Palavras Domesticadas

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segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Tubarões Voadores - Arrigo Barnabé


Após lançar o bombástico e surpreendente Clara Crocodilo, Arrigo Barnabé em seu segundo disco concebeu um álbum onde trazia uma parceria visual com o quadrinista Luiz Gê. Tubarões Voadores foi baseado em uma HQ do artista gráfico, que também aparece como letrista na faixa-título. Na época de seu lançamento o jornal o Pasquim, em outubro de 1984 trazia uma matéria sobre o disco, intitulada "Arrigo Barnabé - Profeta Maldito da Megalópole", assinada por Ilmar Carvalho:
"Com seu segundo disco, Tubarões Voadores, da Ariola, Arrigo Barnabé vem confirmar todas as expectativas geradas com o lançamento do independente Clara Crocodilo, seu primeiro mergulho fonográfico, realizado em 1980. Em Tubarões Voadores, continua predominando a temática da grande metrópole, desde a cascaval Crotalus Terrificus, cuja letra é de Paulinho da Viola, até Tubarões Voadores, letra de Luiz Gê e música de Arrigo. Tubarões e crótalus significam a terrível opressão dos grandes aglomerados urbanos, significam a inchação teratológica das metrópoles, onde tanto a Neide Manicure Pedicure, o Kid Supérfluo ou o Office-Boy (esta faixa do disco anterior), são os seres comuns, representam a humanidade, os urbanoides de uma apocalíptica, fria e eletrônica pauliceia desvairada, que os esmaga e deprime.
Mas Arrigo traz molhos e condimentos ainda pouquíssimo usados aqui. Na música é personalíssima. Em Tubarões, por exemplo, ele trabalha com ostinato, onde a frase ou desenho é repetido várias vezes nos instrumentos graves. Houve um planejamento de gravação (Dino Vicente) e o equipamento usado foi o Drumulator JX3P, Sequencer SCI Pro One, Moog Sistem 15 e Yamaha, este programado por Bozo Barreti. Essa faixa mostra o compositor da grande cidade, de São Paulo, com suas avenidas, seus becos: é música incidental sobre São Paulo. O compositor trabalha muito com o cromatismo; o ostinato sustenta a tonalidade, que é repetida, e o efeito é de uma grande reportagem musical urbana, amarga, fria, devoradora, como os Tubarões Voadores que invadem a cidade:'Feche a janela Joãozinho/Ou seremos comidos/Pelos tubarões voadores.../De nada adianta fugir/Estes são/Os Tubarões voadores...'

Neide Manicure Pedicure é música concebida essencialmente num estúdio. A letra é de Paulo Barnabé e a música de Arrigo e Bozo Barreti. Vânia Bastos, soprano afinada, dobra a própria voz, canta com ela própria. São utilizados todos os recursos de estúdio, e o resultado é o próprio disco, produto final dessa manipulação, desse uso. Arrigo usa bem adequadamente o instrumental à sua disposição. É flagrante o equilíbrio de planos, no estúdio: instrumentos combinados, diálogos tímbricos bem realizados. A peça não é necessariamente atonal, de vez que no atonalismo é proibido qualquer regra tonal. Nesta faixa, a repetição do desenho cria um centro gravitacional que não está longe do centro tonal clássico. Há elementos rítmicos de rock, como em Kid Surpéfluo, e Vânia Bastos usa o 'sprechgesang' (espécie de declamação musical que participa a um tempo do canto e da fala, alternando um e outro). Aliás, essa técnica que veio no bojo da abordagem dodecafônica de Shoenberg, aqui foi usada, nada mais, nada menos, por Moreira da Silva, em seus sambas-reportagens. Ele, sem o saber, foi o novo precursor do 'sprechgesang'. O autor volta aí a usar o ostinato, fazendo alternância de compassos.
Arrigo faz uma música para consumo? Sim, mas que não deixa margem a que sua obra seja confundida com o consumismo descartável. Ela é um objeto de consumo, mas do nível de um Rolls Royce. Arrigo se situa na região de Hermeto Pascoal, Egberto Gismonti, faixa que, sem ser popular, tem o nível do trabalho de Caetano, de Milton Nascimeto. Esse jovem londrinense detém uma refinada soma de informação musical, e o resultado se vê/ouve em seu trabalho. Ele faz dialogar instrumento e voz. Em sua concepção, o instrumento não serve como mero acompanhamento. Ele utiliza também elementos aleatórios, mas controlados.
A linguagem do compositor não é pioneira no Brasil, se se levar em conta os arranjos de Rogério Duprat para Baby, de Caetano, em 68, e de Julio Medaglia para Tropicália, também de Caetano, naquele mesmo ano. Aliás, autores eruditos têm feito com frequência arranjos para a música poular, como é o caso de Guerra Peixe, Radamés Gnatalli e do maestro Gaia.

Arrigo, com sua música personalíssima, está abrindo outro espaço, como Hermeto, que usa em sua obra efeitos concretos e aleatórios. E pelo que se vê de seu segundo disco, Arrigo realiza um trabalho de conjunto, elaborado em estúdio. Não é, parece, nem o caso de ele desconhecer arranjo, pois há compositores que dão o arranjo de base para um arranjador, o de cordas para outro, o de metais para um outro, registrando-se um trabalho de várias mãos, tanto é que na ficha técnica do disco constam várias assinaturas dos arranjos. Pode ser até uma proposta de Arrigo fazer esse tipo de divisão do trabalho com seus companheiros. Aliás, se ele é capaz de fazer tudo o que está registrado no LP, então é possível que ele tenha condições de realizar um trabalho completo. Arrigo impressiona uma faixa etária jovem, mas seu trabalho vem sendo acompanhado por todas as demais áreas. A meu ver, a rigor, ele supera a compartimentação ainda estanque da música popular e erudita. Aliás, não existe o compositor erudito ou popular: há o bom e o mau compositor. Há, inclusive, como bem observa Nestor de Holanda Cavalcanti, compositores por especialidade: Waldemar Henrique, por exemplo, é compositor para canto, como há compositor para determinados instrumentos, como Pinxinguinha.
O trabalho de Arrigo tem substância e conteúdo. E o que mais chama a atenção é a feitura de uma música crítica, onde ganha foros de um repórter da grande cidade, criando um clima surpreendentemente belo e terrível, onde expõe as feridas da megalópole, São Paulo.

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