com relação ao que está fazendo. Ao ser tocado, impulsionado, eu soo, viro música, me interpreto. Como se eu fosse a manifestação do som que passasse por ali naquele momento. Como se eu fosse um para-raio ou uma antena. Como se uma manifestação musical tomasse conta de mim. Não penso muito no que estou fazendo. Viro um pensamento vivo. É muito parecido com os fenômenos dos cultos, dos transes mediúnicos. E vem junto todas as minhas coisas, e também toda a história do homem. Sou tomado por algo e me dissolvo nele, meu ego se esvai. E vem o choro, o grito, o lamento, a alegria, tudo. É um barato total. A música, como eu a encaro, é uma coisa do campo da mediunidade. O próprio Ezra Pound diz que os artistas são antenas do sistema. E  a gente vai começar a viver tempos muito incríveis a respeito disso.
Quanto a mim, quero estar informado, quero saber de tudo, porque os tempos são difíceis no país e no mundo e quanto mais a gente souber mais vai poder fazer pelo homem."
(continua)

Nenhum comentário:

Postar um comentário